Revista Casa Marx

Cessar-fogo em Gaza: uma derrota para Netanyahu e seus cúmplices no genocídio

Claudia Cinatti

O cessar-fogo em Gaza reflete a tensão entre as pressões internacionais e as contradições internas do governo de Netanyahu, que enfrenta uma crise política após o fracasso de seus objetivos bélicos. Enquanto as massas palestinas celebram uma vitória moral frente ao genocídio, a ocupação colonial continua com novos ataques na Cisjordânia e a persistente resistência ao regime de apartheid.

O cessar-fogo em Gaza acaba de completar uma semana das seis que compreendem a primeira fase do acordo firmado entre Israel e Hamas em Doha, Catar. Nesta primeira etapa, que começou em 19 de janeiro e deve durar aproximadamente até 2 de março, a chave é a troca de reféns vivos em mãos do Hamas por prisioneiros palestinos (que, de certa forma, também são reféns) apodrecendo nas prisões israelenses, na proporção de 30 palestinos(as) por cada refém israelense, em média. Na segunda etapa, além de continuar a troca, Israel deveria retirar-se completamente da Faixa de Gaza, o que inclui o corredor da Filadélfia na fronteira entre Gaza e Egito. Na última etapa, supostamente, seria negociado o status final de Gaza, em particular o papel do Hamas, que, se essa realidade no terreno se mantiver, buscará continuar no controle da Faixa, o que é inaceitável para Netanyahu. Na verdade, ninguém se atreve a apostar que o processo se sustente além da primeira fase, que, com todas as contradições do caso, é a mais “favorável” para o governo de Netanyahu, considerando as concessões em que as próximas etapas implicariam. Para evidenciar isso, basta observar a escalada israelense na Cisjordânia em plena vigência do cessar-fogo em Gaza, o que não impede as estrondosas celebrações populares pela libertação dos prisioneiros.

A situação está em aberto, a trégua é frágil e há vários cenários possíveis

A dinâmica do cessar-fogo e suas consequências têm uma dimensão regional e internacional. Por isso, está sendo monitorada por seus principais negociadores – Estados Unidos, Egito e Catar. O timing do acordo, que entrou em vigor um dia antes da posse de Donald Trump, não é fruto do acaso, mas sim funcional à política da Casa Branca de desarticular a dinâmica de guerra regional em curso para avançar na normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita e isolar o Irã, o que constituía o núcleo dos Acordos de Abraão. Na sua versão original, os Acordos de Abraão impulsionados por Trump em seu primeiro mandato e a que Biden deu continuidade, deixavam completamente de fora a questão palestina no processo de “normalização”, algo impossível de sustentar hoje pela monarquia saudita, após o genocídio em Gaza. Por isso condicionou a negociação a que volte a estar em pauta alguma versão degradada de um pseudo-Estado palestino, rejeitado completamente por Netanyahu e pela extrema-direita sionista.

A geopolítica regional está em estado de comoção. Israel enfraqueceu o Irã e seu sistema de alianças (o “eixo da resistência”), ao que se soma a queda de Bashar al-Assad na Síria, um aliado muito importante do regime dos aiatolás. A queda de Assad e a chegada ao poder de milícias islâmicas apoiadas por Erdogan abriram uma oportunidade para a Turquia avançar em seu posicionamento como potência regional. Apesar dessa situação difícil em que se encontra o regime iraniano, seria um grave erro dá-lo por morto. Os sinais são ambíguos: diante da iminente volta de Trump, o Irã reafirmou sua vocação negociadora e, ao mesmo tempo, reforçou sua aliança com a Rússia e se juntou aos BRICS, preparando-se para resistir a uma eventual nova rodada de sanções e ataques militares focalizados em suas instalações nucleares.

Nesse cenário,a aliança estratégica entre Estados Unidos e Israel é uma questão de Estado. Biden a manteve sem nuances, bancando o genocídio em Gaza, embora, sem dúvidas, Trump sintonize melhor com Netanyahu e a extrema direita sionista, os colonos e os ultras religiosos. De fato, uma das primeiras medidas do segundo governo de Trump foi revogar as sanções contra os colonos que haviam atacado violentamente a população palestina na Cisjordânia. O conjunto de funcionários e enviados do governo norte-americano no Oriente Médio são pro-israelenses fervorosos, que sustentam a reivindicação “bíblica” de Israel sobre o território palestino. No entanto, Trump não parece estar disposto a permitir que os Estados Unidos sejam arrastados por Israel para uma guerra com o Irã. Embora não esteja claro qual será sua política em relação ao regime dos aiatolás, o antecedente de seu mandato anterior foi recorrer à “máxima pressão” (sanções intensificadas) para lidar com suas ambições nucleares e lançar ataques pontuais, como o assassinato do general Q. Suleimani.

Em síntese, o destino do acordo não depende apenas de Tel Aviv, mas está inserido nessa complexa dinâmica geopolítica e, de forma geral, na orientação que a administração Trump adotará para colocar “os Estados Unidos em primeiro lugar” e ordenar as prioridades em função da disputa com a China.

Como aponta J. Mearsheimer, partidário do “realismo ofensivo” como política externa do imperialismo norte-americano, no imediato, e do ponto de vista objetivo, o acordo significa uma derrota para Netanyahu e sua coalizão de extrema direita, algo que o próprio governo israelense admite – embora não o diga -, ao assinar o cessar-fogo. Após 15 meses de bombardeios e genocídio, Bibi não conseguiu nenhum dos dois objetivos centrais: a “vitória total” sobre o Hamas, ou seja, sua completa destruição, e a recuperação dos reféns por meios militares.

As duas entregas de reféns foram cuidadosamente encenadas pelo Hamas. Na primeira, milhares de combatentes das brigadas Al Qassam surgiram dos túneis com seus uniformes e armas automáticas, circulando em modernas caminhonetes brancas, no meio de uma multidão que os rodeava em clima de celebração. Na segunda entrega, as quatro reféns militares liberadas em Gaza aparecem acompanhadas por membros do Hamas, com bandeiras palestinas e slogans em inglês e árabe que ressaltam o “triunfo”. A mensagem para Israel, para as monarquias árabes, para o “Ocidente” e para o mundo é que o Hamas não só sobreviveu, mas mantém elementos de organização estatal e continua controlando Gaza.

O exército israelense obteve vitórias táticas importantes que lhe permitiram enfraquecer o Irã e seu “eixo da resistência”, em particular o Hezbollah, e degradar, até certo ponto, a capacidade do Hamas, embora ainda se está por ver o quanto (o ex-secretário de Estado de Biden, Antony Blinken, afirmou que os novos recrutas do Hamas já superavam as baixas sofridas). Mas sem uma estratégia clara, não há vitória possível, mesmo para a máquina de guerra mais sofisticada e “todo-poderosa” como é a de Israel, que não só conta com o armamento dos Estados Unidos, mas também com a colaboração de empresas tecnológicas como a Microsoft e com a IA para levar adiante o genocídio em Gaza. De fato, o principal problema de Israel não é estratégico. O objetivo de “erradicar o Hamas” nunca foi realista. Não apenas porque é uma organização que se nutre da resistência palestina à ocupação, mas também porque significaria a perda de vidas de todos os reféns. E as opções dos ultras religiosos e colonos, que oscilam entre a “solução final” (limpeza étnica da população palestina de Gaza e Cisjordânia) e a reocupação militar e recolonização do norte de Gaza, mostraram estar por fora da relação de forças. Com todas as diferenças do caso, foi o que aconteceu com os próprios Estados Unidos nas guerras do Iraque e Afeganistão.

No final da década de 1960, H. Kissinger, então conselheiro de segurança nacional de Richard Nixon, referindo-se à difícil situação do imperialismo norte-americano na guerra do Vietnã, disse que, em uma guerra assimétrica, o “exército regular”, ou seja, o lado forte, perde se não puder ganhar, enquanto as forças irregulares ganham se sobreviverem. Essa constatação simples parece explicar hoje a situação de Israel: jogou toneladas de bombas, eliminou a cúpula do Hamas, perpetrando um genocídio contra o povo palestino em Gaza, mas não conseguiu vencer.

Dificilmente esse revés para Netanyahu passe sem consequências. Começando pela crise política de seu próprio governo, que hoje está por um fio. Um de seus aliados de extrema direita, o Poder Judeu do ex-ministro de Segurança Nacional Itamar Ben-Gvir, se retirou do governo, enquanto o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich (Sionismo Religioso), aceitou por enquanto trocar Gaza pela ofensiva na Cisjordânia, e condicionou sua permanência à retomada da guerra por Netanyahu uma vez concluída a primeira fase do acordo. Embora esta seja uma dinâmica provável, apresenta várias contradições. No plano interno, para Netanyahu, romper o acordo significaria abandonar as dezenas de reféns que deveriam ser liberados na segunda fase do cessar-fogo, o que sem dúvida provocaria mobilizações de massas exigindo sua renúncia. Além disso, segundo as últimas pesquisas, entre 60% e 70% da população apoia o fim da guerra. No plano externo, ele teria que contar com a aprovação de Trump para retomar a guerra, o que por enquanto não parece alinhar-se com os interesses da Casa Branca.

Os motivos que levaram Netanyahu a aceitar o mesmo acordo que rejeitou nos últimos oito meses, apesar dos esforços infrutíferos de Joe “Genocide” Biden, provavelmente estão na combinação entre a situação interna e as pressões internacionais.

Segundo uma análise publicada na revista +972, a pressão de Trump teve seu papel – a ordem explícita era que houvesse uma trégua no dia da inauguração de sua presidência, em 20 de janeiro – mas também pesou na decisão o cálculo de Netanyahu de que seria menos desastroso assinar o acordo, ao menos para ganhar tempo.

Uma série de fatores configura uma situação doméstica crítica para o governo de Netanyahu

Apesar do inestimável financiamento norte-americano, a guerra criou um rombo na economia israelense. A dívida subiu para 69% do PIB, um aumento de 9 pontos em apenas um ano, o que levou, pela primeira vez na história, a agência de classificação de risco Moody’s a rebaixar a nota de crédito de Israel. Além disso, a guerra afetou seriamente o setor de alta tecnologia (high tech), uma das áreas mais dinâmicas da economia.

Embora o ataque do Hamas em 7 de outubro tenha aprofundado um giro à direita na sociedade israelense e consolidado uma unidade nacional reacionária, pouco após o início da guerra em Gaza, uma maioria crescente passou a apoiar a demanda por cessar-fogo e a negociação feita pelos familiares dos reféns para garantir sua libertação. Embora esse movimento tenha apresentado altos e baixos em sua capacidade de convocatória e mobilização — lembremos que, durante 15 meses, manifestações semanais foram realizadas —, expressava claramente a posição majoritária que rejeitava a “guerra permanente” de Netanyahu e seus aliados da extrema direita religiosa e dos colonos. O interesse de Netanyahu em manter a guerra estava quase diretamente ligado à sua permanência no governo, o que, por sua vez, lhe garante sua liberdade pessoal, seriamente comprometida por casos de corrupção.

Isso resultou em uma situação inédita de crítica e oposição aberta enquanto o Estado de Israel está em guerra. Não por pacifismo ou empatia com o povo palestino, já que o giro à direita é profundo e levou 62% dos israelenses a considerar que “não há inocentes em Gaza”, mas porque o preço da “guerra total” era a vida dos reféns.

O cansaço da guerra começou a se fazer sentir fortemente nas fileiras do exército, treinado principalmente para guerras curtas. Além disso, Israel se sobrecarregou militarmente ao abrir várias frentes simultâneas: Gaza, Cisjordânia, Líbano, Síria, Iraque e um início de conflito com o Irã. Embora a disparidade entre as baixas palestinas e israelenses seja enorme – 400 soldados contra talvez mais de cem mil palestinos –, para os padrões do Estado sionista, esse é um número alto. Um fato relevante é que, na semana anterior ao cessar-fogo, 15 soldados israelenses foram mortos no norte de Gaza, uma área já vasculhada e ocupada pelas Forças de Defesa de Israel (FDI). Nos últimos meses, isso se refletiu na falta de disposição dos reservistas em retornar ao combate (a queda varia entre 15% e 25%, com picos de 60% de rejeição). E, acima de tudo, na crise aberta entre o governo e os chefes das forças de defesa e do serviço de segurança (o temível Shin Bet), que consideravam completamente irreal o objetivo de alcançar uma “vitória total”.

Essa crise terminou com a renúncia do chefe do Estado-Maior israelense, o general H. Halevi, que tem uma forte motivação política, já que atende à demanda dos partidos de extrema direita por uma mudança na liderança militar. Além disso, está relacionada com a promessa de manter a isenção do serviço militar para os religiosos ortodoxos, uma garantia que Netanyahu ofereceu em troca do voto à aprovação do orçamento.

Por último, mas não menos importante, o genocídio em Gaza prejudicou profundamente a imagem do Estado de Israel e aumentou seu isolamento internacional, em muitos casos sendo apoiado apenas pelos Estados Unidos e pelo governo de Javier Milei, declarado servo do sionismo. A transmissão ao vivo e direta do massacre em Gaza levou a opinião pública a se voltar majoritariamente contra o Estado sionista e seus cúmplices, começando pelo governo norte-americano. Como parte desse processo de deslegitimação, a Corte Internacional de Justiça aceitou a acusação de genocídio apresentada pela África do Sul contra Israel. Além disso, o Tribunal Penal Internacional emitiu ordens de prisão contra Netanyahu e seu ex-ministro da Defesa, Y. Galant, por crimes de guerra em Gaza.

O massacre brutal perpetrado pelo Estado de Israel em Gaza e a cumplicidade dos governos ocidentais com o genocídio levaram ao surgimento de um movimento juvenil de solidariedade com o povo palestino, que protagonizou mobilizações massivas e ocupações de campi universitários nos Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha e outros países. Como parte desse fenômeno, surgiram organizações de jovens judeus antissionistas que adotaram como sua a luta do povo palestino. Trata-se de um processo profundo, que muitos comparam ao movimento contra a guerra no Vietnã, especialmente pelo desenvolvimento de elementos anti-imperialistas, e que, sem dúvidas, também atuou como pressão pelo cessar-fogo.

Esse movimento enfrentou e continua enfrentando dura repressão e perseguição por parte dos Estados imperialistas, com falsas acusações de “antissemitismo” por expor os crimes coloniais do Estado de Israel. Na França, dois companheiros do Révolution Permanente, incluindo Anasse Kazib, uma de suas principais figuras públicas, serão levados a julgamento apenas por denunciarem a opressão israelense. Na Argentina, também são perseguidos figuras da Frente de Esquerda e dos Trabalhadores Unidade, entre eles Alejandro Bodart, do MST, que foi condenado recentemente.

Após 470 dias no inferno, dezenas ou centenas de milhares de palestinos estão retornando a Gaza como fugiram: a pé, em carroças puxadas por burros, em caminhões e veículos sucateados, com apenas a roupa do corpo. Mas desta vez celebram que, ao menos temporariamente, os bombardeios cessaram. Eles sabem que suas casas, escolas, hospitais, universidades, comércios, redes de água e infraestrutura já não existem. Que Netanyahu e sua coalizão de extrema direita avançaram ao máximo para transformar Gaza de uma prisão a céu aberto em uma terra arrasada, onde a vida é praticamente impossível. Entretanto, não triunfou a linha de expulsá-los para fugir da catástrofe e da fome, um dos objetivos explícitos do governo israelense, pelo qual, entre outras coisas, é acusado de atos genocidas.

A destruição e o genocídio perpetrados pelo Estado de Israel, com a cumplicidade dos Estados Unidos e das potências europeias, não conseguiram quebrar sua vontade de resistência diante da colonização. Por isso, apesar do altíssimo custo em vidas humanas — 47 mil mortos, segundo cifras oficiais, e até 180 mil, segundo estimativas da The Lancet —, o acordo foi vivido como uma vitória moral para as massas palestinas.

O cessar-fogo não significa o fim da guerra nem da ocupação colonial, embora destaque a crise estratégica do sionismo. Como explica o historiador Ilan Pappé, antes da guerra em Gaza, o Estado de Israel já vinha implementando um “genocídio incremental” contra o povo palestino para sustentar o regime de apartheid. Esse genocídio em cotas deu um salto com a guerra. A operação “Muro de Ferro”, conduzida atualmente pelo exército israelense na Cisjordânia, com a cumplicidade da Autoridade Palestina, soma-se aos ataques brutais de colonos extremistas (fascistas), que buscam ocupar e, eventualmente, anexar a maior parte do território palestino. Durante os 15 meses de guerra em Gaza, a Cisjordânia foi um teatro de operações secundário, mas agora está na mira de Netanyahu, que tenta oferecer assim uma “compensação” aos seus aliados de extrema-direita pela trégua em Gaza. Um dos alvos principais desse ataque é a cidade de Jenin, que tem uma longa tradição de resistência, desde a revolta árabe dos anos 1930 contra a opressão colonial britânica. Nos últimos anos, Jenin se tornou um dos centros de radicalização de novas gerações. Diante da traição escandalosa da Autoridade Palestina, que se transformou diretamente em um braço policial a serviço de Israel, alguns jovens passaram a integrar as fileiras do Hamas ou da Jihad Islâmica, enquanto muitos outros se organizam em brigadas independentes.

Como socialistas revolucionários, defendemos a resistência palestina contra a opressão colonial e reivindicamos seu direito à autodeterminação nacional. Defendemos suas organizações frente ao Estado sionista, mas não compartilhamos a estratégia do Hamas, que busca estabelecer um estado islâmico através de negociações com monarquias árabes reacionárias ou regimes opressores como o iraniano. Além disso, o Hamas mantém um controle social rígido, impedindo a organização democrática da resistência palestina.

Para derrotar a opressão colonial do genocida Estado de Israel e seus cúmplices imperialistas, é necessária a maior unidade das massas palestinas, dos trabalhadores e dos setores oprimidos do Oriente Médio, junto ao movimento de solidariedade com o povo palestino nos países centrais, que enfrentam seus próprios governos. Para acabar com a opressão do povo palestino, é preciso desmontar o aparato colonial do Estado sionista e lutar por uma Palestina laica, operária e socialista em todo o território histórico, única garantia para a convivência pacífica entre árabes e judeus, no caminho de conquistar uma federação socialista no Oriente Médio.

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