Rosa Linh
Aos 100 anos do aniversário da morte de Vladimir Ilich Ulianov, mais conhecido como Lênin, esse texto é o primeiro de uma série de artigos sobre seu papel proeminente na defesa da natureza. Contra a barbárie capitalista e o ecocídio burguês contemporâneo, é preciso resgatar a contribuição radical da ecologia leninista e bolchevique, tributária da tradição do marxismo revolucionário, contra toda a deturpação e traição que significou o stalinismo. O legado ecológico radical da Revolução Russa precisa ser trazido à luz para as novas gerações de explorados e oprimidos, contra a resignação e o desespero que a burguesia nos empurra, para que tomem em suas mãos a luta para restabelecer o metabolismo harmônico entre sociedade humana e natureza sob os escombros do capital.
Enquanto escrevo esse artigo, o Brasil atravessa uma severa calamidade ambiental com mais de mil municípios em estado de emergência. A intensidade do El Niño, o aquecimento anormal das águas do Atlântico Tropical Norte e as temperaturas globais recordes são algumas das principais causas para a alarmante seca amazônica, que está substituindo os “rios voadores”, carregados de umidade, por fuligem e fumaça tóxica vindas das queimadas. O país enfrenta uma forte estiagem, na qual a antecipação da seca na região amazônica e as fortes ondas de calor colocaram uma situação anormal no regime de chuvas, provocando um cenário distópico, encobrindo cidades inteiras com incêndios. Depois da maior crise ambiental da história do país no Rio Grande do Sul, com as brutais enchentes que deixaram suas marcas principais na população trabalhadora, feminina, negra e indígena, está claro que eventos climáticos extremos estão cada vez mais frequentes e intensos. Isso nos marcos do Brasil da frente ampla de Lula-Alckmin, em que se destina bilhões para o agronegócio ecocida e racista com o Plano Safra; o Arcabouço Fiscal garante o pagamento religioso da dívida pública fraudulenta, enviando mais da metade do orçamento para os bancos imperialistas financiarem a exploração extrativista internacional; a justiça e o governo são intransigentes, atacando a greve dos servidores ambientais – tudo é feito para manter a “governabilidade capitalista”, enquanto a extrema-direita se fortalece com a conciliação de classes.
Não se trata da ganância humana em abstrato, mas da forma pela qual a sociedade humana organiza, produz e reproduz a vida em sociedade. O modo de produção capitalista em sua época imperialista coloca a humanidade na reta das guerras e crises diante do esgotamento de suas reservas de extração de mais-valor. O aquecimento global é um fenômeno burguês provocado pela insustentabilidade do capitalismo. Nesse contexto, o negacionismo da extrema-direita quer radicalizar a exploração natural, enquanto o mal-menor ecocapitalista pretende salvar os lucros e os regimes capitalistas com mudanças cosméticas e uma representatividade neoliberal vazia. São duas faces da mesma moeda ecocída.
O capitalismo transformou o planeta em uma suja prisão. Por isso, precisam deturpar a história dos explorados e oprimidos, principalmente aquela em que os explorados e oprimidos são capazes de vencer contra a distopia e a barbárie. Não por acaso, a extrema-direita esbraveja contra o comunismo. Lênin não foi perdoado, neste caso, pela propaganda imperialista – seu legado é muito pesado e perigoso. É nesse marco que os detratores do marxismo teimam por igualar o bolchevismo e o marxismo revolucionário com a degeneração stalinista. Para eles, o marxismo seria uma doutrina produtivista, cuja ode ao progresso e à tecnologia seria desprovida de quaisquer interesses reais pela harmonia com a natureza, ao passo que constitui uma visão positivista e de evolução linear das sociedades, promovendo ecocídios e impondo a visão da “ciência europeia” aos povos oprimidos colonizados. A partir dessa visão, o bolchevismo havia sido a aplicação dessa visão deturpada de Marx e Engels, perseguindo e combatendo a liberdade científica. Lênin, portanto, seria a encarnação do despotismo totalitário.
Segundo James Terradas, professor de ecologia na Universidade de Barcelona, a política ambiental soviética foi caracterizada por sérios problemas na centralização das decisões, tomadas por burocratas. Esse pensamento não apresenta nada de novo em particular, no entanto é o típico argumento usado contra o leninismo e o bolchevismo. Assim como a maioria dos críticos burgueses do marxismo, os desastres ambientais, o burocratismo e as perseguições são produto desse “socialismo real”, do bolchevismo, de Stálin enquanto continuação de Lênin. Entretanto, a propaganda barata e pouco consequente desses críticos não resiste a uma análise mais detida da política ambiental revolucionária dos bolcheviques, com Lênin à frente. Vejamos.
A Revolução Russa e a política ambiental de Lênin e dos bolcheviques
Modelos da natureza: ecologia, conservação e revolução cultural na Rússia Soviética, obra de Douglas Weiner escrita em 1988, apresenta detalhadamente importantes conquistas da União Soviética no que tange à ecologia e à política ambiental. O livro aborda como, logo da vitória da Revolução de Outubro, é promulgado em novembro de 1917 o Decreto sobre a Terra, no qual é declarado propriedade e de uso exclusivo do Estado todas as florestas, águas, minerais, carvão, petróleo, sal etc., sendo que pequenos rios, lagos e florestas passam a ser de usufruto das comunidades auto-organizadas. Da mesma forma, toda criação de gado, aves e coudelarias, pertencentes ao fisco e a particulares, foram confiscadas e convertidas em patrimônio do Estado e das comunidades conforme as proporções e importância. A propriedade latifundiária e a propriedade privada são abolidas, sem quaisquer indenizações, permitindo-se o uso livre da terra a todos e todas que nela quiserem e puderem trabalhar. As terras com explorações altamente desenvolvidas, como hortas, plantações, viveiros, estufas etc. não foram submetidas a partilha, mas se tornaram fazendas modelo de agricultura coletivizada. Em outras palavras, realizava-se a reforma agrária radical e os bens naturais se tornavam propriedade coletiva.
Quando o jornal Lesa respubliki (Florestas da República) reclamou que as árvores estavam sendo derrubadas desenfreadamente, o governo soviético emitiu um decreto severo Sobre as Florestas em uma reunião presidida por Lênin em maio de 1918, criando uma Administração Central de Florestas da República para elaborar um plano de reflorestamento e produção sustentável. A partir de então, as florestas seriam divididas em um setor explorável e um protegido. O propósito das zonas protegidas seria especificamente controlar a erosão, proteger bacias hidrográficas e a “preservação de monumentos da natureza”. Não obstante, o governo soviético também protegeu os animais com o decreto Sobre as temporadas de caça e o direito de possuir armas de caça, que foi aprovado por Lênin em maio de 1919, proibindo a caça de alces e cabras selvagens, encerrando as temporadas na primavera e no verão.
Mesmo o imperialista The New York Times é obrigado a reconhecer a contribuição ecológica de Lênin. Em artigo intitulado “Os eco-guerreiros de Lênin” publicado no periódico, Fred Streibegh mostra como a política ambiental soviética estabeleceu as chamadas zapovednik, ou reserva natural em português, colocadas por Lênin sob responsabilidade do Comissariado do Povo para Educação, liderado por Anatolii Vasilievich Lunacharsky, as primeiras reservas de conservação natural no mundo. A lei de 1921, Sobre a Proteção de Monumentos Naturais, Jardins e Parques, consistia em estabelecer reservas “onde a natureza deveria ser deixada sozinha” em seu próprio equilíbrio homeostático. Segundo Streibegh, essa política chegou a reunir cerca de 30 milhões de hectares em três décadas, com 128 reservas que iam dos alpes europeus até o Cáucaso e aos vulcões de Kamchatka no Pacífico. Louis Proyect, militante do SWP norte-americano nos anos 60 e membro da Universidade de Columbia, relata sobre o estabelecimento do zapovednik de Ilmenski, uma região que incluía minerais preciosos e que, apesar disso, o governo soviético considerava os depósitos localizados ali muito mais valiosos pelo que poderiam ensinar aos cientistas sobre processos geológicos do que para sua exploração. O agrônomo Nicolai Podyapolski, conta uma interessante conversa que teve com Lênin sobre a necessidade da criação de zonas de preservação natural:
Depois de me fazer algumas perguntas sobre a situação militar e política na região de Astrakhan, Vladimir Ilich expressou sua aprovação por todas as nossas iniciativas e em particular aquela referente ao projeto para o zapovednik. Ele afirmou que a causa da conservação era importante não apenas para a região de Astrakhan, mas para toda a república também
A reforma agrária e a abolição da propriedade privada sobre os bens naturais, o estabelecimento do controle operário democrático sobre o conjunto da produção e a socialização dos meios de produção, bem como a criação das zonas de conservação e pesquisa natural, protegendo as florestas e os seres vivos – esse conjunto de medidas da política ambiental de Lênin e da URSS firmou as bases para o restabelecimento de uma relação harmônica entre a sociedade humana e a natureza. A anarquia da livre concorrência capitalista, pautada no monopólio das terras, dos bens naturais e da alienação do trabalho e da natureza, toma a natureza como útil na medida em que satisfaz a valorização do valor, a produção desenfreada de mercadorias e valores de troca. Por isso a “sustentabilidade capitalista” não passa de um conto de fadas reacionário. Com a revolução, destruiu-se o balcão de negócios da burguesia, o Estado burguês, e ergue-se um Estado operário baseado na democracia soviética, sendo que tudo o que se produzia passava por um plano racional organizado por cada local de trabalho, ao passo que a ciência era empregada não para maximizar os lucros privados, mas para criar técnicas inovadoras e que servissem ao bem estar humano. Como Engels desenvolve em sua Dialética da Natureza
“E assim, somos a cada passo advertidos de que não podemos dominar a Natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, como alguém situado fora da Natureza; mas sim que lhe pertencemos, com a nossa carne, nosso sangue, nosso cérebro; que estamos no meio dela; e que todo o nosso domínio sobre ela consiste na vantagem que levamos sobre os demais seres de poder chegar a conhecer suas leis e aplicá-las corretamente”
Lênin e os bolcheviques colocaram a perspectiva de Engels em prática. No seu discurso aos delegados comunistas no Conselho Central de Sindicatos de toda a Rússia (11 de abril de 1921), Lênin argumentou:
Para proteger as fontes de nossos recursos, devemos agir de acordo com as leis técnico-científicas. Por exemplo, se o assunto é o arrendamento de florestas, devemos cuidar para que a indústria florestal se comporte adequadamente. Se estamos falando de petróleo, então devemos nos organizar contra derramamentos. Isso é necessário para impor a adesão às leis técnico-científicas e ao princípio da exploração racional.
Para Lênin, a solidariedade comunista entre os trabalhadores estava intimamente ligada a uma concepção revolucionária de sustentabilidade. O domínio das leis naturais poderia assegurar técnicas mais avançadas e uma elevação da produtividade do trabalho, isto é, a diminuição do tempo de trabalho necessário socialmente para a produção, reduzindo a jornada de trabalho. A partir da cooperação solidária entre os trabalhadores, coloca-se em primeiro plano a questão da necessidade de economia de recursos, da preservação dos bens naturais, de como o ser humano é parte do meio natural, é produto dele e não pode “dominá-lo como um conquistador”, mas sim “aplicar suas leis corretamente”. Um exemplo disso foram os subbotniks, ou sábados comunistas, sábados voluntários de trabalho não remunerados nos tempos do comunismo de guerra, frequentemente realizados para organizar serviços comunitários, coleta de material reciclável, limpeza das ruas, etc. O próprio Lênin em 1920 participou do primeiro subbotnik, ajudando a remover os escombros na construção do Kremlin em Moscou. Para o revolucionário, essa era um gérmen do trabalho livre comunista:
O comunismo significa a maior produtividade do trabalho – em comparação com a existente sob o capitalismo – de trabalhadores voluntários, com consciência de classe e unidos, que empregam técnicas avançadas. Os subbotniks comunistas são extraordinariamente valiosos como o verdadeiro início do comunismo; e isto é algo muito raro, porque estamos numa fase em que “apenas estão a ser dados os primeiros passos na transição do capitalismo para o comunismo” (como diz com razão o nosso Programa do Partido). O comunismo começa quando os trabalhadores comuns demonstram uma preocupação entusiástica que não se intimida com o trabalho árduo para aumentar a produtividade do trabalho, poupar cada libra de grãos, carvão, ferro e outros produtos, que não se revertem para os trabalhadores pessoalmente ou para seus amigos e parentes “próximos”, mas sim aos seus amigos e parentes “distantes”, isto é, à sociedade como um todo, a dezenas e centenas de milhões de pessoas unidas primeiro num estado socialista e depois numa união de repúblicas soviéticas.”
Nesse ponto há um profundo debate sobre a transição socialista, a relação entre proletariado e campesinato e o papel da cooperação, algo a ser tratado num próximo artigo dessa série.
O apogeu da ciência e ecologia soviética sob Lênin e sua brutal ruptura sob Stálin
Lênin era também produto de sua época. O movimento ecológico soviético foi igualmente dinâmico nos primeiros anos da Rússia revolucionária. Em 1924, foi fundada a Sociedade Russa para Conservação da Natureza (VOOP), com cerca de mil membros, que em 1928 lançou o periódico Okhrana Prirody (Proteção da Natureza), com o qual faziam propaganda nas fábricas, no Exército Vermelho, nos clubes de trabalhadores, entre os Jovens Pioneiros e camponeses. Já em 1929, foi realizado o Congresso pela Conservação da Natureza de toda a Rússia, declarando que “o Poder Soviético não pode não se esforçar por criar condições favoráveis para o desenvolvimento da causa conservacionista”.
A ecologia soviética estava, sem dúvidas, na vanguarda a nível internacional. Cientistas proeminentes tiveram a liberdade e os recursos para realizar grandes descobertas. Exemplos não faltam, o que pode ser visto com mais detalhes no primeiro artigo de Roberto Andrés “Apogeu e queda do ambientalismo na nascente União Soviética”. É interessante notar que muitos dos cientistas aqui citados eram parte do Partido Bolchevique, tomaram parte da revolução e foram combatentes no Exército Vermelho, contudo muitas dessas brilhantes mentes das ciências naturais tinham opiniões e posições políticas independentes, alguns até mesmo não concordaram com Outubro, contudo tiveram liberdade de pensamento e crítica em sua pesquisa, contanto que acordassem colocar seus esforços a serviço da URSS.
Dentre os principais pensadores ecológicos soviéticos, temos Vladimir Vernadsky, que alcançou renome internacional por sua análise da biosfera e como pioneiro da biogeoquímica, também fundou a Academia de Ciências Ucraniana. Segundo Lynn Margulis, a influente bióloga norte-americana e companheira de Carl Sagan, na introdução da tradução inglesa da obra de Vernadsky A Biosfera, o cientista “foi a primeira pessoa em toda a história que enfrentou com reais implicações o fato de que a Terra é uma esfera autônoma”. Suas descobertas contribuíram enormemente para o desenvolvimento da solução para o problema da origem da vida a partir da matéria inanimada, dilema resolvido pela até hoje utilizada hipótese da origem da vida, de Alexander Ivanovich Oparin e do britânico J.B.S Haldane. O brilhante geneticista de plantas Nikolai Ivanovich Vavilov foi o primeiro presidente da Academia de Agricultura Lênin, e foi responsável por aplicar o método materialista às origens da agricultura, descobrindo as fontes primárias de germoplasma ou reservatórios genéticos (conhecidas como áreas de Vavilov) vinculadas às áreas de cultivo humano mais antigo ao redor do mundo — em locais como Etiópia, Turquia, Tibet, México e Peru. O zoólogo Vladimir Vladimirovich Stantchínski foi pioneiro no desenvolvimento da análise energética de comunidades ecológicas (e níveis tróficos), e foi um dos principais promotores e defensores do zapovednik, além de fundador da Universidade Estatal de Smolensk. Já o físico Boris Hessen não só foi combatente do Exército Vermelho na Guerra Civil, como em seu trabalho científico tratou de reinterpretar a história e sociologia da ciência nos termos do materialismo histórico. Vladimir Komarov, botânico e presidente da Academia Russa de Ciências, foi o editor principal da Flora da União Soviética, uma obra com ilustrações e descrições botânicas que constam de trinta volumes. Vladímir Sukatchov foi um geobotânico russo membro da Academia de Ciências da URSS, que desde 1919 dirigiu o departamento de dendrologia e sistemática vegetal do Instituto Florestal de Leningrado, conhecido por seu conceito de “biogeocenose”. Iván Shmalhausen foi um morfólogo e embriólogo ucraniano defensor da integração da biologia do desenvolvimento na teoria evolutiva, sendo considerado um dos precursores principais da moderna evo-devo (biologia evolutiva do desenvolvimento), tendo estabelecido a teoria da seleção estabilizadora, além de ter sido uma das figuras centrais no desenvolvimento da síntese evolutiva moderna.
A lista continua e é vasta. As contribuições objetivas para o avanço da ciência do assim chamado primeiro período da ecologia soviética vão muito além do que pode ser descrito neste artigo. No entanto, com o advento do stalinismo, há uma ruptura sem precedentes na política ambiental revolucionária dos bolcheviques, manifesta nos seguintes âmbitos: a substituição do materialismo dialético, ecológico e holístico, por um mecanicismo doutrinário positivista, produtivista e anti-ecológico, ligada à perseguição, censura e assassinato dos cientistas e ativistas ambientais soviéticos; a enorme retroação das conquistas ambientais alcançadas com a revolução. A segunda parte do artigo de Roberto Andrés nos conta em detalhes sobre a queda do jovem ambientalismo soviético. Vejamos.
Os bolcheviques haviam implementado a Nova Política Econômica (NEP) para evitar a “crise das tesouras”, uma crise entre o fornecimento de produtos do campesinato e a compra de mercadorias produzidas pelo operariado industrial. Após a destruição advinda da guerra civil e a necessidade do chamado “comunismo de guerra”, essa política introduziu elementos de mercado capitalista na economia soviética, o que evitou a crise e buscou reverter os problemas na relação entre proletariado e campesinato. Tratava-se de ganhar tempo até que a revolução nos países avançados triunfasse. Contudo, após a prematura morte de Lênin em 1924 e o estancamento da revolução internacional com a derrota na Alemanha, o isolamento da Rússia possibilitou o triunfo da burocracia stalinista, que representava a reação às bases da revolução. Sob as bases materiais mais de direita das consequências da NEP, Bukharin e Stálin defenderam a política de “kulaks enriquecei-vos”, em que conclamavam pela “assimilação” dos camponeses ricos ao socialismo junto de sua tese reacionária do “socialismo em um só país”. O programa da Oposição de Esquerda de Leon Trótski era contundente: defender o internacionalismo proletário, o fortalecimento da democracia soviética e a industrialização para avançar na coletivização no campo. Em 1928, após a derrota da Segunda Revolução Chinesa provocada pela política traidora da Internacional Comunista de Stálin, Trótski é expulso do partido e depois da URSS. Diante dos locautes dos camponeses ricos, a burocracia termidoriana stalinista dá um giro de 180º: da assimilação dos kulaks, passa à coletivização forçada, combinado com o Plano Quinquenal, pautado em uma industrialização acelerada, desmantelamento da democracia soviética e perseguição dos trotskistas. Isso desatou um conflito profundo que quebrou a aliança entre campesinato e proletariado.
As consequências dessa política desastrosa se manifestou também no terreno do movimento ambientalista, no qual os conservacionistas foram objeto de crescentes ataques e taxados de “burgueses”, desatando uma forte censura e perseguição à vanguarda intelectual e científica. Com isso, por exemplo, vemos o avanço da concepção de “transformar a natureza” com fins produtivistas na biologia soviética, defendendo o uso dos zapovednik para investigar a “aclimatação” de espécies, ou seja, a eliminação de animais e plantas silvestres de seu habitat original, relocalizando-os. Sukatchov e Stanchínski se opuseram taxativamente a essa orientação, argumentando que estas reservas ecológicas deveriam permanecer invioladas, o que levou a Stanchínski a entrar diretamente em conflito com o stalinista Trofim Lysenko e seu principal aliado Isaak Izraílovitch Prezent, que mais tarde liderou a destruição da genética na União Soviética.
Lysenko foi elevado à condição de árbitro da ciência biológica, dando passagem a uma orientação obscurantista contra a “ciência e arte burguesa”. Foram lançados ataques “científicos” contra à ecologia, à genética, aos geobotânicos e aos conservacionistas, colocando em xeque a própria validade da ecologia enquanto ciência. Aqueles que não concordavam com a tese de que a vernalização e hibridização poderiam acelerar o crescimento das plantas e gerar maior produtividade na agricultura, foram expurgados. A concepção de coevolução entre ser humano e natureza, baseada na democracia soviética, a gestão operária da produção e o controle popular, a cooperação entre camponeses e operários, foi substituída pelo despotismo tacanho da burocracia e uma visão lamarckista do desenvolvimento natural, na qual as características adquiridas pela repetição eram transmitidas para as próximas gerações, muito útil para o produtivismo negacionista do stalinismo.
Um exemplo paradigmático é a revista Pod Známeniem Marksizma (Sob a Bandeira do Marxismo), lançada em 1922. Como Lênin escreve em Sobre o Significado do Materialismo Militante, para estabelecer uma “perseguição incansável de todos os atuais ‘lacaios diplomados do clericalismo”, das doutrinas filosóficas reacionárias e suas influências nas ciências e no pensamento comum, era imprescindível a liberdade científica e de pensamento dentro do combate materialista. “Um dos maiores e mais perigosos erros dos comunistas (como em geral dos revolucionários que tenham realizado com êxito o começo duma grande revolução) é imaginarem que a revolução pode ser levada a cabo só pelos revolucionários”, dizia o bolchevique sobre os elementos que compunham a revista, mas não se consideravam propriamente marxistas. Como elabora o sociólogo marxista estadunidense John Bellamy Foster em Dialética da Ecologia, uma importante disputa intelectual surgiu dentre os expoentes do jornal, mais precisamente com Liubov Isaakovna Axelrod, antigo assistente de Plekhanov, com visões mais mecanicistas e próximas das ciências naturais, e Abram M. Deborin, cujas visões eram mais orientadas ao ponto de vista dialético, contudo mais idealistas. A disputa acendeu um debate vivo acerca da proposição de que tanto a natureza orgânica quanto a inorgânica poderiam ser reduzidas simplesmente a propriedades mecânicas. Ainda que, como afirma Foster, nenhuma dessas alas estava inteiramente correta, o stalinismo suprimiu com censura esse debate. A morte da filosofia soviética, como prossegue o autor, deu-se com a publicação de “Materialismo Histórico Dialético” de Stálin, em 1938. Como afirma Foster:
a noção de negação da negação, fundamental para o pensamento crítico de Marx, Engels e Lenin, foi formalmente excluída. O materialismo histórico foi reduzido a uma área separada, subordinada ao materialismo dialético. Todas as categorias foram congeladas. Os Manuscritos Econômicos e Filosóficos de Marx de 1844, publicados pela primeira vez em 1932, foram tratados como pertencentes a uma fase pré-marxista no seu pensamento e foram geralmente ignorados ou subestimados
A perseguição física veio logo em seguida. Em fevereiro de 1934, Stanchínski foi preso, torturado e condenado a 5 anos de trabalho forçado. Em 1940, seria novamente preso, acusado de espionagem e agitação antissoviética. Depois de ser condenado a 8 anos de trabalho forçado, morreu em 1942 de miocardite na prisão de Vologoda, o lugar de seu enterro é desconhecido. Por sua vez, Nikolai Vavílov foi capturado em agosto de 1940 durante uma viagem de campo no oeste da Ucrânia, acusado de atividades de conspiração direitista, de que era um espião da Inglaterra, líder de sabotagens na agricultura e possuidor de vínculos com imigrantes antissoviéticos. Foi sentenciado à morte pela corte militar e apesar da condenação ter sido reduzida a dez anos de prisão, Vavílov morreu de desnutrição na prisão em 1943, e então enterrado em uma tumba sem nome. Em 1936, o físico Boris Hessen foi preso e acusado de “trotskista”, sendo julgado em segredo por um tribunal militar e em seguida executado. Outros, como Oparin e Komarov, optaram pela subordinação à burocracia. Se em 1924 tinha sido criada a Sociedade para a Conservação da Natureza com mil membros, alcançando no ano de 1932 mais de 15 mil, em 1940 o número de membros tinha diminuído abruptamente para 2.500 pessoas. Sua publicação Proteção da Natureza, em 1930, assumiu uma posição contra a coletivização forçada e a industrialização acelerada, sofrendo então com censura e perseguição de seus líderes, deixando de ser publicada em 1941. Naquele momento, o movimento conservacionista soviético já estava praticamente aniquilado.
As consequências para as conquistas revolucionárias da conservação do meio natural foram profundas. A burocracia termidoriana stalinista da URSS foi responsável em grande parte pelos piores desastres ecológicos do século XX. Não por acaso, em 1992 o demógrafo Murray Feshbach e o jornalista Alfred Friendly publicaram o livro Ecocídio na URSS: saúde e natureza sob assédio. Ainda que sob a lupa ideológica do anticomunismo, desnudava as paupérrimas condições ambientais e sanitárias na então recentemente dissolvida União Soviética. A tese dos autores era que a contaminação massiva foi uma das causas da morte da URSS. Segundo a investigação, no momento da dissolução da URSS (1991), mais de 75% da água potável estava intoxicada e os outros 25% se encontravam completamente sem tratamento; metade da terra cultivável se encontrava com erosão, salinizada ou inundada; um terço da população vivia em cidades com um ar que continha cinco ou mais vezes o limite legal de contaminantes; 80% dos hospitais rurais não tinham água corrente e a metade carecia de redes de esgoto. Vale mencionar como a restauração capitalista radicalizou as paupérrimas condições, jogando a população na miséria e destruindo massivamente as forças produtivas.
A agricultura soviética, sob a lógica do extrativismo, tinha se tornado fortemente dependente de petróleo. A produção de algodão na Ásia Central (que dependia em grande medida da aplicação intensiva de pesticidas e herbicidas, e da irrigação) contaminou e secou os rios que conduziam ao mar de Aral, então um dos quatro maiores lagos do mundo, com 68.000 km² (e que hoje possui menos de 10% de seu tamanho original). A contaminação foi tamanha que, pela quantidade de resíduos químicos no abastecimento de água potável, as mães na região de Aral não podiam amamentar seus bebês sem correr o risco de envenená-los. Sob a lógica produtivista da burocracia, 89% das áreas conservadas dos zapovednik foram destruídas ou colocadas a serviço da mineração, expansão de fazendas, caça e exploração madeireira. O modelo de desenvolvimento levou ao descuido da conservação do solo e as emissões de dióxido de enxofre por unidade do Produto Nacional Bruto (PNB) em 1988 foram 2,5 vezes maiores do que as dos Estados Unidos.
O pior de tudo foi o nível de contaminação radioativa do ambiente. A catástrofe nuclear de abril de 1986 em Chernobyl emitiu 500 vezes mais material radioativo à atmosfera do que a bomba de Hiroshima, e sua cidade, Pripyat, teve que ser completamente evacuada, tendo seus animais, tanto domésticos como selvagens, sacrificados. Por outra parte, em abril de 1993 um informe de 46 especialistas revelou que a União Soviética tinha descartado 2,5 milhões de curies de resíduos radioativos no oceano. “Colocamos 17 reatores nucleares de submarinos no fundo do mar”, informou Alexei Yablokov, assessor ambiental de Boris Yeltsin: “sete deles ainda continham combustível”.
A Alemanha Oriental, Tchecoslováquia e Polônia, o chamado triângulo negro do Leste Europeu, tinha os níveis mais altos de contaminação industrial da Europa. Em Most, na Tchecoslováquia, registraram-se emissões de dióxido sulfúrico vinte vezes superiores ao nível máximo recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O governo polonês, por sua parte, descreveu a Silésia como uma “zona de desastre ambiental”, enquanto na Cracóvia, a cada ano caiam da atmosfera 170 toneladas de chumbo, 7 toneladas de cádmio, 470 toneladas de zinco e 18 toneladas de ferro.
A única conclusão possível, contra os detratores do marxismo, tanto os burgueses quanto os revisionistas na esquerda, é que tanto em termos de política ambiental, liberdade científica, e das conquistas ecológicas, o stalinismo é oposto pelo vértice ao bolchevismo e o leninismo. A contribuição ecológica de Lênin e dos bolcheviques nesse quesito é radical, calcada em uma transformação revolucionária na forma como se produz e reproduz a vida em sociedade, organizando a produção democraticamente pela base na ruptura com o capitalismo; dedicando-se também a incentivar e elevar a consciência ambiental dos trabalhadores, utilizando o tempo livre conquistado com o pleno emprego e a redução da jornada de trabalho, o avanço da ciência e da educação; organizando frações revolucionárias em todos os países para botar abaixo o capitalismo a nível mundial, em perspectiva de interligar as forças produtivas internacionais, dando lugar a uma sociedade global de produtores livremente associados, sem classes e sem Estado, na qual o aquecimento global e a crise ambiental sejam parte do museu de antiguidades. E justamente por isso, há um abismo total e completo entre o materialismo dialético de Lênin e dos bolcheviques, sua atitude diante da liberdade na ciência e na filosofia, sua política ativamente conservacionista, e o ecocídio perpetrado pela burocracia stalinista. Mesmo os avanços que também houve nas ciências naturais e na produção tecnológica foram subjugados para “defender a propriedade coletiva à sua maneira”, como diria Trótski – ou seja, defender os privilégios da camarilha em detrimento das condições das massas e da natureza, contendo e traindo a expansão internacional da revolução e a perspectiva de emancipação sócio-natural efetiva. Sob as bases de Stálin, deu-se passagem para um verdadeiro ecocídio, que também teve sua parte de responsabilidade na restauração burguesa da URSS levada à cabo pela burocracia.