Claudia Cinatti
Notas sobre o novo cenário que começa a se formar após as eleições norte-americanas.
A todo vapor, o governo de Donald Trump começa a tomar forma. Diferentemente do primeiro mandato, em que a improvisação e o caos revelavam a surpresa com a vitória do “outsider” e o descontrole no partido republicano (e também em grande parte da burguesia mais concentrada), desta vez, pelo menos dois influentes think tanks da direita conservadora – a Heritage Foundation, de inspiração reaganiana, e seu concorrente, o America First Policy Institute (AFPI) – vêm trabalhando desde a derrota eleitoral de 2020 no desenho da próxima administração republicana e na “institucionalização do trumpismo”. O AFPI afirma ter preparadas cerca de 300 ordens executivas (equivalentes aos decretos presidenciais), uma série de medidas reacionárias e de alto impacto com as quais Trump iniciaria sua presidência em 20 de janeiro.
Um detalhe curioso: o AFPI organizou a última Conferência Política de Ação Conservadora para celebrar a vitória de Trump em sua residência de Mar-a-Lago, uma espécie de missa da extrema direita e dos grandes milionários, que contou com a presença do presidente argentino Javier Milei, um devoto servidor do trumpismo e do imperialismo norte-americano.
O “segundo tempo” de Trump vem carregado de espírito revanchista. Desta vez, o programa político de Trump e do movimento MAGA (Make America Great Again), que tomou completamente o Grand Old Party, vai além do conhecido coquetel de guerra comercial contra a China, sanções punitivas, protecionismo, desregulamentações, cortes de impostos para os ricos, guerras culturais (ou, melhor dizendo, ataques a direitos democráticos) e políticas anti-imigração. O objetivo explícito da nova administração republicana é realizar uma purga na burocracia estatal em todos os níveis, possivelmente começando pelo próprio Pentágono e pelas agências da chamada “comunidade de inteligência” (FBI, CIA, etc.), substituindo os cargos por funcionários leais.
A conclusão a que Trump chegou após seu primeiro mandato é que o aparato estatal – o chamado deep state – foi um obstáculo quase absoluto para a implementação de suas políticas. E, sobretudo, foi o que fez fracassar o golpe de 6 de janeiro de 2021, quando uma turba de simpatizantes de extrema direita, incitados pelo próprio Trump, tentou invadir o Capitólio para impedir a certificação da eleição do democrata Joe Biden. De certo modo, a vitória eleitoral de Trump em 2024 vem para completar e aprofundar essa obra inconclusa. Esse é o conteúdo do Project 2025, um ambicioso plano da direita conservadora que seu principal promotor, Kevin Roberts, definiu como uma “segunda revolução” norte-americana, embora tenha esclarecido que seria pacífica, desde que não enfrente “oposição da esquerda”.
Este projeto implica, de fato, um avanço sobre o equilíbrio de poderes – o famoso mecanismo de checks and balances – previsto na Constituição para moderar especialmente o poder do Executivo. Vale lembrar que, diante da radicalidade da proposta, Donald Trump precisou se distanciar, ainda que tenha funcionado como a “plataforma beta” da campanha republicana.
Embora ainda estejamos no campo das especulações políticas e hipóteses, uma rápida análise dos nomes escolhidos por Trump para ocupar os postos mais relevantes de sua próxima administração permite ter uma ideia das políticas que Washington adotará tanto no plano doméstico quanto na política externa.
De forma geral, comparado com o primeiro mandato de Trump, no qual o “establishment” republicano, os militares e a burocracia estatal cercavam o presidente com “comissários políticos” para controlar danos, desta vez não haverá “adultos na sala”. A hegemonia trumpista sobre o Partido Republicano também se expressa no controle da Casa Branca. A proposta de gabinete, que ainda precisará ser aprovada pelo Senado, será uma combinação de trumpistas leais, novos convertidos e falcões republicanos que não necessariamente são do núcleo do movimento MAGA.
Para o Departamento de Estado, Trump propôs Marco Rubio, senador de origem cubana e representante da direita exilada da Flórida. Rubio é um falcão, um imperialista fervoroso, defensor do endurecimento de sanções econômicas e medidas coercitivas contra China e Irã, adepto da linha dura contra Cuba e Venezuela e aliado incondicional de Israel, assim como Mike Huckabee, indicado como embaixador nesse país. Durante o primeiro mandato de Trump, Rubio atuou como uma espécie de secretário de Estado sombra para a América Latina (uma região sem relevância para a administração republicana), promovendo o fracassado golpe de Juan Guaidó contra Maduro na Venezuela, motivado principalmente pela radicalidade de direita do exílio cubano-venezuelano, que compõe um núcleo duro de sua base eleitoral.Na mira também estará o México, devido às políticas anti-imigração, tarifas e renegociação do T-MEC.
Embora Rubio tenha sido adversário de Trump – e votado a favor de algumas políticas contrárias aos interesses trumpistas, como a legislação que dificulta a saída dos EUA da OTAN –, ele posteriormente alinhou-se à política para a guerra na Ucrânia. De modo geral, é partidário do America First como princípio de política externa, buscando impor os interesses norte-americanos por meio de sanções, guerras comerciais e dissuasão militar, que poderia se transformar em intervenção caso interesses fundamentais estejam em jogo.
O cargo de assessor de segurança nacional será ocupado pelo atual congressista Mike Waltz, outro militante da ala dura anti-China e ex-coronel da Guarda Nacional. Tanto Waltz quanto Rubio, embora tenham posições de extrema direita, são considerados as opções mais “normais” ou “confiáveis” dentro do novo gabinete.
Ressoa novamente o nome de Robert Lighthizer para o comércio, um protecionista radical que já esteve na primeira presidência, e que ficará encarregado da implementação das guerras comerciais e de tarifas que serão, no mínimo, de 60% sobre importações provenientes da China e de 10% sobre importações em geral. Como Secretário de Defesa, foi escolhido Peter Hegseth, um militante fundamentalista da ultradireita cristã, apresentador ultraconservador da Fox News, sem maiores antecedentes militares além de ser veterano das guerras do Iraque e do Afeganistão e de ter servido na prisão de Guantánamo como membro da guarda nacional. Mais do que o próprio personagem, que não está qualificado para gerir o maior orçamento militar do mundo, o relevante é que sua nomeação expressa, como apontou o sociólogo Juan Gabriel Tokatlian, um grau de fricção com os militares.
Hegseth seria encarregado de implementar uma purga em larga escala no Pentágono, que abrangeria não apenas os “militares woke” que apoiam políticas de inclusão e diversidade sexual no exército, mas também os responsáveis pela retirada do Afeganistão e, sobretudo, os generais de três e quatro estrelas que Trump percebe como os principais “inimigos internos” dentro do aparato estatal. Para realizar essa limpeza, seria estabelecido um “conselho de guerreiros” composto por pessoal militar para avaliar e remover aqueles que não se encaixassem ou eventualmente se recusassem a cumprir alguma ordem inconstitucional.
Lembremos que, durante a primeira presidência de Trump, a relação com o Pentágono foi tensa. Em 2017, o Pentágono assumiu o papel de moderador para conter as tendências mais extremas do presidente. Três dos quatro cargos mais importantes do poder executivo estavam ocupados por militares: John Kelly era chefe de gabinete, o general James Mattis era secretário de Defesa, e o tenente-general H.R. McMaster era conselheiro de segurança nacional. Esse interregno terminou mal. Posteriormente, a relação deteriorou-se ainda mais diante da recusa dos militares em intervir em conflitos internos ou apoiar a tentativa de Trump de deslegitimar o resultado das eleições de 2020. Como relata o jornalista Bob Woodward em seu livro Peril, o general Mark Milley, ex-chefe do Estado-Maior, afirmou que Trump é um “fascista”. Caso essa purga se concretize, abrirá o perigoso cenário de politização dos militares, algo que praticamente não tem precedentes. O “trem fantasma” continua somando personagens. Os mais extravagantes são Matt Gaetz, à frente do Departamento de Justiça, um aliado histórico de Steve Bannon, militante do golpe de 2021 e defensor da impunidade para seus perpetradores, acusado de crimes sexuais (abuso de menores e tráfico). E Tulsi Gabbard, uma desertora que passou do Partido Democrata para o trumpismo, comandando a Inteligência Nacional.
No entanto, o mais relevante, sem dúvida, é o cogoverno de Trump com Elon Musk, que, parafraseando uma velha consigna peronista, poderia ser resumido como “Trump no governo, Musk no poder”. Objetivamente, isso representa um salto na degradação da democracia liberal rumo a uma “plutocracia”. As ações de X, Tesla e outras empresas de Musk dispararam (e sua fortuna cresceu ainda mais) com a notícia de sua incorporação informal à gestão do Estado. O magnata mais rico do mundo, junto com Vivek Ramaswamy, outro bilionário e ex-rival de Trump nas primárias republicanas, estará à frente do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, na sigla em inglês, coincidente com a criptomoeda promovida por Musk), um organismo paraestatal proposto pelo próprio Musk, com o objetivo de “desmantelar a burocracia estatal”, cortar gastos públicos, implementar desregulamentações e modificar o esquema tributário. Segundo Trump, a proposta de Musk para enxugar o Estado é o “Projeto Manhattan do nosso tempo”, comparando-a ao desenvolvimento da bomba atômica na década de 1940. O principal interesse de Elon Musk é eliminar qualquer regulação que limite seus negócios e beneficiar-se dos contratos com o Estado, especialmente na área de inteligência artificial e em seu projeto espacial, SpaceX.
A contagem final de votos deu aos republicanos o controle da Câmara dos Representantes, o que significa que, pelo menos até as eleições de meio de mandato em 2026, Trump gozará da soma do poder público: o Executivo, o Congresso e uma maioria conservadora na Suprema Corte. A trifeta do poder trumpista reforça os impulsos bonapartistas que habitam a Casa Branca, o que, por sua vez, sustenta hipóteses sobre uma possível “mudança de regime político” diante da degradação da democracia liberal. Nesse sentido, vários analistas e intelectuais, tanto liberais quanto conservadores moderados, vêm alertando para a possibilidade de Trump avançar rumo a uma ditadura civil em um cenário de polarização social e política crescente.
Além das leituras pessimistas de liberais e constitucionalistas, é fato que a presidência de Trump aparece como uma tentativa de solução “cesarista” para a crise de hegemonia (ou tendências de crise orgânica) aberta pela crise capitalista de 2008, que evidenciou a crise da ordem neoliberal hegemonizada pelos Estados Unidos. A China emergiu como potência concorrente. Ressurgiram tendências protecionistas nos países centrais, e, com o conflito bélico entre Rússia e Ucrânia/OTAN, a guerra retornou ao coração da Europa.
Trump é, ao mesmo tempo, um “sintoma mórbido” e um acelerador dessas tendências. A situação internacional em que ele assumirá pela segunda vez a Casa Branca é muito mais instável e tumultuada do que em 2017. Naquela época, não havia guerras de grande escala, embora houvesse conflitos regionais (desdobramentos reacionários da derrota da Primavera Árabe) e a pendência da guerra no Afeganistão, na qual os Estados Unidos sofreram uma derrota estratégica. Agora, há duas guerras de dimensão internacional: a guerra na Ucrânia e a guerra no Oriente Médio, onde Israel está cometendo um genocídio contra o povo palestino e busca envolver os Estados Unidos em uma guerra direta com o Irã. Além disso, formou-se uma aliança entre China e Rússia que atrai aqueles que caíram em desgraça com o Ocidente — Irã, Coreia do Norte —, a qual analistas chamam de “o bloco dos sancionados”. A promessa de Trump de terminar a guerra na Ucrânia em 24 horas não tem base na realidade. A administração republicana enfrentará o dilema de negociar sem, no entanto, conceder à Rússia uma vitória que represente um triunfo contra o Ocidente (e um ponto a favor da China). Da mesma forma, não há dúvidas de que Trump é um aliado mais próximo de Netanyahu e da extrema direita sionista e religiosa, cujo programa é a ocupação e recolonização dos territórios palestinos. Porém, não está necessariamente no interesse norte-americano ir à guerra contra o Irã. No plano doméstico, a hegemonia dos grandes capitalistas do Vale do Silício que alcançaram as esferas mais altas do poder estatal mais cedo ou mais tarde entrará em conflito com outros setores da classe dominante, dividida assim como o aparato estatal.
O momento de euforia vivido pela “internacional reacionária” (desde Milei até Orbán e Bolsonaro) e o triunfo de Trump não é suficiente para resolver as contradições enfrentadas pelas variantes da extrema-direita, que se alimentam da polarização e, portanto, aprofundam as tensões sociais, políticas e geopolíticas. Em síntese, as batalhas decisivas de classe ainda estão por vir.
A primeira presidência de Trump foi uma tentativa bonapartista instável, que acabou gerando uma das maiores mobilizações da história norte-americana após o assassinato de George Floyd pelas mãos da polícia, o que massificou o movimento Black Lives Matter. Nos últimos anos, têm ocorrido importantes processos de greve (na indústria automotiva, Boeing), lutas pela organização sindical (Amazon, geração U) e, sobretudo, o movimento juvenil de solidariedade com o povo palestino. Enquanto a dinâmica da direita foi a de se radicalizar, o partido democrata atuou como um moderador e um freio à dinâmica de radicalização pela esquerda proposta por esses movimentos que emergem de baixo. Mais uma vez, desempenhou seu papel histórico de “coveiro dos movimentos sociais”. A ala mais “progressista”, representada por Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez, atuou como contenção para os setores mais à esquerda, que relutavam em votar em Kamala Harris devido à sua cumplicidade com o genocídio israelense, apelando para a lógica do “mal menor”. No entanto, a estratégia do “antitrumpismo” mostrou seus limites. A conclusão que se impõe é a necessidade da unidade na luta contra as políticas reacionárias de Trump e a construção de uma organização de esquerda revolucionária, anti-imperialista e socialista.