Revista Casa Marx

Entrevista com Flora Oliveira: “Precisamos abolir a ’reforma trabalhista’”

Redação

Flora Oliveira é advogada trabalhista e pesquisadora da área do direito do trabalho . É também autora do livro "O amargo Doce do Açúcar: Análise Crítica das Ações Penais sobre Trabalho Escravo distribuídas no Estado de Pernambuco nos anos de 2009 a 2015".

1) Na última semana a questão da redução da jornada de trabalho tem sido tema de intenso debate nos locais de trabalho, na imprensa e nas redes sociais, em particular o fim da escala 6×1 – jornada que faz com que os trabalhadores tenham apenas 1 dia de folga. A partir de seus estudos sobre trabalho escravizado no país, poderia nos falar um pouco sobre a relação entre extensão da jornada de trabalho e a herança colonial no capitalismo brasileiro, nesse momento em que se questiona a escala 6×1?

Provocada pelo movimento Vida Além do Trabalho (VAT), deflagrado pelo Vereador do PSOL – RJ Rick Azevedo, a PEC de iniciativa da deputada federal Erika Hilton (PSOL), propõe alterar a redação do artigo 7o, inciso XIII da Constituição Federal, que atualmente permite a duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho, para constar “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e trinta e seis horas semanais, com jornada de trabalho de quatro dias por semana, facultada a compensação de horários e a redução de jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”.

Importante registrar que a escala 6×1 não é prevista pela legislação trabalhista, sendo uma práxis empresarial provocada pela limitação constitucional às 44 horas semanais. Neste regime, se trabalha por 6 dias seguidos e se folga 1, não considerando o tempo necessário ou, ao menos, o tempo possível, para destinar à vida comunitária, à vida social, ao lazer, ao descanso e tantas outras esferas da vida humana que ultrapassam somente o “ter que trabalhar para sobreviver”.

No caso da jornada exaustiva, que constitui-se em hipótese de redução dos trabalhadores e trabalhadoras à condição análoga à de escravo atualmente prevista no artigo 149 do Código Penal brasileiro e especificado em norma ministerial 1, não significa necessariamente que trabalhador/a seja submetido a um longo período de duração da jornada de trabalho, mas a sujeição do/a trabalhador/a a um esforço excessivo ou a uma sobrecarga de trabalho – ainda que em espaço condizente com a jornada de trabalho legal (prevista na Constituição).

Ocorre que, a partir dos relatórios de fiscalização e resgate de trabalhadores da condição análoga à de escravo (pode ser vista aqui) , existe uma sistematizacao de condutas ilegais, como: trabalhadores não têm seus contratos de trabalho registrados; empregadores não fornecem nenhum tipo de equipamento de proteção individual ou coletivo; trabalham em jornadas extraordinárias e sem intervalo para descanso semanal; dormem em locais insalubres, como barracos de lona sem proteção, sem cozinha e banheiro; não têm acesso à água potável.

Nessa realidade, nota-se que o passado escravagista adota um padrão de superexploração para retirar o máximo da força produtiva da pessoa trabalhadora, dentre os quais, a adoção da jornada 6×1 constitui-se em atributo empresarial para retirar o tempo de vida doméstica dos trabalhadores, com a facilidade de usar um regime de duração do trabalho “dentro da lei”.

2) Parte de seus estudos e publicações são voltados para a análise dos trabalhadores por aplicativos. Como é a dinâmica de exploração e jornada de trabalho neste novo setor da classe trabalhadora? Como podemos analisar a PLP 12/2024 (PL dos apps), que foi posto em pauta pelo governo federal mesmo com críticas e rechaço de trabalhadores, sindicalistas e intelectuais?

É evidente a complexidade das questões jurídicas envolvidas no Projeto de Lei Complementar nº 12/2024 (PLP), especialmente no que diz respeito à natureza jurídica da relação de trabalho dos trabalhadores plataformizados.

Os artigos 1º a 3º do PLP são o foco desta análise, pois delineiam a espécie de contrato de trabalho pretendida, o reconhecimento do trabalhador plataformizado como autônomo e a definição da empresa operadora de aplicativo de transporte, entre outros aspectos específicos.

À luz da Constituição Federal de 1988, que preconiza a expansão dos direitos trabalhistas a todos os trabalhadores, independentemente do formato de contratação, surge a necessidade de refletir sobre como o PLP se encaixa nesse contexto. A discussão sobre a ampliação dos direitos fundamentais para além dos limites tradicionais da legislação trabalhista é central nesse debate.

A análise do PLP à luz da CRFB demanda uma abordagem teórica e doutrinária laboral/constitucional, considerando interpretações ampliativas, extensivas ou expansionistas dos direitos trabalhistas. A nova ordem constitucional, inaugurada pelo artigo 7º, proíbe a criação ou manutenção de restrições que impeçam o acesso aos direitos estabelecidos.

No entanto, o texto do PLP levanta questionamentos sobre a aplicabilidade dos direitos relacionados pelo artigo 7º da CF/88 aos trabalhadores autônomos plataformizados. A definição da natureza jurídica dessa categoria de trabalhadores é crucial para determinar seu acesso aos direitos constitucionalmente garantidos.

A PLC, ao permitir que motoristas trabalhem 12 por dia, apenas para uma empresa-plataforma, embora adote uma categoria jurídica “autônomos com direitos” é inconstitucional por ferir a própria limitação de jornada diária.

Sabe-se que os motoristas de aplicativo trabalham 7 dias na semana, de 10h a 12h por dia, para receber um salário líquido de 3,4 mil reais por mês. O que está por trás dessa PLC, chancelada pelo governo Lula – Alckmin, é a continuidade da regulamentação pelas empresas – plataforma, que agora terão a sorte da “lei” para facilitar o que já existe: uma super exploração sem qualquer responsabilidade de quem se favorece do trabalho dos motoristas de apps.

3) A reforma trabalhista de 2017, aprovada por Temer e aprofundada por Bolsonaro, segue em vigor com consequências nefastas. Poderia nos falar um pouco sobre como ela afeta as condições de vida e trabalho da classe trabalhadora, de forma geral, mas também no que diz respeito à intensificação da exploração e extensão da jornada?

O que há – e esse deve ser o ponto central das discussões, se efetivamente quisermos levar a sério a pauta da redução do tempo de trabalho – é uma previsão de possibilidade de compensação de horas extraordinárias por folga, que na prática elimina esses limites legais.

O artigo 7º da Constituição da República não tem só o inciso XIII. Sobre o tempo de trabalho, garante, também: “jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva” (XIV); “repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos” (XV) e “remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal” (XVI). Esses dispositivos foram amplamente discutidos no processo constituinte. Havia a proposta de proibição de realização de horas extraordinárias, por exemplo, que acabou não prevalecendo.

Então, já há garantia de que ninguém deve trabalhar mais de 8 horas por dia ou mais de 6 horas, se houver turno de revezamento, bem como de que deve haver, no mínimo, um dia de folga na semana preferencialmente aos domingos. Se trabalhar além desses limites, deve receber o valor da hora de trabalho com pelo menos 50% de acréscimo, contudo, súmulas, interpretações, entendimentos e alterações legislativas que, desde a década de 1990, vêm banalizando esses limites e, com isso, invadindo, com o trabalho obrigatório, cada vez mais o que sobra de tempo de vida.

Acabo de escrever, acima, sobre a persistência de uma racionalidade escravista. A violência colonizadora nos constituiu como um país, cuja extração de trabalho se deu, como regra, mediante a escravização, e não o pagamento de salário. Extrair tempo sem remunerar ou exigir uma intensidade cada vez maior de trabalho, são elementos comuns aos diferentes países capitalistas. A racionalidade escravista, porém, faz com que mesmo diante de regras de limitação do tempo de trabalho, os poderes de estado se alinhem aos empregadores para encontrar subterfúgios que eliminem qualquer tipo de controle. Por isso, mesmo com o parâmetro constitucional vigente, é cada vez mais difícil encontrar alguém que trabalhe no máximo 8h por dia ou 44h por semana.

Alterar o inciso XIII do artigo 7o da Constituição talvez não seja suficiente.

A banalização da exploração do trabalho fora dos limites estabelecidos na Constituição e na CLT se dá, especialmente, através do sistema de compensação de trabalho por folga.

Em 1988, a redação da CLT sobre a possibilidade de extrapolar a jornada máxima, em “número não excedente de 2 (duas), mediante acordo escrito entre empregador e empregado, ou mediante contrato coletivo de trabalho” (art. 59) tinha como limite “o horário normal da semana” e a jornada máxima de dez horas” (§ 2º do art. 59). Adotado especialmente nas indústrias, esse sistema de compensação estabelecia a possibilidade de jornadas de 8h48min, de segunda a sexta, com folga também aos sábados.

A Constituição, portanto, ao fixar a possibilidade de “redução ou compensação da jornada”, no inciso XIII em que fixa o máximo de 8h de trabalho por dia, tinha uma redação compatível com esse limite: todas as horas porventura trabalhadas além do limite constitucional precisavam ser compensadas por folgas no máximo dentro do mesmo mês.

A Lei 9.601 de 1998, porém, alterou o art. 59 da CLT e a compensação passou a poder ser realizada em até um ano. O pressuposto de compensar a fadiga da semana com o repouso no sábado se perdeu completamente. Não por acaso, o regime passou a ser apelidado de banco de horas, denunciando uma visão econômica do tempo de vida, colocado à disposição do empregador como mercadoria de troca.

A Lei 13.467 de 2017 (mal denominada “reforma” trabalhista) piorou ainda mais a situação. O art. 59 segue estabelecendo que o máximo de horas extraordinárias deve ser duas por dia, mas ganha dois novos parágrafos fixando a possibilidade de acordo individual escrito ou tácito, entre empregado e empregador. E inclui um art. 59-A, que autoriza “acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, estabelecer horário de trabalho de doze horas seguidas por trinta e seis horas ininterruptas de descanso, observados ou indenizados os intervalos para repouso e alimentação”. O parágrafo único ainda refere que a remuneração mensal “abrange os pagamentos devidos pelo descanso semanal remunerado e pelo descanso em feriados, e serão considerados compensados os feriados e as prorrogações de trabalho noturno”.

Precisamos, mais que acabar com a jornada 6×1 é abolir a Lei 13.467/2017.

Doze horas, sem descanso e sem direito à dobra, se houver trabalho aos domingos. Como algo assim pode ser constitucional?

3) Vimos no último período o discurso do empreendedorismo ganhar força, com expressões políticas como a candidatura asquerosa do coach Pablo Marçal para prefeito de São Paulo. Vendo sua presença entre setores da classe trabalhadora, setores da própria esquerda deram um diagnóstico pessimista para a potencialidade dos trabalhadores, e inclusive incorporaram o discurso do empreendedorismo. A amplitude que a campanha contra a escala 6×1 ganhou não aponta limites para a exploração desenfreada, o discurso neoliberal e o diagnóstico unilateralmente pessimista?

Entendo que o debate em torno do fim da escala 6×1 não é novo e ainda chega tarde às mídias, contudo, considerando que vivemos tempos em que o discurso do empreendedorismo ganha protagonismo, uma pauta cara aos trabalhadores assalariados, que denuncia algo que também atinge aos ditos “empreendedores de si”, como o tempo de vida, trás a tona algo que precisamos retomar: nossas vidas não estão em negociação. Precisamos, infelizmente, retornar o discurso sobre duração de jornada, como se estivéssemos no alvorecer da revolução industrial, quando estamos na verdade, precisamos proteger a vida de trabalhadores super exploradores e submetidos a diversas violências dentro do próprio contrato de trabalho, como acidentes, discriminações, burnout, entre outros.

 

NOTAS

 

1. Artigo 24, inciso II da Instrução Normativa MTP no. 2, de 8 de novembro de 2021: Jornada exaustiva é toda forma de trabalho, de natureza física ou mental que, por sua extensão ou por sua intensidade, acarrete violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os relacionados à segurança, saúde, descanso e convívio familiar e social.

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