Revista Casa Marx

A luta pelo direito ao aborto legal no Brasil da frente ampla e as lições do Fora Cunha

Odete Assis

Milhares tomaram as ruas contra o PL da grazidez infantil, mais de 60% da população se colocou contrária a esse projeto reacionário. Impusemos pela luta que a direita recuasse. Mas o direito ao aborto segue sob permanente ataque. Lula e o PT fortalecem nossos inimigos com sua política de conciliação e distintas alas do regime declaram que a lei atual já é suficiente, enquanto milhares seguem morrendo por abortos clandestinos ou tem inúmeras dificuldades para ter acesso ao direito que já está previsto na lei. Nossa tarefa agora é potencializar a força que se expressou nas ruas para derrotar de uma vez por todas esse PL e conquistar o direito ao aborto legal para todes.

Viemos de semanas marcadas pela tragédia capitalista no Rio Grande do Sul, pelo avanço de pautas conservadoras e reacionárias no Congresso Nacional, enquanto Lula e a Frente Ampla atacam a greve da educação federal, para manter sua política neoliberal de ajuste com o Arcabouço Fiscal, e dá bilhões para o agronegócio, para os militares, os juízes e as polícias (todos base do bolsonarismo). Dentro desse contexto, a rápida resposta de mobilização contra o PL 1904 fez a extrema-direita e Lira recuarem, contudo, esse direito tão elementar para a vida das mulheres e pessoas que gestam segue sob permanente ataque. Dentro do movimento de mulheres agora se discutem diferentes estratégias de como seguir a luta e é muito comum as comparações com a luta contra Eduardo Cunha, o que torna necessário esse debate.

A política de conciliação de Lula e do PT vem abrindo espaço para as pautas reacionárias da extrema direita ganhem terreno, o que também vemos internacionalmente, com o avanço da extrema direita nas eleições europeias e a continuidade do genocídio do povo Palestino pelas mãos do Estado de Israel com apoio de Biden e do imperialismo norte-americano e europeu. As mobilizações foram um recado claro para Arthur Lira, a extrema-direita e o Congresso Nacional: criança não é mãe! Não vamos aceitar caladas esse PL que pune a vítima como homicida, baseando-se em dezenas de casos de crianças. Um recado que também serve para Lula e o PT, afinal, esse partido negociou com Lira para que a votação sobre a urgência desse projeto asqueroso fosse simbólica, permitindo dessa forma que os deputados a favor desse absurdo não tivessem seu nome registrado e liberou a bancada do governo para votar como quisesse.

Depois de toda repercussão negativa, Lula declarou que a atual legislação sobre o aborto já é suficiente. Mas a realidade é que mesmo nos poucos casos em que o aborto é legalizado muitas meninas, mulheres e pessoas que gestam passam por grandes desafios para ter acesso a esse direito e milhares seguem morrendo por abortos clandestinos no Brasil, em sua maioria mulheres negras. A fala de Lula é uma expressão de como o governo vai cumprir o programa que defendeu nas urnas: ou seja, não vai tocar nesse tema e muito menos se contrapor a extrema direita que ataca os nossos direitos para gerar engajamento na campanha eleitoral. Isso acontece, porque a estratégia de conciliação na prática significa aceitar que milhares sigam morrendo por abortos clandestinos e que o direito ao nosso próprio corpo seja rifado em nome dos acordos com os conservadores e reacionários.

É nesse cenário que também vimos se expressar nas ruas um ódio mais que legítimo contra Arthur Lira, o que é utilizado por setores do movimento de mulheres, principalmente aqueles ligados ao PT, PCdoB e ao PSOL, que são parte do governo Lula, para tentar desviar o potencial do movimento impedindo que ele se desenvolva para uma luta na qual a demanda por derrotar o PL possa se ampliar para a defesa do direito ao aborto legal irrestrito. Esses setores defendem que a melhor estratégia agora seria seguir os mesmos passos do Fora Cunha, colocando no centro a demanda de Fora Lira. O PSOL, pela via das suas deputadas federais Sâmia Bonfim e Fernanda Melchionna, estão apostando suas fichas na demanda do arquivamento do projeto. Mas existe um debate muito importante dentro do movimento de mulheres: nossa luta deve se limitar a defesa do arquivamento do PL e na demanda do Fora Lira? Ou o potencial expresso nas ruas pode se desenvolver para que na luta contra esse PL possamos ampliar nossa auto-organização independente para que a derrota integral desse projeto reacionário seja também um ponto de apoio que nos permitir seguir com uma forte luta pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito para todes? Quais lições podemos tirar das mobilizações pelo Fora Cunha entre 2015 e 2016?

Fora Cunha: entre o potencial do movimento de mulheres internacional e os limites de uma política condicionada aos mecanismos institucionais do Estado capitalista

Muitos que saíram às ruas e rechaçam o PL da gravidez infantil eram bem jovens nessa época, o que torna ainda mais importante resgatar as lições desse processo. Em 2015, Eduardo Cunha foi eleito presidente da Câmara dos Deputados de um país atravessado por uma profunda crise orgânica. Era o começo do 4º mandato do PT, o segundo de Dilma, amplos setores da classe trabalhadora, da juventude, das mulheres, negros e LGBTQIAP+ haviam feito uma experiência de como a política de conciliação do governo levava a um beco sem saída. Os impactos da crise capitalista internacional eram sentidos com mais força em nosso país, mas a resposta vinha pela via de um maior aprofundamento da luta de classes. Desde 2012 o país tinha sido atravessado pelas greves selvagens da construção civil nas obras do PAC, por uma das maiores greves da educação federal, e pelas jornadas de junho de 2013, cujas demandas motoras também levavam a um questionamento de algumas contradições estruturais do país, um processo que foi respondido com forte repressão pelo governo.

Muito além de um ano eleitoral, 2014 foi marcado pelo maior número de greves operárias nos últimos 30 anos. Mesmo tendo feito campanha prometendo que não promoveria ajustes contra a população, Dilma iniciou seu segundo mandato com um duro ajuste. A base do governo ficou ainda mais desmoralizada com o ataque vindo do PT, depois de toda brutal repressão contra junho de 2013 e dos atos contra a Copa e cortes na educação. Enquanto isso, as burocracias petistas no movimento sindical, estudantil e social buscavam conter e subordinar cada processo de luta aos limites de um governo cujo objetivo era administrar o capitalismo brasileiro em crise. Para responder tudo isso a direita também começava a se organizar, o que se expressava pelo avanço da Lava Jato, o fortalecimento do MBL e as reacionárias marchas pelo impeachment de Dilma. Uma combinação de fatores que expressa como, apesar da enorme polarização política, o Brasil também foi impactado pelo primeiro ciclo da luta de classes no pós crise de 2008, ainda que o ápice dos processos tenha sido a Primavera Árabe.

A cada crise, o capitalismo mostra sua face mais brutal contra todos os setores oprimidos e foi dessa forma que vieram ataques mais profundos aos direitos democráticos. Depois de anos em que o PT rifou o direito das mulheres e a luta pelo aborto legal em nome da conciliação com os setores reacionários e conservadores, dos acordos com o Vaticano e com a bancada religiosa, esses setores, liderados por Eduardo Cunha, se sentiram fortalecidos para apresentar um projeto que dificultava o acesso à pílula do dia seguinte, mesmo para as mulheres vítimas de estupro. E que dentro do movimento de mulheres, a burocracia petista, como a Marcha Mundial de Mulheres, defendia que não levantar o direito ao aborto era um “recuo tático”, que na verdade se tornou estratégico, para garantir a governabilidade. Contra o PL de Cunha, a resposta veio nas ruas, com mobilizações que tomaram o país rechaçando esse projeto reacionário e defendendo a vida das mulheres e das pessoas que gestam. O Brasil se conectava com o movimento internacional de mulheres que emergiu diante da crise capitalista, e que naquele ano ganhava as ruas com as massivas marchas do NiUnaAMenos contra a violência de gênero na Argentina, que se espalharam pela América Latina.

Ao mesmo tempo em que transcorria essas mobilizações e o ataque aos nossos direitos, também, vimos a direita avançar. O país era atravessado por uma profunda crise de representatividade, enquanto o MBL tentava aparecer como algo novo, para canalizar pela direita a enorme insatisfação política diante da crise orgânica no país, a Lava Jato, articulada pelo imperialismo norte-americano, pautava os rumos da política com um avanço inédito no autoritarismo judiciário. Avançavam contra direitos democráticos básicos que foram impostos pelas lutas dos trabalhadores na configuração do regime de 88.

Esse foi o início do processo conhecido como Primavera Feminista, um processo profundo, permeado por algumas contradições que já se colocavam no Fora Cunha. Como colocamos em nosso manifesto do Pão e Rosas, a primavera feminista avançou no Brasil do golpe institucional e foi atravessada por uma grande contradição que era a separação entre a luta do movimento de mulheres e o movimento operário. O que vinha combinado com uma ideia de que era possível transformar a cultura, avançando em mudança nos “costumes” e “valores” machistas, racistas e LGBTfóbicos, em separado de um questionamento mais profundo das raízes estruturais do sistema capitalista, o que no Brasil era atravessado pelo avanço do golpe institucional e todo autoritarismo judiciário.

Enquanto nas ruas o movimento de mulheres questionava o ataque ao direito ao aborto, as organizações petistas atuavam para conter a luta na demanda do Fora Cunha. Buscavam por essa via canalizar a responsabilidade desse ataque na figura de Eduardo Cunha, poupando dessa forma a responsabilidade do governo ao fortalecer todos os setores reacionários com sua política de conciliação, mas também o próprio regime capitalista e patriarcal que sempre nós negou esse direito e naquele momento dava saltos de degradação com a Lava Jato e a politização do judiciário.

Dessa forma, enquanto Cunha foi útil para o regime político ele encabeçou não só um PL contra o direito ao aborto, mas a articulação do golpe institucional no Congresso. Como foi a emblemática sessão na qual a maioria dos parlamentares, como legítimos representantes da classe dominante brasileira, votaram pelo golpe institucional em nome da família, de Deus e da propriedade privada, rendendo homenagens aos torturadores.

A crise diante do golpe de 2016 foi grande. Não era simples para a classe dominante estabilizar o regime político golpista, apesar do PT ter confiado mais nos métodos institucionais do que na força organizada da classe trabalhadora, das mulheres, LGBTQIAP+, negros e todos os setores explorados e oprimidos, existia muito disposição de luta e resistência. A luta das mulheres era uma dessas expressões, apesar de ter predominado a linha de separação entre as pautas, o que abria espaço inclusive para mulheres como Marta Suplicy, hoje pré-candidata a vice de Guilherme Boulos, mas que naquele momento tinha votado pelo golpe institucional e dado flores a Janaína Paschoal, outra golpista de marca maior.

Ao concentrar a pauta do movimento de mulheres no Fora Cunha, as direções burocráticas não somente se adaptaram à política do PT, de não confiar na força organizada da nossa classe para derrotar o golpe institucional, mas também, se adaptaram ao regime político do golpe institucional. A queda de Eduardo Cunha, pela via da cassação do seu mandato em setembro de 2016 foi a via que os golpistas encontraram para tentar legitimar o Congresso Nacional, depois de todo show de horrores do golpe institucional e diante da impopularidade de Michel Temer.

Ao rifar Cunha, depois dos excelentes serviços prestados em relação ao golpe, os atores políticos da classe dominante conseguiram, por um lado, diminuir a crescente insatisfação com os parlamentares, permitindo dessa forma que depois esses mesmos políticos pudessem aprovar a reforma do ensino médio e a “PEC do fim do mundo”, o teto de gastos de Temer que congelava por 20 anos os investimentos em saúde e educação (hoje é o PT quem aprova e defende a qualquer custo seu próprio teto de gastos, o Arcabouço Fiscal, elogiado até mesmo por Temer). Por outro lado, esse processo também canalizou a luta do movimento de mulheres para dentro dos limites institucionais do Estado capitalista, e pior, contribuiu para fortalecer e legitimar os métodos autoritários da Lava Jato.

Organizar nossa luta de forma independente para derrotar a PL 1904 e conquistar o direito ao aborto legal, seguro e gratuito para todes

Cunha e aquela PL caíram, mas os ataques do golpe institucional que ele foi parte de articular permanecem, assim como as ameaças crescentes contra nossos direitos como é a PL 1904 e o fato de que milhares de mulheres seguem morrendo por abortos clandestinos todos os anos. Como subproduto do golpe institucional, o bolsonarismo cresceu como força política e social, o que também era uma resposta ao forte movimento internacional de mulheres. As instituições políticas desse regime degradado se fortaleceram, e continuam mantendo de pé toda a estrutura machista e patriarcal que impede que nós tenhamos direito ao nosso próprio corpo, pois seu principal objetivo é manter a exploração e opressão a serviço dos lucros capitalistas.

Lula e o PT novamente governam o país, e repetem de forma ainda pior toda política de conciliação que sempre fortaleceu a extrema direita, mas nesse regime político no qual a extrema direita é uma força política e social com peso, e permanentemente busca atacar os direitos das mulheres, LGBTQIAP+, negros, indígenas e da classe trabalhadora. Se Cunha era opositor ao governo Dilma, Lira foi eleito presidente da Câmara dos Deputados com apoio do PT. Lira é inegavelmente um inimigo das mulheres e queremos derrotá-lo com a força da nossa luta, levando junto toda corja de político machistas, reacionários e conservadores que ele se alia.

E justamente por isso precisamos tirar as lições do Fora Cunha, não podemos separar a luta em defesa dos nossos direitos, como é o enfrentamento a esse PL e a luta pelo aborto legal do combate contra o conjunto desse regime político apodrecido. Hoje todos os atores desse regime político atuam ao lado de Lira, mantendo e aprofundando reformas reacionárias contra a classe trabalhadora, debatendo vias de criminalizar a juventude negra como a PEC das drogas ou as mulheres como é com o PL 1904, deixando a boiada passar e flexibilizando as leis ambientais, entre inúmeros outros exemplos.

Diferente do que aconteceu com Cunha, hoje nenhuma ala do regime político está cogitando rifar Lira para estabilizar a situação política, pelo contrário, até mesmo o PT quer negociar com ele para garantir que seu sucessor na Câmara dos Deputados não atrapalhe tanto seus planos de governo. Isso acontece porque Lula e o PT se preocupam muito mais em negociar com esse reacionário para ele não se opor aos interesses econômicos do governo, ou seja, ao modo petista de fazer o ajuste fiscal, e não tem nenhum problema em para isso rifar a luta histórica pelo direito ao aborto. Uma prática que é característica do PT, de sempre separar as pautas econômicas da chamada pauta de “costume”. O que mais uma vez ficou evidente na tramitação do regime de urgência desse PL e que nos leva a um beco sem saída de permanentemente ver nossos direitos entregues em nome da governabilidade.

É por isso, que nesse momento o movimento de mulheres no Brasil tem como tarefa número zero lutar de forma independente do governo para derrotar esse projeto e no curso dessa luta impor a conquista da demanda do direito ao aborto legal, seguro e gratuito para todes. O que está totalmente associado com a luta pela revogação das medidas neoliberais que precarizam a vida das mulheres e pessoas com útero, como as reformas trabalhista, da previdência, a terceirização, do novo ensino médio entre outros. E também com a luta pela revogação do Arcabouço Fiscal que estrangula o orçamento da saúde e educação em nome de honrar o pagamento da fraudulenta dívida pública, que só existe para gerar lucros para o capital financeiro e imperialista.

Desde o Pão e Rosas nós batalhamos para que as organizações do movimento de mulheres, como a Frente Nacional pela Legalização do Aborto façam um chamado as centrais sindicais, como CUT e CTB, as entidades estudantis como a UNE e a UBES, e ao conjunto dos movimentos sociais e organizações de esquerda, para convocar uma paralisação nacional, que possa se unificar também com a greve da educação federal e todas as lutas em curso pelo país. Uma paralisação que teria no centro a luta contra o PL 1904, debatendo a importancia dos trabalhadores lutarem pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito conectada com a defesa da revogação do Arcabouço Fiscal do governo Lula. O que passa também por não ter nenhuma ilusão nesse sistema judiciário machista e patriarcal, como o STF, vai julgar a favor do direito das mulheres. Ilusão alimentada pelo PSOL, deixando de lado o fato de que o STF foi um pilar do golpe institucional, e seus juízes sempre declaram que a legislação atual é suficiente para responder a questão do aborto. Enquanto milhares de mulheres e pessoas que gestam seguem morrendo e esse direito está sob permanente ataque, mesmo nos casos em que é legalizado.

Queremos debater com todes, que sinceramente cantam “Fora Lira” nos atos, porque sentem asco dessa figura asquerosa que se alia aos bolsonaristas para nos atacar, apresentamos a proposta de não reduzir nossa luta a trocar uma única figura, enquanto o Congresso permanece repleto de reacionários e conservadores pensando leis que só servem para manter a propriedade privada em base a aprofundar os mecanismos de exploração e opressão da ampla maioria da população. Nossa luta precisa ser para mudar as regras do jogo, para impor pela nossa força uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana, onde possamos revogar cada um dos ataques contra nossos direitos, cada uma das reformas e políticas de destruição aprovadas pelos políticos capitalistas, batalhando como parte desse processo para garantir o irrestrito direito ao aborto legal, seguro e gratuito para todes.

Carrinho de compras
Rolar para cima