Patricia Galvão
Há algumas semanas, o deputado de extrema direita do PL, Sóstenes Cavalcanti apresentou o projeto de lei 1904 que altera alguns artigos do código penal brasileiro, os artigos 124,126,127 e 128, e equipara o aborto após a 22ª semana ao crime de homicídio. Isso significa que quem praticasse o aborto, mesmo nos casos admitidos pela lei, como em casos de estupro, estaria sujeito a passar 20 anos na prisão. Meninas menores de 18 anos cumpririam medidas socioeducativas de acordo com o PL. Para efeitos de comparação, o crime de estupro tem pena máxima de 15 anos, mesmo em casos onde a vítima é uma criança. A comparação não acontece por acaso. Para justificar a absurda proposta de lei, seus autores apresentaram uma série de casos onde abortos legais foram praticados após a 22ª segunda semana, buscando “convencer” o interlocutor da “justeza” da sua demanda. E pasmem! Todos os casos apresentados se tratam de gravidez infantil, onde o estupro é presumido.
Durante o governo Bolsonaro, veio à tona o caso de uma criança de 11 anos que foi sistematicamente abusada por um familiar e que, tão logo atingiu a menarca, engravidou do seu violador. O então recém-criado Ministério da Mulher, da Família e de Direitos Humanos, sob o comando da reacionária pastora Damares Alves, fez de sua missão primordial combater o que os bolsonaristas chamam de ideologia de gênero e elegeu essa criança como seu principal alvo. Na prática o combate à ideologia de gênero se dava contra as mulheres que ousaram gritar Ele NÃO e suas filhas, através do reacionário projeto Escola Sem Partido e campanhas do Ministério de Damares. Assim, Damares Alves e seu secto perseguiram a menina tentando obrigá-la a ser mãe aos 11 anos do filho de seu estuprador. A menina, vítima do Estado e da família, teve que realizar o aborto após a 22ª semana e foi chamada de assassina por aqueles que diziam “defender” a vida.
Esse caso, que ganhou projeção internacional, é citado pelo deputado Sóstenes Cavalcante no seu PL para defender seu argumento. Para defender o indefensável: não importa se meninas, mulheres ou pessoas que gestam, no capitalismo quem manda no corpo delas é o patriarcado, seus patrões e a Igreja. Nenhum direito é sagrado e toda infância será profanada. Abortar é crime, assim como nascer mulher.
Só em 2022 mais de 14 mil meninas entre 8 e 14 anos foram mães 1 . Em 2023 o número apresentou queda, mas ainda assim bastante elevado, chegando a mais de 12,5 mil. Mesmo a lei considerando como estupro de vulnerável quaisquer relações sexuais com menores de 14 anos, a prática da justiça é outra. Conseguir realizar um aborto legal no país depende de muito esforço da vítima, revitimizada sucessivamente ao peregrinar por delegacias, hospitais e tribunais para conseguir exercer esse direito. Essa peregrinação é ainda mais custosa à criança que carrega a responsabilidade de conseguir denunciar o abuso, na quase totalidade dos casos praticado por um familiar ou amigo da família, ou ter a gravidez notada por um adulto. Quando a gravidez é constatada, frequentemente já se passaram mais de 22 semanas de gestação.
Juízas como Joana Ribeiro Zimmer tentam dissuadir crianças a seguir com uma gravidez fruto de um abuso, sobrepondo o direito de um feto sem consciência ao direito de uma criança real vítima de uma violência abominável. Ou chamam de “sexo entre menina e padrasto” oestupro de uma criança de 12 anos. Legisladores como o pastor Silas Malafaia acusam meninas de 10 e 11 anos de seduzirem homens adultos, invertendo os papéis de vítimas e algozes. Líderes evangélicos defendem que o pai seja o primeiro beijo da filha, antes de qualquer outro homem, reivindicando a tradição primitiva patriarcal, mas em vigor, do pai ser o dono da filha.
“Igualdade perante a lei, não é igualdade perante a vida”, afirmou Lênin 2 . No capitalismo a lei, na prática, serve para assegurar que o registro escrito de um direito tem validade de acordo com os interesses da classe dominante. Um exemplo claro de que o sistema capitalista não se preocupa em “fazer valer” os direitos conquistados arduamente pelas massas é o aborto nos casos legais. De acordo com Art. 128 do Código Penal – Decreto Lei 2848/40:
Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54)
Aborto necessário
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
A ADPF 54 de 2012 acrescentou a garantia a gestantes de fetos anencéfalos do direito de interromper a gravidez.
São apenas 4 Hospitais no país que fazem o aborto legal acima de 20 semanas de gestação. São Paulo, a metrópole pulsante e a cidade mais rica do Brasil, teve o serviço fechado no Hospital Nova Cachoeirinha, único que realizava o procedimento na cidade por mais de 30 anos, fechado pelo prefeito bolsonarista Ricardo Nunes (MDB). Marta Suplicy (PT), vice de Boulos para a prefeitura de São Paulo, ainda era do MDB e secretária de relações internacionais de Nunes na época e até o momento não deu um pio sobre o PL 1904 até o fechamento deste artigo.
Nesta semana mais um caso de estupro de menor foi noticiado e o fechamento do serviço de aborto no Hospital Nova Cachoeirinha para casos acima de 20 semanas levou a uma menina de 14 anos, moradora da Grande São Paulo, a ter que viajar a Salvador, na Bahia, para realizar o aborto legal. Ela foi estuprada pelo companheiro da avó e quando contou a mãe e buscou ajuda já havia se passado 28 semanas. Depois de marcar a cirurgia para interromper a gravidez foi informada que o hospital já não fazia mais o procedimento. Só foi possível fazê-lo em Salvador na 31a. semana de gravidez.
Treze anos do governo do PT: uma breve retrospectiva para refrescar a memória dos defensores da Frente ampla
O governo Lula, de 2002 a 2010, firmou acordos com o Vaticano que salvaguardam as propriedades de posse da Igreja, seu caráter jurídico e seu controle sobre a educação, inserindo o ensino religioso à grade curricular do ensino básico, favorecendo o catolicismo apoiado numa suposta liberdade religiosa em detrimento a laicidade do Estado.
Artigo 11
A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa.
§1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação.
Mesmo se considerássemos o ensino “laico” de uma mitologia de determinada religião, podemos afirmar com certeza absoluta que religiões de matizes africanas, considerando que o Brasil é o maior país negro, em números absolutos, fora do continente africano, nunca foram objetos de estudos nas aulas de ensino religioso.
Para agradar a bancada evangélica, o leilão dos direitos dos oprimidos vendeu para o pastor Marco Feliciano a comissão de direitos humanos a preço de acordos mascarados de governabilidade. Para eleger Dilma como sucessora de Lula em 2010, ela lançou mão de uma epístola dirigida aos setores conservadores, a famigerada Carta do povo de Deus.
2- Sou pessoalmente contra o aborto e defendo a manutenção da legislação atual sobre o assunto;
3 – Eleita presidente da República, não tomarei a iniciativa de propor alterações de pontos que tratem da legislação do aborto e de outros temas concernentes à família e à livre expressão de qualquer religião no País
(…)
5 – Com relação ao PLC 122 [que criminaliza a homofobia – grifo nosso] , caso aprovado no Senado, onde tramita atualmente, será sancionado em meu futuro governo nos artigos que não violem a liberdade de crença, culto e expressão e demais garantias constitucionais individuais existentes no Brasil;
6 – Se Deus quiser e o povo brasileiro me der a oportunidade de presidir o País, pretendo editar leis e desenvolver programas que tenham a família como foco principal …
Se algum incauto não acredita nos alertas que fazemos, de que é a conciliação de classes fortalece a extrema direita, as palavras de Dilma não deixam dúvidas sobre o caráter dos governos petistas em relação à legítima e elementar demanda do direito ao próprio corpo. Nesses 13 anos, a bancada parlamentar do PT não apresentou um projeto de lei sequer em defesa desse direito. Agora, o governo de Frente Ampla de Lula-Alckmin, este último muito amigo da Opus Dei 3 , prelazia católica fundamentalista, arraigada aos princípios mais reacionários do catolicismo, aprofunda os conchavos e acordos com a bancada da Bíblia, junto à da Bala e do Boi, as três muito parecidas nos seus interesses tanto quanto na sua constituição. Para aprovar ataques como o Arcabouço fiscal idealizado pelo ministro petista Fernando Haddad e articulado com Arthur Lira, que agora havia aprovado urgencia para o PL 1904 e só retrocedeu pela enorme repercussão negativa, rifaram negros, mulheres, LGBTQIAP+, indígenas e a juventude.
Passou o Marco Temporal, um ataque sem precedentes na luta dos povos indígenas pela demarcação de terras. Tarcísio de Freitas, bolsonarista do Partido Republicanos e governador de São Paulo, ganhou o maior cheque para seguir com as privatizações, às custas de sangue negro derramado na maior chacina dos últimos anos. Além de sancionar o RG transfóbico de Bolsonaro, um retrocesso, manteve o Brasil com o infame título de campeão em assassinatos de pessoas trans, título ostentado pelo 15° ano consecutivo. Sancionou e colocou em curso acelerado o NEM (Novo Ensino Médio) e os ataques às universidades federais.
Ainda na campanha para as eleições de 2022 Geraldo Alckmin se colocou como porta-voz da chapa dirigindo-se aos setores conservadores, numa divisão de tarefas nos moldes good cop, bad cop 4], assegurando que:
“O povo precisa ter todas as informações. Então, aborto, o presidente Lula é contra, eu sou contra. Ele foi presidente oito anos e não mudou lei nenhuma.”
Depois de um silêncio ensurdecedor e uma enxurrada de cobranças dos setores progressistas, Lula dignou-se a se manifestar pelo Twitter:
Eu, Luiz Inácio, sou contra o aborto. Mas, como o aborto é uma realidade, precisamos tratar como uma questão de saúde pública. Eu acho uma insanidade querer punir uma mulher vítima de estupro com uma pena maior que um criminoso que comete o estupro. Tenho certeza que o que já…
— Lula (@LulaOficial) June 15, 2024
O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha afirmou que “Não contem com governo para mudança na legislação de aborto” num aceno não verdadeiramente aos autores do PL 1904, ja que diga-se de passagem não é verdade, pois já contou com a ajuda do governo, mas principalmente ao movimento de mulheres: o aborto não será legalizado.
A urgência do PL 1904 foi aprovada com anuência do PT. Arthur Lira, aliado do governo nos principais temas que atacam os trabalhadores, inicialmente planejou indicar como relatora do PL a deputada petista Benedita da Silva, evangélica vista como moderada no sentido da anti-radicalidade frente a pauta dos “costumes”. Mas a enorme reação vinda das ruas e o rechaço imenso que o PL atingiu nas massas, levou Lira a recuar ainda mais. O tema teve tamanha repercussão que até mesmo na programação de domingo à tarde, voltada para a família brasileira, no programa comandado pelo direitoso Luciano Huck, o PL foi rechaçado pelo apresentador ao vivo.
O PSOL se mantém subordinado à agenda petista dentro e fora do congresso, com alianças costuradas seguindo a cartilha da frente ampla e apoio majoritário a projetos reacionários como o PL da Uberização e o próprio Arcabouço fiscal, mesmo que não tenha votado no Congresso por esse ataque.
Em 2015, o então deputado do PSOL Jean Wyllys chegou a protocolar um projeto pela legalização do aborto (PL882/2015). No entanto, mesmo o PSOL abandonou o PL, limitando-se em defender a descriminalização com a apresentação da ADPF 442 no STF em 2018, o que também revelava suas ilusões no Judiciário brasileiro. Agora, em 2024, o partido mais uma vez deixa de lado a pauta pelo direito ao aborto legal. Arquivar serve para enterrar o PL, o que é fundamental. Mas é preciso ir por mais e lutar pela legalização. A cartunista Laerte foi certeira ao publicar uma charge na Folha de São Paulo, em 20 de junho:
O pré-candidato a prefeito de São Paulo, Guilherme Boulos, tem seguido a cartilha da Frente Ampla, tal qual o governo Lula-Alckmin. Além da sua aliança com Marta Suplicy para a construção de uma chapa viável para derrotar Ricardo Nunes, o deputado psolista já se sentou com diversos setores da direita e extrema direita. Um desses que já tomou café com Boulos é Alexandre Giordano ex-PL e atualmente no partido do bolsonarista Ricardo Nunes (MDB), suplente do Major Olímpio. Além deles, ensaiou uma aliança até com Datena. Com empresários e partidos como o PMB (Partido da Mulher Brasileira, que é contra o direito ao aborto), além da federação com a Rede Sustentabilidade de Marina Silva, outra anti-aborto, é que o PSOL pretende combater aqueles que odeiam as mulheres?
O legítimo direito ao aborto legal irrestrito só pode ser alcançado através da luta nas ruas, com o movimento de mulheres aliando-se à luta das mulheres trabalhadoras e sua classe. A composição dos atos, com muitas jovens mulheres à frente, mostram que há uma enorme potência pronta para explodir. As entidades estudantios como a Umes, Ubes e UNE, os DCEs precisam construir com força a luta pelo direito ao aborto. As grandes centrais sindicais como a CUT e a CTB precisam colocar sua força em movimento, pois são as mulheres trabalhadoras as que mais sofrem com os ataques da extrema-direita machista e misógina. É preciso pautar o direito ao aborto em cada local de trabalho e estudo, confrontando as visões mais conservadoras arraigadas na consciência dos trabalhadores para mostrar como o controle do corpo da mulher serve aos interesses daqueles que nos exploram.
Nos atos contra o PL que rapidamente se espalharam pelo país, vimos multidões de jovens mulheres e pessoas com útero tomando as ruas. Elas que tiveram a educação sexual negada nas escolas graças a projetos reacionários como o Escola Sem Partido e mesmo pela própria precarização do Novo Ensino Médio, ao mirar o futuro, não desejam carregar o mesmo fardo que suas mães e avós que por décadas foram silenciadas pelas igrejas e pelos governos e que muito provavelmente praticaram o aborto de forma clandestina, pois as estatísticas mostram que 1 em cada 7 mulheres acima de 40 anos já realizou um aborto pelo menos uma vez na vida. O patriarcado não cairá por obra de uma lei ou do acaso, ele precisa ser derrubado com a força da luta nas ruas. O futuro das meninas merece que lutemos hoje pelo seu porvir.