Entrevista com Martín Arboleda
Martín Arboleda é Doutor em Ciência Política e professor de Sociologia na Universidade Diego Portales (Santiago do Chile). Publicou Planetary Mine: Territories of Extraction Under Late Capitalism (Verso Books, 2020) e Gobernar la utopía: sobre la planificación y el poder popular (Caja Negra Editora, 2021). Nesta conversa, percorremos alguns dos temas centrais que ele aborda nesses trabalhos.
Seu livro Planetary Mine, como o próprio nome indica, aborda a atividade mineradora sob uma perspectiva global. Por que escolher este setor para discutir o capitalismo contemporâneo? O que as transformações na atividade mineradora podem nos dizer sobre a reconfiguração do sistema mundial capitalista?
Acredito que o setor mineral e os recursos naturais, de um modo geral, oferecem um ponto de partida metodológico muito importante para entender as dinâmicas, os processos e as contradições internas do modo de produção capitalista. Em dois sentidos. Um deles é que, normalmente, a produção primária é considerada um setor mais atrasado em relação à manufatura. Mas é muito interessante ver como a história da tecnologia mostra que, muitas vezes, é exatamente o contrário. A produção mineral, por exemplo, funciona em ambientes de grande profundidade, no subsolo, ou de grande altitude, ou de baixa visibilidade, em condições extremas para a vida humana, muitas vezes exige invenções tecnológicas. Há mais pressões e condicionamentos que impulsionam o dinamismo tecnológico em muitos setores. Por exemplo, a invenção dos elevadores foi inicialmente desenvolvida para a mineração e depois implementada em edifícios urbanos. Certos carros articulados para mover materiais foram inventados primeiramente na mineração, e várias outras invenções tecnológicas foram testadas e experimentadas primeiro na mineração. Hoje em dia, estamos vendo um processo muito semelhante. Por exemplo, o processo de robotização ou automação avançada ocorreu primeiro em ambientes mineradores. Os caminhões autônomos da mineração têm uma série de avanços importantes para a automação dos sistemas produtivos. As tecnologias geoespaciais para exploração mineral e outras têm permitido avanços significativos que depois foram extrapolados ou aplicados a outros setores. Antes que os carros autônomos do Google gerassem protótipos, a indústria mineradora já estava trabalhando com caminhões autônomos. Isso mostra o nível de avanço e dinamismo tecnológico desse setor.
Outra razão tem a ver com a dimensão geopolítica. A mineração é um barômetro muito interessante para observar processos de mudança, não apenas no nível tecnológico, mas também nas relações de poder no sistema interestatal. Muitas vezes, para acessar recursos naturais que estão geograficamente mais distantes, as potências econômicas também foram impulsionadas a implementar inovações tecnológicas, especialmente em tecnologias de transporte marítimo. O trabalho de Steven Bunker e Paul Ciccantell, Globalization and the Race for Resources, mostra como essas inovações tecnológicas ocorreram ao longo de diferentes ciclos sistêmicos de acumulação. Por exemplo, os navios para transportar madeira do império holandês nos séculos XVII e XVIII, depois os navios motorizados do império britânico no século XIX que eram usados para levar guano e borracha através do Oceano Atlântico. Depois, os Estados Unidos se beneficiaram dessas tecnologias de navios motorizados e, posteriormente, a Coreia do Sul e o Japão introduziram tecnologias para a produção de aço que permitiram cascos de navios muito mais leves, o que expandiu o espectro geográfico de transporte de matérias-primas, permitindo que essas economias alcançassem predominância comercial na economia mundial.
Nesses dois sentidos, a mineração é um ponto de partida importante.
Uma questão central em seu livro é situar a mina como um elo de cadeias globais, tomando, como você diz, o mercado mundial como o nível a priori para teorizar sobre a extração de recursos. O que você encontra com essa abordagem que pode se perder em análises centradas no local ou informadas por um “nacionalismo metodológico”?
A mineração, metodologicamente, também oferece elementos importantes para uma compreensão mais relacional das dimensões do sistema interestatal, no sentido de que permite entender os fluxos metabólicos entre a produção manufatureira; no caso, por exemplo, da primeira Revolução Industrial na Inglaterra e as periferias de guano ou borracha nas Américas, a produção de ferro, por exemplo, no Brasil, e no auge da China, a soja, a partir de uma perspectiva mais transnacional. Os enfoques predominantes geralmente partem da premissa de que a produção primária é globalizada, mas pressupõem algo que deveria ser explicado; não fica claro como essa globalidade é produzida, ou é possível, ou ocorre. E claro, muitas vezes é porque as dinâmicas locais da extração são tão impressionantes em termos de seu efeito na paisagem, na forma como transformam as relações de trabalho, na vida cotidiana das pessoas, que é fácil se concentrar apenas na análise local.
O ponto de partida do livro Planetary Mine é o fato de que o local de extração é simplesmente o ponto de partida de um processo sociometabólico muito mais amplo, que envolve redes transnacionais, não apenas de logística, mas também de finanças, fluxos migratórios e de trabalho. E é importante investigar esses enfoques. Portanto, acredito que essa é uma perspectiva mais relacional. Especialmente em diálogo com as tradições de cadeias globais de mercadorias – que mostram como a produção globalizada está entrelaçada com diferentes espaços no nível mundial – ou cadeias globais de valor, que também permitem entender essas dinâmicas de interdependência na economia global. Outro desenvolvimento importante nessas tradições críticas são os estudos críticos da logística, que também mostraram como o capital passou de um foco na produção do valor para um foco em sua circulação e no movimento através do espaço. Isso é muito importante, pois, se, por exemplo, empresas como a Ford foram o paradigma de organização industrial na metade do século XX, e depois, na década de 90, a Toyota, hoje estamos vendo um paradigma de organização industrial centrado, justamente, na circulação logística. E não é coincidência que empresas como Amazon ou Walmart ocupem hoje o lugar que Toyota ocupava nos anos 90 ou Ford nos anos 50, justamente por essa mudança de ênfase quase estratégica em direção à circulação global do valor. Portanto, acredito que os estudos críticos da logística oferecem uma perspectiva fundamental para, de alguma maneira, deslocar o objeto de estudo do extrativismo e ver todas essas redes e fluxos de interdependência.
Seguindo nessa linha, você afirma que a acumulação de capital é um processo mundial em conteúdo e nacional apenas na forma. Isso me remete à teoria de Juan Iñigo Carrera sobre o funcionamento global do capitalismo como uma unidade mundial. Não há o risco de, para evitar o nacionalismo metodológico, acabar em uma espécie de “globalismo metodológico”, em que o que acontece no nível estatal termina sendo abordado de forma um pouco reducionista, como uma “manifestação” dos processos globais? Acredito que a ideia de que há determinações sistêmicas, mas que, nos espaços nacionais, elas se articulam e geram processos de retroalimentação ou interdependência entre os diferentes níveis, como conceitua a teoria do desenvolvimento desigual e combinado, que você inclusive menciona em Gobernar la utopía, pode oferecer outra forma de considerar essa questão.
Eu acho que a fórmula do processo de acumulação e reprodução do capital em escala mundial, sob a ideia de que há uma forma nacional, cujo conteúdo é essencialmente global ou mundial, é importante para superar formas de nacionalismo metodológico que, às vezes, entendem as dinâmicas de acumulação mundial em termos de interação entre Estados, considerados abstratamente. Esse foi um primeiro passo importante para lidar com esses vieses. Mas também considero importante se distanciar de muito do que foi o auge das teorias da globalização dos anos 90, que também se voltaram para uma espécie de globalismo metodológico, como você mencionou, ou uma espécie de cosmopolitismo de esquerda, poderíamos dizer, cujo ponto alto foram, por exemplo, os trabalhos de Michael Hardt e Antonio Negri, como Império. Essa ideia de que o “Império” não tem um Estado, ou que as “multidões” não têm uma nação, são grupos sociais interconectados sem uma pertença nacional. Acredito que esse tipo de enfoque, que teve um grande auge e aceitação nas décadas de 90 e no início do século XXI, está sendo tensionado de maneira significativa, não apenas pelos conflitos bélicos recentes, como na Ucrânia ou na Faixa de Gaza, mas também pela pandemia que, de certa forma, trouxe à tona novamente o caráter estratificado, hierárquico e assimétrico do sistema interestatal capitalista.
Recentemente, tentei problematizar um pouco mais essa dimensão, especialmente o caráter assimétrico do sistema interestatal. Acredito que há muito a ser resgatado das teorias marxistas da dependência para encontrar um bom equilíbrio entre considerar o conteúdo essencialmente mundial da relação social geral do capital e como isso é mediado por formas nacionais. Acredito que, por exemplo, nos trabalhos de Ruy Mauro Marini há um esforço importante para pensar a divisão internacional do trabalho como nível de análise. Isso é importante no sentido de que o ponto de partida, por exemplo, para autores como Marini ou Theotonio Dos Santos não é a relação de intercâmbio desigual entre países, porque isso implica uma relação bilateral basicamente. Isso se manifesta em Arghiri Emmanuel, mas também em André Gunder Frank, que pretende fazer uma análise marxista da dependência, e todo o enfoque é em termos de relações bilaterais entre Estados-nação considerados individualmente. A inovação, ou novidade, principalmente no trabalho Dialética da Dependência de Marini, é que o ponto de partida não é uma relação de intercâmbio desigual entre países individualmente considerados, mas sim o surgimento de um sistema de dependência historicamente novo, que é a divisão internacional do trabalho. E algo muito importante no trabalho de Marini é que o autor situa a origem, ou a especificidade histórica, da divisão internacional do trabalho no auge da indústria pesada, não em relações de intercâmbio desigual, nem mesmo no colonialismo, como faz Frank, mas sim que o argumento de Marini é que com o surgimento da indústria ou da manufatura pesada, a produção de máquinas por máquinas no século XIX, surge uma forma de interdependência social de caráter transnacional que é historicamente nova, e que é a divisão internacional do trabalho. E a partir desse ponto, teorizamos as relações hierarquicamente assimétricas ou desiguais entre nações. Acredito que esse é um ponto de partida que ainda tem muito a oferecer. E também foi um ponto de partida que está muito alinhado com o desenvolvimento desigual e combinado que você menciona. É retomado, por exemplo, por Ernest Mandel, e é para onde meu trabalho mais recente tem se dirigido. Acredito que a lógica do desenvolvimento desigual e combinado tem uma riqueza analítica explicativa que vai um pouco contra esse cosmopolitismo de esquerda que muitas vezes acaba diluindo a agência ou a importância das relações interestatais.
No seu livro, você propõe que a fase atual, de declínio do domínio ocidental e avanço da China como centro de gravidade do capitalismo global, produz percepções que são heterogêneas. Por um lado, muitos estudiosos distinguem a China das potências ocidentais porque não imporia os mecanismos imperialistas de sujeição em seus vínculos com países pobres e em desenvolvimento, ou dependentes. Por outro lado, aqueles que vivem em territórios onde se desenvolvem atividades extrativistas, que hoje se relacionam de maneira privilegiada com os processos de acumulação de capital que ocorrem na China, enfrentam depredação e violência que não se diferenciam muito da anterior. Como você vê que esse paradoxo pode continuar se desenvolvendo?
Esta é uma das grandes questões do momento. Para aqueles que estudam as relações diplomáticas, o ascenso da China como hegemônico global, como uma potência que disputa a hegemonia mundial dos Estados Unidos, obviamente tem sido marcado por relações distintas, que poderiam ser entendidas em termos menos verticais. De fato, um dos termos usados para conceituar o ascenso global da China é o de flexigemonia, hegemonia flexível, precisamente para mostrar isso. A política do regime chinês de ascenso pacífico marca um esforço para se desvincular desse caráter muito mais militarista e intervencionista dos impérios dos Estados Unidos ou britânico. Mas, como você bem mencionou, isso não está isento de contradições. E, de fato, essas contradições se manifestaram não somente através do tipo de relações que as empresas mineradoras estabelecem nos lugares onde se assentam, mas também nas relações interestatais, no sentido de que não está claro, depois de muitos anos de relações comerciais com a China, que tenham ocorrido políticas de transferência tecnológica muito claras que tenham permitido aos países latino-americanos sair um pouco dos modelos primários exportadores. De fato, em alguns casos, isso implicou até uma certa desnacionalização dos setores manufatureiros e de produção de valor agregado. Por exemplo, no caso do Chile, um de seus principais produtos de exportação eram os cátodos de cobre, que implicavam um processo com certa adição de valor; mas a China prefere comprar o cobre bruto porque tem fundições e fábricas onde pode produzir os cátodos a um custo muito inferior. Então isso tem implicado uma espécie de desindustrialização da economia chilena. E não está claro que exista uma política de transferência tecnológica entre os países. Eu acredito que isso, por sua vez, impõe a necessidade de pensar uma política de não alinhamento ativo e, acima de tudo, recuperar instâncias de organização internacionalista históricas, sobretudo dos movimentos do Terceiro Mundo dos anos 60/70, ou dos movimentos de libertação nacional que conseguiram manejar ou, pelo menos, pensar de que forma ter alianças com blocos geopolíticos com os quais se guarda proximidade teórica, ideológica e política; e, ao mesmo tempo, poder distinguir a especificidade dos interesses econômicos e políticos da periferia. Acredito que esse é um tema que foi amplamente discutido nos anos 60/70, com as lutas de libertação nacional. De fato, este ano se comemoram 50 anos da declaração da Nova Ordem Econômica Internacional, que foi um marco muito fundamental nesse processo de organização internacionalista do Terceiro Mundo, precisamente nessa direção: como exercer soberania sobre os recursos naturais e, sobretudo, como empregar os setores de recursos naturais estratégicos para impulsionar projetos de desenvolvimento, industrialização endógena no Terceiro Mundo, distinguindo-os dos interesses econômicos das potências, sejam de blocos geopolíticos afins política, teórica ou ideologicamente? Então, o auge da China também tem que vir acompanhado de um processo de repensar novamente a questão do internacionalismo, talvez não mais do Terceiro Mundo, mas seria necessário encontrar uma forma de nomear esse internacionalismo, de acordo com as circunstâncias do presente.
Mas, embora não o definamos como um imperialismo comparável ao dos Estados Unidos, também não podemos considerar que a China é um aliado incondicional ou, sem ressalvas, dos povos oprimidos. A China em seu ascenso como potência deve ser considerada como algo à parte em relação ao mundo dependente, com o qual não se deve alinhar acrítica e simplesmente porque está em confronto com os EUA. É preciso observar as relações que estabelece onde tem interesses a defender, e suas políticas de extração.
Eu acredito que o interessante dos debates sobre o internacionalismo do Terceiro Mundo sobre um não alinhamento é que, mesmo assim, tomavam uma postura frente aos blocos geopolíticos e, sobretudo, buscavam alianças com blocos geopolíticos que tinham afinidade, ou que guardavam proximidade. Claro que a China deve ser um aliado para governos progressistas e populares, no sentido de que é um importante contraponto à hegemonia do imperialismo, não apenas dos Estados Unidos, mas de todo o bloco geopolítico da OTAN e suas áreas de influência. Nesse sentido, obviamente, deve haver uma busca ativa por alianças para cooperação militar estratégica, comercial, inclusive, podendo diferenciar ou, pelo menos, tentar ativar mais uma política de transferências tecnológicas. Talvez adotar uma postura de alianças, mas separando o problema do desenvolvimento do que significa uma aliança por questões estratégicas, militares ou bélicas. O genocídio na Palestina trouxe novamente à tona o problema da autodefesa militar dos povos. Acredito que rejeitar ou evitar uma aliança com potências como a China também pode ser algo politicamente arriscado e, por isso, acho que recuperar essas discussões históricas é muito importante para a conjuntura atual.
Eu vejo que, em um momento em que há uma dinâmica de rivalidade entre os Estados Unidos e a China cada vez mais exacerbada, guiada pela disputa pela primazia mundial, acaba-se em um alinhamento em uma disputa onde os povos oprimidos têm pouco a ganhar. Mesmo reconhecendo que a política da China hoje não é uma política militarista para com os países dependentes, exceto em suas áreas imediatas de influência, acredito que, se a China se consolidar, não surgirá uma ordem “benevolente”, uma multipolaridade pacífica, como alguns imaginam, mas sim um replanteamento das relações de poder para consolidar outro poder e uma ordem “sinocêntrica”, por assim dizer. Nesse sentido, inclino-me mais para uma posição de cautela, digamos, ou de agnosticismo em relação a esses alinhamentos nesse jogo de potências. O que não exclui a possibilidade de pontos concretos onde se possa pensar em cooperação, em acordos financeiros, de transferência de tecnologia e outros. Nesse ponto, posso concordar com o que você propõe. Obviamente, não pensando isso a partir do ponto de vista dos gestores do capital, mais liberais ou “nacionais e populares”, mas do que poderia ser proposto a um governo de trabalhadores em ruptura com o imperialismo. Acredito que pensar em acordos de cooperação para pontos específicos seria uma questão logicamente importante a considerar, mas sempre levando em conta essa dinâmica de rivalidade internacional, que é o que me parece que ordena muito a geopolítica da China hoje.
Sim, o problema das alianças com a China é um desafio muito importante. E talvez, se a China ascender à supremacia, ou à hegemonia comercial, industrial e tecnológica global, claro, não sei se a ordem multipolar atual pode ser mantida no horizonte. Mas, por isso, é importante ativar conexões, como por exemplo, os BRICS, que foi uma iniciativa que tentava se afastar um pouco de um sinocentrismo muito exclusivo, mas de como dar espaço a outros tipos de acordos ou formas de integração entre economias do Sul global. Mas, eu acredito que o importante é ver que esse problema não é novo, e que os países latino-americanos já estiveram no meio de disputas de grandes superpotências, como foi, claro, a Guerra Fria. E, obviamente, essa situação histórica gerou debates que são muito frutíferos e que podem ser revisitados hoje de maneira proveitosa para uma política de alianças.
Você propõe que, em ambos os lados da cadeia global mineral, encontramos que os sujeitos da força de trabalho compartilham características importantes. Essas características têm a ver com a origem social – muitos vêm de setores camponeses – mas também em termos de certa “contenciosidade” que se expressou em diferentes experiências de luta nos últimos tempos nessas diferentes geografias. Como você vê a perspectiva de que isso possa alimentar um novo internacionalismo da classe trabalhadora em sua luta contra o capital?
Um dos aspectos mais interessantes ou chamativos do auge da China foi o fato de que ele se alimentou de uma classe operária industrial que passou por diferentes processos de descamponização, de transformação demográfica do rural para o urbano através do chamado sistema hukou, que é um sistema pelo qual os habitantes do campo não podem viver permanentemente nas cidades; então eles têm que se deslocar. Nesse sentido, há processos de proletarização e de descamponização que guardam algumas semelhanças com processos de transformação econômica e tecnológica também no setor primário exportador da América Latina.
Outra coisa interessante é que sempre existe essa imagem da classe trabalhadora chinesa como uma classe trabalhadora dócil, que não se organiza, quando a literatura especializada mostra que, de fato, houve avanços importantes em protocolos táticos, organizativos e outros da classe trabalhadora. Então, eu acho que há aspectos que podem ser muito interessantes, mas um vínculo como tal não é visível. Embora na América Latina também haja uma ativação importante de grupos que se organizam contra a mineração, não apenas grupos locais de comunidades que vivem em áreas adjacentes às explorações minerais, mas também processos importantes de organização sindical, a relação entre essas classes trabalhadoras nacionais ainda não é um vínculo real sobre o qual exista uma consciência como tal.
Portanto, eu acho que é necessário repensar a questão do internacionalismo. E, acima de tudo, também é importante ter presente o fato de que um ecologismo do século XXI não deve ser apenas um ecologismo de classe, mas também um ecologismo internacionalista. No sentido de que o internacionalismo não é algo que surge espontaneamente: é um processo de autoformação, e é uma tarefa que os povos têm. E é uma tarefa que, de alguma forma, se perdeu. Se olharmos para a história de momentos em que houve organização internacionalista, como foram a I e II Internacionais no século XIX e os processos de organização de solidariedade dos países do Terceiro Mundo no século XX, foi uma prioridade estratégica nesses processos de autoformação e aprendizado sobre as condições da classe trabalhadora internacional e construção de vínculos. A situação atual na Faixa de Gaza trouxe novamente à tona a pulsão da classe trabalhadora por conhecer as condições materiais de existência de pessoas em diferentes partes do mundo, mas acredito que isso deve ser uma parte mais estratégica e intencionada dos processos de autoformação e autoeducação da própria classe trabalhadora. Então, é um vínculo que pode ser possível.
Para mim, um dos textos que achei mais importante ou estimulante é o livro de Maria Mies, Patriarcado y acumulación a escala mundial, onde ela faz esse paralelo entre a mulher dona de casa nos Estados Unidos e a mulher trabalhadora na maquila no Terceiro Mundo, e mostra como, apesar de uma depender da existência da outra – uma como produtora e a outra como consumidora – nenhuma das duas conhece a existência da outra. Eu acredito que o que o livro propõe ainda é muito relevante, no sentido de que o produtor da indústria eletrônica em Shenzhen na China não conhece a existência do trabalhador ou trabalhadora mineradora na América Latina, mas nenhum dos dois poderia existir sem o outro. E isso sublinha novamente a importância da solidariedade internacional como uma tarefa do povo.
Na luta contra o extrativismo mineral, assim como contra outros extrativismos, participam múltiplos sujeitos, como as comunidades originárias e organizações camponesas, com imaginários anti/pós ou simplesmente não capitalistas múltiplos e heterogêneos. Isso pode atuar, às vezes, como limitante para uma articulação que não se proponha somente à resistência às investidas extrativistas, mas a terminar diretamente com as bases da opressão e exploração. Você resgata a noção de que um projeto superador do capitalismo deve se propor a um universalismo que, ao contrário do do capital, não esteja baseado na abstração, mas na especificidade concreta. Você poderia explicar um pouco mais como entende isso?
Essa espécie de dicotomia entre o universal e o particular é um debate que está muito em voga, e uma das coisas que me pareceu importante é não apenas questionar esse universalismo abstrato do capital, que busca generalizar relações de troca baseadas na forma valor, mas também o universalismo abstrato do liberalismo, que muitas vezes invoca ideais modernos, ideais iluministas, mas realmente para defender os privilégios de poucas pessoas. Este foi, obviamente, um fenômeno que vem se apresentando desde a Revolução Francesa e que, de fato, Engels no Anti-Dühring chama de apriorismo; esse gesto de certos grupos iluminados que invocam os ideais modernos, dando-lhes essa espécie de marca universal, mas realmente para salvaguardar ou proteger interesses de uma pequena minoria. Como foi, por exemplo, o caso da Ilustração ocidental mais branca. Uma das formas mais estimulantes de pensar nisso é a ideia de Susan Buck-Morss em seu livro sobre Hegel e o Haiti, o fato de que a humanidade universal só se torna mais visível nas margens. E não por acaso uma das revoluções mais universais de todas foi a Revolução Haitiana, na qual os escravos negros impugnaram o ideal moderno da liberdade, mas não para abandoná-lo. Eles queriam a realização da liberdade como um ideal moderno. Mas que fosse real e que envolvesse todas as pessoas. E, de fato, não por acaso a Constituição do Haiti de 1804 começa com essa frase tão bonita que é: “De agora em diante todos os cidadãos serão chamados negros”. É um universalismo não como uma forma de apriorismo, como aquele denunciado por Engels nessa Ilustração mais burguesa, mas o universalismo de uma Ilustração radical. Podemos vê-lo, claro, na Revolução Cubana, mas também nas guerras de independência da América Latina, onde as campanhas e guerras de independência também impugnaram o princípio da liberdade, dizendo que, se querem ser livres, não deve haver colonialismo. Se os haitianos disseram “a liberdade implica a abolição da escravidão”, as campanhas de independência na América Latina repensaram esse ideal iluminista, afirmando que não haverá liberdade sem colonialismo, e posteriormente a Revolução Cubana é outro marco muito importante nesse tipo de universalismo das margens. Universalismo de baixo, poderíamos chamá-lo. Tem vários nomes, dependendo da literatura: universalismo insurgente, universalismo de baixo. Mas eu acho que vai um pouco nessa direção. A Revolução Cubana também foi uma impugnação não apenas à hipocrisia dos ideais iluministas, mas também ao economicismo, ou ao universalismo abstrato do modelo preponderante de “socialismo”, que era o da URSS. E daí essa ideia de que o socialismo deve começar a partir do humano, da transformação do ser humano, e essa ideia do homem novo. É uma nova forma, ou uma forma muito produtiva, de pensar o universal também. Ou, pelo menos, de tensionar a maneira como a revolução socialista era compreendida como um processo universal. Não é realmente universal se não começa pela, ou não aponta para a transformação do próprio ser humano.
Portanto, acredito que esse tipo de compreensão oferece chaves importantes para pensar também um ambientalismo, um ecologismo, que possa dialogar com a classe trabalhadora, e que possa falar nos mesmos termos que são importantes e inteligíveis para a classe trabalhadora. Acho que essa é uma das lições importantes, por exemplo, de todas essas revoluções: elas não inventaram novas categorias para avançar um projeto de transformação radical, mas fizeram isso usando as mesmas categorias e os mesmos horizontes normativos da sociedade que estão criticando. Então, acredito que essas experiências e esse tipo de universalismo oferecem um horizonte muito importante para a renovação estratégica, especialmente do ecologismo, que na América Latina geralmente está atravessado por visões que tentam não fazer uma crítica imanente, não procuram impugnar a sociedade que criticam nos mesmos termos dessa sociedade, alimentar-se de seu próprio potencial normativo, mas operam com um vocabulário normativo, analítico, etc., que é muito externo. E isso não é para ignorar a importância, por exemplo, de ideias como o bem viver, dos comuns, ou do decrescimento, embora este último não seja tão próprio do debate latino-americano. Mas acho que é um momento adequado para questionar se essas estratégias de criticar a sociedade de classe a partir de um mundo normativo e categorial que é externo a ela, têm dado resultados importantes. E, sinceramente, tenho dúvidas de que seja assim. Considero mais adequada uma estratégia de crítica imanente. Podemos ver exemplos de quando a esquerda usou a arma da crítica imanente, que, obviamente, foi o método praticado por Marx. Marx não inventou novas categorias analíticas para dialogar com seus adversários, que eram os economistas empiristas britânicos, mas debateu com eles em seus próprios termos. E isso lhe deu uma forma de interpelar, de ser ouvido, e, acima de tudo, de legitimar seu próprio projeto diante de grandes maiorias.
Você aborda o problema da constituição de sujeitos e da subjetividade a partir da visão imanentista de Moishe Postone. Um problema que Postone tem é que ele constrói o sistema capitalista como uma totalidade fechada, o valor que se valoriza “coloca” todos os seus momentos internos, incluindo os sujeitos que se lhe opõem. Acho que isso reduz a vida social a um único movimento e processo. Parece-me que você, em seu trabalho, propõe cruzamentos entre Postone e outras elaborações para “abrir” um pouco essa totalidade, mas gostaria de perguntar como vê essas objeções que costumam ser feitas a Postone.
Uma das coisas que me parece muito importante, e que ainda considero resgatável na obra de Postone, é o fato de que –e novamente voltando ao problema da crítica imanente– ele propõe uma crítica imanente do capital, no sentido de que mostra nas formas tecnológicas e sociais que surgem na relação social geral capital, esse sujeito alienado da mediação social, como ele o chama, incorpora ou traz as sementes de sua própria autodestruição, ou as sementes da construção de formas sociais e de organização social e ecológica mais avançadas. Acho que isso é importante, no sentido de que, às vezes, muitas das críticas ou disputas que existem com a extração capitalista são feitas a partir de uma postura moralista ou externalista ou que, de alguma forma, idealiza um sujeito social que se entende como externo, pré-moderno, como com uma certa pureza diante das relações sociais capitalistas. E acho que há algo muito importante em mostrar o fato de que a modernidade capitalista transformou isso. Obviamente, Bolívar Echeverría disse que a modernidade do Barroco parte desse fato: como a sociedade latino-americana nasce como produto do mestizaje e do encontro entre culturas. Esse é um ponto de partida para entender a própria especificidade histórica das sociedades latino-americanas. Então, afirmar que não há um “fora” não é algo que venha apenas de Postone, mas também de Echeverría ou Álvaro García Linera. É mais uma questão de ver como as potências transformadoras que surgem das relações sociais capitalistas podem gerar condições de possibilidade para sua superação, em formas mais avançadas de organização social.
Dito isso, também considero que há algo problemático na leitura de Postone, no sentido de que, como seus críticos acertadamente apontaram, ele anula o problema da contradição. O fato de que, basicamente, o capitalismo vai desaparecer por seu próprio dinamismo tecnológico, esse efeito de esteira, é muito pouco provável. Ou seja, o problema da contradição, o problema da organização necessária para superar e confrontar o poder do capital, está ausente na leitura de Postone. Acho que as críticas nesse sentido são acertadas. E acho que ele também minimiza muito o papel das relações sociais não capitalistas; por exemplo, o problema da renda. Mesmo hoje, quando se discute o problema do neofeudalismo ou tecnofeudalismo nos países do Norte global, que estão percebendo que as relações de renda, e de propriedade da terra e da renda do solo urbano, são tão fundamentais que acabam mudando a dinâmica da acumulação geral, mesmo em sociedades industrialmente avançadas, isso nos mostra como, às vezes, esse “fora” é tão fundamental para compreender o “dentro” que posturas como a de Postone parecem um pouco limitadas. Portanto, novamente, acho que uma abordagem de desenvolvimento desigual e combinado oferece elementos-chave para problematizar essa relação entre o “fora” e o “dentro”. Obviamente, em sociedades latino-americanas onde a renda da terra desempenhou um papel fundamental na própria configuração produtiva das economias, isso é algo bastante conhecido. Mas acho que visões como a de Postone às vezes são muito anglocêntricas, e agora, com todas essas discussões sobre o tecnofeudalismo, haverá uma postura mais matizada em relação a esse tipo de padrão de desenvolvimento combinado, que ocorre não apenas nas periferias, mas também nos centros do sistema mundial.
Seu livro Gobernar la utopía retoma e aborda várias questões sobre as condições de possibilidade de organizar uma sociedade não capitalista, baseada no planejamento e no poder popular, a partir de experiências históricas e discussões contemporâneas. Uma questão que aparece em muitos autores que defendem, por exemplo, a ideia de cibercomunismo, é que algo que torna hoje mais viável o planejamento de toda a economia é a disponibilidade de tecnologia para lidar com maiores volumes de informação de forma mais rápida. Qual a importância que você atribui a esses desenvolvimentos em comparação com outros fatores para pensar as possibilidades de iniciar hoje uma transição pós-capitalista ou para o socialismo?
Existem duas vertentes. Uma delas, de certa forma, abandonou completamente o problema do planejamento e da transformação tecnológica e produtiva das economias, concentrando-se nessa espécie de visão mais localista de produção, seja cooperativa, mas, digamos, em pequena escala. Pode-se questionar a eficácia desse tipo de abordagem. E há outras tradições, como a que você mencionou, do cibercomunismo, ou o ecomodernismo mais de cunho angloe[uropeu, como expressa o livro República popular de Wall Mart, de Leigh Phillips e Michal Rozworski. Por um lado, há uma espécie de nostalgia por sociedades pré-modernas, de certos grupos ligados ao giro decolonial, ao decrescimento; uma rejeição à tecnologia em grande escala. E, por outro lado, uma espécie de tecno-otimismo nessas outras correntes. Embora esses enfoques tenham posturas muito distintas, eles convergem em uma espécie de presentismo que evita ou que não está informado pelo arquivo histórico do que foi o planejamento realmente existente. Isso é algo muito problemático, como pensar de forma tão abstrata em como poderia ser um padrão de planejamento e qual papel a tecnologia poderia ou não desempenhar nisso. O que estou trabalhando em meus projetos atuais é reabrir esse arquivo histórico do planejamento e poder ver as especificidades concretas de, não apenas o papel que a tecnologia desempenhava, mas os diferentes paradigmas de organização produtiva industrial. Por exemplo, há algo muito fascinante no fato de como o modelo iugoslavo de autogestão operária foi discutido durante os anos 60 e início dos anos 70, durante o governo da Unidade Popular no Chile. Houve um debate muito interessante sobre isso, no sentido de que havia muito entusiasmo por parte da esquerda em relação à extensão da democracia econômica ao local de trabalho. E, por isso, o modelo iugoslavo era muito atraente com essa forma de um socialismo de cooperativas, um socialismo de mercado, como diriam os cibercomunistas. E, por outro lado, havia um grupo que, de certa forma, acabou predominando, e me parece que era uma postura muito interessante, que argumentava que a democracia no local de trabalho é importante, mas que o modelo iugoslavo tinha um grande problema, que era o fato de que esse modelo de autogestão operária estava totalmente desconectado de um plano nacional de desenvolvimento e, sobretudo, do conhecimento das unidades econômicas individuais sobre quais eram os objetivos de desenvolvimento do plano. Esses debates, acredito, são um exemplo, entre vários, de tudo o que o arquivo histórico pode oferecer. E, sobretudo, ver de que maneira as diferentes políticas industriais funcionaram, ou em que medida utilizaram a tecnologia de diferentes formas. E também, algo que o arquivo histórico revela, é que essa dicotomia entre comunismo de luxo plenamente automatizado ou localismo pré-moderno, especialmente na história latino-americana, seguiu um padrão muito mais complexo. E, por exemplo, em muitas das reformas agrárias de Cuba, na reforma agrária peruana ou na reforma agrária no Chile, tentou-se criar formas institucionais para combinar produção intensiva em capital de grande escala com formas de propriedade estatal, por exemplo, com formas mistas, baseadas em, por exemplo, propriedade de média escala, baseada em cooperativas e propriedade individual, a partir da produção de grupos camponeses. Portanto, as circunstâncias do próprio processo histórico levaram a uma relação com a tecnologia que se mostra muito mais multilinear, por assim dizer, do que esses enfoques dicotômicos de rejeitar ou aceitar a modernidade sem qualquer tipo de reserva. Acredito que, justamente, essa operação de reabrir o arquivo do planejamento socialista na América Latina nos permite entender essas trajetórias muito mais diversas do que foi a vinculação com a tecnologia. Obviamente, acredito que é muito importante revisitar os debates sobre o cálculo, que é algo que, a meu ver, é muito produtivo nas tradições do cibercomunismo. Mas acredito que isso também deve estar em diálogo com uma discussão histórica reflexiva, historicizar o problema. O papel que a tecnologia desempenharia em um processo de transição socialista não foi historizado.
Você retoma a proposta de poder dual, baseado ao mesmo tempo no sufrágio e em organizações de democracia de base. Agora, em muitos processos revolucionários, a democracia de tipo conselhista, como os sovietes na Rússia, ou os conselhos alemães, ou mesmo os cordões no Chile, tendia a se desenvolver como uma alternativa à institucionalidade baseada no sufrágio. Houve estratégias para cristalizar essa dualidade de poderes que você menciona, mas sempre se encerraram finalmente com a imposição de um sobre o outro, na maioria dos casos impondo o poder do capital. A Rússia, por outro lado, inicialmente instaurou um governo baseado nos conselhos, que depois teve que enfrentar a burocratização e foi liquidado pelo estalinismo. No entanto, para os setores que resistiram à burocratização, a ideia de restabelecer um regime dos sovietes era uma coordenada estratégica fundamental. Trotsky, por exemplo, defendia a necessidade de um pluripartidarismo soviético para restabelecer um regime de ditadura do proletariado, onde as diferentes tendências que apoiavam o regime da revolução pudessem ter expressão. Gostaria de saber sua opinião sobre essas experiências e as possibilidades de um regime baseado plenamente em uma democracia de conselhos como alternativa a um sistema de poder dual.
Acredito que um ponto de partida muito interessante é a leitura que a própria Rosa Luxemburgo faz sobre a Revolução Russa. E é o fato de que é difícil prever com clareza quais seriam as formas políticas e organizacionais de uma sociedade socialista e defini-las no papel. Ela usa uma analogia que, a meu ver, é muito bonita, dizendo que só se pode aprender a nadar na água, não se pode teorizar como nadar. É um ponto de partida importante, o que acredito que não impede pensar sobre modelos das instituições políticas de revoluções que funcionaram ou que não funcionaram. Considero que o modelo conselhista, de certa forma, ao carecer de um design institucional que tenha uma estrutura de poder traçada de maneira mais ampla, e que estabeleça certas condições para a interação política transparente e a deliberação, pode se tornar ou pode facilmente dar origem a formas de sectarismo, a formas de captura institucional, como foi, obviamente, o estalinismo. A tradição do cibercomunismo, ou alguns autores dentro dessa órbita, como Maxi Nieto, têm reivindicado a tradição do republicanismo socialista como uma forma de design institucional que poderia funcionar, ou seja, a existência de partidos disciplinados organicamente, fortes e, ao mesmo tempo, formas de interação com grupos extraparlamentares. Acredito que nesse novo auge do republicanismo socialista há elementos, talvez, interessantes para pensar justamente a relação entre formas parlamentares e extraparlamentares, e de certa forma foi o que Poulantzas tentou fazer, mas de uma maneira que talvez parecia mais próxima ao reformismo e à social-democracia alemã, ou pela Unidade Popular. Poulantzas cita a UP como um desses exemplos onde há uma espécie de relação mais complexa entre formas parlamentares e extraparlamentares.
Só como comentário, um pouco o que dizia na minha pergunta, diante da burocratização da URSS surgiram discussões nos setores de oposição ao estalinismo sobre o que fazer frente à burocratização. E a ideia de Trotsky em A Revolução Traída de que é necessário fazer uma nova revolução política na URSS para derrubar a burocracia está associada ao argumento que ele desenvolve sobre o pluripartidarismo soviético. Contra a burocratização, ele contrapõe a recuperação e manutenção de um sistema institucional baseado nos sovietes, o que significa não apenas sovietes, mas também as formas institucionais que foram experimentadas desde o triunfo da revolução para organizar o planejamento, um esquema organizado e complexo de poder, mas onde a soberania residia justamente em organismos que davam peso às unidades de fábrica e também aos territórios, mas organizados com um sentido de classe. E, por isso, o que ele propõe é que, se havia um problema, o partido único e o regime de partido único, os sovietes eram parte do que precisava ser preservado e regenerado, e parte disso estava na batalha pelo que ele define como pluripartidarismo soviético. Ou seja, não apenas um partido comunista, mas uma multiplicidade de organizações, com base no acordo de defender a revolução, a ditadura do proletariado e a ideia da transição ao socialismo. Mas que se encerrasse o que começou como um regime de exceção, no contexto da guerra civil e da invasão imperialista em 1917, que foi a supressão de tendências e o partido único. Lembremos que isso não era a intenção original, mas acabou se tornando fato quando os socialistas revolucionários se levantaram em 1918 e foram suprimidos. Essas questões são, de certa forma, as que a oposição ao estalinismo pensou e me parece que os setores trotskistas e até mesmo alguns setores de oposição dentro do próprio partido comunista na URSS tentaram ver como reorganizar o sistema soviético como um sistema efetivamente alternativo e democrático, mas sem regressar à democracia burguesa.
Um ponto de vista importante, e algo que pode ser muito enriquecedor na leitura de Trotsky, é sua argumentação de que a burocratização se produz por uma desconexão da institucionalidade e das bases que organizam a produção e os territórios. Isso me parece muito válido. Acredito que o desafio é combinar isso com, talvez, com certas outras questões que, a meu ver, são importantes para manter instituições transparentes. Algo que a Revolução Russa enfrentou muito e que levou, de certa forma, à centralização e à burocratização, é que se deparou com a impossibilidade de manter uma relação entre, digamos, instituições soviéticas com outras formas de deliberação mais estáveis. Isso levou ao que Poulantzas chamava de “impasse estratégico”, que é algo que emerge em vários processos revolucionários. Ou seja, o socialismo não pode ser vitorioso se não transforma radicalmente as condições sociais e econômicas que atravessam as bases do capitalismo e, ao mesmo tempo, se essas instituições não se democratizam, as instituições de deliberação, ao invés de serem uma forma de tomada de decisão transparente, tornam-se uma espécie de teatro, que não impede a construção de políticas econômicas eficientes, que podem substituir o modo de produção capitalista. Isso é algo que Trotsky viu, o fato de que a questão da democracia não era um mero problema, digamos, de adesão a certas normas, e sim, o fato de que o problema de ter instituições democráticas era importante para construir um processo de deliberação eficaz e para vincular essa deliberação à produção. Isso é algo, a meu ver, muito importante e que talvez em outras vertentes, como a dos conselhos, se perdeu. Acredito que as tradições que tentaram reivindicar um republicanismo socialista, em diálogo com algumas tradições como a de Poulantzas, e que tentaram pensar na forma de construir um Estado no processo de transição, podem ser muito enriquecedoras para pensar uma proposta assim. Mas, além disso, a operação que você faz ao vincular as questões de Trotsky à necessidade de construir instituições que possam resistir ao processo de burocratização também é importante e pode contribuir para manter uma relação mais estável entre as bases da produção e as instituições políticas.