Revista Casa Marx

A transição energética como uma tarefa socialista

Fabricio Pena

Rosa Linh

As mudanças climáticas resultantes de um sistema capitalista exploratório e predatório já são uma dura realidade em todo o mundo. Diante da catástrofe surgem inúmeras respostas de distintos atores sobre como deveria se dar uma transição energética verde. Simplificando muito, podemos dizer que de um lado estão os defensores de um utópico capitalismo verde; e de outro, os negacionistas das mudanças climáticas. Ambos lados de uma mesma moeda e defensores dos lucros dos grandes capitalistas. Esse artigo procura contribuir com esse debate, analisando algumas das problemáticas atuais que permeiam o tema, apontando a necessidade de uma transição energética sob gestão operária e controle das massas populares e oprimidas, em ruptura com o capitalismo.

A urgência da transição energética em todo mundo se faz presente também no Brasil. A emissão desenfreada de gases de efeito estufa, como CO2, CH4 etc., emitidos em grande escala em processos como a queima de combustíveis fósseis, grandes queimadas, manejo e uso do solo e a atividade agropecuária, aquecem a temperatura média do planeta rompendo a harmonia dos ciclos biogeoquímicos, como o ciclo do fósforo, da água e do carbono – essenciais para a reprodução e permanência da vida em nossa biosfera. Neste momento passamos da marca de 1,5ºC em relação ao período pré-industrial, com recordes de temperatura sendo registrados em todos os cantos do planeta. O Brasil tem um papel importante nesse cenário, em termos de emissão desses gases fica em 6º, mesmo que distante de grandes poluidores como EUA e China. No país, o principal emissor desses gases é o latifúndio, com as grandes queimadas e a pecuária liderando com 77% das emissões. Transporte, energia e mineração aparecem como grandes poluidores, e também como destruidores da capacidade do meio ambiente de absorver esses gases.

Por mais que negacionistas climáticos de toda espécie gritam e esbravejam contra a ciência, fato é que nossa geração está encarando as mudanças climáticas e já está sendo marcada por seus efeitos. Somente em março deste ano, ao menos 10 países registraram grandes enchentes, com milhares de mortos e milhões de refugiados climáticos. No final de abril, o Brasil entrou nessa lista com o Rio Grande do Sul sendo devastado. No momento em que escrevemos esse texto, milhares de pessoas ainda estão tirando lama contaminada de suas casas, ao menos 30 mil estão em abrigos e pelo menos 173 mortes foram confirmadas. Todo um cenário caótico aprofundado pela negligência dos governos, como Leite (PSDB) e o bolsonarista Sebastião Melo (MDB), negacionistas climáticos de primeira linha, assim como pelo agronegócio e a especulação imobiliária que destruíram o estado. E também temos que responsabilizar o governo Lula que segue apostando na destruição do meio ambiente, na exploração de combustíveis fósseis e fez o maior Plano Safra da história para o agronegócio, além de manter o Arcabouço Fiscal que estrangula o orçamento.

A combinação desastrosa entre o aquecimento global, fruto da ação predatória do capitalismo a nível global, a destruição das florestas e biomas no país pelo agronegócio e a política neoliberal dos distintos governos criou um cenário de incertezas para o futuro de toda uma geração. Cada vez mais grandes empresas estrangeiras sugam os recursos brasileiros, como na Petrobrás, onde 54,20% dos lucros são enviados para os cofres de investidores de fora do país. No campo a realidade é semelhante, onde o agronegócio lucra com a destruição da natureza com o extrativismo sem freio. Hoje existe quase uma cabeça de gado por pessoa (186,8 milhões de cabeças de gado em 2024, segundo relatória da DATAGRO Pecuária), a maior parte para exportação, enquanto milhões de brasileiros sofrem com a fome. De tudo que fica no país, diretamente ou arrecadado em impostos, ao menos metade vai para o pagamento de juros da dívida pública, ou seja, para os cofres dos mesmos que lucram com a destruição do país.

O primeiro passo para pensar uma transição energética no Brasil é pensar o controle dos recursos naturais. Palavras bonitas e “verdes” não vão convencer o agronegócio a desmatar menos, tampouco a conter os interesses de lucro dos acionistas na expansão da Petrobrás na Amazônia. Parte desses interesses estão expressos na fala de Lula, quando deixou claro seu interesse em explorar petróleo na foz do rio Amazonas, além do avanço de técnicas ecocídas como o fracking na Amazônia 1, e para isso indicou uma nova presidente da estatal ainda mais alinhada com esses interesses predatórios. Ou mesmo no Plano Safra, onde o governo aposta em injetar cerca de R$ 360 bilhões no agronegócio.

Segundo dados da SEEG de 2022, o desmatamento é a principal causa de emissão de CO2 no país, sendo o agronegócio o principal responsável por essa destruição das florestas e biomas, somando 71,94% das emissões. O setor de energia emitiu 17,79%, indústria e resíduos emitiram 3,37% e 3,93%, respectivamente. Além das emissões de CO2, outro fator central é a destruição das florestas e biomas, poluição dos leitos dos rios, e outros fatores que diminuem a capacidade do meio ambiente de lidar com esses gases. A mega mineração poluidora é um ator central nessa parte, como vimos recentemente em Mariana e Brumadinho. O RS possui a maior reserva de carvão e as duas termelétricas mais poluentes do Brasil – que estavam em vias de serem incentivadas por um projeto comum entre Paulo Paim (PT) e Hamilton Mourão (Republicanos), retirado somente por conta da tragédia no sul.

A matriz energética brasileira e os caminhos possíveis de uma transição

Aqui, é importante nos atentarmos a dois dados, os da matriz energética (considerando todas as formas de energia, de elétrica ao transporte) e a matriz elétrica. Considerando todas as formas de gerar energia no país, a principal fonte é o petróleo (35,7%), seguido pelas biocombustíveis de cana (15,4%), hidrelétricas (12,5%), gás (10,5%), lenha e carvão vegetal (9%), lixívia e outros renováveis (7%), carvão (4,6%), eólica (2,3%), nuclear (1,3%), solar (1,2%) e outras (4,6%). Na energia elétrica, a maior fonte do país é a hidrelétrica, com 61,9% do total. Por mais que o governo ostente a marca de 49% de energia renovável, a maior parte é composto por hidrelétricas e fontes de energia que geram grandes impactos no meio ambiente. No caso das hidrelétricas, a área de inundação necessário causa grande devastação e ameaça diretamente a vida dos povos indígenas que vivem nessas regiões. Mesmo a energia eólica, responsável por 11,9% da energia elétrica no país, causa grande devastação, expulsando comunidades locais, promovendo altos índices de poluição sonora, além da morte de pássaros e destruição do meio ambiente local, como denuncia esse artigo sobre o maior parque eólico da América Latina, localizado em Lagoa Nova-RN.

Relatórios como o do IPCC apontam que a transição energética no mundo está desacelerando, com países imperialistas reativando termelétricas a carvão, ao mesmo tempo que o mercado do petróleo segue sendo preponderante em todos os cantos. Umas dessas fontes renováveis, de baixa emissão de gases de efeito estufa e que poderiam ser exploradas sem impactos é o hidrogênio verde (H2V) e outras formas de biocombustíveis. Porém, para as grandes potências e para os delírios distópicos dos bilionários, o futuro está em buscar Helio 3 na lua para a fusão nuclear e colonizar outros planetas. O fato é que a burguesia também sabe: não existe Planeta B.

A verdade é que a quantidade de energia consumida em uma sociedade baseada na produção irracional de mercadorias é enorme. Para falarmos de uma transição energética que de fato freie e pare o aquecimento global, revertendo seus impactos, é necessário uma reestruturação produtiva de conjunto, ponto que abordaremos mais adiante.

A questão do emprego no centro das mudanças climáticas

Em todo grande empreendimento com severos danos ambientais que os capitalistas e seus governos planejam, junto vem a promessa de geração de empregos e riquezas para o país. Esse é o caso do projeto de exploração de petróleo na foz do Amazonas, no qual Lula faz demagogia de todo tipo. Mas a realidade não segue essa regra. Em primeiro lugar, essa expansão significa um duro ataque aos povos indígenas da região que terão sua existência ainda mais ameaçada. Além disso, diferente do que se promete, a expansão da Petrobrás não gerou novos postos de trabalho, pelo contrário, diminuiu. Em 2012, apenas no sistema Petrobrás, entre efetivos e terceirizados, existiam mais de 620 mil trabalhadores. Hoje, com quase o dobro da produção, são cerca de 455 mil. Cada vez mais terceirizados e menos efetivos, cada vez piores condições de trabalho e mais dividendos enviados para o exterior.

O impacto ambiental, além de gerar danos imediatos aos povos locais e à biodiversidade, gera danos a longo prazo que de primeira vista não são perceptíveis. Mas nós podemos olhar para o caso do RS e tirar lições importantes em relação às condições de vida das maiorias trabalhadoras e de todos os setores oprimidos. Segundo pesquisas, além de quase praticamente o estado inteiro ter sido afetado de alguma forma, de 10% a 20% da indústria gaúcha foi totalmente destruída. São inúmeras denúncias de demissões logo após o retorno dos trabalhadores aos seus locais de trabalho. Uma crise brutal que ainda não se tem dimensão exata. E assim como no caso da Petrobrás, as prefeituras e o estado vêm ampliando a terceirização da assistência social aos atingidos, com redes ligadas às igrejas.

Estudos apontam que o Brasil tem um potencial enorme para combustíveis renováveis e de baixa emissão de CO2, como o hidrogênio verde (H2V), por causa da disponibilidade de terra e água doce, para além de outras formas de energia renovável e de baixo carbono (com seus respectivos impactos ambientais a serem levados em consideração), como a energia eólica, hídrica, solar, oceânica, geotérmica e de biomassa. Mesmo limitado pela lógica de um mundo onde o petróleo é centro da economia, estudos apontam que o hidrogênio verde poderia gerar centenas de milhares de empregos, mesmo com baixo investimento relativo. O que obviamente é contido pela lógica capitalista do lucro acima das vidas.

Ao contrário da propaganda, o que o capitalismo tem a oferecer é mais destruição e tragédias ambientais. Por isso, ao tratar de transição energética, é necessário apontar para uma reestruturação econômica em todo o globo, com os trabalhadores à frente e colocando os recursos existentes para atender as necessidades humanas, e não o lucro. A reconstrução das cidades destruídas pelas enchentes, assim como dos biomas destruídos, deveria ser o objetivo de um grande plano de obras públicas, envolvendo amplos setores desempregados. Assim como encontrar alternativas energéticas em aliança com os povos indígenas e quilombolas, com ambientalistas e ativistas que poderiam apontar o rumo da construção de uma sociedade mais harmônica com o meio ambiente.

A dita transição energética “justa” e o capitalismo verde

As saídas apresentadas pelas grandes potências imperialistas para o aquecimento global são tão falsas quanto a nota de R$ 3. Não só as promessas das COPs da ONU não foram cumpridas, como 50% das emissões totais de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera desde a revolução industrial se deram a partir da promulgação do Protocolo de Kyoto em 1997, que firmava compromissos “mais rígidos” para redução das emissões, ao qual nem o imperialismo dos EUA, nem a burguesia reacionária da China aderiram; a curva mais acentuada de crescimento de emissões de GEE se deu a partir do Acordo de Paris em 2015, com queda apenas durante a pandemia, na qual se estabelecia metas para que não se ultrapassasse uma temperatura global crítica de 1,5ºC com relação à era pré-industrial – metas inclusive pensadas apenas para que não se comprometesse substancialmente as taxas de lucros dos capitalistas (COP28: a farsa do multilateralismo em um mundo mais dependente dos combustíveis fósseis). Outra demagogia burguesa foi a criação do mercado dos créditos de carbono e as finanças verdes, gerando um novo ramo de negócios em torno do aquecimento global, completamente inerte e mantendo a lógica poluidora estrutural.

O mesmo serve para o Green New Deal, defendido demagogicamente pela dita “ala esquerda” do imperialista Partido Democrata dos EUA, e apoiado por uma série de correntes neorreformistas pelo mundo como é o caso do PSOL no Brasil, que consiste em uma série de medidas que almejam uma transição energética para combustíveis limpos e alguns aspectos de defesa de direitos trabalhistas, mas baseado no financiamento bilionário para as grandes empresas responsáveis pelo ecocídio atual promoverem essa transição. Como se a Shell estivesse interessada em abandonar a extração de petróleo – nada mais utópico. São os EUA, principal país imperialista do mundo, o que mais lucra com exploração de petróleo em países da periferia do sistema, como o Brasil, aplicando golpes e atacando direitos trabalhistas para explorar mais. Além disso, grande parte dos combustíveis fósseis apropriados pelos EUA serve para a guerra, como o genocídio de Israel na Palestina.

No Brasil, o governo de frente ampla Lula-Alckmin foi eleito com um discurso em defesa do meio ambiente. Como já demonstramos anteriormente, era pura demagogia. Chamou Marina Silva para o Ministério do Meio Ambiente, a mesma que é patrocinada pelo Itaú e Natura, empresas que lucram com a devastação da Amazônia. O ambientalismo de Marina Silva, aplaudido inclusive pelo PSOL, que aliás faz parte de uma federação com a REDE, é mais uma faceta do capitalismo verde que acaba maquiando a realidade e permitindo a destruição do meio ambiente em nome do lucro de grandes empresas imperialistas.

Do concreto ao abstrato, e do abstrato novamente ao concreto

O conceito de metabolismo (Stoffwechsel) nos ajuda a identificar concretamente a manifestação da alienação da natureza e sua recíproca com a alienação do trabalho, aparecendo de duas formas complementares na obra de Karl Marx:

“[Marx] utilizava o conceito tanto para se referir à interação metabólica real entre a natureza e a sociedade através do trabalho humano (o contexto em que habitualmente ele se utilizava em suas obras), como em um sentido mais geral (especialmente nos Grundrisse), para descrever o conjunto de necessidades e relações, complexo, dinâmico, interdependente, que se originava e se reproduzia constantemente, em forma alienada, sob o capitalismo, e também a questão da liberdade humana que suscita. Tudo isso podia considerar-se relacionado com o modo pelo qual o metabolismo humano com a natureza se expressava através da organização concreta do trabalho humano. O conceito de metabolismo adotava um significado ecológico específico e um significado social geral” 2.

Dessa forma, esse conceito permite expressar a relação humana com a natureza tanto como relação que inclui as “condições impostas pela natureza” e a capacidade dos seres humanos de afetar esse processo, sendo parte orgânica e intrínseca dessa mesma natureza. Como diria Marx nos Grundrisse, há um processo histórico, levado até o final pela contradição trabalho assalariado e capital, de separação entre as condições naturais da existência humana, com essa existência ativa, na apropriação humana da natureza. Nesse sentido, o que constata o argumento presente em “O Capital”, ao tratar da degradação do solo pela agricultura capitalista, nos é bastante pertinente:

“A produção capitalista, portanto, não desenvolve a técnica e a combinação do processo social de produção senão socavando, ao mesmo tempo, os dois mananciais de riqueza: a terra e o trabalhador” 3.

Fazendo referência ao químico alemão Justus von Liebig e sua extensa pesquisa sobre química agrícola, Marx percebe como o sentido de ser do capital, em sua ânsia de extrair mais-valor, tem por necessidade deteriorar as condições de reprodução da natureza, como a perda de fertilidade do solo neste caso, assim como o processo de invenção de novas técnicas fizessem avançar as forças produtivas em sua época, eram alienadas até a medula num sentido tanto anti-operário, como anti-ecológico. Na época imperialista, em que o capitalismo já se esgotou historicamente, essa constatação é ainda mais severa.

Portanto, uma característica necessária de uma transição energética é que ela deve ser integral, isto é, abranger o conjunto da economia, da forma pela qual a sociedade humana produz e reproduz a vida social, pavimentando o caminho para uma sociedade que regule racionalmente o seu metabolismo com a natureza colocando sob controle coletivo dos produtores livremente associados. Em outras palavras, quando nós comunistas falamos de transição energética, estamos falando da luta anticapitalista e revolucionária pelo comunismo. Além disso, não apenas pelo fato evidente de que o aquecimento global é um dado mundial, mas também pela condição estrutural e, portanto, internacional do modo de produção capitalista, de suas cadeias de valor e circulação da economia, uma transição energética plena e efetivamente verde, outra característica imprescindível, só pode se dar com a derrota final do imperialismo e da ordem capitalista em detrimento de uma sociedade mundial sem Estado e sem classes.

Nesse sentido, os comunistas defendem diversas medidas de ruptura com o imperialismo que devem ser levadas à cabo pela luta da classe trabalhadora e dos setores oprimidos, passando pelo monopólio estatal do comércio exterior, o não pagamento da dívida pública, a realização da reforma agrária radical com expropriação dos latifúndios, estatização das grandes empresas sob gestão operária e controle popular. Essas demandas, na lógica do Programa de Transição de Trótski, permitem fazer uma ponte com as questões imediatas dos explorados e oprimidos e a necessidade da revolução, explicando popularmente como a efetivação da independência nacional do imperialismo só pode se dar de maneira independente de sua própria burguesia. As massas já sentem a necessidade de uma resposta para a questão climática. E no transcorrer da luta de classes, estará colocado um horizonte de classe diametralmente oposto de como manejar o metabolismo social com a natureza: na lógica predatória e degradante de tratar os bens naturais como mercadorias, ou da consciência e racionalidade, colocando toda tecnologia e ciência disponível para isso, elevar e libertar a qualidade e a experiência de vida humana, bem como a produtividade do trabalho, de maneira harmônica com a natureza.

Ao tratarmos do controle operário da produção fica evidente essa questão. Por exemplo, hoje a Petrobrás exporta seus bilionários dividendos para os acionistas imperialistas e a recíproca com a natureza é o agravamento do aquecimento global com a exploração de petróleo e combustíveis fósseis. Com uma Petrobrás 100% estatal e sob gestão dos petroleiros e controlada pela população, junto de especialistas das universidades públicas, organizações ambientais e comunidades tradicionais, é possível garantir os empregos ameaçados com a privatização, ao mesmo tempo que é a única forma de organização produtiva capaz de colocar seriamente a questão da transição energética. Ainda hoje é bem difundida a crença, suplantada pelas declarações de Lula, de que o Brasil tem “o direito de poluir” para se desenvolver, uma vez que é uma semi-colônia e não polui tanto como a China, a Europa ou os Estados Unidos. De que o multilateralismo sul-sul, com o eixo Rússia-China, ou o ingresso do Brasil na OPEP+, são formas de contrabalançar o poderio e ingerência estadunidense. Esse argumento adia até o nunca a transição energética urgente e necessária. É verdade que, uma vez com uma Petrobras verdadeiramente das e dos trabalhadores e da população, os trabalhadores se verão com uma questão concreta: como subsidiar a demanda energética de um país que precisa se desenvolver em termos de infraestrutura, tecnologia, saúde, educação, dentre inúmeras outras áreas, além de dar emprego e o que comer à milhões de desempregados, e ao mesmo tempo não prejudicar ainda mais a já bastante degradada relação do Brasil com seus ecossistemas e não jogar ainda mais água no moinho do aquecimento global com emissões estrondosas de gases de efeito estufa.

Entramos aqui em um debate aberto dentro da ecologia socialista entre aqueles que advogam pelo decrecionismo, corrente marcada por uma postura de necessária redução e destruição de forças produtivas sob bases socialistas para dar fim às mudanças climáticas, e os ecomodernistas ou ecofuturistas, pautados por uma perspectiva de fazer avançar os avanços técnicos, tecnológicos e científicos no sentido de catalisar uma transição energética socialista. Ambas perspectivas possuem pólos positivos e corretos, como a correta postura dos decrecionistas de que é necessário proibir uma série de agrotóxicos danosos para o meio ambiente e os seres humanos, ou mesmo o fracking, assim como tomar medidas urgentes de redução do consumo e produção em certos setores em vias de superar dialeticamente o aquecimento global em chave revolucionária; enquanto o ecomodernismo acerta ao afirmar que, com o saldo acumulado pela humanidade em termos de tecnologia e ciência, já é possível resolver, sob bases superiores ao capitalismo, questões tangentes como a fome, o saneamento básico e a distribuição e produção de energia. Contudo, também é verdadeiro que não se trata simplesmente de um governo soviético decretar o fim da produção de petróleo e gás da noite para o dia em uma economia dependente dessa matriz, da mesma forma que existem inúmeras técnicas e tendências nas hard sciences que projetam e atuam diretamente no sentido da degradação natural.

Por isso, falamos de transição energética integralplena e efetivamente verde. Não basta romper com os acionistas imperialistas e colocar a Petrobras sob gestão operária, é preciso avançar para liquidar com o agronegócio capitalista, ou seja, socializar a propriedade dos meios de produção e planejar democrática e racionalmente o metabolismo com a natureza em vias de abolir os combustíveis fósseis. Integral porque precisa ser completa, totalizante, abarcando o conjunto das formas de produção e reprodução da vida social; plena porque precisa conter uma dinâmica integrada e harmônica do metabolismo natural e social; efetiva no sentido de só poder ser realizada sob a ruptura radical com o capitalismo.

Essa dinâmica não se encerra no chão das refinarias e das indústrias, é ali que apenas começa. Diferentemente da mentalidade patronal da ideologia burguesa, marcada pelo racismo e o colonialismo, uma transição energética só pode ser levada à cabo em aliança e controle desta pelos povos originários, camponeses pobres, trabalhadores rurais, organizações ambientais, cientistas. A hegemonia operária sob as massas oprimidas no quesito ambiental só pode se sustentar na medida em que incorporar esses setores no ativo controle de qualidade, rompendo a forma reificada e individualista das relações burguesas, e abrindo caminho para a mais ampla solidariedade e respeito pela diversidade. Será um exercício ambicioso de aplicação das leis da dialética materialista à vida produtiva, baseada em aproximações sucessivas reguladas insistentemente por esses setores, evitando qualquer tipo de “devastação ambiental sob controle operário”, um tipo de caricatura obreirista feita do marxismo, muita mais condizente com o “controle burocrático e anti-ecológico” stalinista da produção.

Um chamado à luta e organização pela libertação humana e natural

Em sua tese de doutoramento, Diferença da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro, Marx desenvolve de forma criativa seu argumento contra quaisquer perspectivas teleológicas deterministas e mecanicistas da natureza em sua crítica à Demócrito. Segundo Aristóteles, o raciocínio do atomista foi pressupor que o movimento indica o vazio no qual a matéria se desloca, mas considerando que ela se divida em infinitos pedaços, ela não possuiria consistência e não haveria nem movimento nem realidade, é então que a figura do átomo aparece. Ainda que corretamente afirmando ser a natureza toda composta por quantidade de matéria, sua concepção de movimento limita-se à realidade objetiva do átomo, de que este ontologicamente possui um sentido de movimento específico para tornar a realidade consistente e possível. Por outro lado, Epicuro irá se apoiar nessa ideia para expor a noção de mortalidade de todas as coisas e da liberdade intrínseca da natureza. Tudo perece, transforma-se, está em constante movimento, essa é a condição primeira da realidade; isso só é possível se, nesse próprio movimento, existir o imprevisível, o desvio, a contradição. Diferentemente do filósofo helenista, Marx, na medida em que a história humana é parte indissolúvel da história natural, entenderá que não basta contemplar a realidade, todavia é preciso transformá-la pela raiz. Trótski, por sua vez, em “Sobre as questões da vida cotidiana” versa como só é possível construir uma sociedade socialista se se estabelece um “desejo íntimo de auge cultural” nas massas, torná-las ativas e sujeitos da própria história coletivamente. Uma relação harmônica com a natureza, totalizante, dialética, materialista, só é possível mediante a vitória da revolução socialista mundial e um despertar genuíno, ativo e coletivo da liberdade humana, seus erros e acertos na gestão do metabolismo sócio-natural, da inserção da racionalidade no caos da economia.

O processo de dissolução do Estado-comuna, como coloca Lênin em “O Estado e a Revolução”, passa pela ideia de absorção total da sociedade civil pelo Estado, de forma a tornar o mais rotativo, participativo e ativo possível o papel de todas e todos nos assuntos públicos, até o ponto em que se estabeleça, mediante o avanço e integração mundial das forças produtivas, a totalidade da sociedade como uma associação de produtores livres à nível global. O avanço das forças produtivas e sua internacionalização com a globalização neoliberal geraram um ônus ecocída profundo, contudo coloca as bases para uma profunda racionalização e planificação economia, sanando a fome com avançadas técnicas de agroecologia, produção de alimentos saudáveis e sem precisar de crueldade animal; provimento de energia sustentável, muito além do necessário atualmente, com formas ecológicas de organizar e realizar a fusão nuclear, o hidrogênio verde, as hidrelétricas, etc.; uma rede global, baseada em tecnologia de ponta como a IA, IoT, semicondutores e microchips, que não servirá à guerra, mas ao aperfeiçoamento de modelos climáticos tendenciais de monitoramento, provendo base para um banco de dados público e alimentado interativamente por todos os trabalhadores, guiando as necessárias ações de mitigação e adaptação. Em um mundo assolado pela Guerra da Ucrânia, o genocídio na Palestina, catástrofe climática, reatualiza-se a perspectiva da época imperialista de crises, guerras e revoluções, na qual a disputa pelo tempo de vida, expoliado pelos imperialistas na extração de mais-valor e na devastação ambiental, está colocada objetivamente a possibilidade e necessidade de superação dialética do aquecimento global, isto é, não é possível voltar a seta do tempo ao contrário para uma biosfera sem as já permanentes consequência da crise ambiental – como a extinção de espécies, elevação do nível dos mares, etc. -, todavia é possível (e necessário) o desenvolvimento das forças produtivas no sentido de reestabelecer o equilíbrio nos ciclos biogeoquímicos terrestres.

Com a redução da jornada de trabalho, a classe operária terá direito e tempo para se dedicar à ciência e à cultura, podendo adentrar nos grandes debates da ciência contemporânea sobre a climatologia, agronomia, física, psicologia, astronomia, ecologia etc. Sem o desejo autêntico de liberdade, tomado aqui no sentido holístico, isto é, totalizante com a natureza – a realização e aprimoramento da experiência humana será fruto de uma sociedade de abundância, em exuberância na diversidade humana, científica, cultural e social; portanto também de uma natureza abundante, biodiversa, preservada e em equilíbrio homeostático. Combinar a curiosidade e audácia da exploração das profundezas do oceano, de formas de energia limpas, das fronteiras intergalácticas e de vida em outros planetas, deturpada pelas utopias (e distopias) reacionárias dos capitalistas, com o senso solidário e, portanto, superior e finalmente humano de preservar e coevoluir plenamente com a natureza – é isso o que pode dar caminho a uma vida mais cheia de sentido e felicidade.

 

Notas de Rodapé
[^1]: Fracking, ou fraturamento hidráulico, é uma técnica que possibilita a extração de combustíveis líquidos e gasosos do subsolo, por meio da injecção de alta pressão de uma mistura de água, propante (areia ou outros material equivalente) e diversos produtos químicos, com objetivo de ampliar as fraturas e fissuras existentes no substrato rochoso que encerra petróleo e gás natural. Há uma série de impactos ambientais graves nesse processo, desde contaminação da água, ar e solo, bem como contaminação de aquíferos com gás metano, indução de atividade sísmica, e contaminação radioativa
2. FOSTER, John Bellamy. La Ecologia de Marx, p.217. Ediciones IPS, 2022
3. MARX, Karl, El Capital, Siglo XXI. México D.F., 1979, tomo I, vol 2, pp. 612.611
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