Revista Casa Marx

Introdução do livro “China: onde os extremos se tocam”

André Barbieri

Publicamos a seguir a introdução do livro “China: onde os extremos se tocam. Trótski, revolução permanente e a crítica do multilateralismo do capital na era Xi Jinping”, de André Barbieri, que vem à luz proximamente pelas Edições Iskra. Como antecipação da publicação, divulgamos os debates centrais da obra sintetizados na introdução. O livro já está em pré-venda, e pode ser adquirido aqui.

Um problema de dimensões chinesas

Um espírito muito profundo, embora fantasioso, conhecedor das leis que regem o desenvolvimento da humanidade, costumava destacar como um dos mistérios que domina a natureza a lei da unidade e interpenetração dos contrários. Em sua opinião, o velho provérbio popular de que “os extremos se tocam” representava a verdade suprema em todos os âmbitos da vida, um axioma tão imprescindível para o filósofo quanto as leis de Kepler ou a grande descoberta de Newton para os astrônomos. Um dos exemplos mais reveladores da universalidade deste famoso princípio de que “os extremos se tocam” pode ser encontrado no efeito da revolução da China no mundo civilizado.

Karl Marx, A Revolução na China e na Europa, 14 de junho de 1853

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Os problemas sociológicos seriam muito mais simples se os fenômenos sociais tivessem sempre contornos precisos. Mas nada é mais perigoso do que eliminar, em nome da integridade lógica, os elementos da realidade que hoje contrariam nossos esquemas, e que amanhã podem refutá-los por completo […]. A tarefa científica, tanto quanto a política, não é dar uma definição acabada de um processo inacabado, mas seguir todas as suas fases, extrair dele as suas tendências progressistas e as reacionárias, expor suas relações mútuas, prever as múltiplas variantes do desenvolvimento futuro, e encontrar nesta previsão um ponto de apoio para a ação.

Leon Trótski, A Revolução Traída, agosto de 1936

O “espírito profundo, embora fantasioso” a que Marx se referiu, a meados de 1853, quando tratava das implicações epocais de uma revolução na China, era o filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Este afirmava que, assim como não existe movimento sem matéria, também não existe matéria sem movimento. Friedrich Engels, servindo-se das lições sobre a filosofia da natureza do pensador alemão, estabelecia, da mesma maneira, que o movimento é o modo de existir da matéria: “matéria sem movimento é tão inconcebível como movimento sem matéria”. Todo objeto de estudo precisa ser captado em sua dinâmica mutável, e diante do seu ser, cumpre não esquecer o seu devir. No terreno das ciências humanas essa concepção é de vital importância. O surgimento de novos fenômenos na arena da economia, da geopolítica e da luta de classes exige atenção aos pontos em que se dão as transições e transformações das formas concretas de ser.

Talvez a China seja uma das expressões mais intrigantes desse movimento da matéria. Ela é, e ao mesmo tempo não é, o que parece, a cada momento. Pelas riquezas acumuladas e a velocidade com que ingressa na arena da rivalidade entre potências, o fenômeno chinês no século XXI deixou no museu da história a lenta gradação que caracterizou seu desenvolvimento milenar. Uma das mais antigas civilizações, que combinou uma galeria de dinastias agrárias com um dos mais atrozes processos de colonização sofridos na história, converte-se em uma formação capitalista que disputa territórios com as principais potências pela absorção de trabalho vivo como meio de valorização do seu capital. Essa processualidade é acelerada e ritmada pelos acontecimentos que abalam a economia capitalista mundial. A começar pelos efeitos não resolvidos da crise econômica mundial de 2008, passando pela pandemia do coronavírus, até a Guerra da Ucrânia e o genocídio dos palestinos em Gaza por parte do Estado de Israel. Todos esses processos complexificam a entrada da China no palco das grandes potências, informando a natureza peculiar da atual competição interestatal que reatualizou as características da época imperialista, de crises, guerras e revoluções.

Em função de seu desenvolvimento desigual e combinado exacerbado, a China contemporânea exibe atraso e modernidade em estado concentrado. Poderíamos tomar emprestada a noção de Engels, e descobrir também que na China os dois polos de um antagonismo são tão inseparáveis um do outro como opostos um ao outro e, apesar de seu caráter antagônico, interpenetram-se reciprocamente. Atraso e modernidade convivem, opondo-se. Diante disso, o melhor método de análise do fenômeno chinês compreende a captação das tendências para onde se dirigem suas mudanças. Tão importante quanto a identificação das relações mútuas entre as tendências contraditórias de fenômenos difíceis de captar, como o da China no século XXI, é “prever as múltiplas variantes do desenvolvimento futuro, e encontrar nesta previsão um ponto de apoio para a ação”, como diz Leon Trótski. Abstendo-se do risco de fossilizar definições acabadas sobre processos complexos que se desenvolvem na realidade, a chave da investigação é acompanhar os passos desse desenvolvimento para agir sobre eles. Nosso estudo sobre a China de Xi Jinping é inseparável da possibilidade da fusão entre a teoria socialista e a classe trabalhadora chinesa, atendendo aos requisitos de uma época em que apenas novas revoluções socialistas podem colocar termo às rivalidades capitalistas e suas guerras.

A Guerra da Ucrânia – iniciada com a reacionária ocupação militar por parte da Rússia de Vladimir Putin em fevereiro de 2022, e marcada no campo ucraniano pela ingerência política e o comando logístico-militar do imperialismo dos Estados Unidos e da OTAN – lança luz sobre as novas coordenadas para onde se dirigem as mudanças na China. Nesse conflito militar, que repôs a condição das guerras interestatais de forma contundente na etapa histórica – nada menos que no interior do continente europeu – os objetivos políticos dos atores transcendem a arena imediata da Ucrânia. Embora não tenha participado de guerras com tropas atuantes desde a invasão no Vietnã em 1979, a República Popular participa da Guerra da Ucrânia de maneira destacada com interesses próprios. Se a guerra é a continuação da política por outros meios (isto é, meios violentos), no apotegma clássico de Carl von Clausewitz, é possível distinguir como cada grande ator internacional continua sua política nesse conflito. Os Estados Unidos, intervindo por procuração e não diretamente com tropas sobre o terreno, desenvolveu a política de preservar o projeto de integração capitalista mundial sob sua hegemonia imperialista. Seu objetivo é subordinar a Rússia e a China à decadente ordem unipolar saída da Guerra Fria, mediante a agressiva expansão ao Oriente. Em outras palavras, trata de cercar a zona de influência russa e conter a projeção internacional de Pequim. O segundo mandato de Donald Trump, eleito em novembro de 2024, tem essa tarefa estratégica em mira, de uma maneira ainda mais agressiva do que foi feito durante a administração Joe Biden.

A política que a China continua através da guerra é a contrária. Estabelecendo uma aliança de facto com a Rússia, garantindo a continuidade dos seus esforços militares e sua sobrevivência econômica diante das sanções ocidentais, a China buscou impedir que uma eventual derrota de Putin oferecesse a Washington a oportunidade de avançar sobre sua zona de influência asiática. Mais que isso, a política continuada por Xi Jinping foi a do questionamento da ordem unipolar hegemonizada pelos Estados Unidos, a fim de modificar, em melhores condições, sua posição no atual sistema de Estados. Não se constituiu em território europeu uma conflagração que opusesse Washington a Pequim em termos armados, algo potencialmente capaz de desencadear uma Terceira Guerra Mundial; tampouco, entretanto, se poderia reduzir o conflito russo-ucraniano a um incidente militar restrito a preocupações de segurança locais. Nesta etapa, a carta militar se encontra mais frequentemente disposta na mesa da competição entre as potências, porque o que está em jogo ultrapassa o conjuntural. Em verdade, a Guerra da Ucrânia despertou em termos militares um desafio aberto à ordem mundial das últimas três décadas, e exibe a China – em sua aliança com a Rússia – como a principal potência revisionista da hierarquia do sistema capitalista de Estados.

Essa nova eventualidade surge da alteração das relações da China com o ciclo de acumulação neoliberal a partir dos anos 1990. Com efeito, após a restauração do capitalismo na ex-URSS, na Europa do Leste e, sobretudo, na China, o capitalismo encontrou uma nova “selva virgem”, um novo espaço vital para a reprodução ampliada da valorização do capital. A derrota do movimento operário mundial – na conjuração do ciclo revolucionário de 1968-81 e na restauração da propriedade privada nos países onde a burguesia havia sido expropriada – significou a vasta expansão da lei do valor. Incorporou-se à arena de acumulação capitalista um imenso quantum de força de trabalho que estivera indisponível durante boa parte do pós-Segunda Guerra. Em particular, a restauração do modo de produção capitalista no gigante asiático transformou qualitativamente a capacidade do imperialismo de extrair mais-valor absoluto em todo o mundo, reduzindo salários e incrementando globalmente a exploração do trabalho a níveis desconhecidos. A China passou a absorver investimento estrangeiro e subordinar-se estruturalmente ao capital ocidental, embora não aderisse aos contornos tradicionais da estrutura econômica e de poder que o neoliberalismo buscou generalizar no Ocidente.

A China é um país capitalista: a competição das corporações privadas e de propriedade estatal, em função da acumulação de capital e da conquista do lucro, está fundada na exploração da força de trabalho humana. A produção de mercadorias em função da taxa de rentabilidade governa a economia, e não a satisfação das necessidades humanas. Assim, a economia chinesa integra o turbilhão da competição capitalista global. No século XXI, a China trabalha para reposicionar-se na escala mundial de Estados e superar as travas de contenção da velha era unipolar dominada pelos Estados Unidos. Como afirmam Eli Friedman, Kevin Lin, Rosa Liu e Ashley Smith em China in Global Capitalism: Building International Solidarity against Imperial Rivalry, a oposição do Estado chinês à ordem mundial liderada pelos Estados Unidos diz respeito à asserção de seus interesses no interior do metabolismo global capitalista, e não à promoção de uma política socialmente emancipatória. Trata-se de uma competição pelo controle de recursos naturais, tecnologias, zonas de influência e mercados na arena da valorização do capital, com efeitos catastróficos para os povos do mundo.

Em relação à atividade da China nas primeiras décadas do século XXI, não obstante, a novidade é que sua capacidade de atuar como contratendência à queda da taxa de lucro e da produtividade capitalista está se esgotando. O gigante asiático não pode seguir desenvolvendo-se enquanto mero receptor de capitais. A destruição das conquistas da Revolução de 1949 deu origem a uma classe burguesa que se enriqueceu durante as décadas de reforma e abertura, e agora busca projetar-se internacionalmente como potência valorizadora de valor – ou seja, que explora trabalho para além das suas fronteiras. Essa mudança em seu padrão de crescimento posiciona a China em rota de colisão com os EUA e as grandes potências por novos mercados.

A China foi transformada de uma nação pobre, um destino para a acumulação de capital pelas potências imperialistas, em uma nação que compete no mercado mundial pelas oportunidades de acumulação de capital. Como afirma o sinólogo norte-americano Bates Gill:

Entre 2000 e 2020, o produto interno bruto (PIB) da China cresceu quase nove vezes. Como proporção do PIB global, a China cresceu de cerca de 3% em 2000 para cerca de 16% em 2020. O PIB nominal da China era aproximadamente igual ao da Itália em 2000, e passou a superar o da França (2005), do Reino Unido (2006), da Alemanha (2007) e do Japão (2010) para se tornar a segunda maior economia do mundo, atrás dos Estados Unidos. Em termos de paridade de poder de compra, o tamanho da economia da China ultrapassou a economia dos Estados Unidos por volta de 2014. A renda pessoal dos cidadãos chineses disparou, e centenas de milhões escaparam da pobreza. Com base nesta geração de riqueza, o Exército de Libertação Popular desfrutou de orçamentos em constante crescimento. Os gastos militares chineses ultrapassaram os da França, Japão e Reino Unido no início dos anos 2000 e, em 2019, haviam atingido cerca de US$ 261 bilhões, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e mais de três vezes acima do seguinte na lista, a Índia.

A ascensão da China como protagonista no sistema mundial de Estados é, de fato, um dos fenômenos mais intrigantes do século XXI. E parece imparável. Em quarenta anos, a China passou de uma posição subordinada e marginal no mundo para se converter no epicentro das preocupações do imperialismo estadunidense na manutenção da ordem global. A China não é mais uma pequena potência: tornou-se proeminente no quadro mundial, rica e influente. Possui ativos em centenas de países e é um dos mais destacados investidores estrangeiros globais. Tornou-se o principal parceiro comercial de uma multiplicidade de países, elo indispensável das cadeias globais de valor. A China passou de um PIB per capita de US$ 300 em 1978 para US$ 12,6 em 2023. De fato, a economia chinesa cresceu em um ritmo inigualado por qualquer outra nação na história. Isso permitiu que a China se estabelecesse como exportadora de bens finais ou componentes com mão-de-obra intensiva, projetando sua influência internacional por meio do comércio e da diplomacia. Ao mesmo tempo, concentra esforços para tornar sua economia mais complexa, sofisticando o conteúdo de sua produção e competindo pela liderança em inovação.

Ainda que a China tenha uma potência acumulada inferior à dos Estados Unidos, o peso total de sua economia (e até mesmo de seu aparato militar) faz frente a potências de primeira ordem, como Alemanha, Inglaterra e Japão. Martin Wolf reconhece que a China é para os Estados Unidos um adversário muito mais poderoso do que foi, em seu momento, a União Soviética. Argumenta que a China não precisa resolver perfeitamente todas as suas contradições para ter a maior economia do mundo: a produção per capita da China (em termos de poder de paridade de compra) representa 33% daquela dos Estados Unidos (era de 8% no ano 2000) e 50% daquela da União Europeia. Na hipótese de a China elevar a relação para uma produção per capita de 50% à dos Estados Unidos, a sua economia seria maior que a dos Estados Unidos e da União Europeia, juntas. De fato, a produtividade horária do trabalho da China, como aponta o economista argentino Esteban Mercatante, é de apenas 20% aquela dos Estados Unidos; mas essa taxa era de 10% em 2007, proporção que duplicou em uma década. Em 2019 a China era o terceiro país com maior estoque de investimento estrangeiro direto (IED) no exterior: representava 6% do estoque total, enquanto em 2000 era de apenas 0,37%. Os EUA continuam sendo, com ampla margem, o maior investidor global, mas vê sua participação caindo no estoque total, de 36% para 22% entre 2000 e 2019. Grã-Bretanha, Japão, Alemanha e França estão ligeiramente atrás da China em termos de volume de capital produtivo exportado, uma dimensão relevante do avanço chinês. Quanto à esfera militar, os êxitos comparativos são notáveis. Em 2022, de acordo com o Instituto Internacional de Estudos para a Paz de Estocolmo, 39% dos gastos militares foram feitos pelos Estados Unidos (US$ 877 bilhões), mas a China (US$ 292 bilhões) ocupou o segundo lugar com 13% do desembolso militar global. De 2013 a 2022, houve aumento acumulado de 63% nos gastos militares chineses (2,7% no caso dos Estados Unidos), ainda que o gasto norte-americano seja o triplo daquele da China. Como um relatório do Serviço de Pesquisa do Congresso dos EUA observa, a Marinha chinesa é “de longe a maior comparada com qualquer país do Leste Asiático”, e nos últimos anos ultrapassou a Marinha dos Estados Unidos em número de navios de combate. As capacidades militares desenvolvidas como resultado desses níveis de investimento excedem as de vários países imperialistas.

Essa transformação tem sérias consequências para a estrutura capitalista. A principal delas é que a China se torna um ator influente – e decisivo – na disputa por quem pagará os custos do esgotamento da globalização neoliberal. Diante da ausência de novos espaços de acumulação capitalista (como foi a própria China a partir de sua reabsorção na esfera de extração de mais-valor na década de 1990) e do fato de que as crises econômicas (como aquela que emergiu com a quebra do banco Lehman Brothers) não estão cumprindo sua função de limpeza de capitais em virtude dos mecanismos de contenção do Estado, as tendências a fricções geopolíticas com implicações militares se tornam cada vez mais inscritas na situação, ainda que não se tenham generalizado em um conflito global. Dentro dessa dinâmica, em que os Estados Unidos seguem sendo a principal potência imperialista dentro do sistema capitalista global, a China desempenha um papel que para sua história é inédito na partilha dos recursos mundiais.

Ao mesmo tempo, à cabeça do Estado se encontra o Partido Comunista Chinês (PCCh), que sobreviveu à derrocada da maioria dos partidos comunistas de matriz stalinista pelo mundo, e reteve amplos poderes, que permanecem centrais para a direção da economia e da organização social. O poder crescente do capital privado é determinado por um dirigismo estatal característico das consequências da restauração. Essa situação híbrida, entre a influência coordenadora do Estado na economia, de um lado, e a sua inserção nos fluxos de circulação global do capital, de outro, é um atributo distintivo do desenvolvimento desigual e combinado exacerbado que caracteriza a formação socioeconômica chinesa. Ambas as facetas são fundamentais para compreender o curso peculiar do capitalismo na China, e constituem os fundamentos atuais de uma formação econômico-social por definição não universalizável.

A gênese particular e não replicável do capitalismo chinês desafia qualquer compreensão mecânica. Duas características são determinantes para entender o capitalismo chinês em base a sua gênese. A primeira é o enorme atraso do qual partiu o desenvolvimento capitalista chinês no período pós-restauração. Em contraste com o amplo processo de industrialização e urbanização que havia tido a União Soviética, no momento de início das reformas pró-capitalistas de Deng Xiaoping, em 1978, a população agrária da China ainda contabilizava 80% da sua população global. As cidades chinesas possuíam um tamanho modesto, se comparadas com a densidade demográfica da China, com um campo tecnicamente atrasado que constituía, ainda em 1980, o centro de gravidade da economia. A segunda característica da gênese do capitalismo chinês é a apropriação por parte da restauração de todas as conquistas adquiridas pela Revolução de 1949, que assentaram as bases para o desenvolvimento de suas forças produtivas. A evolução rápida da China não devém da ordenação virtuosa da política por parte do Partido Comunista, e sim da expropriação objetiva das conquistas revolucionárias promovida pela burocracia restauracionista com o propósito de alavancar sua posição no sistema capitalista.

Como assinala Perry Anderson, as conquistas no período de Mao Tsé-tung, embora planificadas burocraticamente, assentaram as bases para as proezas da era das reformas. A base deste legado se encontrava na criação, pela primeira vez na história moderna do país, de um Estado soberano forte, que pôs fim à servidão semicolonial – um aspecto também notado por Alvin So e distintos pesquisadores. Quanto à força de trabalho, Anderson destaca que a República Popular fez emergir uma camada de milhões de trabalhadores saídos da miséria, com formação educacional e disciplina, atingindo índices elevados de alfabetização e expectativa de vida. No terreno da economia, segundo Anderson, a China conquistou o estabelecimento de poderosos mecanismos de controle econômico – planificação, setor público, balança de pagamentos etc. – dentro de um marco institucional relativamente descentralizado, que permitia a autonomia das províncias. Devemos dizer que o Estado forte, a base operária e camponesa disciplinada pelas campanhas políticas permanentes e os mecanismos de controle sobre os dispositivos econômicos tiveram de se mesclar com a estrutura burocrática de um partido-Estado cuja perspectiva não abonava a existência de organismos de democracia direta do tipo da Comuna ou dos conselhos soviéticos, nem a expansão internacional das conquistas de 1949. O isolamento e o atraso, alimentados pela situação mundial de retrocesso das conquistas operárias – a queda do Muro de Berlim e o desaparecimento da União Soviética – desataram as forças que trariam a China de volta para o novelo do capitalismo global.

A conjunção desses fatores permitiu que a China se constituísse como uma espécie de “selva virgem” do capitalismo às portas das décadas neoliberais. Sobre a base das vantagens do seu atraso, tanto a enorme massa de camponeses habilitados culturalmente a serem proletarizados nas grandes cidades costeiras, quanto a apropriação capitalista das conquistas da revolução, tornaram a China um destino privilegiado dos investimentos estrangeiros de capital. Tornou-se a “fábrica do mundo”. Essa combinação única possibilitou que a China, e não qualquer país atrasado com crescimento econômico destacado – como a Índia – pudesse cumprir o papel de âncora das décadas neoliberais e ter um ritmo de desenvolvimento das forças produtivas sem paralelo na época imperialista, ou seja, de decadência do capitalismo.

Esta conjunção de fatores também fundamenta as contradições que atravessam o capitalismo chinês. Uma delas é a contradição entre as cidades industriais e portuárias, ligadas ao comércio internacional e aos investimentos capitalistas, e o campo chinês de baixa produtividade do trabalho, gerando uma fissura nacional que poderia ser entendida como o retrato de “duas Chinas”. Outra contradição relevante é a existência de uma colossal classe trabalhadora, de centenas de milhões de seres humanos, e uma relativamente frágil burguesia nacional, fruto de sua situação de dependência diante do Partido Comunista Chinês. Não menor é a contradição entre o sistema político e o econômico, tornando o capitalismo chinês altamente dependente do dirigismo estatal.

Tais características contraditórias devem ser tomadas em conjunto. Muitas vezes são dissociadas e tomadas separadamente, levando a caminhos tortuosos no exame das bases sociais da China. É possível identificar nos trabalhos de renomados intelectuais como o economista italiano Giovanni Arrighi e o historiador britânico Perry Anderson, tão distintos entre si, a percepção de que a China seria um país não capitalista, ou ainda que a China teria características comunistas. Em seu consagrado Adam Smith em Pequim, Giovanni Arrighi anunciou serem identificáveis elementos da história da China, anteriores às invasões europeias, que autorizariam definir a existência de uma economia de mercado não capitalista, ou seja, não exploradora. Nesse mesmo diapasão, Arrighi desenvolve a noção do efeito benéfico da ascensão da China na ordem mundial, “subversiva” do sistema imperialista. Em Duas revoluções: Rússia e China, Perry Anderson desenvolve uma aproximação teórica por meio de uma fórmula híbrida, em que a forma social da propriedade privada capitalista não excluiria uma superestrutura política comunista. Indica que:

Em termos taxonômicos, a República Popular da China é um novum histórico-mundial: a combinação daquilo que, segundo qualquer critério convencional, apresenta-se por ora como uma economia predominantemente capitalista, com aquilo que, segundo qualquer critério convencional, ainda é incontestavelmente um Estado comunista – cada qual o mais dinâmico já visto em seu gênero.

Alguns aborrecimentos decorrem de cada uma dessas formas aparentemente polares de enunciar o problema da caracterização da China. A aproximação apresentada por Giovanni Arrighi de uma economia de mercado não capitalista (consequentemente, que não explora a força de trabalho humana objetivando a extração e apropriação privada de mais-valor) retoma a tese consagrada pelo próprio Partido Comunista Chinês de uma “economia socialista de mercado”. Entretanto, que fazer com a realidade da exploração monumental da força de trabalho chinesa nos últimos quarenta anos? A reintrodução da força de trabalho chinesa na esfera de valorização do capital representou um dos maiores ciclos de exploração do trabalho na história humana. Naturalmente, com consequências atrozes para os trabalhadores. Segundo o China Labour Bulletin, que recolhe dados governamentais, houve 38 mil mortes operárias na China, relacionadas a acidentes ocupacionais, no ano de 2017, uma média de 104 trabalhadores mortos por dia. Essa é considerada uma taxa descendente quando comparada com a média de óbitos na década de 2000, quando mais de 100 mil trabalhadores perdiam suas vidas por acidentes laborais todos os anos. A realidade é que a China, no processo de restauração capitalista após a década de 1980, converteu-se no principal motor da economia capitalista global, precisamente ao assumir o papel de arena aberta para a acumulação privada por parte dos monopólios estrangeiros mediante a superexploração da classe trabalhadora local. Longe de ter diminuído a desigualdade global com sua inserção no mercado capitalista, como argumentam Domenico Losurdo ou Branko Milanovic, essa reintegração da China nas cadeias de valor foi fundamental para os principais efeitos do neoliberalismo a nível global, e pela degradação das condições de vida dos trabalhadores chineses.

É impossível adentrar as contradições da sociedade chinesa sem levar em consideração, como problema central, o lugar real que ocupa a maior classe trabalhadora do mundo, e suas condições de vida. A terrível situação a que os monopólios internacionais, com o salvo conduto de Pequim, submeteram trabalhadores e camponeses chineses torna desarrazoada a classificação de “economia de mercado não capitalista” feita por Arrighi. Em realidade, o capitalismo com características chinesas, durante o neoliberalismo, converteu-se em um dos sistemas de exploração mais acerbos da terra. A multiplicação de grandes conglomerados capitalistas privados na China, em todos os ramos – de exploração de recursos naturais à logística, de alta tecnologia robótica às plataformas digitais – faz com que o país já não seja mero reprodutor do capital privado estrangeiro em seu território. Essa exploração da força de trabalho está fundada na emergência de uma nova classe de proprietários privados que, mediante seu poderio econômico adquirido nas décadas da restauração, possui relações privilegiadas com o Partido Comunista.

Em 1948, a indústria privada na China compunha mais da metade da produção industrial nacional; em 1958, dez anos depois, a industrialização estatal reduziu o setor privado a apenas 20% da indústria nacional. Mas em 2023, à entrada do terceiro mandato de Xi Jinping, a indústria privada na China contabilizou ao redor de 60% do PIB. Esse devir diz respeito a uma modificação em sua morfologia social: desde meados da década de 2000, a China acumula, quantitativa e qualitativamente, uma das burguesias mais ricas do mundo, e o governo chinês não poupa esforços para seduzir a burguesia mundial a fazer negócios em seu território. O fato de que a classe dominante burguesa na China tenha sua expressão superestrutural no regime unipartidário de uma burocracia bonapartista não a torna menos proprietária dos meios de produção nacionais. Ainda que esteja obrigada a sintonizar-se com os objetivos do Estado, goza dos direitos de propriedade privada que lhe permitem absorver trabalho vivo para valorizar seu capital. Escusado dizer que isso questiona a noção de que a superestrutura estatal chinesa seja “incontestavelmente comunista”, como afirma Perry Anderson.

Complicações adicionais emergem, também, do outro lado do espectro analítico. O capitalismo chinês não surge como um elo a mais dentro do padrão tradicional do sistema econômico mundial. De fato, apresenta características particulares que o distinguem do capitalismo ocidental. O mais notável é a maneira como recursos estratégicos da economia são controlados pelo Estado chinês, muitas vezes em aliança com proprietários privados. Os elementos de dirigismo estatal na alocação dos recursos financeiros, entre as distintas províncias e nos variados ramos da economia, são salientes. Determinados nichos econômicos, em particular, possuem um grau de intervenção estatal relevante. O sistema financeiro chinês, por exemplo, é ainda hoje bastante restrito quanto ao fluxo de capitais estrangeiros. As restrições à internacionalização do renminbi – que refletem a fragilidade da China no âmbito da produtividade do trabalho e como divisa de giro no comércio mundial – constituíram uma política consciente do Partido Comunista, ciosamente preocupado com a estabilidade interna. A Guerra da Ucrânia abriu um novo capítulo na política do governo chinês em expandir o escopo do intercâmbio comercial denominado em moeda chinesa, especialmente com a Rússia, na compra de recursos energéticos afetados pela guerra. Já a política de empréstimos bancários, que evoluiu na direção das reformas pró-capitalistas da China durante as décadas de 1980 e 1990, ainda se dirige em larga medida ao investimento das gigantes estatais chinesas – embora Xi Jinping tenha feito esforços para tranquilizar os mercados e equiparar as condições de financiamento para o capital privado como meio de atrair investimentos. Os próprios bancos estatais possuem indiscutida predominância na paisagem dos serviços financeiros no interior do território, cuja política é rigidamente determinada pelo Banco Popular da China. As empresas privadas do comércio digital, como a Tencent e a Alibaba, passaram a ser disciplinadas ao buscarem adentrar o ramo de concessão de crédito. Notoriamente, o governo chinês impôs a supressão das operações de crédito do Ant Group, o braço financeiro da Alibaba, do bilionário Jack Ma, que fez críticas públicas em 2020 ao modelo de funcionamento das operações de empréstimo administradas pelo Estado. Essa política, entretanto, coexiste com uma atmosfera de maior relaxamento ao financiamento das empresas privadas, indispensáveis para o projeto de desenvolvimento capitalista nacional de Xi Jinping.

Essas condições, uma combinação contraditória entre o rígido controle do Estado sobre uma estrutura social fundada na forma privada de propriedade, dão origem a uma formação bastante particular, que projeta o poder crescente do núcleo mais forte dos capitalistas individuais da China, ao mesmo tempo em que o disciplina à estrutura de poder do Partido Comunista. De um lado, os capitalistas nacionais e estrangeiros recebem robustos incentivos para investir e explorar a força de trabalho urbana e rural na China. De outro lado, há restrições à margem de atuação dos monopólios privados, e as empresas precisam aceitar a interferência do Partido Comunista em seus conselhos diretivos, a fim de que as decisões empresariais sejam feitas sem ameaçar a estabilidade social. Esse complexo entramado público-privado resulta na ingerência estatal sobre a política interna de regulação da força de trabalho nas empresas privadas, ao mesmo tempo em que as empresas privadas sintonizadas com o governo recebem vultosos benefícios por trabalhar segundo as metas estatais. Depreende-se daí um modelo capitalista distinto daquele visto no Ocidente, e que responde às características da própria estrutura econômica herdada da contrarrevolução encabeçada pelo PCCh.
Retomando o mote de Engels, as rápidas transformações em um país de escala colossal exigem um exame dialético que compreenda que a China é e não é algo a um só tempo. A introdução dos avanços da economia capitalista internacional, ao mesmo tempo em que fez entrar em crise os antigos laços sociais, foi em última instância condicionada pela capacidade de assimilação econômica e cultural da China, cobrando, portanto, um caráter contraditório que se vê no amálgama de formas arcaicas e modernas. O conceito do desenvolvimento desigual e combinado na China é seminal. Esse conceito foi elaborado por Leon Trótski em base à lei histórica da disparidade extraordinária dos ritmos de desenvolvimento nas distintas partes da humanidade, em variados períodos, e que cria na época imperialista um sistema especial de dependência e oposição entre os países. Como descreve de maneira compreensiva em História da Revolução Russa:

As leis da história nada têm em comum com os sistemas pedantescos. A desigualdade do ritmo, que é a lei mais geral do processo histórico, evidencia-se com maior vigor e complexidade nos destinos dos países atrasados. Sob o chicote das necessidades externas, a vida retardatária vê-se na contingência de avançar aos saltos. Desta lei universal da desigualdade dos ritmos decorre outra lei que, por falta de denominação apropriada, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, que significa aproximação das diversas etapas, combinação das fases diferenciadas, amálgama das formas arcaicas com as mais modernas. Sem esta lei, tomada, bem entendido, em todo o seu conjunto material, é impossível compreender a história da Rússia, como em geral a de todos os países chamados à civilização em segunda, terceira ou décima linha.

Com algum paralelismo ao caso russo, e também em oposição à formação social ocidental, o Estado chinês absorvia uma parte proporcional bem maior da riqueza pública, condenando seu enorme contingente populacional durante milênios a uma sombria miséria, e enfraquecendo também as bases das classes possuidoras. Essa característica, desigual e combinada de desenvolvimento, foi exacerbada na China com um duplo movimento. Por um lado, a restauração capitalista feita em base à reversão da propriedade social dos meios de produção, tendo absorvido as conquistas da revolução de 1949. Por outro lado, a tempestuosa intervenção do capital estrangeiro, que arrombou os diques estáveis da estrutura social chinesa a ponto dar origem a uma classe operária nova, jovem, superexplorada e oriunda do campo, de maior nível cultural e capacidade de manuseio da última palavra da técnica capitalista.

Em um contraponto crítico às teses anteriormente mencionadas, cumpre afirmar, assim, que a China não possui uma superestrutura comunista, como sugeria Perry Anderson, ou uma economia de mercado não capitalista, como advogava Giovanni Arrighi. A China viu um longo processo de restauração do modo de produção capitalista ser concluído em seu território, em que a propriedade nacionalizada foi revertida, e restituída a forma social da propriedade privada. Essa contrarrevolução econômica resultante da restauração capitalista foi consumada sob a direção do próprio Partido Comunista Chinês, ora encabeçado por Xi Jinping. De fato, antes mesmo da conclusão desse tortuoso processo de restauração capitalista iniciado com Deng Xiaoping, a China já havia aberto sua economia para o investimento privado de empresas e monopólios imperialistas. Com isso deu origem no decorrer das últimas quatro décadas a uma espécie extraordinariamente selvagem de exploração capitalista de sua classe trabalhadora e de seu campesinato. Como dissemos, a China tampouco está dotada de um modelo econômico capitalista semelhante ao modelo ocidental, em função do dirigismo estatal que preside suas relações privadas de propriedade. Estamos tratando de uma economia capitalista sui generis, em cujo território os efeitos da restauração capitalista convivem com o direcionamento administrativo de importantes recursos pelo Partido Comunista. A despeito de sua ossificação burocrática, esse partido-Estado conseguiu articular a supervisão da estrutura econômica com o enriquecimento da burguesia nacional.

Isso é assim porque o mesmo processo restauracionista na China se deu por vias distintas daquele que atravessou a União Soviética e os países do Leste europeu. Enquanto estes vivenciaram um processo de destruição das forças produtivas, com economias essencialmente urbanas e industrializadas nas últimas décadas do século XX, a China – essencialmente agrária – atravessou um estágio sustentado de industrialização e urbanização com a entrada do capital estrangeiro multinacional em seu território. Estudiosos como o marxista honconguês Au Loong-Yu consideram que a rápida evolução técnico-industrial da China a situaria hoje na categoria de um “imperialismo em construção”, fazendo notar que essa trajetória imperialista da China não se consumou. O primeiro motivo de Au Loong-Yu é a integração nacional pendente. Argumenta que, antes que a China possa realizar sua ambição imperial, ela tem que eliminar seu legado colonial, isto é, reincorporar Taiwan e avançar sua inconclusa unificação nacional. Acrescenta que a China é uma singular potência expansionista e capitalista de Estado que não está disposta a ser um sócio de segunda classe dos Estados Unidos.

Para superar a dependência e abrir caminho a suas ambições expansionistas, Pequim precisaria, segundo Au Loong-Yu, ultrapassar suas debilidades persistentes, especialmente em termos tecnológicos, econômicos e na falta de aliados internacionais. Essa combinação peculiar implicaria uma ambivalência chinesa, que se teria beneficiado da ordem neoliberal, ao mesmo tempo em que representa um desafio para ela. Ho-fung Hung estabeleceu bases críveis para essa interpretação, em contraponto com a tese de Giovanni Arrighi sobre o eventual papel subversivo da ascensão chinesa para a ordem imperialista. Argumenta que a China não busca se converter em uma potência com um pendor insurgente contra a ordenação do sistema capitalista existente, porque ela mesma é uma das principais beneficiárias desta ordem. Entretanto, Ho-fung Hung caminha no sentido oposto à tese da China como “imperialismo em construção”, notando todas as dificuldades estruturais que obstaculizariam a disputa da China com os Estados Unidos pela primazia mundial.

Os avanços industriais, militares, tecnológicos e geopolíticos chineses são notáveis, de maneira que o status da China como potência leva a conjecturas sobre sua situação diante das principais potências mundiais. Estados Unidos e União Europeia consideram a China como competidora estratégica em diversos terrenos. Comercialmente, a China estabelece relações de sujeição e subordinação sobre um leque diversificado de nações, na África, na Ásia e na América Latina. Em troca de captação de investimento estrangeiro direto oriundo da China, países com menor desenvolvimento econômico na “periferia capitalista” terminam submetendo-se a um endividamento desfavorável, aumentando a influência política de Pequim sobre esses países. Um exemplo notável dessa espécie de diplomacia da dívida é o caso do Sri Lanka. Contraindo empréstimos para a construção de uma área portuária que não logrou pagar, o país foi obrigado a vender o porto de Hambantota, comprado pela empresa estatal China Merchants Port Holdings Co. A China controla ativos portuários em Mianmar, Bangladesh e no Paquistão, que junto ao Sri Lanka formam um conglomerado infraestrutural no Oceano Índico capaz de facilitar o transporte de bens dentro da Nova Rota da Seda. A exportação de capitais da China como forma de submissão política de países mais pobres, de fato, é um dos traços imperialistas de sua projeção internacional. Essa influência ganha certos contornos no Leste europeu, como sobre a Hungria, a Polônia e a Eslovênia, embora com a Guerra na Ucrânia a investida dos Estados Unidos nessa região tenha separado determinados países de uma relação amistosa com a China, como no caso da Lituânia e da Letônia. Especialmente nos países africanos o governo chinês adotou comportamento que não perde em nada ao colonialismo europeu e estadunidense em matéria de rapacidade e destruição do meio ambiente.

Mas esse estágio da evolução da China ainda não implica solução integral ao problema do seu atraso de origem, derivado de sua trajetória colonial e de submissão às potências nos últimos dois séculos, e a disparidade que daí resulta no coeficiente geral da capacidade técnica acumulada diante das potências ocidentais mais avançadas. Trata-se de uma das características do desenvolvimento desigual e combinado exacerbado da China o rebaixamento das realizações assimiladas do estrangeiro simultaneamente à sua incorporação endógena. É o que se nota ao examinar o estágio de desenvolvimento da produção robótica e de semicondutores na China, estratégicos para sua economia. Como afirmava Trótski no caso da formação russa:

Um país atrasado frequentemente rebaixa as realizações que toma de empréstimo ao exterior para adaptá-las a sua própria cultura primitiva. O próprio processo de assimilação representa, neste caso, um caráter contraditório. Foi este o motivo pelo qual, na Rússia, a introdução de elementos da técnica e do saber ocidentais e, sobretudo, da arte militar e da manufatura, sob Pedro I, agravou a lei da servidão, na medida em que representava a forma essencial da organização do trabalho. O armamento segundo os moldes europeus, e os empréstimos feitos à Europa, nos mesmos moldes – incontestáveis resultados de uma cultura mais avançada – conduziram ao fortalecimento do tsarismo que, de seu lado, refreava o desenvolvimento do país.

O atraso no desenvolvimento das forças produtivas levou também a uma combinação original das diversas fases do processo histórico na China, enxertando em seu território o mais avançado da técnica capitalista. Em uma nova etapa, a China teve de lidar com o fenômeno assinalado por Trótski no caso russo, a saber, lidar com as bases atrasadas sobre as quais ordenou a assimilação dos recursos capitalistas ocidentais. A analogia nos conduz a enxergar com mais detalhe e precisão a ordem dos fenômenos no plano econômico e no plano político. A assimilação atrasada da tecnologia ocidental não permitiu que a China desenvolvesse endogenamente suas capacidades produtivas nos nichos de ponta, e a subordinou aos desígnios da acumulação capitalista das potências estrangeiras dentro do seu território. A exploração do trabalho se dava segundo os contornos das invasões estrangeiras em suas zonas ocupadas no início da época imperialista. Assim também, essa entrada original na arena do século XXI, absorvendo e rebaixando as conquistas da técnica para que se adequassem a sua estrutura, fortaleceram o Partido Comunista Chinês como agente político que dirigiu um crescimento econômico explosivo no país, hoje utilizado para a criação de polos de pesquisa e tecnologia para fabricação de produtos de alto valor agregado – constantes do projeto do Made in China 2025 (semicondutores para veículos elétricos e processadores para inteligência artificial, biotecnologia, robótica, comunicação espacial, entre outros).

Levadas em conta essas circunstâncias, nossa hipótese para a classificação da China está composta de dois fatores complementares. A China se converteu numa potência capitalista com coeficiente exponencial de crescimento, a ponto de atuar como agente remodelador da velha ordem capitalista. Como dissemos, a Guerra da Ucrânia representa o momento mais importante de questionamento do esquema de dominação arquitetado pela globalização, que por parte da China significou traduzir seu avanço econômico e geopolítico no desafio “revisionista” da unipolaridade estadunidense, em nome dos seus interesses por nichos de acumulação de capital. Paralelamente, a China ainda busca as condições tecnológicas e militares que lhe permitam disputar a primazia dos assuntos globais com os Estados Unidos. Se é verdade que a ascensão chinesa tem o potencial de remodelar o esquema unipolar de domínio dos Estados Unidos desde o final da Guerra Fria, cumpre reconhecer que a o país parte de bases muito atrasadas diante de economias como Japão, Alemanha, França, Inglaterra, Coreia do Sul e especialmente dos Estados Unidos. Essa dupla contingencialidade, disposta às modificações no panorama internacional (em que as tendências a choques econômicos, geopolíticos e inclusive militares estão inscritas na realidade), caracteriza a situação cambiante do fenômeno chinês.

Na tradição marxista a chave da comparação está no balanceamento da potência global dos adversários. Aqui, outro paralelo interessante se pode estabelecer entre aquela situação da União Soviética diante das potências imperialistas ocidentais, em primeiro lugar com os Estados Unidos, na década de 1930, ainda que naquele caso se tratasse de sistemas econômicos antagônicos – não sendo o caso da China, que representa uma formação econômico-social capitalista:

Os coeficientes dinâmicos da indústria soviética não têm precedentes. Mas não bastarão para resolver o problema, nem hoje nem amanhã. A União Soviética se ergue partindo de um nível espantosamente baixo, enquanto os capitalistas, pelo contrário, decaem de um patamar muito elevado. A relação de forças atual não está determinada pela dinâmica do crescimento, e sim pela oposição da potência global dos adversários, tal como se expressa nas reservas materiais, na técnica, na cultura e, antes de mais nada, na produtividade do trabalho humano. Tão prontamente abordemos o problema a partir deste ângulo estático, a situação muda para grande desvantagem da URSS.

Este coeficiente global de forças opõe obstáculos ao projeto de Xi Jinping. A vantagem do atraso permitiu que a China saltasse aceleradamente as etapas de desenvolvimento econômico e tecnológico, como nenhuma potência anterior em estágio semelhante. Ao mesmo tempo, a desvantagem do mesmo atraso, fruto do arcaísmo técnico herdado da China imperial e agravado durante o século de humilhações (1840-1945), fez com que a China partisse de um patamar técnico global muito inferior ao dos seus competidores. A entrada de capitais estrangeiros e a política do PCCh de converter sua economia em “fábrica do mundo”, como plataforma de exportações de manufaturas com baixo valor agregado e dotada de trabalho intensivo, obstaculizou o caminho da acumulação originária tecnológica. Portanto, aquilo que alavancou a potência econômica da China foi o mesmo fator que desacelerou a incorporação de valor no conteúdo produtivo chinês, resultando no diferencial dinâmico nos coeficientes de capacidade bruta.

Para uma compreensão abrangente da caracterização do Estado chinês, esses fatores de incongruência nos ritmos de desenvolvimento são fundamentais. Em primeiro lugar, a China é um país capitalista, solidamente estabelecido sobre um consumado processo de restauração econômica das bases privadas de propriedade – revertendo os resultados da Revolução de 1949 – e que, portanto, não constitui um fator de impugnação do caráter de exploração do trabalho do sistema econômico capitalista. Faz, pelo contrário, parte orgânica dele. Simultaneamente, participa ativamente, com meios cautelosos, do questionamento da hierarquia de Estados oriunda da velha ordem mundial neoliberal, cujo dobre de finados soou nos disparos de artilharia na Guerra da Ucrânia. Em segundo lugar, a China desenvolveu sua economia e sua tecnologia em ramos importantes a níveis extraordinários, que não possuía até o início do século XXI, e o faz mediante um dirigismo estatal que dá ao capitalismo chinês um caráter sui generis, distinto do capitalismo ocidental. Há uma combinação nítida entre os resquícios de uma trajetória de dependência e atraso, com progressos econômicos e tecnológicos capazes de projetar, com maior ou menor exibição de força, a influência chinesa sobre países da África, da Ásia e da América Latina. Trata-se da conjugação entre o mais arcaico com a última palavra da técnica moderna.

À luz disso, poderíamos dizer que a China se constitui, como um Estado capitalista em rápida ascensão, com traços imperialistas, intrinsecamente ligado ao direcionamento e supervisão macroeconômicos por parte do Partido Comunista. Grandes desafios emergem como contraponto à pulsão chinesa em desenvolver suas características imperiais no interior do capitalismo – tais transformações não poderiam acontecer sem a mediação de choques de envergadura histórica no terreno geopolítico e militar, em primeiro lugar com os Estados Unidos. Dito isso, fica claro que a tendência econômica e política que pulsa através da natureza do Estado chinês o dirige à conversão acabada em um Estado imperialista.

Tal formulação descritiva busca mostrar o que é a China atualmente, e a direção em que rumam suas tendências estruturais no interior da competição capitalista global. Coloca em relevo suas características contraditórias, os traços imperialistas que exibe e os desafios para seu desenvolvimento. Sobretudo, tem o cuidado de não fechar, precipitadamente, o curso real da evolução futura do fenômeno chinês, e não dar por resolvido no plano teórico aquilo que ainda precisa se dar no terreno dos fatos. A transformação da China em uma potência imperialista implicaria choques e comoções de magnitude histórico-mundiais – motivo do cuidado mostrado por ambas as potências, ainda não preparadas para um enfrentamento direto. A possibilidade de qualquer tipo de “sucessão” da hegemonia dos EUA não será, de todo modo, pacífica ou evolutiva. Isto é, não acontecerá sem guerras e revoluções a escala global.

Exatamente por isso, a opinião simpática ao multilateralismo “benigno” das potências no capitalismo exerce um efeito de desarticulação dos trabalhadores e da juventude diante das consequências de uma longa e persistente competição interestatal pela primazia da força. Os atritos que já se fazem sentir entre Washington e Pequim não são conjunturais. A Guerra da Ucrânia recolocou no panorama internacional os métodos “clássicos” de conflagrações militares, envolvendo máquinas modernas e soldados, em pleno território europeu, que vive a principal guerra desde 1945. Trata-se de uma forma de combate distinta daquela que definiu as últimas décadas do pós-Guerra Fria, cujos conflitos militares assimétricos (Guerra do Golfo em 1991, Guerra da Bósnia em 1994-95, Guerra do Kosovo em 1998-99) tinham por objetivo a administração do triunfalismo neoliberal e do domínio inconteste do imperialismo estadunidense. Nessa etapa, os conflitos geopolíticos, mais ainda de natureza militar como aquele entre Rússia e Ucrânia (como envolvimento logístico ativo das potências da OTAN), encontram mais eco em uma situação plena de incertezas, própria da virada do século XX que serviu de antessala à Primeira Guerra Mundial. Diante desse cenário, cumpre enxergar de olhos abertos o que a crise capitalista prepara, e envidar esforços na construção de uma força política dos trabalhadores e dos oprimidos com um programa independente de todos os Estados nacionais.

A caracterização do fenômeno chinês é fundamental para habilitar a previsão das principais tendências dessa disputa interestatal que envolve as grandes potências. Nossa hipótese, de um Estado capitalista em rápida ascensão, com traços imperialistas, com a característica distintiva do dirigismo estatal pela burocracia restauracionista do PCCh, conduz à noção de que estamos diante de atritos entre potências capitalistas de distintas magnitudes. Um conflito, portanto, muito distinto daquele da Guerra Fria, já que não se dá entre sistemas sociais antagônicos, um Estado imperialista central e um Estado operário degenerado burocraticamente, como era o caso entre Estados Unidos e União Soviética. A diferença de magnitude entre as potências também caracteriza que tipo de atritos se afiguram no horizonte. À luz dos distintos fatores, a China todavia não está apta para disputar a primazia dos assuntos capitalistas mundiais com os Estados Unidos, mas já é capaz de desafiar os interesses específicos norte-americanos em determinadas áreas estratégicas, especialmente na região da Ásia-Pacífico. Esse quadro de um desafio limitado, mas potente, por parte da China é próprio de sua dinâmica ascendente. É nesse âmbito que a gravidade do conflito adentra a atmosfera do imponderável.

Um conflito militar entre Washington e Pequim envolveria o mundo, e adotaria um caráter eminentemente reacionário. Em um duelo de natureza reacionária como esse estaria colocado para os socialistas a defesa da derrota militar de ambos os bandos, e o impulso da luta de classes independente contra a política de “paz social” que se tornaria bandeira de todos os governos beligerantes e suas burocracias. Se a perspectiva da manutenção da hegemonia estadunidense, que se fará sentir mais acentuadamente em uma época de crise, não é nada alentadora, o horizonte da expansão internacional do autoritarismo estatal por parte do Partido Comunista Chinês tampouco pode ser revestido de um verniz benigno. O Estado liderado pelo PCCh não representa nenhuma alternativa progressista à dominação imperialista dos Estados Unidos e seus aliados. Em um duelo tal em que a adoção de um lado se torna impossível, o papel independente da classe trabalhadora chinesa – ligado com os trabalhadores dos Estados Unidos e do mundo – é de estatura fundamental.

A história da luta de classes na China é demasiado pródiga em exemplos de sua força independente. Está, portanto, incluída no centro dessa hipótese da importância dos trabalhadores e camponeses para um desenlace distinto ao que se afigura no choque intercapitalista entre EUA e China. Encontramos na história chinesa uma sequência de auges operários dentro do século XX, após a Primeira Guerra Mundial e o Movimento 4 de Maio de 1919. Um dos momentos definidores da atividade heroica dos trabalhadores e camponeses chineses se deu na Revolução Chinesa de 1925-27, em que as massas transformaram seu empenho em acabar com o colonialismo estrangeiro em uma gesta revolucionária que poderia ter acabado com a burguesia e seu partido, o Kuomintang de Chiang Kai-shek. Foram impedidos pela desastrosa estratégia conciliadora de Stálin e Bukhárin na direção da Terceira Internacional. Um segundo levante importante se deu entre 1947-49, na guerra civil que sucedeu a derrota dos japoneses na Segunda Guerra Mundial, e que culminou com a expropriação da burguesia e a criação da República Popular. Produto da energia e do heroísmo sem paralelo das massas trabalhadoras e camponesas chinesas que se enfrentaram contra o Kuomintang apoiado pelo imperialismo dos Estados Unidos, a República Popular nascia, contraditoriamente, como um Estado operário deformado burocraticamente pela direção maoista do Partido Comunista, que bloqueou a dinâmica expansiva da revolução e as possibilidades comunistas que dela derivavam. No curso da República Popular, protestos operários surgiram no Movimento das Cem Flores de 1957, em 1967 no auge da Revolução Cultural, em 1979 durante o Movimento da Muralha Democrática e a ascensão de Deng Xiaoping, e no movimento de 1989 da Praça Tiananmen.

Em todos esses momentos, profundas divisões políticas internas, usualmente intensificadas por crises internacionais, abriram caminho para gestas operárias em grande escala nas principais cidades da China. Mais do que a organização de forma compreensiva de seus combates, a história do proletariado chinês está impregnada de heroísmo em combate, e especialmente da possibilidade de vencer. Esse é um horizonte incontornável para a discussão do socialismo na China no século XXI.

Este livro busca pensar criativamente as possibilidades que a moderna estrutura de classes, a evolução da economia e da tecnologia, e o resgate do marxismo revolucionário abrem para a revolução socialista na China no século XXI, intimamente ligada com a revolução mundial. Estabelecemos um contraponto, a partir do marxismo, à perspectiva apassivadora e impregnada de ilusões do multilateralismo “benigno”. Estudando a China de Xi Jinping, retomamos a tradição da classe trabalhadora e o balanço da luta de classes nos últimos cem anos para abordar hipóteses para a solução dos problemas estruturais agravados pela restauração capitalista e o domínio do Partido Comunista. Na primeira parte, examinamos a noção do multilateralismo capitalista em diálogo com autores como Giovanni Arrighi, Domenico Losurdo, Isabella Weber, Michael Roberts, Perry Anderson, Alain Badiou e Slavoj Žižek, a fim de estabelecer um panorama compreensivo sobre o debate em voga. Na segunda parte, tomando a tradição operária chinesa e os choques entre revolução e contrarrevolução no século XX, examinamos criticamente a estratégia maoista à luz da teoria da revolução permanente de Leon Trótski. Na terceira e última parte, tratamos da importância dos conceitos de hegemonia, revolução permanente e democracia soviética para pensar a China de Xi Jinping e opor um programa à corrida militarista das potências, em nome de pensar o comunismo em nossa época.

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