Revista Casa Marx

ChatPTS: tecnologia, capitalismo e socialismo

Martín Schapiro

Gerónimo Pelli

Desde terça-feira, 1º de outubro, La Izquierda Diario se renova para continuar construindo um meio socialista que abra o debate e tome partido. Entre múltiplas iniciativas como LID+, uma grande aposta no YouTube, entre outras, criamos um bot, o chatPTS, utilizando nossas fontes de informação para ajudar a difundir as ideias socialistas. Por um lado, isso permitirá que aqueles que trabalham na redação possam consultar de forma mais fácil opiniões e fontes sobre determinados temas. Por outro lado, os leitores do jornal poderão interagir de maneira conversacional e ágil com nossas opiniões para entender melhor nossas posições políticas e teóricas, democratizando a informação e estimulando a leitura, com recomendação de artigos pontuais. Mas além do bot, qual é nossa visão sobre o papel da tecnologia na atualidade?

A tecnologia e seu propósito

Para os socialistas, a tecnologia é uma ferramenta que pode desempenhar um papel transformador. Embora sob o capitalismo ela tenha sido utilizada por interesses privados para aumentar os lucros e, em algumas ocasiões, tenha intensificado a exploração laboral e concentrado o poder econômico, também trouxe avanços que melhoraram a vida de muitas pessoas. O desenvolvimento tecnológico criou o potencial para que, sob outro tipo de relações de produção, como poderia ser em um sistema socialista, muitas das limitações atuais sejam superadas, gerando melhores condições de vida e mais tempo livre para todos.

Ao longo da história, tem-se visto como o avanço tecnológico pode transformar as formas de produção e, ao mesmo tempo, a sociedade como um todo se transforma quando essas formas de produção entram em contradição com as relações de produção, dando origem a revoluções que podem transformar a sociedade por completo, como foram as revoluções burguesas ou operárias.

Karl Marx, por exemplo, em suas análises sobre o capitalismo, via na maquinaria industrial uma dupla face: por um lado, representava um imenso progresso na capacidade humana de transformação; por outro, essa mesma maquinaria era utilizada para subjugar a classe trabalhadora, obrigando-a a trabalhar em condições mais duras.

Sob o capitalismo, os avanços tecnológicos frequentemente não beneficiam aqueles que produzem a riqueza, ou seja, os trabalhadores, já que costumam ser utilizados para aumentar os lucros dos capitalistas. Isso gera uma contradição: enquanto a tecnologia tem o potencial de reduzir a jornada de trabalho, melhorar as condições de trabalho e permitir que a humanidade desfrute de mais tempo livre, frequentemente é empregada para intensificar o trabalho e aumentar a exploração. Assim, em vez de libertar o trabalhador, a tecnologia sob o capitalismo reforça sua subordinação, por exemplo, por meio da automação que ameaça empregos ou dos algoritmos que vigiam e controlam os empregados.

Os socialistas não se opõem ao progresso tecnológico. Pelo contrário, reconhecemos seu potencial para transformar a sociedade em um sentido emancipador. Em um sistema socialista, a tecnologia poderia ser utilizada para o bem comum, em vez de estar a serviço do lucro privado. Isso implica uma mudança fundamental na forma como a produção é organizada e em quem controla a tecnologia. Sob um sistema democrático e socialista, a tecnologia seria usada para reduzir a jornada de trabalho, melhorar a qualidade de vida e libertar as pessoas do trabalho repetitivo e alienante.

No entanto, muita da tecnologia que usamos atualmente foi moldada pelos padrões do capitalismo. Além do uso diferente que poderia ser dado a ela sob outro sistema social, a realidade é que ela ainda carrega os vieses e usos que o sistema atual imprime. Isso quer dizer: um desenvolvimento orientado a maximizar lucros e aumentar a exploração laboral. O socialismo terá o desafio não apenas de utilizar essa tecnologia com outro objetivo, mas de se apropriar do que há de mais valioso já construído e repensar novas tecnologias que certamente poderiam ser utilizadas, mas que atualmente não o são. Por exemplo, faz sentido todo o trabalho social que hoje é utilizado para questões como publicidade, enquanto muitos trabalhadores ainda têm empregos precários e de alto risco? Não seria útil usar toda a criatividade e trabalho social para desenvolver outro tipo de tecnologia?

Como aponta Facundo Nahuel Martín em seu livro Ilustración sensible:

“A tecnologia está impregnada das relações de poder e das dinâmicas sociais da sociedade capitalista. Os avanços tecnológicos são desenvolvidos sob critérios que buscam maximizar a eficiência e a rentabilidade para o capital, em vez de responder às necessidades sociais ou ecológicas. Por exemplo, o big data e seu uso na ciberpatrulha refletem como a tecnologia pode ser utilizada para controle e dominação social. A crítica à tecnologia não deve ser tecnófoba nem tecnófila, mas deve considerar as formas tecnológicas como parte constitutiva das relações sociais capitalistas. Isso implica uma crítica imanente que reconheça as contradições e ambiguidades da tecnologia moderna, buscando refuncionalizá-la para fins emancipatórios.” 1

Além disso, o controle democrático da tecnologia seria fundamental para evitar os abusos que vemos hoje sob o capitalismo. Questões como vigilância massiva, o uso de dados para manipular o comportamento das pessoas e a crescente concentração de poder nas mãos de gigantes tecnológicos são fenômenos que só podem ser enfrentados por meio de um controle social da tecnologia. Sob um sistema socialista, a tecnologia poderia ser aproveitada para empoderar as pessoas, não para controlá-las.

Em última instância, os socialistas querem um uso democrático da tecnologia, no qual seu desenvolvimento esteja orientado para o bem-estar coletivo. Em vez de permitir que os avanços tecnológicos sirvam apenas para aumentar a riqueza de alguns poucos, os socialistas propõem que a tecnologia seja colocada a serviço da emancipação humana. Isso requer não apenas uma mudança nas relações de produção, mas também uma mudança na forma como entendemos e utilizamos a tecnologia. A tecnologia não é uma inimiga, mas uma ferramenta poderosa que, liberta das correntes do capital, será indispensável na construção de uma nova sociedade.

O taylorismo como um exemplo do propósito tecnológico

Ao longo da história do capitalismo, o desenvolvimento da grande indústria tem sido acompanhado pela imposição de tarefas repetitivas e desumanizantes para os trabalhadores. Marx já analisava como a maquinaria e a divisão do trabalho fragmentavam as habilidades do operário, reduzindo-o a realizar operações simples e monótonas.

Um exemplo da diferença entre a tecnologia em geral e seu propósito em particular pode ser o debate sobre o taylorismo, um sistema de organização do trabalho que otimiza tarefas por meio da divisão técnica. No entanto, o taylorismo representava o desenvolvimento da grande indústria, que impunha tarefas repetitivas e desumanizantes. Lenin apontava que, sob esses sistemas, os trabalhadores eram reduzidos a engrenagens em uma grande máquina, realizando tarefas alienantes. Embora essas formas de organização do trabalho tenham maximizado a eficiência e os lucros para os proprietários das fábricas, também aprofundaram a exploração dos trabalhadores, fragmentando a experiência humana e degradando-os, a ponto de não mais se reconhecerem nos produtos que criavam.

Lenin criticava como, nas fábricas capitalistas, esses métodos beneficiavam exclusivamente a classe dominante às custas da classe trabalhadora e argumentava que o socialismo não deveria rejeitar automaticamente os avanços tecnológicos e organizacionais que surgiram sob o capitalismo. Em vez disso, esses avanços deveriam ser “tomados” e transformados para servir aos interesses dos trabalhadores, enquanto novas inovações poderiam ser criadas. O socialismo, e em particular sua etapa de transição, deve apropriar-se e aprender com os avanços técnicos, reorganizá-los e utilizá-los para o planejamento socialista, na medida em que permitam empoderar os trabalhadores e evitar seu aspecto despótico e alienante.

Um dos elementos-chave para Lenin era o controle operário. Sob o capitalismo, muitas dessas práticas são utilizadas como ferramentas de exploração precisamente porque os trabalhadores não têm controle sobre o processo produtivo. Com o controle operário e o planejamento democrático, a alienação e a exploração inerentes ao capitalismo poderiam ser eliminadas:
“A última palavra do capitalismo neste campo – o sistema Taylor –, como todos os progressos do capitalismo, reúne toda a refinada ferocidade da exploração burguesa e várias conquistas científicas de grande valor referentes ao estudo dos movimentos mecânicos durante o trabalho, à supressão de movimentos supérfluos e desajeitados, à adoção dos métodos de trabalho mais racionais, à implantação dos sistemas ótimos de contabilidade e controle, etc. A República Soviética deve adquirir a todo custo as conquistas mais valiosas da ciência e da técnica nesse domínio. A possibilidade de realizar o socialismo será precisamente determinada pelo grau em que conseguirmos combinar o poder soviético e a forma soviética de administração com os últimos progressos do capitalismo.” 2

A tecnologia, fruto da cooperação social

Nos Grundrisse, Marx fala do “intelecto geral” para se referir ao conhecimento social generalizado, ou seja, o saber científico, técnico e tecnológico acumulado pela sociedade, que se torna uma força produtiva central sob o capitalismo. Esse conhecimento não é simplesmente um conjunto de habilidades, mas inclui todo o desenvolvimento intelectual e científico que, integrado na maquinaria e nos sistemas produtivos, transforma radicalmente as relações de produção.

Marx argumentava que, com o avanço do capitalismo e o surgimento da grande indústria, esse conhecimento científico-tecnológico se torna “órgãos” humanos produtivos. Isto é, ele se materializa em maquinaria, sistemas de produção e tecnologias avançadas que transformam radicalmente as relações de produção. Na época de Marx, isso se manifestava em inovações como as ferrovias e o telégrafo. Hoje, podemos observar esse fenômeno em tecnologias como microchips, satélites, redes de internet, genética, robótica e inteligência artificial, cujo impacto na transformação da produção ainda está em processo de avaliação. Esse conhecimento se torna uma força produtiva-chave que transforma as condições do processo da vida social.
No capitalismo, esse “intelecto geral” é incorporado em tecnologias que dominam a produção econômica e a vida social, gerando uma subsunção crescente desse conhecimento ao capital. Essa cooperação não se limita apenas ao físico, mas também inclui a cooperação intelectual e cognitiva, mediada por tecnologias derivadas desse “intelecto geral”.

Isso gera uma contradição para o capital ao ser incorporado principalmente como “capital fixo” (maquinário, tecnologia) em uma sociedade que mede a “riqueza” em termos de capital variável explorado (trabalho humano direto). O capitalismo expropria a cooperação e o conhecimento dos trabalhadores para o benefício privado. A classe trabalhadora possui a capacidade de reverter essa situação e utilizar parte desses recursos ou outros que cria ela mesma para a sociedade socialista.

O exemplo da cooperação social é evidente em todas as esferas de nossa vida. O Uber seria impossível sem os smartphones, que funcionam graças ao GPS e às redes de telecomunicações. Essas redes dependem de satélites e cabos submarinos, desenvolvidos graças à engenharia aeroespacial e às tecnologias de transmissão de dados. A engenharia aeroespacial é possível graças aos princípios da física e da matemática, que por sua vez se baseiam em avanços anteriores como a linguagem e a escrita, que permitiram a acumulação e transmissão de conhecimento. Tudo isso foi inicialmente possível graças ao controle do fogo, que permitiu aos primeiros humanos cozinhar alimentos, fabricar ferramentas e criar comunidades mais complexas.

Em essência, embora se queira constantemente apresentar o empresário como um inovador e até, em alguns casos, como um benfeitor social, essas aplicações como o Uber (entre tantos outros exemplos) são o resultado de uma longa cadeia de inovações e descobertas ao longo da história humana, que são postas em prática por milhares de trabalhadores que realizam diferentes funções para que funcionem, muitas vezes com ajuda estatal.

Para onde estamos indo e quem define? Alguém tem o botão vermelho?

O vertiginoso desenvolvimento da IA nos obriga a perguntar: para onde estamos indo e, mais importante ainda, quem está no volante desta “revolução tecnológica”? A metáfora do “botão vermelho” — aquele interruptor hipotético capaz de interromper o avanço da IA se ela se tornar perigosa — nos convida a refletir sobre o controle e as implicações dessa tecnologia transformadora.

Atualmente, estamos testemunhando uma concentração sem precedentes do poder tecnológico. Como mencionado no último livro de Cancela, oitenta por cento do investimento na renovação de cabos submarinos ocorrida nos últimos anos vem de apenas dois gigantes tecnológicos dos Estados Unidos: Google e Facebook, e os centros de dados tornaram-se ferramentas essenciais para a expansão e aprofundamento da financeirização do mundo. Essa concentração não só consolida seu domínio econômico, como também lhes concede um papel preponderante na definição do futuro tecnológico. A pergunta que surge é: devemos permitir que um punhado de corporações privadas tenha tanto controle sobre uma tecnologia com o potencial de redefinir a sociedade?

Os modelos de IA, como o GPT e outros, alimentam-se de vastas quantidades de dados, mas esses dados não são neutros. Eles carregam consigo os vieses históricos e culturais da sociedade que os produz. Temos visto exemplos preocupantes de como esses vieses se manifestam em representações problemáticas de minorias ou na forma como abordam temas como o socialismo. A IA, longe de ser um árbitro imparcial, pode se tornar um amplificador dos preconceitos existentes se não for tratada criticamente. Recentemente, surgiram algumas pesquisas sobre como esses vieses podem ser interpretados, o que permitiria manipulação direta 3.

De uma perspectiva marxista, é crucial reconhecer que a IA, como toda tecnologia, é fruto da cooperação social e do “intelecto geral” — esse conhecimento coletivo acumulado ao longo de gerações. No entanto, sob o capitalismo, os benefícios e o controle dessa tecnologia estão sendo apropriados por interesses privados. Essa contradição entre a produção social do conhecimento e sua apropriação privada reflete tensões mais amplas do sistema capitalista.

O desenvolvimento atual da IA apresenta sérios desafios para o mundo do trabalho. Por um lado, tem o potencial de liberar os trabalhadores de tarefas repetitivas e alienantes. Por outro, sob a lógica capitalista, é frequentemente usada para intensificar a exploração, substituir postos de trabalho e aumentar a vigilância sobre os trabalhadores. Neste artigo, não entraremos em detalhes sobre as possibilidades reais da nova onda tecnológica, mas a questão não é apenas se a IA transformará o trabalho, mas também como o fará e em benefício de quem.

Diante desses desafios, surge a necessidade urgente de um controle democrático sobre o desenvolvimento e a aplicação da IA. Não podemos permitir que decisões que afetarão profundamente nossas vidas e sociedades fiquem nas mãos de um pequeno grupo de executivos corporativos ou tecnocratas. É necessária uma participação mais ampla na tomada de decisões, que inclua trabalhadores, comunidades afetadas e especialistas de várias disciplinas.

Há alguns meses, uma série de especialistas tecnológicos pediu para desacelerar os avanços tecnológicos e debater para onde estamos indo. No entanto, ao estarem sob gestão privada, as empresas mais avançadas estão definindo o avanço, enquanto as que estão atrás pedem para parar simplesmente para não perder. Em uma sociedade verdadeiramente democrática, esse “botão” não estaria nas mãos de poucos, mas seria uma responsabilidade coletiva. Implicaria a capacidade da sociedade de decidir democraticamente como desenvolver e utilizar a IA, estabelecendo limites quando necessário e reorientando seu desenvolvimento para fins socialmente benéficos. Nesse contexto, a ideia que alguns autores, como o atual CEO da Microsoft AI, Mustafa Suleyman, escreveram em seu recente livro, de pensar como contê-la e até “desconectá-la, se necessário”, não parece realista em meio a uma corrida acelerada tanto no plano empresarial quanto geopolítico 4.
Existem múltiplos debates sobre se a IA é inteligente, se tem criatividade, se pode se rebelar, entre vários outros problemas éticos. Também, se estamos próximos de construir uma inteligência artificial geral (AGI), algo como uma IA que pode resolver qualquer tarefa cognitiva humana. Não é o objetivo deste artigo entrar nessa controvérsia. No entanto, é importante desenvolver que, em última análise, o debate sobre a IA não é apenas tecnológico, mas profundamente político e filosófico. Ele nos obriga a questionar que tipo de sociedade queremos construir e como a tecnologia pode nos ajudar a alcançá-la. Se quisermos que a IA seja uma força para a emancipação humana e não mais uma ferramenta de exploração e controle, devemos lutar por um modelo de desenvolvimento tecnológico que seja debatido democraticamente e que atenda às necessidades sociais.

Regular ou expropriar?

É suficiente ou sequer possível regular os gigantes tecnológicos, ou chegou a hora de considerar a expropriação das infraestruturas tecnológicas? O caso de Elon Musk e sua compra do Twitter (agora X) nos fornece um exemplo paradigmático dos perigos que implica concentrar tanto poder tecnológico nas mãos de indivíduos com agendas políticas definidas.

Musk, um bilionário com tendências políticas de extrema direita, não só adquiriu uma plataforma de comunicação em massa, como também está investindo muito no desenvolvimento de sua própria IA com projetos como o Grok, capaz de responder em tempo real às diferentes consultas dos usuários. Essa concentração de poder midiático e tecnológico nas mãos de alguém que apoia abertamente figuras políticas como Trump ou Milei levanta sérias preocupações sobre o futuro da liberdade de expressão e do fluxo de informações em nossas sociedades.

A gestão de Musk no Twitter demonstrou as contradições inerentes à sua suposta defesa da liberdade de expressão. Por um lado, censura consignas legítimas, como as do povo palestino, enquanto, por outro, ignora pedidos de governos, como o do Brasil, para bloquear contas que promovem ideologias fascistas. Esse discurso duplo revela que a “liberdade de expressão” muitas vezes se torna uma cortina de fumaça nas mãos de protofascistas para avançar agendas políticas específicas. O problema, em última análise, é a capacidade de proibir discursos, já que isso hoje pode ser utilizado contra a direita e amanhã contra aqueles que protestam por seus direitos.

As tentativas de regular essas corporações tecnológicas têm se mostrado ineficazes repetidas vezes. As multas, por mais altas que sejam, são apenas um pequeno inconveniente para empresas que geram bilhões em lucros. As regulações, muitas vezes desenhadas com a ajuda dos próprios lobbies tecnológicos, costumam ter brechas que permitem a essas companhias continuar operando com relativa impunidade.

Diante desse cenário, surgem com força propostas como a de Evgeny Morozov e outros pensadores críticos: a expropriação das infraestruturas tecnológicas. Essa ideia parte da premissa de que a tecnologia, especialmente a internet e a IA, é importante demais para o futuro da humanidade para ser deixada nas mãos de interesses privados. A expropriação permitiria uma reconfiguração dessas infraestruturas, transformando-as de ferramentas de controle e acumulação de capital em bens comuns a serviço da sociedade.
Essa reconfiguração poderia ser um passo crucial para a descolonização da tecnologia, apoiando a criação de uma arquitetura da internet mais democrática e equitativa. Libertaria a tecnologia de sua função predominante de acumulação de capital e de manutenção do neoliberalismo global, permitindo seu uso para fins socialmente benéficos.

O debate se intensifica com os recentes avanços que permitem introduzir vieses na tecnologia de IA. Isso significa que aqueles que controlam esses sistemas podem, potencialmente, influenciar a forma como a IA processa e apresenta as informações, o que tem implicações enormes para a formação da opinião pública. Mustafa Suleyman, cofundador da DeepMind e atual CEO da Microsoft AI, sugere que há a possibilidade de essas tecnologias influenciarem significativamente o resultado de eleições.

Alguns argumentam que existem riscos inerentes ao desenvolvimento descontrolado da IA, como expresso em uma carta aberta assinada por diversos especialistas. No entanto, esses alertas são frequentemente rejeitados por aqueles que têm interesses econômicos no desenvolvimento acelerado dessas tecnologias. O debate sobre a “contenção” da IA, que inclui propostas extremas como “desconectá-la, se necessário”, revela a profunda preocupação que existe até entre os desenvolvedores dessas tecnologias.
O surgimento de iniciativas de código aberto como EleutherAI ou a liberação do modelo Llama pela Meta demonstra que existem alternativas ao modelo proprietário dominante. Contudo, essas iniciativas muitas vezes surgem como uma resposta competitiva, mais do que um compromisso genuíno com a abertura e a democratização da tecnologia.

Além das implicações mencionadas, a IA apresenta sérias contradições ambientais. O impulso para maximizar os lucros levou a um uso desmedido de recursos naturais e a um impacto ecológico significativo. Os centros de dados que suportam as operações dos gigantes tecnológicos e os modelos de inteligência artificial consomem enormes quantidades de energia e água. Por exemplo, estima-se que uma sessão média com o GPT, que inclui entre 10 e 50 consultas, possa consumir até meio litro de água devido ao resfriamento dos servidores e ao consumo energético associado.
Com tudo isso, a expropriação das infraestruturas tecnológicas não é apenas uma proposta econômica, mas uma necessidade democrática. Ela permitiria colocar essas poderosas ferramentas sob controle público, garantindo que seu desenvolvimento e aplicação estejam alinhados com o interesse comum e não com os lucros privados de uma elite tecnológica.

A expropriação, no entanto, não deve ser vista como um fim em si mesma, mas como parte de um programa de transição para o socialismo. Implicaria também um repensar radical de como desenvolvemos e implantamos a tecnologia, direcionando-a para um planejamento democrático da economia.

Em última análise, a decisão entre regular ou expropriar é uma decisão sobre que tipo de futuro queremos construir. Um futuro onde a tecnologia seja uma ferramenta de emancipação e progresso social, ou um onde seja um instrumento de controle e exploração. A magnitude do desafio requer soluções ousadas. A expropriação das infraestruturas tecnológicas poderia ser o primeiro passo para um novo paradigma tecnológico a serviço da humanidade.

Tecnologia para libertar

Em um mundo dominado pelas grandes corporações tecnológicas e pela constante tensão entre regulação e controle da tecnologia, a criatividade surge como um poderoso motor para mudar as coisas. O exemplo do bot desenvolvido pelo La Izquierda Diario tenta mostrar que, mesmo com recursos limitados, é possível usar a tecnologia de forma inovadora e a serviço da comunidade.

A iniciativa do La Izquierda Diario demonstra que, mesmo em pequena escala, é possível aproveitar essas tecnologias para um uso diferente. Neste caso, para a divulgação e democratização de ideias socialistas. A ideia do ChatPTS é que você possa fazer consultas sobre diversos temas, desde questões ideológicas até caracterizações políticas ou conjunturais. A ferramenta tentará identificar os artigos ou livros mais pertinentes para resolver essa dúvida e fornecerá um resumo personalizado com os links sugeridos para complementar a leitura. Essa ferramenta em nenhum momento substitui a reflexão coletiva, o intercâmbio e o constante vai e vem entre teoria e prática. Funciona como um agregador e sintetizador do que foi escrito, mas não oferece respostas únicas ou precisas; é algo dinâmico, que se renova e se repensa com as novas experiências históricas.

Obviamente, não é o único exemplo. Existem centenas de milhares de pessoas no mundo que, assim como essa pequena equipe, estão usando suas habilidades e criatividade para desenvolver ferramentas tecnológicas que empoderam as comunidades e promovem a mudança social.

Em uma sociedade onde as necessidades básicas estejam satisfeitas, a tecnologia pode ser o meio para redefinir e transformar o papel do trabalho. Se usarmos a tecnologia para eliminar progressivamente as tarefas mais tediosas e alienantes, poderemos liberar nosso tempo para nos dedicarmos a atividades mais enriquecedoras e gratificantes.

Como propõe Catherine Samary:

Tão logo o trabalho se torna interessante por si só (e proporciona um nível de vida considerado socialmente justo em um dado contexto, por consenso), a rotina e o conservadorismo podem ser facilmente combatidos por meio da comparação de resultados, da pressão das equipes trabalhando juntas, da pressão dos consumidores de bens e serviços, e do prazer proporcionado por um trabalho bem feito. 5

Essa é precisamente a sensação que experimentamos, nós que utilizamos nosso tempo e esforço para desenvolver tecnologia a serviço da comunidade. Sabemos os limites de utilizar tecnologia desenvolvida no capitalismo. Isso não é nada comparado ao que poderia ser alcançado no socialismo, mas, mesmo com nossa pequena iniciativa, queremos mostrar um uso revolucionário da tecnologia.

A criatividade e o trabalho coletivo de quem se recusa a aceitar o domínio das grandes corporações tecnológicas são sementes de um futuro alternativo. Por meio da organização e articulação dessas iniciativas “de baixo para cima”, podemos contribuir para a luta direta contra o capital e para a perspectiva de construir uma tecnologia a serviço das necessidades e aspirações da classe trabalhadora e das comunidades oprimidas. Só assim poderemos avançar em direção a uma sociedade onde a tecnologia seja um meio para a plena realização da humanidade, e não um instrumento de dominação e exploração.

 

Notas de rodapé
1. Facundo Nahuel Martin, Ilustración sensible. Hacia un giro materialista en la teoría crítica, Ediciones IPS, p. 27
2. Lenin, Las tareas inmediatas del poder soviético.
4. Mustafa Suleyman, La ola que viene, 2023, Penguin Random House Grupo Editorial
5. Catherine Samary, Planificación, mercado y democracia, Instituto Internacional de Investigación y Formación, 1989
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