Lev Vigotski
As reflexões estratégicas revolucionárias eram inerentes ao pensamento marxista de Lev Vigotski. Apresentamos aqui a sua resenha do grande livro de John Reed, analisando o papel das massas e a relação viva e pulsante com as suas direções.
Dez dias que abalaram o mundo
Lev Vigotski
Esse livro é o quadro mais fiel da Revolução de Outubro, escreveu o norte-americano John Reed. “Os russos escrevem de outra forma sobre a Revolução Russa – diz o prefácio de N. Krúpskaia: eles ou enfatizam-na ou descrevem episódios nos quais tomaram parte. O livro de Reed oferece um quadro geral da verdadeira revolução de massa popular.” Justamente nisso reside a força do livro. Ele transmite os acontecimentos conhecidos por todos. Ele não representa nenhuma particularidade, detalhes ou cenas especialmente vivos ou novos.
Traz justamente o que foi típico da revolução, o mais escapa até para os contemporâneos, e ainda mais para os sucessores: “o estado de espírito das massas, em cujo pano de fundo se torna especialmente compreensível cada ato da grande revolução”. Tal estado de espírito não pode ser reconstituído nem por um historiador, nem por um memorialista, apenas por um artista. E John Reed, em sua forma de escrita, se mantém sempre como artista, não da invenção, mas da verdade. Seu livro, além de ser uma lista fiel dos fatos e acontecimentos, é ainda uma composição bastante complexa e sutil de cenas, diálogos, descrições, relatos, que podem ser lidos como um romance.
A revolução foi feita por Lênin e Trótski, e uma porção de bolcheviques. Assim pensavam, infelizmente, não apenas os inimigos da revolução, mas também, em maior ou menor grau, muitos pequeno-burgueses até hoje. Eles, a contragosto, exageram o papel dos nomes individuais que assinaram decretos, fizeram discursos, emitiram ordens. Mas os acontecimentos se realizam, a história se move, especialmente em épocas revolucionárias, pela vontade das massas que cumprem os decretos, ouvem os discursos e os realizam na vida, que seguem as ordens. O papel do líder é apenas formalizar, introduzir na via da natureza, colocar nas margens, orientar para o objetivo a vontade heróica das massas.
A revolução foi feita não por Lênin e Trótski, mas por massas de operários e soldados, pelas camadas inferiores populares revolucionárias: é disso que fala cada linha do livro de Reed. Ele capta antes de tudo o heroísmo sem nome, desconhecido e escapadiço das massas.
Reed interessou-se por tudo. A conversa com o cocheiro, o protesto de soldados, a recriminação da dona do apartamento, a exclamação casual do motorista: não há detalhe mínimo que ele não apanhe na poeira da história, não coloque no devido lugar para que resplandeça com a luz da verdade e do sentido da transformação, com a luz do heroísmo.
Eis uma cena simples, uma anedota da revolução, mas escute quanto ela diz:
Reed diz:
Certo dia, ao me aproximar do portão, vi Trótski e sua esposa, bem de frente, a poucos passos de mim. Tinham sido retidos por um soldado.
Trótski procurava seu passe nos bolsos, mas não o encontrava.
“Não tem problema”, disse ele, por fim, “você sabe quem eu sou. Meu nome é Trotski.”
“O senhor não tem passe para entrar. Nomes não significam nada para mim.”
“Mas eu sou o presidente do Soviete de Petrogrado.”
“Bem”, replicou o soldado, “se o senhor é uma figura assim tão importante, deve ter pelo menos um papelzinho.”
Trótski se mostrou bastante paciente. “Deixe-me falar com o comandante”, disse. O soldado hesitou, murmurando algo a respeito de não queres incomodar o comandante a cada chato que aparecesse. Dirigiu-se, porém, ao soldado que comandava a guarda naquele momento. Trotski lhe explicou o problema. “Meu nome é Trótski”, repetiu.
“Trotski?”, questionou-se o outro soldado, balançando a cabeça. “Já ouvi esse nome em algum lugar”, disse ele, sem pressa. “Acho que não há problema. Pode entrar, camarada…”1
Essa força e teimosia do guarda que foi colocado ali não para cumprir a ordem de alguém, nem mesmo do presidente do soviete, para curvar-se diante das ordens dadas, é um pequeno grão de pó daquele grande heroísmo das massas que fez a revolução. E esse soldado, que era guarda de Smólni na véspera da revolução, quando o país se cindiu em dois campos inimigos, não poderia simplesmente não saber de nada. Impossível que ele não soubesse para que ele estava de guarda. Mas a questão é que o nome de Trótski significava menos do que a consciência revolucionária do soldado. O cabo de guarda já tinha ouvido aquele nome em algum lugar.
Ou este outro caso: dois comissários para questões militares e marítimas, Antonov e Dybenko, enviados para o [front] revolucionário depois da revolução. Assim que voltaram a andar pela avenida, um dos pneus estourou.
“O que vamos fazer?”, perguntou Antonov.
“Vamos pedir outro carro”, sugeriu Dybenko, agitando seu revólver.
Antonov ficou parado no meio da avenida e fez sinal para um veículo que passava, com um soldado à direção.
“Preciso desse carro”, disse Antonov.
“Pois não o terá” , respondeu o soldado.
“Você sabe quem eu sou?”, perguntou Antonov, apresentando-lhe um documento no qual estava escrito que ele tinha sido designado comandante em chefe de todos os exércitos da República Russa e que todos deveriam obedecer às suas ordens sem questionamentos.
“Não me interessa, mesmo que você fosse o diabo em pessoa”, disse o soldado agressivamente.
“Este carro pertence ao Primeiro Regimento de Metralhadoras e é usado para transportar munição, e você não poderá usá-lo…’ 2
Outra anedota. No mecanismo geral da revolução (havia milhares de milhões de anedotas como essa), eles mais atrasaram do que aceleraram as coisas. Mas não fosse essa consciência teimosa, que não se submete a nada, essa vontade de vencer, de se defender do soldado praça, a própria revolução não existiria. O soldado não concede nem ao próprio demônio aquilo que pertence ao seu regimento de metralhadoras. A tarefa do líder foi apenas concordar, fundir as forças desses regimentos separados, mas a vontade revolucionária partiu de baixo para cima, do coração para o cérebro da revolução, como o sangue no corpo, do soldado para o comandante em chefe, e não o contrário.
Eis mais um episódio, o terceiro e último.
A ordem de Trótski sobre a vitória da revolução acabara de ser transmitida para as tropas de Kérenski, “na noite em que permanecerá para sempre nas tábuas da história”. Retornando de Smólni, Reed. encontra na praça Znamenskaia, perto da estação para Moscou, uma multidão incomum:
Milhares de marinheiros se aglomeravam ali, armados com fuzis. Do alto da escadaria, um membro do Vikzhel se dirigia a eles: “Camaradas, não podemos levá-los a Moscou. Somos neutros. Não transportamos tropas de nenhum dos lados. Não podemos levá-los até Moscou, onde ainda se desenrola uma terrível guerra civil…”. A praça inteira, lotada, respondeu com um murmúrio; os marinheiros começaram a avançar. Subitamente, uma outra porta se abriu e diante dela se postavam dois ou três guarda-freios, mecânicos ou algo assim. “Por aqui, camaradas!”, gritou um deles. “Nós os levaremos a Moscou, ou a Vladivostok, se quiserem. Viva a Revolução!” 3
E ele, esse foguista de muitos milhões, levou a revolução para Moscou, para Vladivostok, para onde quiseram. Já os líderes eram neutros: imediatamente se colocaram fora dos acontecimentos, desnorteados e deploráveis.
Quadros terríveis e cômicos de confusão da [intelligentsia], do governo provisório, dos comitês, dos socialistas, de todas as forças vivas no país”, de todos os que levaram a Rússia até ali, se alternam com quadros de heroísmo das massas.
Quanto aos verdadeiros líderes da revolução, eles foram poucos.
Lênin e Trótski se manifestaram em favor da insurreição na reunião de 23 de outubro.
Então, levantou-se um simples operário com o rosto desfigurado de fúria.
“Falo em nome do proletariado de Petrogrado” – ele disse bruscamente -“, somos a favor da insurreição. Que seja como quiserem, mas eu digo agora que, se os senhores permitirem a destruição dos sovietes, nós não seguiremos mais o mesmo caminho.”
Alguns representantes dos soldados se juntaram a ele. Depois disso, quando a questão foi colocada novamente em votação, a [insurreição] venceu. 4
Minutos terríveis de agitação tomaram as pessoas, que o tempo todo viam claramente o sentido dos acontecimentos. Na época do tiroteio em Moscou, Lunatchárski escreve uma carta sobre a saída do governo, “não consigo mais”.
Uma série de líderes saem do Conselho dos Comissários do Povo, outros do Comitê Central do partido dos bolcheviques. Lênin é abandonado por seus amigos e camaradas mais próximos: desertores.
Mas houve verdadeiros líderes. Eles foram não apenas rótulos que dão nome aos acontecimentos, papel desempenhado, segundo Tolstói, pelas grandes figuras da história. Eles foram a consciência e o cérebro da revolução, que a conduziu por uma vontade natural. Como um cérebro, eles receberam do coração da revolução das massas populares o sangue e restabeleceram o pensamento.
Lênin dissera: “O 6 de novembro será cedo demais. Precisamos de um apoio de toda a Rússia para o levante; até o dia 6 não terão chegado todos os delegados do Congresso… Por outro lado, 8 de novembro será tarde demais.
Nesse momento o Congresso estará em pleno andamento, e é difícil um grupo grande de pessoas assumir uma ação rápida e decisiva. Temos de agir no dia 7, dia de abertura do Congresso, de modo que assim poderemos dizer aos delegados: ’Aqui está o poder! O que vocês farão com ele?” 5
Eis o pensamento afiado da revolução, sua álgebra. “A revolução é feita com relógios no pulso: 6 é cedo, 8 é tarde, quer dizer: 7” Tais foram as fórmulas matemáticas empregadas pelas forças revolucionárias. E esse homem não disse uma frase bela e brilhante sequer, uma palavra de efeito em toda a revolução.
Agora depois da vitória, Lênin está na tribuna. Estrondosamente ovacionado. Ele fala tranquilamente em tom prático:
- Assim, iniciaremos a edificação socialista.Apenas isso. Como se passasse de uma questão prática – a insurreição – para outra.
Talvez o problema mais difícil da história seja a questão da correlação entre as massas e os heróis nos grandes acontecimentos. O livro de Reed revela a verdade desse problema: o coração ardente, que bombeia sangue em todas as artérias da revolução, o cérebro afiado, que submete esse sangue ao pensamento matemático, exato. Foi por isso que esses dez dias abalaram o mundo.
Notas de rodapé