Revista Casa Marx

Educação, Estado e classes sociais no Brasil: a sociologia da educação de Florestan Fernandes

Alessandro de Moura

Este artigo é uma contribuição de Alessandro de Moura para a tribuna aberta da revista do Instituto Casa Marx. O objetivo do artigo é elucidar as ideias e reflexões de Florestan Fernandes sobre o sistema educacional brasileiro e o papel da educação escolar pública na formação da sociedade, bem com a função do Estado em relação a ela. Para isso, tomamos duas obras de referência do autor, sendo Educação e sociedade no Brasil, publicada em 1966 (núcleo central da sociologia da educação de Florestan) e O desafio educacional (um conjunto de artigos dos anos 1980). As reflexões aqui apresentadas, bem como a escolha do estudo das obras de Florestan Fernandes, são desdobramentos das reflexões que apresentamos no texto: Educação em Marx: formação da consciência, escola e luta de classe (2023).

Introdução

Nos presentes dias, ainda vivenciamos uma vigorosa campanha contra a escola pública, gratuita e de qualidade acessível a todos. Nisto inclui-se um movimento de obsoletização programada da educação pública, uma defesa explicita de cortes de recursos públicos para a rede pública, intencionando leva-la à deterioração, desmantelamento e declínio. O objetivo primordial da campanha contra a escola pública é a asfixia e a privatização do ensino, subestimando e declarando a falência do sistema de educação estatal e direcionando parte dos alunos da rede pública para a rede particular como alunos pagantes, contribuindo para enriquecer os proprietários de escolas particulares, exigindo ainda que o Estado seja um mecenas das escolas particulares. Em tal quadro, contraditoriamente, os professores, que se organizam em defesa do ensino público de qualidade, com adequadas condições de acesso e permanência, são estigmatizados e listados como inimigos públicos. A campanha contra a escola pública propaga o desprezo pelo oficio docente e pela equipe escolar, mas sobretudo contra as professoras e professores do 1º e 2º graus da rede pública (algo que não vemos em relação à rede privada, como se todas escolas privadas fossem centros de excelência). As greves de professores são duramente reprimidas (com grande apoio midiático, que faz campanha pública contra o professorado). Aqui veremos o caminho oposto, Florestan parte da análise concreta do papel da educação no desenvolvimento nacional, na formação da população e elevação dos níveis educacionais do país por meio de políticas públicas vigorosas que incrementam o projeto nacional. O autor convocava a população para uma Campanha em defesa da escola pública, contra a dissipação dos recursos públicos pela iniciativa privada e a regressão destrutiva do ensino público: “o dinheiro público deve ser investido no ensino público, laico e gratuito”. (FERNANDES, 2000, p.149. Essa campanha é certamente um movimento ao qual todos nós deveríamos nos integrar.

Educação como formação humana e educação escolar

O processo de educação inicia-se desde o nascimento da criança, nos círculos familiares e nos processos de socialização primária, estendendo-se ao longo de toda a vida. Ao analisarmos os escritos de Marx, evidencia-se, o pressuposto de que o ser humano é um ser ativo na produção da própria subjetividade no meio coletivo. Chamamos de educação as formas de ensino e aprendizagem que conduzem a integração do ser humano ao meio social e natural, aprofundando as suas capacidades de compreensão de si, das forças da natureza, das forças sociais e políticas que lhes são exteriores. Envolvendo amplos aspectos, a educação cumpre um papel de formação multifacetada nos seres humanos. Ela os integra e modela, desenvolvendo suas potencialidades e dotando-os de capacidades e ferramentas para construírem-se como sujeitos, ampliando suas capacidades de compreensão de si mesmos e das relações sociais em que estão imersos. Faz com que possam localizar-se e integrar em determinado período histórico, econômico e social, numa dinâmica multicultural em movimento. Ainda, a educação, além de desenvolver a subjetividade, adapta o ser humano às necessidades e demandas do seu próprio entorno, no seu presente sócio-histórico. Nesse processo, socializa os acúmulos e conquistas da civilização, preparando o ser humano para a vida coletiva, para as necessidades práticas, simples e complexas da comunidade humana, conscientizando-o sobre sua posição e o seu papel em seu próprio destino e no destino da sociedade na qual se constrói. (MOURA, 2023).

Já a educação escolar é compreendida como uma forma organizada de ensino e aprendizagem que possibilita aos estudantes atingirem variados fins. Ela é concebida para atuar na formação intelectual, filosófica, mas também profissional e tecno-científica. Por meio dela, pode se manter e difundir as bases intelectuais acumuladas pela experiência humana histórica, considerando a herança cultural que se pretende difundir. A escola foi firmada como peça fundamental no processo de aperfeiçoamento e desenvolvimento dos recursos intelectuais inerentes à herança cultural. Ainda, como apontava o autor em tela: “A escola não é apenas uma fonte de instrução, é uma fonte de socialização e do despertar da consciência do ‘eu’ da pessoa, da dimensão política”. (FERNANDES, 2000, p. 229). Nesse sentido, a educação escolar é um “fator de aumento do controle das forças econômicas psicossociais, sociais ou culturais do ambiente”. (FERNANDES, 1966, p. 78). Florestan enfatizava que a escola desempenha um papel civilizatório contínuo na sociedade:

(…) Ela propõe os valores gerais do sistema de ensino, com o propósito de expandir a civilização, de eliminar a barbárie pré ou subcapitalista e a opressão. O objetivo consiste, portanto, em civilizar a sociedade civil, extinguindo-se a existência e a multiplicação dos oprimidos. O vetor primordial volta-se para a humanização do indivíduo e sua liberdade (…)”. (FERNANDES, 2000, p. 61).

O sistema escolar público foi uma conquista das revoluções burguesas na Europa, como conquista popular e difundiu-se por todo o tecido social da sociedade moderna. Neste diapasão: “A educação tornou-se um “problema social” em todas as sociedades que compartilham da moderna civilização, associada à economia de mercado, ao regime de classes sociais, à ordem social democrática, à ciência e à tecnologia científica”. (FERNANDES, 1996, p. 101). Ela atua ajustando a população a um novo modelo produtivo e social que emergia dos escombros da sociedade feudal.

Os processos das revoluções burguesas, com a revolução industrial, modernização das forças produtivas e das forças sociais e de reorganização política-estatal, demandaram novas formas de pensamento, de comportamento e de engajamento na produção, e, a escola foi peça importante na formação de novos comportamentos necessários.

A educação escolar, organizada com currículo predeterminado e metodologias de ensino, mostrou-se uma forma eficiente de difusão, de aprofundamento e aperfeiçoamento da inteligência humana por meio da ação dos profissionais do ensino. Cumpre o papel de “preparar o homem para as atividades altamente especializadas e para comportar-se racionalmente em quase todas situações da vida prática”. (FERNANDES, p. 101).

De acordo com Florestan, por meio da educação escolar: “(…) Formam-se estados de opinião e tendências de atuação social que associam a herança cultural recebida ao incessante processo de alargamento contínuo da esfera de controles ativos do homem sobre a porção social do ambiente. (…). (FERNANDES, 1966, p. 101). Desta forma, a educação escolar é parte central do processo civilizatório demandado por cada povo e Estado-nação. Ela funciona como instrumento de transplantação cultural, pois: “(…) A escola, qualquer que seja o nível de ensino, testemunha um certo grau de interesse e de domínio da herança civilizatória que compartilhamos (…)”. (FERNANDES, 1966, p. 73). A educação estimula o pensamento criativo, dotando os estudantes de ferramentas para compreenderem e atuarem como sujeitos ativos na sociedade, ela ajusta “(…) o homem ao seu meio ambiente, quer para despertar nele disposições criadoras, suscetíveis de leva-lo a agir de acordo com as identificações ou solicitações de ideais nacionais de vida e de Humanidade (…)”. (FERNANDES, 1966, p. 442).

O sistema de ensino, ao longo dos séculos, acumulou complexos e diversificados níveis de conhecimento, desenvolvendo variadas metodologias e técnicas de compartilhamento de conhecimento de ponta. Em síntese, o sistema escolar firmou-se como uma poderosa ferramenta que: “(…) organiza suas aptidões no aproveitamento de energias físicas, intelectuais e morais, de comportamento inteligente e para o pensamento inventivo”. (FERNANDES, 1966, p. 442). Sendo assim:

(…) Na civilização moderna, a instrução constitui um bem que deve ser partilhado por todos. Ninguém pode se tornar útil à coletividade ou a si próprio sem um mínimo de instrução. A primeira condição para a valorização do homem e o aproveitamento social de suas energias físicas, intelectuais e morais, reside na instrução e cabe à escola primária transmitir a parte dessa instrução que deve ser compartilhada por todos e formar os alicerces de qualquer aprendizagem mais complexa ulterior. (…). (FERNANDES, 1966, p. 454).

A escola proporciona, por sua base científica e pedagógica, um salto em sua capacidade cognitiva, na aprendizagem e no desenvolvimento de sínteses elaboradas. Com seu corpo de educadores especializados, interrelaciona múltiplos estímulos, de forma poli-comunicacional, articulando variados mecanismos de transmissão de conhecimento e construindo acúmulos pedagógicos que se institucionalizam socialmente de geração para geração. Nesse sentido, considerando a multiplicidade de indivíduos que compõem as classes sociais, com estratificação e desigualdades estruturais, fica conjecturada a existência de variados níveis de aprendizagem e de demanda educacional na sociedade que são atendidas nas escolas.

De forma sintética, podemos dizer que a educação escolar desempenha um conjunto de funções em todas as sociedades. Aqui destacamos quatro deles:

1) Promove a socialização entre os estudantes, professores e a comunidade. 2) Atua como centro de compartilhamento teórico-cultural, a escola é espaço de compartilhamento de conhecimentos históricos-científicos acumulado ao longo dos séculos (desde Aristóteles, Pitágoras, Einstein, Darwin, Galileu, Leonardo da Vince etc). De transmissão e reprodução social de saberes e conhecimentos de uma geração para outra. 3) Opera na construção de compreensões sobre o presente, pois é espaço para explicar e produzir compreensões do real vivido, as concepções sócio-histórico, filosóficas, científicas, econômicas e políticas. A educação equipa o estudante com uma variada gama de conhecimentos e habilidades ajustando suas capacidades às condições do presente, nas “demandas do século”. A estrutura social se reproduz e se renova constantemente, e a educação atua como instrumental múltiplo e variado tanto na reprodução como na reorganização tecno-científica, nas elaborações e aquisições de cada fase socio-histórica. A escola concilia o programa histórico, clássico, com as demandas sociais em constante mudança, com novas descobertas, novos debates e demandas emergentes em cada fase histórica. 4) Promove a formação de sujeitos políticos aptos à vida democrática: em perspectiva mediatizada, a escola é espaço de mudança cultural planejada, de nivelamento cultural nacional, com homogeinização de bases intelectuais, proporcionando a elevação do nível médio e funcionando como um fator de integração nacional, social e política. É ferramenta de construção democrática, na formação de cidadãos ajustados à vivência democratizada, pois a trajetória educacional potencializa as capacidades de intervenção planejada na reconstrução da ordem social, disseminando conhecimentos sobre a estruturação social para se pensar o papel das instituições e dos indivíduos como cidadãos de direitos, sujeitos na construção da realidade social, política e econômica. Dentro disto, a educação pública, gratuita e acessível é todos, é a forma mais eficiente que temos para realizar tal conjunto de funções.

Educação no Brasil

No Brasil, apenas no século XX, é que se viveu um processo de democratização do ensino escolar, como apontado por Florestan: “entre 1890 e 1950, por exemplo, a proporção de alfabetizados passou de 15% para 49% (…)”. (p. 124-125). Segundo os dados do censo do IBGE (2022), nos anos 1980 o total de alfabetizados era de 74,5%, mas em 2002 atingiu-se a cifra de 93% de alfabetizados:

 

A educação pública no Brasil foi implantada com objetivo central de adaptar o brasileiro às mudanças sociais, políticas e econômica pelas quais o país passou ao longo do século XX. A industrialização e a concentração urbana nos grandes centros industriais demandaram maior qualificação da mão de obra, exigindo maiores esforços educacionais por parte do Estado para adequar a sociedade aos novos padrões de vida, trabalho e de sociabilidade. Era preciso formar um tipo de cidadão trabalhador apto a integrar-se ao sistema de produção capitalista e industrial que aqui se instalava com certo tardar. Nesse aspecto, a educação brasileira funcionou como um importante fator de integração nacional e homogeneização cultural. A escola pública funcionou como: “(…) instrumento eficaz de uniformização e de integração na sociedade brasileira. Desde a época das lutas pela independência, a “homogeneidade” sempre foi avaliada com uma condição para o sucesso do Brasil como País livre (…)”. (FERNANDES, 1966, p. 547). Para o autor, nos países subdesenvolvidos como o Brasil, o sistema de ensino público desempenha um papel ainda mais importante e progressivo, pois:

(…) Os países subdesenvolvidos são, também, os que mais dependem da educação como fator social construtivo. Tais países precisam da educação para mobilizar o elemento humano e inseri-lo no sistema de produção nacional; precisam da educação para alargar o horizonte cultural do homem, adaptando-o ao presente e a uma complicada teia de aspirações, que dão sentido e continuidade às tendências de desenvolvimento econômico e de processo social; e precisam da educação para formar novos tipos de personalidade, fomentar novos estilos de vida e incentivar novas formas de relações sociais, requeridos ou impostos pela gradual expansão da ordem democrática. Todavia, esses países não encontram, na situação sociocultural herdada, condições que favorecem que uma boa compreensão dos fins, que uma boa escolha dos meios para atingi-los. (FERNANDES, 1966, pp. 350-351).

Ainda que tenha representado um salto qualitativo no desenvolvimento humano e integração nacional, as oportunidades educacionais não foram estendidas a toda a população, ficando restritas à núcleos mais dinâmicos dos centros urbanos. Sendo assim, o sistema público de ensino foi concebido de forma excludente. A classe dominante brasileira opinava que era dispensável que o sistema escolar chegasse às amplas massas trabalhadoras. Entendiam que “(…) Essa massa era gentinha; e, para ser a gentinha, a educação seria como uma pérola, que não deveria ser lançada aos porcos”. (FERNANDES, 2000, p. 244).

A questão do acesso à educação pública permaneceu com um problema social que transpassou todo o século XX no Brasil. E, ainda em nossos dias, persiste uma série de problemas a serem sanados, sobretudo no que diz respeito ao acesso e à permanência. A estrutura educacional sobrevive como uma estrutura muito desigual. Florestan considerava a exclusão como subproduto da formação do seu sistema de ensino que se deu no limiar da escravidão, reproduziu a exclusão escolar, o conservadorismo, e o autoritarismo flagrante no despotismo institucional.

(…) através dos vários episódios sucessivos, que encadearam nesse mesmo processo de abolição da escravatura, a universalização do trabalho livre, a Proclamação da República, sedições político-militares, a industrialização ou a urbanização de várias regiões do País, nunca se tentou ajustar o sistema nacional de ensino a uma era de revolução social. As nossas escolas continuam a ignorar os grandes ideais e os alvos básicos da educação popular numa sociedade democrática. (FERNANDES, 1966, p. 352).

Como aponta o autor, no caso brasileiro, subsistia o racismo institucional e autoritarismo nas relações hierárquicas do sistema educacional. Dado nosso histórico de país subdesenvolvido e de tradição escravocrata, os professores são reduzidos “à condição de servos do poder, de agentes de dominação de classe”. (FERNANDES, 2000, p. 49). Nessa perspectiva:

A nossa pedagogia ficou presa ao pseudolegalismo de uma educação subcapitalista. A lei deu continuidade à dominação férrea das elites dos senhores de escravos – mais tarde, dos fazendeiros burgueses, dos comerciantes dos grandes negócios e exportação, de importação e dos industriais nativos e “multinacionais”. (…). (FERNANDES, 2000, p. 49).

O processo de democratização foi deficitário na incorporação dos valores democráticos, participativos, mantendo os preconceitos históricos, o mandonismo e o elitismo que se difundiram sistema educacional. Para o autor, penas reequalizando tais variáveis é que se pode criar um sistema educacional inclusivo, democrático e de ponta, tanto no que diz respeito à formação de cidadão proativos, política e socialmente, como no que tange a autoconsciência de suas próprias potencialidades individuais e coletivas, de seus direitos e deveres cívicos, como produtores, agentes políticos, econômicos. Isso seria fundamental para a democratização cultural, para se lançar bases para a formação de sujeitos sociais preparados para intervir no Estado e nas instituições da sociedade democrática como produto societário coletivo, sem medo de intervir e exigir mudanças sociais em busca do bem comum. Para Florestan: “(…) Sem democratização do ensino, a democracia constitui uma falácia. E sem fortalecimento e melhoria genuínos do sistema público de ensino, é ridículo falar-se em verdadeira democratização da cultural. (…)”. (1966, pp. 514-515). O sistema educacional, estruturado nacionalmente, deve funcionar como ferramenta para se promover um exame crítico sobre os elementos retrógrados, deletérios e obstáculos que se impõem às novas gerações, capacitando para igualdade e para o modo de vida democrático.

Acesso e abandono escolar

Como vimos, mesmo a educação sendo guiada pelo Estado, existem muitas desigualdades nacionais e regionais. A essas, somam-se as desigualdades de classe social dentro das mesmas regiões. As populações localizadas em regiões de alta renda e maior desenvolvimento econômico podem ter acesso à educação de melhor qualidade, com mais recursos, materiais e estruturas mais adequadas às demandas, com equipe docente, mobiliário e tudo o que for preciso para garantir melhores condições de ensino. No entanto, essas condições se invertem quando trata de Estados, regiões e municípios mais pobres. Por isso, o autor ressaltava a urgência de se garantir o acesso igualitário à educação de qualidade para todas as camadas da sociedade. Nesse processo, a escola pública e gratuita é a forma mais democrática disponível, pois tem como premissa o acesso universal à educação: “(…) Essas escolas não “selecionam” os seus alunos tendo em vista o nível econômico, a posição social, o estoque racial ou as crenças religiosas de suas famílias. (…)”. (FERNANDES, 1966, p. 417).

No caso da classe trabalhadora, que é a maioria esmagadora da sociedade, vamos encontrar grande diversidade de condições de vida e de escolaridade. Sem políticas públicas eficazes, os setores mais pobres não podem ter acesso à educação de qualidade em todos os níveis educacionais. A classe trabalhadora, com condições mais estáveis de emprego, salário e moradia, terá melhores condições de auxílio aos filhos em sua longa jornada escolar. Corriqueiramente, empenham-se em assegurar a formação técnica para os seus filhos, chegando inclusive a lhes auxiliar no custeio de graduações universitárias. No entanto, os setores mais precarizados, superexplorados e com menores salários (definidos aqui como subproletários), que contam com menos anos de escolaridade, com trabalhos mais duros e precários, vivem na urgência da sobrevivência do dia a dia e têm maiores dificuldade em manter seus filhos na escola e acompanhar o seu desempenho.

O senso de urgência força o abandono escolar. A sociedade de classes alimenta expectativas de que uns precisam ser educados para determinadas posições de prestígio e que amplos setores da classe trabalhadora podem aprender só o básico. É como se a compreensão do mundo, em suas estruturas e desdobramentos mais complexos coubesse apenas às frações privilegiadas da sociedade.

No Brasil, podemos observar que os dados socioeconômicos convergem com o fluxo de abandono escolar e de analfabetismo. Estatísticas do IBGE apontam que, em 2021, considerando os critérios do Banco Mundial “62,5 milhões de pessoas (29,4% da população do Brasil) estavam na pobreza e, entre elas, 17,9 milhões (8,4% da população) eram extremamente pobres”. (AGÊNCIA IBGE, 2023, online). Dentro desse quadro, o Brasil (em 2023) conta cerca de 25 milhões de analfabetos funcionais (os mais atingidos são os pretos e pardos). (HEMERLY; PRETTO, 2023). Nesse quadro, acrescenta-se o abandono escolar, sendo que a taxa de conclusão do ensino básico do Brasil ainda é uma das menores do G20 (está entre os cinco piores colocados). Apenas 73,3% dos estudantes concluem o ensino médio 1. Esses índices apontam que a educação continua como um dos mais graves dilema brasileiro. O Estado, corriqueiramente não age a contento para corrigir as distorções no acesso à educação, bem como permite a existência de uma estrutura de ensino muito desigual. Com isso, as dificuldades de acesso e permanência dos estudantes na rede de ensino se perpetuam historicamente. Conforme analisava:

(…) Idealmente, tal sistema escolar deveria garantir igualdade de oportunidades para todos os indivíduos em condição de receber determinado tipo de instrução. Na verdade, porém, ele atende apenas aos segmentos da população escolar que conseguem anular (ou não são afetados) pelas barreiras invisíveis à educação democrática. (FERNANDES, 1966, p. 541).

O estudante que conta com uma adequada estrutura de apoio, tanto familiar quanto do seu entorno social, e vive em condições bem assistidas pela educação pública, encontra melhores condições de ensino/aprendizagem. Porém os que têm condições sociais e familiares mais precárias e desassistidas acabam encontrando maiores obstáculos para manter a frequência escolar. Dentro de seus lares e nos variados círculos sociais, tem-se menores estímulos para a frequência e conclusão do ensino básico. Para combater esse problema de acesso e permanência, sobretudo nos setores mais pobres da sociedade, é preciso combater o senso de urgência, possibilitando renda adequada, bolsa estudantil e todo auxilio necessário aos estudantes. As políticas públicas precisam se pautar na clareza sobre o papel progressivo da educação universal, tanto para preparar a classe trabalhadora, que é a base da produção nacional, como para preparar cidadãos ativos e também para se elevar continuamente os padrões culturais e civilizatórios da sociedade.

No entanto, numa perspectiva crítica, os alunos que apresentam baixo desempenho escolar, taxados de “maus alunos” são, na verdade, produto direto de políticas sociais e educacionais deficientes. Existe relação diretas entre as condições socioeconômicas, o baixo desempenho e o abandono escolar. As diferenças sociais e a forma como o estudante tem suas demandas assistidas influenciam diretamente em sua sociabilidade, moldam o seu comportamento no ambiente escolar, nos processos de socialização na sala de aula, na aprendizagem e nos condicionantes do fracasso escolar. No entanto, o fracasso escolar é sentido como insucesso individual, como se fosse algo independente das condições socio-materiais dos estudantes, dessa forma, a responsabilização sobre o desempenho escolar recai sobre o estudante individualmente. Esse conjunto de fatores influencia na forma como os alunos enxergam a si mesmos, em sua autoidentidade. (MOURA, 2023).

Na perspectiva de Florestan: “(…) O melhor que se pode pensar, para poder extrair uma moral da história, é que os nossos alunos das escolas secundárias são vítimas do ensino que lhes ministramos”. (p. 462). Considerando tais aspectos, pontuava então que não existe “mau aluno” de fato, o que se tem é um sistema escolar que não consegue atender determinadas demandas de camadas de estudantes que vivem em condições precárias. O que se tem então é um problema de má gestão escolar originado por falhas nas políticas públicas em variados níveis:

(…) Desse ângulo, o problema que temos de enfrentar no Brasil está longe de seu do “mau” aluno, mas o da “má” educação escolarizada. Basta que se atente para os números concernentes à evasão escolar e à reprovação para se inferir esse fato. A nossa escola é destituída, quase por completo, de recursos apropriados à assistência que se deveria dar ao aluno – em especial ao “aluno problema”, que por qualquer motivo encontre dificuldades em acompanhar o ritmo de aprendizagem do resto da classe. (FERNANDES, 1966, p. 444-445).

Educação e democratização do conhecimento

Num país como o Brasil, com alto índice de desigualdade, são necessárias políticas públicas permanentes para se assegurar a educação escolar e demais oportunidades de ensino. Florestan apontava que: “(…) Herdamos do Império e da Primeira República a educação como privilégio (…)”. (FENANDES, 2000, p. 201). Por isso, inferia que a luta brasileira passa pela garantia de que a educação de qualidade não seja um privilégio de pequenas frações da classe dominante: “Trata-se de democratizar todas as oportunidades educacionais, de estabelecer um polo popular e operário que compartilhe das mesmas garantias educacionais que se universalizaram nas classes médias e altas. (…)”. (FERNANDES, 2000, p. 59). Isso porque a desigualdade social e econômica dispõe as oportunidades de ensino de forma desigual. Por sua configuração, de acordo com Florestan: “A desigualdade econômica, cultural e social tende a fomentar condições impróprias ao aproveitamento das oportunidades educacionais, fazendo com que as dificuldades sejam consideravelmente reforçadas pela indiferença diante da instrução ou pelo poder coercitivo variável do dever de instruir-se”. (FERNANDES, 1966, p. 42). O autor aponta que existe no Brasil certo desdém pela educação popular universal, isso redunda num desprezo pela demanda por educação de qualidade acessível a todos. As camadas dominantes da sociedade, que formam seus filhos em escolas particulares de renome, não reconhecem como útil a educação de qualidade para toda a população. Sendo assim, o investimento em educação universal soa como desperdício de recursos:

(…) Há, vigoroso e ostensivo, o apego a uma mentalidade que desdenha a educação popular, teme a democratização do ensino e se opõe à expansão da rede de escolas públicas. Ora, o Senado Federal exprime o estado de espírito mais consolidado e geral das camadas dominantes; impõem-se, portanto, organizar a nossa campanha para uma luta demorada e difícil. Os males que ela precisa combater são por demais arraigados e só desaparecerão mediante uma alteração profunda da mentalidade média do homem brasileiro. (…). (FERNANDES, 1996, p. 348).

Compreendido tal paradigma, o ensino escolar de qualidade não deve ser privilégio de classe, de setores dominantes que usufruem dos melhores níveis econômicos, ou de determinadas regiões abonadas com maiores investimentos estatais. Para contrapor tal tendência, faz-se necessário um conjunto de medidas para manter de pé a luta pela escola pública, gratuita, de qualidade e acessível a todos, fortalecendo o interesse nacional pela educação escolarizada. Para Florestan, a educação popular é a “mola mestra invisível da democratização da cultura, da riqueza e do poder”. (FERNANDES, 1966, p. 94). Nesse aspecto, como destacou Florestan: “(…) Um país tende a democratizar seu sistema de ensino quando procurar atenuar ou abolir barreiras extra-educacionais que restrinjam o uso do direito à educação e o convertam, aberta ou disfarçadamente, em privilégio social”. (FERNANDES, 1966, p. 123).

Como a sociedade vive em constante movimento de crescimento e renovação populacional, mantem-se na pauta do dia a ampliação de vagas em todos os níveis educacionais, bem como a luta pela adaptação curricular, melhora da qualidade do ensino, ampliação da contratação de professores, melhora de infraestrutura etc. O processo de aperfeiçoamento das unidades escolares e do professorado nunca cessa, porque tanto as escolas quanto os educadores precisam adequar às renovações sociais, científicas, às demandas do presente, demandas geracionais, combinando o conhecimento histórico com o conhecimento socio-geracional demandado pelo presente. Na perspectiva do autor:

Assim entendida, a democratização do ensino traduz uma nova avaliação social do homem, da natureza da educação e de sua importância para a sociedade. Na base do processo, se acha uma ordem social que se inspira na crença da igualdade social e se funda (ou deve fundar-se) em mecanismos igualitários de organização do poder. Pretende-se preparar o homem para as responsabilidades sociais produzidas pela igualdade, das quais a individualização do poder é um dos aspectos, e para as tarefas que ela cria na esfera da reconstrução social. Em suma, a democratização do ensino pode ser apreciada tanto como requisito da ordem social democrática, quando como fator de seu aperfeiçoamento. Ela assegura seja a evolução mais rápida para estilos democráticos de existência, seja a consolidação do próprio regime democrático, seja a capacidade deste manter-se fiel a seus princípios fundamentais, renovando-se incessantemente para corresponder a novas exigências de conforto material, de segurança social, de aprimoramento espiritual e de satisfação moral dos homens. Daí a justeza do ponto de vista dos educadores modernos, de que não existe democracia sem democratização do ensino. (…). (FERNANDES,1966, p. 124).

Para o autor, a democratização das oportunidades educacionais é um dos elementos capazes de conduzir o “progresso material, intelectual e social das coletividades humanas”. (FERNANDES, p. 124). Dentro disso: “é preciso tornar todas as oportunidades educacionais acessíveis a todos, deixando as aptidões de cada um a decisão final sobre a espécie de aproveitamento educacional a ser dado à sua pessoa. (…)”. (Idem, ibidem, p. 129).

O Estado, escola e a sociedade

Na sociedade moderna, o Estado é obrigado a atuar diretamente na formação e na qualificação da mão de obra disponível como parte do planejamento e reposição de quadros, para que se evite a estagnação de setores da economia e a penalização da população com a ausência de serviços e de profissionais. Anualmente se reproduz e cresce a demanda por novos contingentes de pessoas para repor os quadros humanos nas diversas esferas de produção, organização e distribuição de mercadorias. Necessita-se de pessoas qualificadas para assumir uma ampla gama de tarefas e profissões, como: técnicos, engenheiros, dentistas, enfermeiras, médicos, professores etc. A instituição escolar prepara as novas gerações para substituir as gerações anteriores na produção, na organização social e política do presente e do futuro. Manter, fiscalizar a aperfeiçoar o sistema público de ensino, nos seus variados níveis, é uma forma de se colocar em prática o planejamento nacional. O sistema educacional público e estatal, aberto a todos, nas condições atuais, é a melhor forma de planejamento para se garantir que a educação escolar chegue às amplas camadas da população, eliminando obstáculos extra-educacionais ao acesso universal, sendo aberta a todos os que produzem e constroem o mundo material e a sociedade e sustentam o Estado. Na perspectiva do autor:

(…) Só a escola pública oferece ao Estado as perspectivas e as condições para a plena realização de suas tarefas educacionais, para o recurso crescente ao planejamento educacional, para o controle dos fatores extra-educacionais que interferem no processo educativo e para o aproveitamento progressivo das aptidões dos educandos. Além disso, a escola não seleciona sua clientela segundo critérios econômicos, étnicos ou ideológicos. Por sua natureza, é aberta a todos os candidatos aptos a receber instrução, a todo processo de conhecimento científico e a toda tentativa de ampliar o horizonte intelectual do homem, especialmente no que concerne à participação responsável da vida coletiva. Ao Estado Democrático, que é um Estado-educador por excelência, não corresponde nem convém melhor outra modalidade de escola. (FERNANDES, 1966, p. 133).

Neste sentido, é atribuição do Estado democrático fomentar políticas públicas eficientes no sistema educacional e na formação populacional, mas também para assimilação dos padrões da civilização moderna, aproveitando a sua própria herança sociocultural e atuando de forma criativa para o bem-estar da coletividade nacional e elevação níveis culturais e dos padrões civilizatórios. Cabe ao Estado, como mantenedor do sistema de ensino público, além de prover a formação de mão de obra necessária à socio-reprodução nacional, planejar o horizonte intelectual do tipo de cidadão que se quer formar. Assim, intervir de forma planejada na elevação do nível intelectual médio do povo brasileiro, de forma multidimensional, cultural, artística, científica, filosófica e técnica.

O Estado, como principal instituição coordenadora e financiadora, deve fornecer todo o necessário para educação de sua nação, não apenas na educação para o trabalho, mas também para o exercício democrático de seus cidadãos e para a socialização da cultura em seus variados níveis. Por fim, como asseverou o Florestan: “(…) Ao criar, manter e desenvolver um sistema próprio de ensino, o Estado persegue fins na democratização da cultura, na educação popular e no desenvolvimento da civilização que não podem ser alcançados no ensino privado (…)”. (FERNANDES, 1966, p. 496).

O Estado e a infraestrutura educacional

Além do Estado elaborar um abrangente projeto pedagógico, é preciso financiá-lo, garantindo recursos financeiros necessários. Como dizia Florestan: “(…) É urgente dar às escolas, de todos os níveis, recursos educacionais à altura da missão que elas devem cumprir e da necessidade de oferecer às novas gerações uma formação escolar adequada. (…)”. (FERNANDES, 1966, p. 445). Dentro disso, é preciso assegurar o necessário para manutenção predial, compra de materiais didáticos, esportivos, lúdicos etc. O autor destacava a necessidade de atenção à estrutura escolar, prédios e instalações, existem instituições que são verdadeiras “favelas escolares” e isso gera um ambiente ruim tanto para o processo de aprendizagem como para a socialização:

(…) No passado rústico leva-nos a encarar essa questão como se ela fosse destituída de importância. Basta que o professor disponha de um grupo de alunos, de um quarto onde reuni-los, de um quadro negro e de giz, “a escola” está pronta e acabada! Entretanto, a escola constitui um dos ambientes sociais em que decorre a vida dos alunos, sendo o prédio escolar, com suas dependências, um elemento fundamental no condicionamento de suas relações com os colegas, os professores e demais pessoal da escola. Ela precisa oferecer conforto e propiciar estímulos à convivência e ao trabalho didático dos alunos ou dos professores, o que não pode ocorrer em prédios mal adaptados, antiquados ou improvisados. (…) (FERANDES, 1966, pp. 584-585).

O autor analisava que, quando as escolas têm maiores problemas e maiores carências, mais se exige do professor, pois ele se torna o único recurso didático disponível: “(…) onde a escola se organiza e opera em escala de mínimos, avulta a figura do professor e a importância de sua contribuição educativa no seio da escola. (…)”. (FERNANDES, 1966, p. 445). Isso sobrecarrega o professor e disfarça os problemas materiais. Assim, o corpo docente não deve ser todo o recurso que as unidades escolares dispõem para desempenhar o papel educacional demandado socialmente. O professorado é a coluna mestra dos fatores educacionais, mas uma série de condições socio-materiais são necessárias para se assegurar um adequado processo de ensino/aprendizagem. Sem um projeto pedagógico fundamentado, sem uma estrutura material satisfatória, instalações apropriadas, equipamentos, recursos humanos e financeiros, organização das atividades escolares, e sem uma rede de apoio aos estudantes (acompanhamento e estímulo familiar e do entorno social), o bom desempenho recaí, desmedida e inteiramente sobre o professorado:

(…) Bem sabemos que o professor “não é tudo na escola”. Ele conta entre os fatores humanos básicos da organização e da eficiência do ensino. Todavia, existem outros fatores, igualmente importantes, entre os quais releva notar a filosofia da educação e as técnicas pedagógicas que orientam o aproveitamento dos fatores educacionais, os recursos educacionais mobilizados pela escola, a motivação dos centros de interesses dos alunos, a reação societária do valor da educação e dos educadores etc. Mas quando a escola se vê despojada de todos os elementos essenciais ao desempenho exigente e produtivo de suas funções, como acontece entre nós, o professor aparece como o alfa e o ômega do “bom” ou do “mau” ensino. Torna-se pedra de toque do rendimento do trabalho escolar e do grau de sucesso da escola na realização de suas funções. (…). (FERNANDES, 1966, p. 445).

Quando a cobrança de bons resultados educacionais recai desproporcionalmente sobre o professorado, isso contribui sobremaneira para o esgotamento e frustração da equipe docente, tanto física quando emocionalmente. A educação escolar e a aprendizagem são problemas sociais que a sociedade deve equacionar de forma coletiva, encarando-os como questão pública e de política e Estatal,. A educação e aprendizagem não são problemas do cidadão isolado, não se restringindo ao desempenho pessoal e individual, do bom professor ou do mau aluno, ela é elemento central na construção nacional, na formação cultural de um país, sendo base para o desenvolvimento produtivo, técnico e científico da nação. Por isso, ela deve estar a serviço de um projeto nacional produtivo, político-democrático. Tomada como elemento fundante do projeto nacional, a educação funciona como ferramenta central desse processo.

Trata-se então de: “(…) definir a responsabilidade básica do Estado na promoção do desenvolvimento educacional através do sistema público de ensino e das instituições pedagógicas, técnicas ou ciências correlatas”. (FERNANDES, 1966, p. 130). Há de se destacar que, quando o Estado investe em educação pública, na formação de seus próprios cidadãos, ele investe em si mesmo: “(…) quando o Estado investe somas consideráveis de dinheiro em sua própria rede de ensino, ele está capitalizando para si próprio, isto é, para a coletividade. Terrenos, prédios, equipamentos e todo um conjunto de serviços farão parte do seu patrimônio. (…)”. (IDEM, 1966, p. 497). Ainda, investindo na melhora do nível educacional de seus cidadãos, o Estado pode preparar melhores quadros de onde recrutará funcionários para desempenhar as funções fundamentais ao Estado, aos governos e aos serviços públicos, bem como para a manter a produção e a reprodução ampliada. Para o autor:

(…) Precisamos diferenciar, melhorar e expandir toda a rede escolar de ensino médio: 1º) para criar escolas capacitadas para produzir operários qualificados, técnicos e especialistas em todos os setores da economia rural, da industrialização, da economia urbana, da administração racional e de qualquer forma produtiva de trabalho; 2º) para ajustar o ensino secundário aos conhecimentos que devem ser dominados pelo homem numa sociedade em que o trabalho é dignificado socialmente e todos devem colaborar responsavelmente pelo bem-estar da coletividade. (…). (FERNANDES, 1966, pp. 354-355).

Nesse sentido: “(…) Cabe ao Estado exercer, com autonomia e indisputadamente, a formulação da política nacional de educação, a fiscalização dos estabelecimentos educacionais públicos ou privados e a administração da rede de ensino oficial. (…). (FERNANDES, 1966, p. 400). Atuando assim, o Estado exerce seu papel civilizatório de forma extensiva, conforme demandado pela sociedade contemporânea.

A pobreza e a desigualdade são fatores que interferem diretamente na vida escolar das crianças, gerando subaproveitamento e altos índices de evasão escolar. Levando esse fator em conta, é necessário que se tenha um plano nacional de enfrentamento dos problemas socioeconômicos. Conforme já analisava Florestan: “(…) O subaproveitamento das oportunidades educacionais no Brasil resulta do nível de pobreza da maioria da população, que não está em condições econômicas sequer de aproveitar a escola pública gratuita onde ela exista. (…)”. (FERNANDES, 1966, p. 133). É função do Estado eliminar os obstáculos extraescolares que impedem o acesso à escola.

Para o autor, torna-se “dever do Estado democrático impedir que a desigualdade econômica, cultural e social interfira, desastrosamente, na distribuição equitativa das oportunidades educacionais e no aproveitamento das próprias aptidões pessoais pelos indivíduos. (…)”. (Fernandes, 1966, p. 486). Aumentar o nível escolar da população, por meio de políticas públicas gerais e focadas, é a forma mais eficiente de elevar o nível intelectual do cidadão médio e os níveis da educacional nacional:

(…) Num país no qual a distribuição desigual de renda deixa à quase totalidade da população um nível de vida de mera subsistência, compete ao Estado – se for um Estado democrático – zelar pela instrução do Povo. Da mesma maneira, numa sociedade em que o povo sempre foi zelosamente afastado dos direitos e dos deveres cívicos da cidadania, toca ao Estado – se for um Estado democrático – corrigir a situação, incentivando as camadas populares a participar das garantias sociais do regime e preparando-as para isso. Num caso, o Estado estaria, através de planos de justiça social, aumentando a participação invisível de todos na redistribuição da renda nacional. Noutro, estaria contribuindo para alargar o horizonte intelectual do homem comum, inserindo dentro dele novas concepções e avaliações sociais indispensáveis no novo estilo de vida. (FERNANDES, 1966, p. 368).

Considerando tais determinantes, os projetos educacionais, de formação e de aperfeiçoamento, devem ser subordinados aos “planos de desenvolvimento econômico, social e cultural ricos de conteúdo humano – que libertem o homem da ignorância, mas também da insegurança, da servidão moral e da miséria”. (IDEM, p. 99). Isso, levando em conta que as desigualdades sociais, regionais e nacionais produzem condições desiguais para acesso e aproveitamento das oportunidades educacionais, agravando os fatores extra-educacionais que impactam negativamente na trajetória escolar dos estudantes brasileiros e que só podem ser corrigidas por via da intervenção organizada do Estado.

Aí estão o alfa e o ômega da questão. Na medida em que o Estado assumiu, paulatinamente, amplos encargos educacionais e teve sucesso comprovado na criação, manutenção e expansão de uma rede completa de estabelecimentos de ensino, a luta contra as deficiências quantitativas e qualitativas do ensino, bem como a supressão progressiva das limitações da distribuição ou aproveitamento das oportunidades educacionais cabem, primordialmente à iniciativa oficial. Acresce que a alteração da estrutura do nosso sistema de ensino depende profundamente, como vimos, da diferenciação e da reintegração do subsistema de ensino público. É imperioso que a iniciativa oficial reequilibre seu esforço educacional, pautando sua intervenção produtiva nos campos do ensino médio e superior pelas suas realizações na esfera do ensino primário. Isso significa, em outras palavras, que a transformação da educação escolarizada em fator social construtivo, no seio da sociedade brasileira, está na dependência da capacidade do Estado de intervir, criadoramente, na melhoria, ampliação e expansão da rede de ensino que ele montou, sob pressão das circunstâncias, por sua conta e risco. (FERNANDES,1966, pp 45-46).

Embora se tenha avançado em conquistas consideráveis com a educação pública brasileira, segundo o autor, apenas agindo como Estado educador é que se faz possível levar a cabo um projeto coerente de desenvolvimento nacional:

(…) urge que o Estado assuma as responsabilidades educacionais que relegou de forma parcial ou diante das quais se omitiu. A nossa República só será uma democracia quando converter em Estado-educador, preenchendo as funções que lhe cabem quer na educação popular, que na aceleração do desenvolvimento educacional da Nação com um todo. (FERNANDES, 1966, pp. 45-46).

O Estado brasileiro deve ser o principal responsável pela formação de sua própria população. É função do Estado trabalhar pela democratização da educação, ampliando e aprofundando os níveis médios da formação cultural nacional. O propósito educacional deve ser a atuação consciente de “colocar a instrução a serviço da renovação do homem, de sua mentalidade e de sua capacidade de ação. (…)”. (FERNANDES, 1966, p.79). Nesse processo, para Florestan, é preciso fazer da educação escolar: “(…) uma força operativa de teor construtivo nas comunidades humanas modernas, preparando o horizonte cultural do homem e o uso social da inteligência para as exigências da democracia, da ciência e da tecnologia científica. (…)”. (Idem, 1966, p. 80). Sem que o Estado assuma a função primordial de implementar política públicas sólidas e duradouras para o sistema escolar e a formação da população brasileira, o país ficaria condenado ao atraso educacional, social, econômico e político:

(…) Ou o Estado democrático assume todas as suas responsabilidades educacionais, e saímos de nosso atraso educacional e pomos a educação a serviço da expansão da ordem social democrática, do desenvolvimento econômico e do progresso cultural, ou acatamos as expectativas dos círculos reacionários das camadas conservadoras, mas pagamos o preço pela submissão – continuaremos atados ao passado, aos influxos invisíveis do “antigo regime”, à estagnação econômica, política e social. O que nos parece impossível e ilusório é pretender “desenvolvimento nacional”, mantendo-se o status quo com pequenas alterações, a começar pela educação escolarizada. (FERNANDES, 1966, pp. 430-431).

Florestan inferia que: “(…) Precisamos aumentar a rede de escolas primárias a ponto de eliminarmos o analfabetismo no Brasil, entre crianças e adultos. (…)”. (IDEM, IBIDEM, p. 454). A educação universal, em todos os níveis, teria como prerrogativa formar, conduzir e direcionar os cidadãos tanto para sustentar as forças produtivas do país como para a participação ativa na vida social, partilhando da estrutura da Estado e de seus direitos sociais.

Educação para a participação política e cidadania ativa

Na perspectiva de Florestan, o Estado democrático de direitos também deve educar a juventude para a participação democrática, para exercer seus direitos como cidadão politicamente ativo, dotado de capacidades de intervenção qualitativa na realidade. Com o ensino de qualidade, a população adquire mais instrumentais para compreender e atuar como sujeito ativo na organização política e governamental, levando à prática o princípio segundo o qual “todo poder emana do povo”. Segundo o autor:

(…) A dinâmica da Democracia repousa nas impulsões sociais igualitárias. Educar o Povo torna-se, para ela, uma função essencial. Primeiro, porque nela “todo o poder emana do Povo”. Daí decorre que todos os cidadãos, indistintamente, precisam conhecer o jogo político democrático, seja na sua estrutura, seja no seu funcionamento. O peso do voto é o mesmo para todos e qualquer um deve saber exercê-lo em sua plenitude, bem como conhecer os seus benefícios diretos ou indiretos. Cabe, assim, à instrução criar no homem uma personalidade democrática, ou seja, uma pessoa consciente dos direitos, dos deveres e das responsabilidades cívicas do cidadão no regime político democrático. Essa aprendizagem, infelizmente, torna-se muito difícil, em virtude da complexidade das instituições e dos valores políticos democráticos, do influxo adverso da herança social pré-democrática e da existência de fortes impulsões egoísticas, individuais ou grupais, em todas as aglomerações humanas. Segundo, porque como forma de organização da vida, a Democracia precisa vencer um destino histórico. Ela se funda em ideais que se constituem lentamente, da sociedade tribal e da sociedade à sociedade de classes, e precisa superar as barreiras sociais e culturais nascidas dessa multiplicidade de meios sociais, variavelmente opostos à concepção e ao estilo democrático de vida. (…). (FERNANDES, pp. 436-438).

O sistema educacional deve servir então como plataforma de apoio para que os sujeitos se localizarem em meio às estruturas políticas, econômicas e sociais. Não se pode ter formas de participação qualitativas no regime democrático sem que se disponha de conhecimento sobre a composição social e política brasileira. A educação socializa os estudantes como o modo democrático de vida em sociedade:

(…) O fato é que nenhuma Democracia conseguirá sucesso se não abolir, progressivamente, os fatores materiais da desigualdade social e as condições morais da alienação. A educação possui dupla significação nesse processo. De um lado, ajusta o horizonte cultural do homem às exigências materiais e morais da ordem democrática. Prepara-o, em resumo, para entender e desejar a ordem social democrática e seu aperfeiçoamento contínuo. De outro, serve como um poderoso instrumento de correção paulatina da distribuição desigual da riqueza, do poder e da cultura. Por seu intermédio é que o homem adquire a capacidade para realizar a árdua transição do mundo pré-democrático para a sociedade democrática. Aprende a usar, a melhorar e a legitimar todas as formas de distribuição equitativa das oportunidades essenciais à formação e ao pleno desenvolvimento da personalidade, a começar pelas oportunidades educacionais. Seria vão pretender demostrar a importância de semelhantes funções e responsabilidades educacionais do Estado na situação brasileira, na qual o destino da Democracia se vincula de modo tão visível à instrução de um Povo recém-egresso da mais completa servidão material e moral. (FERNANDES, 1966, pp. 436-438).

Outro elemento destacado por Florestan, foi a democracia dentro da escola, passando inclusive pela gestão democrática da escola. Considerava que o sistema educacional brasileiro ainda subestimava a importância da educação democrática, reproduzindo em seus meios determinadas práticas e formas sociais retrógradas, pré-democráticas e autoritárias: “(…) As nossas escolas – em todos os níveis de ensino: do pré-primário ao superior – se caracterizam, estrutural e funcionalmente, pela ausência de normas sociais e de padrões de comportamento democráticos (…)”. (FERNANDES, 1966, p. 438). Para Florestan, a estrutura escolar brasileira está organizada para formar cidadãos subservientes e não cidadãos politicamente ativos e engajados no controle das instituições nacionais:

(…) Ou seja, a escola do tipo dominante no cenário brasileiro não possui condições para formar personalidades democráticas. Ela molda o homem segundo os modelos do “antigo regime”, predispondo-o para o mando intransigente ou para a obediência boçal, para o abuso do poder ou para a subserviência. Está claro que, se pretendermos ser bem sucedidos na implantação da Democracia, devemos começar por educar o homem segundo novos padrões de comportamento e de ação. (…). (IDEM, IBIDEM, p. 439).

Para o autor, só uma escola concebida com valores democráticos pode formar cidadãos com personalidade política adequada à sociedade contemporânea, por isso, Florestan assevera que: “(…) precisamos alterar de alto a baixo os padrões de organização de nossas escolas, para que elas se tornem compatíveis com a ordem social democrática e venha também a operar como grupos com uma organização democrática. (FERNANDES, 1966, pp. 438-439). Aqui, trata-se de uma forma de alinhamento entre o papel da escola com o exercício da participação democrática nas instituições do Estado pelos estudantes, pressionando para ampliação de direitos, das liberdades democráticas e das políticas públicas:

(…) O Estado Democrático é suscetível de melhoria e de aperfeiçoamento contínuos, sendo a educação dos cidadãos um dos principais meios e condições para se conseguir regularmente tal objetivo. Daí decorre que as influências do Estado Democrático na área da Educação correspondem a outras influências correlatas da Escola na constituição, no funcionamento e no refinamento do próprio regime democrático. Em resumo, cabe ao Estado Democrático: 1º) organizar o ensino de maneira que ele se funde na filosofia educacional inerente ao estilo democrático de vida; 2º) estimular e promover pelos meios possíveis a igualdade das oportunidades educacionais através da escola pública e gratuita de todos os graus (…). (FERNANDES, p. 412).

A escola e a formação de cidadãos politicamente ativos

O sistema escolar tem total condições para atuar contra a alienação (desconexão) social e política, contra a falsificação das formações sociais, desvelando as causa e motivos da desigualdade, exploração, repressão e da alienação política. As classes dominantes, que estão à frente da gestão do Estado e do sistema escolar, veem na escola um instrumento de domesticação, de formação de mão de obra útil, de baixo custo, mantido para formar trabalhadores e cidadãos passivos que integrem os processos produtivos e que obedeçam às instituições do Estado sem questionar a ordem das coisas e a dominação de classe. Mas, para isso, as camadas dominantes da sociedade dependem do acobertamento dos aspectos exploratórios, excludentes e autoritários de sua própria ideologia. Busca fazer crer que o que é bom para as classes dominantes, ao patronato e seus representantes diretos, é também o melhor para todas as frações da classe trabalhadora. Aqui, pretende-se reforçar a escola como centro de condicionamento dos estudantes. Para Florestan, o que a ideologia da classe dominante “busca, em primeiro lugar, é o conformismo diante do status quo, que nos leva a converter nossas escolas em instrumentos de alienação do homem, perante si mesmo, o meio em que vive e a época de que faz parte”. (FERNANDES, 1966, p. 352).

O autor assevera que “Ao contrário, as escolas têm de deixar de ser unicamente instrumentais para a dominação burguesa e a difusão da ideologia das classes dominantes. (…)”. (FERNANDES, 2000, p. 59). Em sua perspectiva, a escola deve servir como instrumental para desvelar a composição do real (como desalienação). É compreensível que setores da classe trabalhadora possam encarar a escola em sua função prática, como um meio para atingir determinados fins, como a compreensão da realidade externa, mas também como centro de treinamento para a vida em sociedade, para o desenvolvimento intelectual e como forma de obter melhores empregos e posições no mercado de trabalho, e, a escola é relativamente eficiente nisso. Mas, para Florestan, a escola não deveria se limitar tais aspectos. Em sua perspectiva: “O trabalhador precisa de uma educação que o transforme em alguém capaz de manter uma posição ofensiva nas relações de classe”. (FERNANDES, 2000, p. 354).

Em sua concepção, é necessário termos um sistema escolar que busque contribuir na formação de mecanismos de controle dos poderes públicos e dos processos sociais, fornecendo instrumentais históricos, econômicos e político-sociais aos estudantes para capacitá-los a intervir qualitativamente na realidade concreta. Com isso, a rede escolar participa ativamente da formação da consciência socio-política dos estudantes, indo além da reprodução das coisas como elas são, compreendendo e combatendo as opressões históricas e do dia a dia. Um exemplo é a luta contra o racismo, que o sistema escolar deveria ser protagonista, mas só se engaja timidamente. Essa hesitação em relação ao combate aos obstáculos socio-interativos existente no meio escolar é prejudicial tanto ao aprendizado como ao convívio mútuo da comunidade escolar. Para Florestan, os estudantes precisam ser educados para a igualdade e equidade, estimulados à defesa de direitos sociais, à tolerância com as diferenças e ao combate às injustiças cotidianas presente na sociedade contemporânea. Sem isso, as escolas “(…) estão alheias até dos imperativos da integração nacional, negligenciando os riscos das tensões étnicas, econômicas e sociais numa sociedade de classes etnicamente heterogênea e voltando as costas à necessidade primacial de preparar o homem brasileiro ao estilo democrático de vida. (…)”. (FERNANDES, 1966, p. 82).

Para Florestan, de forma propositiva: “(…) Temos de ajustar as nossas instituições escolares ao padrão emergente de integração da ordem social, para que elas possam preencher as funções psicossociais, socioeconômicas e socioculturais da educação escolarizada na civilização moderna. (…)”. (FERNANDES, 1966, p. 83). É necessário estimular a participação na sociedade democrática, o pensamento crítico e inconformistas com as limitações histórica e socialmente obstrutivas, isso implica estimular determinadas formas de comportamento e inibir outras, como o racismo, o individualismo exacerbado e comportamentos violentos ou destrutivos. Nas palavras do teórico:

(…) O quer dizer que devemos adquirir uma capacidade nova de avaliação dos jovens e de suas realizações, para selecionarmos e incentivarmos as manifestações de inconformismo que são indispensáveis e necessárias, bem como para reprimirmos tendências de ajustamento mais ou menos egoísticos ou destrutivas, exacerbadas pela própria situação de mudança. Atrás desse desafio se esconde, portanto, um requisito intelectual deveras complexo. (…). (FERNANDES, pp. 139-140).

A sociedade é modelada constante e cotidianamente por forças econômicas, políticas, sociais e culturais de variados níveis. Tais determinantes impõem a necessidade de uma escola atenta às demandas emergentes para ser mais inclusiva, atenta às lutas sociais e políticas. A educação precisa ter entre suas finalidades dotar os indivíduos e grupos com ferramentas para compreender, atuar e transformar a sociedade em que se vive.

Partindo disso, portanto, a escola deve estar aberta às reivindicações e pautas democráticas, como as do movimento negro, bem como às pautas identitárias progressivas, educando a juventude contra as variadas formas de violência e opressão de classe social e de gênero. A abordagem sobre as lutas inclusivas e contra as opressões é parte das demandas civilizatórias do presente, tais debates e enfrentamento teórico-social educa as novas gerações para a convivência democrática com igualdade de direitos. Para o autor: “(…). É preciso valorizar os principais agentes do ensino e o núcleo de sua existência e de comunhão de valores. A escola é o grande e insubstituível núcleo de aprendizagem e de convivência escolar. É o centro de tudo (…)”. (FENANDES, 2000, p. 60).

Nesse sentido, para o autor, a educação se conecta com as pautas da juventude, dos sujeitos sociais engajados na luta pelo seu próprio destino político e social: “(…) Esses anseios são vitais para o futuro do Brasil e parece claro que não seremos senhores do nosso destino histórico como Povo enquanto não aprendermos a preparar a juventude para forjar, com suas próprias mãos, esse destino”. (FERNANDES, p. 141). Então, na perspectiva de Florestan, a escola não pode se furtar de educar os cidadãos para um tipo sociedade democrática, participativa, onde sejam preparados para a participação direta na organização social, política e econômica. Na perspectiva do autor:

(…) à Escola compete, na sociedade democrática: 1º) organizar-se de modo a corresponder à estrutura e aos valores do Estado Democrático, sem tornar-se “instrumento” dos interesses econômicos, políticos ou sociais de nenhuma camada da coletividade, qualquer que seja sua posição na estrutura de poder da Nação; 2º) formar o homem segundo o modelo de personalidade democrática que exprime e na qual se assenta a vitalidade do estilo democrático de vida; 3º) incentivar e universalizar identificações que promovam o consenso através da participação responsável de cada um e de todos nos assuntos de interesse coletivos. Quanto ao segundo ponto, a nossa Constituição formula as relações do Estado e da Escola segundo os princípios da Democracia liberal. As limitações desse modelo, para a realização integral da Democracia Social, são bem conhecidas. (…). (FERNANDES, 1966, pp. 411-412).

Então, também nesse aspecto, a educação é ferramenta ativa no processo de formação de personalidades e sujeitos democráticos, atuando como: “(…) fator básico de qualquer processo substancial de mudança”, pois ela possibilita: “uma tentativa orientada de modificar o horizonte cultural, com o objetivo específico de ajustar os jovens à complexidade e à grandeza de tarefas históricas. (…)”. (Fernandes, 1966, p. 141). Neste quadrante, por meio do sistema de ensino público, precisam-se revalorizar as conquistas democráticas obtidas com luta popular, sendo que, as novas pautas de emancipação política emergentes devem ser incorporadas sempre que pautadas como demandas sociais e políticas. Educar para o estilo democrático de vida é a única forma de sobrepujar as tradições retrógradas e autoritárias herdadas da formação brasileira, pois, para Florestan:

(…) Ainda lutamos pela implantação de hábitos e de valores democráticos em nosso meio. Nem mesmo os partidos políticos e os agentes humanos responsáveis pelo funcionamento do Estado demonstram fidelidade a esses hábitos e valores. É que a nossa experiência é recente. Todos carregamos, em maior ou menor grau, uma herança cultural adversa ao estilo democrático de pensamento, de ação e de vida. Os homens, quando são “cultos”, com frequência provêm de famílias acostumadas à deformação do mandonismo; quando são “incultos”, procedem de camadas humildes, tradicionalmente submetidas aos despotismos dos mandões ou ainda mal polidas pela prática autônoma dos deveres cívicos. Assim, o jogo democrático se arruína pela base: o comportamento e a mentalidade dos homens são variavelmente penetrados por atitudes, impulsos e representações sociais pré ou antidemocráticas. (…). (FERNANDES, 1966, p. 431).

Segundo o autor, sem que se eduque para o regime democrático e para o estilo democrático de vida: “(…) O Povo permanecerá ausente da vida pública, alienado de seus direitos e obrigações sociais, deixando o campo aberto às aves de rapina, empenhadas em satisfazer ânsias incontidas de riqueza, de prestígio e de poder”. (FERNANDES, 1966, p. 455). Então, educar para participação democrática é educar para o controle de si e para a atuação propositiva na realidade que nos cerca. De acordo com Florestan:

(…) Enquanto o Povo não for o árbitro supremo e final das decisões políticas tomadas em seu nome, os seus “representantes” no Poder não terão forças, mesmo que o queiram, para agir com inteira liberdade e civismo no trato de questões que envolvam interesses substanciais. Porém, para que o Povo preencha essas funções, é imprescindível que ele seja preparado para tanto, que ele possa tomar consciência da natureza daqueles interesses e dispor de meios intelectuais para resguardá-lo. De qualquer perversão ou corrupção das instituições políticas. Aí está, sem rebuço, o dilema da situação política brasileira, que associa o destino da democracia entre nós ao que soubermos fazer em prol da modernização do ensino e da educação popular. (FERNANDES, 1966, p. 509).

Ressalta-se que, o regime democrático não é uma forma pronta, acabada, incorrigível e inabalável como pode parecer em alguns momentos. Pelo contrário, trata-se de uma forma social que em permanente desenvolvimento e disputa, que demanda constante intervenção social, podendo incorrer em avanços democráticos, ou, se abandonada à sorte, tender ao retrocesso, favorecendo o mandonismo, autoritarismo e a plutocracia dominante.

A formação histórica brasileira influencia diretamente na forma de ser do sistema escolar, em cada unidade escolar, sobretudo no que diz respeito ao autoritarismo, desde a gestão escolar, projeto político pedagógico, grêmio e participação estudantil, até as práticas diárias em sala de aula. A gestão democrática da escola é imprescindível para o autor: “Ela deve também favorecer o combate à opressão dos debaixo e dos estudantes dentro da escola (..)”. (FERNANDES, 2000, p. 60). É necessário que as escolas “se desburocratizem, percam seu caráter autoritário e repressivo, que se metamorfoseiem em instituições para a vida e para a autonomia (…)”. (FERNANDES, 2000, p. 77). Nesse quadro: “A escola tem que abrir o horizonte intelectual do estudante, colocando conteúdos que tornem a educação um instrumento não só para a vida, mas para a transformação da vida e da sociedade. (FERNANDES, 2000, p. 229).

Mantém-se na pauta do dia a luta por condições educacionais igualitárias, acessíveis a todos em todos os níveis, para se ter, de fato, um regime democrático. Ainda assim, é necessário levar em conta que as condições igualitárias de educação, em si, não podem garantir a igualdade na inserção no mercado de trabalho, nos salários e nas condições de vida em uma sociedade marcada pela divisão em classes sociais proprietária e classes trabalhadoras despossuídas de meios de produção e que, por isso, só possuem a força de trabalho para dispor como mercadoria. Nesse aspecto, uma transformação profunda da educação, como uma reforma educacional radical, exige uma transformação global da sociedade, como uma revolução nacional e democrática, como apontava Florestan:

(…) 1º) A transformação da Educação depende, naturalmente, de uma transformação global e profunda da sociedade; 2º) a própria Educação funciona como um dos fatores de democratização da sociedade e o sentido de qualquer “política educacional democrática” tem em vista determinadas transformações essenciais da sociedade. (FERNANDES, 2000, p. 33).

Considerações finais

O enfrentamento dos problemas de aprendizagem, frequência escolar, melhora de índices educacionais e “sucesso escolar” precisam transcender a ideologia dominante sobre a escola pública, que argumenta que os problemas escolares se resumem a professores desatualizados ou alunos desinteressados. Essa perspectiva política reducionista isenta o Estado, em sua gestão de políticas públicas educacionais, da responsabilidade programática na gestão da rede nacional e estadual de ensino. Vale denotar que o ensino básico brasileiro conta com 47,7 milhões de alunos, sendo cerca de 38 milhões apenas no ensino público.

As políticas públicas educacionais precisam ser formuladas considerando as complexidades inerentes da composição socioeconômica nacional, estadual e regional, bem como o necessário combate à pobreza, ao desemprego e ao trabalho precário (contratos temporários e de alta rotatividade, com baixos salários, sem direitos e informalidade). Isso porque, as condições materiais de vida impactam diretamente nas condições de ensino e aprendizagem. Então, os investimentos em educação devem ser combinados com a criação e a manutenção de programas de Estado focados na distribuição de renda, geração de empregos e combate ao desemprego estrutural, compreendendo que as condições precárias de trabalho produzem instabilidade nas condições de vida do estudante e de sua família, criando e aumentando as dificuldades de êxitos educacionais. Além das questões salariais, a melhora das condições de ensino passa também pela diminuição da jornada de trabalho dos pais e implementação de escala móvel de salários. Tempo livre e recursos suficientes são fundamentais para a melhoria dos processos educacionais e para o acompanhamento da rotina escolar das crianças e adolescentes por seus pais e familiares.

Nesse sentido, o Estado deve garantir também bolsas de estudo, transporte, serviços médicos, dentista, alimentação e vestuário aos estudantes. Isso desonera as famílias dos custos educacionais e restitui a responsabilidade do Estado na formação das novas gerações, que assumirão os postos de trabalho e toda a produção e reprodução do mundo material. É necessário ter em conta que a desigualdade social e de acesso à educação de qualidade fere o direito universal à educação. Deste ponto de vista, continua central a luta social pela educação pública, gratuita, de qualidade e acessível a todos, que se paute pelas diferentes necessidades das distintas frações de classe que compõem a totalidade social e que viabilize o desenvolvimento de múltiplas capacidades humanas como ganho coletivo, bem como impulsionar o engajamento social e político dos cidadãos na organização e nos rumos da sociedade.

 

NOTAS

1. https://oglobo.globo.com/mundo/g20-no-brasil/noticia/2024/04/09/taxa-de-conclusao-do-ensino-medio-no-brasil-e-uma-das-menores-de-13-paises-do-g20-aponta-ibge.ghtml

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA IBGE NOTÍCIAS. PNAD Contínua Em 2022, analfabetismo cai, mas continua mais alto entre idosos, pretos e pardos e no Nordeste. 07 jun. 2023. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37089-em-2022-analfabetismo-cai-mas-continua-mais-alto-entre-idosos-pretos-e-pardos-e-no-nordeste Acesso: 16 maio, 2024.
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