Odete Assis
Os assassinatos de Clara Maria e Vitória Regina chocaram o país. Duas jovens cujas vidas foram brutalmente interrompidas. Dois crimes que marcam com uma dor imensurável os familiares e amigos, mas que também toca a todas nós. No Brasil, a cada 17 horas, uma mulher é vítima de feminicídio. O último elo de uma longa cadeia de violência de gênero, produto de uma sociedade onde capitalismo e patriarcado se unem para que a opressão contra metade da humanidade seja extremamente funcional para seguir sustentando a riqueza extraída da exploração da ampla maioria. Mas, como disseram os amigos de Clara no ato que organizamos exigindo justiça, agora mais do que nunca é hora de transformar o luto em luta. E é para arrancar justiça e fazer valer o grito de nenhuma a menos que nós do Pão e Rosas colocamos todas as forças do nosso feminismo socialista nesta luta.
Clara Maria tinha 21 anos e gostava de desenhar. Apesar da rotina de uma jovem trabalhadora da 6×1, que todos os dias tinha que enfrentar muitas dificuldades, o relato dos seus amigos é sobre o quanto ela era um ponto de apoio essencial para muitos deles. Sua vida foi retirada por ser mulher e por confrontar um homem que fazia apologia ao nazismo. Foi assassinada um dia depois do 8 de março. Diante do descaso da polícia, foram os amigos que deram início às buscas logo após o seu desaparecimento. Seu corpo foi encontrado concretado na casa do assassino em Belo Horizonte.
Vitória Regina tinha 17 anos e era apaixonadamente corintiana. Ficou desaparecida por mais de 20 dias, logo após sair do shopping onde trabalhava para retornar à casa dos pais. Seu corpo foi encontrado já em avançado estado de decomposição no dia 5 de março, em Cajamar. Seu assassino confesso a stalkeou durante meses. Momentos antes do crime, Vitória enviou áudios e mensagens para uma amiga dizendo estar com medo de dois homens em um carro que a assediaram e de outros dois rapazes que depois entraram com ela no coletivo.
Clara e Vitória: duas mulheres trabalhadoras, duas jovens cujas vidas foram interrompidas brutalmente deixando sonhos pelo caminho. Infelizmente, a história dessas mulheres é o retrato de muitos outros casos de mulheres e LGBTs assassinadas no Brasil, país que está entre os líderes do ranking mundial de violência de gênero. Segundo levantamento da Rede de Observatórios da Segurança, em 2024, uma mulher foi morta em razão do gênero a cada 17 horas. Dados que correspondem a apenas nove estados monitorados, ou seja, se levarmos em conta todos estados do país, esse número pode ser ainda pior.
Diante do assassinato de Clara, nós do Pão e Rosas e da juventude Faísca fomos linha de frente de articular juntamente com os amigos, as ativistas e organizações participantes do 8M unificado de BH e coletivos de esquerda da cidade um ato, no centro de Belo Horizonte, no último dia 15 de março. Uma ação que contou com a participação de centenas de pessoas, em sua maioria jovens, que assim como Clara, têm suas vidas atravessadas pela precarização do trabalho e sentem todos os dias o peso da opressão. Essa importante articulação foi o primeiro passo para responder um caso brutal de feminicídio com a nossa luta, expressando nas ruas nossa indignação e revolta por Clara e por todes que sofrem com a violência de gênero. O ato expressou também o desejo de que a gente não precise nunca mais ter que lutar por uma de nós que foi arrancada pelo feminicídio. Escrevemos esse artigo buscando contribuir com o fortalecimento dessa luta, aprofundando alguns debates sobre a relação entre a busca por justiça e o desejo de nenhuma a menos, e a necessidade de construir uma forte luta para impor um programa de emergência contra a violência de gênero. Debatendo como tudo isso precisa estar conectado com uma estratégia de enfrentamento à opressão patriarcal e seu casamento muito bem sucedido com o sistema capitalista.
Feminicídio: da luta por justiça ao desejo de nenhuma a menos
Como se não bastasse a dor pela perda, familiares e amigos também precisam lidar com o processo de revitimização, se enfrentando com os discursos machistas e patriarcais que culpabilizam as vítimas pelos crimes que sofreram. Um retrato cruel dessa sociedade patriarcal em que vivemos. A dor diante da tragédia pessoal pela qual passam transforma a reivindicação por justiça em uma demanda essencial. Como aponta Andrea D’Atri, fundadora do Pão e Rosas e atualmente legisladora na Cidade de Buenos Aires:
Acompanhar a reivindicação por justiça para as vítimas de feminicídios, exigir ao Estado o cumprimento de políticas de atenção integral às vítimas de violência antes que se transformem em vítimas fatais, denunciar a revitimização provocada pelos próprios agentes do Estado, exigir a legislação de direitos elementares dos quais ainda hoje são privadas as mulheres nas democracias capitalistas contemporâneas são parte de uma luta legítima para tornar menos insuportável a vida de milhões de mulheres 1 .
A luta por justiça é absolutamente legítima e necessária diante desses crimes e estaremos sempre lado a lado dos amigos e familiares. No entanto, mesmo quando se alcança a condenação dos responsáveis, nada pode trazer de volta a pessoa querida que foi assassinada. É por isso, que muitas vezes, aqueles que lutam por justiça também esperam que essa luta seja para que ninguém mais tenha que passar por essa dor, para que nenhuma pessoa seja assassinada em razão do seu gênero.
O feminicídio é o último elo dessa longa cadeia de violências a que as mulheres e pessoas que não se encaixam nos padrões do gênero masculino cisheteronormativo estão submetidas. Isso significa que compreendemos como as diversas facetas que compõem essa longa cadeia de violência patriarcal estão relacionadas. Desde as cantadas machistas e o assédio que muitas vezes são considerados “brincadeiras” ou “elogios”; aos costumes expressos em frases frequentemente usadas socialmente, como “em briga de marido e mulher não se mete a colher”; até os escandalosos dados de estupros, agressões e violências que perpassam a vida de tantas mulheres e meninas. Grande parte importante da luta feminista foi buscar demonstrar como todas essas questões são parte de um problema social e não individual, restrito somente àqueles que sofrem ou reproduzem a violência de gênero.
O avanço da nossa luta foi o que obrigou o Estado a reconhecer a violência de gênero e que era necessário tomar medidas para enfrentá-lo. Mas esse processo também abriu um paradoxo: as medidas jurídicas aplicadas para a condenação dos crimes constituem parte de um conjunto de leis e medidas penais que na maioria das vezes são utilizadas para legitimar e reproduzir formas de opressão e exploração dentro da nossa sociedade. E vão ser levadas a frente pelas mesmas instituições que ajudam a perpetuar a opressão. No entanto, o Estado nunca se senta no banco dos réus.
Em muitos casos, para a justiça machista, patriarcal e burguesa as vítimas se tornam culpadas. O que vestiam, o que faziam lá naquela hora, a escolha de não morar com sua família e tantos outros absurdos, que em hipótese alguma podem ser justificativas para a violência que sofreram. Como não lembrar do caso de Mari Ferrer? Humilhada na audiência em que deveria julgar aqueles que a violentaram. Como não lembrar de tantos outros casos em que o judiciário responsabilizou as vítimas e não seus agressores? Essa justiça é uma justiça de classe, uma justiça que sempre julga a favor dos patrões e da retirada dos direitos de trabalhadoras como eram Clara e Vitória.
Esse conteúdo de classe é o que faz com que, mesmo quando arrancamos com a força da nossa luta que a justiça e o Estado capitalista reconheçam a violência patriarcal, eles sejam incapazes de dar uma resposta que vá à raiz dos problemas. Visto que o Estado capitalista é responsável pela manutenção e perpetuação da violência contra as mulheres e LGBT. Como feministas socialistas, acompanhamos cada uma dessas lutas por justiça e queremos fazer valer o grito de nenhuma a menos. Por isso, quando nos organizamos para enfrentar a violência de gênero, dizemos que essa luta também é parte de uma batalha contra esse sistema capitalista e seu casamento muito bem sucedido com o patriarcado.
Capitalismo e patriarcado: um casamento muito bem sucedido para a classe dominante
O que o capitalismo tem a ver com um crime de ódio contra uma mulher? Debater a relação mais profunda entre um crime individual e a sociedade é parte de pensar como podemos de fato nos organizar para que nenhuma mulher seja assassinada e violentada. Sendo fundamental para esse objetivo o debate dentro do movimento de mulheres, onde existem diversas vertentes e estratégias de como lidar com a luta contra a violência de gênero. Quando olhamos para a história do nosso movimento vemos que ele sempre foi atravessado por diferentes estratégias sobre como, de que forma e pelo que deveríamos lutar para enfrentar a violência de gênero.
Qual seria então a relação entre a violência patriarcal e a sociedade em que vivemos? Para um setor do movimento de mulheres, as feministas radicais, a violência de gênero seria expressão de uma sociedade dividida em classes sexuais. A classe sexual dominante dos homens seria a responsável pela manutenção da opressão às mulheres, por meio da apropriação e do controle dos nossos corpos e capacidade reprodutiva. Uma perspectiva que muitas vezes se aproxima de visões extremamente transfóbicas, o que leva não só a dividir e deixar de lado o enfrentamento a violência contra as pessoas trans, mas também se aproximar de posições reacionárias como a de Trump, Bolsonaro, Nikolas Ferreira, Damares Alves e toda essa corja da extrema direita que faz uma verdadeira cruzada contra as pessoas trans.
O problema estratégico dessa concepção é que ao estabelecer que a raiz social da opressão patriarcal está na divisão da sociedade entre homens e mulheres, ou, em suas versões menos transfóbicas, entre aqueles que desempenham papéis sociais de gênero masculinos e feminino, não é possível conceber o fim da divisão das classes na sociedade. A luta contra o patriarcado seria uma eterna luta contra algo impossível de se transformar pela raiz. Nossa luta seria uma eterna resistência contra a opressão e no máximo podemos atenuar as contradições sociais a depender das medidas tomadas, mas nunca se vislumbra a perspectiva de que a opressão possa desaparecer por completo.
Muitas correntes feministas reformistas compartilham, ainda que em partes, dessa mesma perspectiva, o que alimenta o ceticismo e a desmoralização quando a luta não consegue dar uma resposta mais efetiva para esse enfrentamento, justamente por separar essa luta de seu caráter mais estrutural. E abre margens para o aprofundamento da defesa de soluções punitivistas, como inclusive a extrema direita levanta em casos assim, com a defesa de punições reacionárias como pena de morte, castração química, entre outras. Demandas que sob o controle dessa justiça burguesa e do Estado capitalista, inevitavelmente podem ser usadas contra a nossa classe e as nossas lutas. Da mesma forma as estratégias de escrachos individuais, que levam a converter todos os “homens” em inimigos potenciais e automaticamente nos coloca em uma posição de ser sempre potenciais vítimas dessa sociedade, se expressa como o pólo oposto dessa mesma lógica que nos conduz a uma perspectiva de impotência.
Como aponta Andrea D’Atri:
A despolitização das ações contra a violência patriarcal é o que impõe a lógica punitivista. Como já apontamos no artigo argentino “Patriarcado, crime e castigo”, para o Direito o agente de um delito é singular: é impossível fazer com que o patriarcado se sente no banco dos acusados. O Estado capitalista-patriarcal reconhece às mulheres o direito de viver uma vida livre de violência, castiga aqueles que transgridem este direito e, nesta mesma operação, os indivíduos singulares que exercem concretamente a ação, são afastados do sistema social de relações entre os gêneros que naturaliza a subordinação do feminino. Estes indivíduos serão considerados anômalos, patológicos, criminais, invisibilizando – nessa operação – que são os agentes/emergentes de uma violência constituída como o último (e em ocasiões, letal) elo de uma cadeia de violências sociais, culturais, políticas, econômicas “normalizadas”. Desde este ponto de vista, a luta contra a violência às mulheres se torna impotente por se tratar de uma (infinita) somatória de punições que, ainda que se pretendam exemplificadoras, está comprovado que não conseguem eliminar, nem mesmo reduzir o número de vítimas ou dos sofrimentos da opressão 2 .
Diferentemente dessas concepções, nosso feminismo socialista se apoia no legado de muitas revolucionárias que ao longo da história se basearam no método do materialismo histórico e da dialética, e nas elaborações de Marx e Engels, para estabelecer que a origem do patriarcado se deu juntamente as primeiras sociedades de classes. Compreendendo o papel da divisão de gênero para a manutenção da propriedade privada e dos meios de produção, ou seja, vemos que a origem histórica do patriarcado não é produto de um aspecto natural ou biológico dos seres humanos, mas de uma divisão social em razão do papel desempenhado na produção. Entre as classes sociais dominantes, exploradoras, e, por outro lado, as classes exploradas. O patriarcado é anterior ao capitalismo, mas no processo de desenvolvimento dessa sociedade capitalista eles consolidaram um matrimônio tão bem sucedido, que é impossível pensar em capitalismo, sem se remeter à opressão patriarcal.
O capitalismo sustenta uma sociedade na qual as mulheres são subjugadas em distintos âmbitos no trabalho precário, nas duplas ou triplas jornadas de trabalho, no salário menor para as mesmas funções, no controle dos nossos corpos com o impedimento do direito ao aborto, ou da própria decisão de constituir livremente nosso gênero e sexualidade, nos julgamentos da roupa que vestimos, do nosso comportamento e um longo etc. Todos esses aspectos são parte da ideologia reacionária que incentiva a ideia de que somos seres inferiores aos homens, se apoiando numa falsa ideia de que essas questões estão relacionadas a algo biológico e natural. Uma grande mentira criada ao longo da história.
Mas justamente porque concebemos que as raízes da opressão patriarcal são históricas, políticas e sociais, é que vemos que ela pode ser enfrentada e que um dia possamos viver em uma sociedade onde a violência de gênero seja apenas uma triste lembrança de uma passado que nunca mais voltará a existir. O que só é possível se enfrentamos também esse sistema capitalista, que não pode existir sem a violência patriarcal. É por esse motivo que sempre buscamos conectar cada uma das nossas batalhas contra a opressão de gênero ao enfrentamento a esse Estado capitalista que mantém o patriarcado de pé.
Precisamos colocar de pé uma forte luta por programa de emergência contra a violência de gênero
Nos últimos 10 anos, o Brasil foi atravessado por intensos processos políticos. O movimento de mulheres, que internacionalmente foi um dos principais sujeitos dos processos de luta de classes que se abriram após a eclosão da crise capitalista, também se fez presente. Contudo, uma das suas principais encruzilhadas foi que, diante do seu fortalecimento como sujeito político e social, teve que se deparar com a ascensão da internacional reacionária da extrema direita, que se colocou como uma resposta reacionária ao movimento feminista, e com as consequências de anos de neoliberalismo. Até agora, a estratégia que veio predominando para a luta das mulheres em nosso país baseia-se, sobretudo, na aposta de mais representatividade institucional e de confiança nos mecanismos do Estado burguês para enfrentar a violência de gênero.
O que termina por reduzir o potencial do movimento a exigir mais medidas punitivas por um lado e por outro a se subordinar ao governo de frente ampla e cada vez mais se institucionalizar. Temas que abordaremos em maior profundidade em um próximo artigo. Nosso desafio no enfrentamento à violência de gênero passa por batalhar dentro do movimento de mulheres, nos locais de estudo e trabalho para fortalecer a perspectiva que conecte esse enfrentamento a cada expressão da opressão e violência de gênero ao combate contra o Estado capitalista que mantém de pé toda a estrutura patriarcal.
A expressão do nível de decomposição desse sistema fica evidente quando um nazista se sente a vontade para assassinar uma mulher que o questionou. O ódio contra as mulheres e a naturalização da violência de gênero é alimentada por essa extrema direita asquerosa e suas inúmeras ideologias misóginas e supremacista branca alimentadas por seus representantes políticos, nas redes sociais e no submundo virtual com toda forma de propaganda neonazista e de ódio às mulheres, negros, LGBT. Quando o bilionário Elon Musk, apoiador de Donald Trump, faz saudações nazistas e nada acontecesse, ele passa um recado para seus seguidores. Ou como Romeu Zema, que justifica os casos alarmantes de feminicídios como produto de um “instinto natural”. A extrema direita é a expressão mais evidente de toda misoginia produzida por esse sistema. Mas ela não é algo alheio a esse sistema capitalista, ela é produto desse sistema e suas crises.
Portanto, todos os que se propõe a administrar esse sistema capitalista são incapazes de dar uma resposta a violência de gênero. O governo de frente ampla também reproduz a opressão de gênero, quando naturaliza declarações machistas, como Lula faz recorrentemente. Mas fortalece as bases materiais e ideológicas do machismo ao rifar nossos direitos em nome dos seus acordos com o Centrão e toda corja de reacionários políticos burgueses. Ao conciliar com as figuras mais asquerosas do Congresso e permitir que Damares Alves possa ser a presidente da Comissão de Direitos Humanos. Ao dizer que atual lei sobre o direito ao aborto é suficiente, enquanto milhares de mulheres e pessoas que gestam seguem morrendo por abortos clandestinos. Ao liberar sua base para votar como quisesse na PL da gravidez infantil por estupro. Ao cortar as verbas das políticas de enfrentamento a violência de gênero para manter seu compromisso com o Arcabouço Fiscal e o pagamento da dívida pública para o banqueiros. Ao manter a reforma da previdência, trabalhista, do ensino médio, a terceirização e a precarização do trabalho em nome dos interesses dos grandes empresários e patrões. Aqueles mesmos que se beneficiam da opressão às mulheres para pagar menores salários e aumentar seus lucros com a nossa exploração. O PSOL é parte desse governo e cada vez mais avança para consolidar seu processo de integração a esse regime.
Estamos lado a lado daqueles que lutam por justiça, e vamos batalhar nas ruas, em cada local de estudo e trabalho para que o conjunto da nossa classe possa se somar a essa luta. Imaginem a força que poderia ter se por cada mulher que é assassinada em nosso país os grandes batalhões da nossa classe fizessem atos e paralisações exigindo justiça? Que impacto essa ação poderia ter, não só para os familiares e amigos que perderam seus entes queridos, mas para uma verdadeira transformação da consciência do conjunto da nossa classe que é diariamente atravessada pela ideologia machista e patriarcal da burguesia?
Sabemos que somente com a força organizada de luta de milhares de mulheres e da classe trabalhadora em seu conjunto podemos acabar com esse regime social que mantém de pé tantos sofrimentos e misérias, ao mesmo tempo, vemos que é central colocar no centro a luta por uma plano de emergência que contempla de maneira integral as ações mais elementares e imediatas, que permitam ser um paliativo para tanta dor, mas que sejam tomadas não como um fim em si mas como um “trampolim” para a luta pelas transformações mais profundas.
Depois de quase 20 anos da aprovação da Lei Maria da Penha, apesar dos importantes avanços que ela representou, os casos brutais que seguem acontecendo são uma triste demonstração de como ela ainda é extremamente insuficiente para parar essa verdadeira epidemia que é a violência de gênero. Como forma de contribuir para esse debate sintetizamos a seguir alguns dos pontos fundamentais que apresentamos na proposta que elaboramos em 2017, inspiradas no plano apresentado por Nicolás del Caño e Myriam Bregman, principais referentes parlamentares da Frente de Esquerda e dos Trabalhadores Unidade na Argentina, e integrantes da nossa corrente internacional, a Fração Trotskista pela Quarta Internacional 3.
Um plano que para ser levado adiante passa pela responsabilização do Estado e seus órgãos competentes para sua efetivação, mas como parte de uma luta para que seja controlado por organizações feministas, movimentos sociais e trabalhadores especializados para os mais distintos atendimentos necessários. E que permita que todas as mulheres e pessoas em situação de violência de gênero tenham acesso a todo e qualquer aspecto previsto neste plano. Isso inclui o direito à assistência econômica paga durante todo o tempo em que essas pessoas vítimas de violências e todes que estiverem sob sua responsabilidade estejam fora de suas casas ou lugares de residência e/ou até que consigam inserir-se ou reinserir-se no mercado de trabalho. Recebendo um salário mínimo do DIEESE e sendo responsabilidade do Estado garantir o emprego para as mulheres que não o tenham.
Um plano deste tipo também precisa contar com o fortalecimento e a ampliação de Casas Abrigos custeadas e mantidas pelo Estado e geridas pelas próprias mulheres abrigadas, com apoio da equipe interdisciplinar do local. Diferentemente do que ocorre na atualidade, em que as mulheres têm prazo para permanecerem nas Casas (como prazos de quatro meses) e é o Estado que gere as Casas. As e os trabalhadores das Casas Abrigo e equivalentes deverão receber o salário mínimo estipulado pelo DIEESE e toda assistência do Estado. Além de incluir a garantia de moradia para todes de acordo com suas necessidades e das pessoas sob sua responsabilidade.
Devem ser assegurados licença de trabalho remunerada para as vítimas de violência de gênero, assim como licença das unidades escolares e universidades. Contar com equipes interdisciplinares de prevenção, atenção e assistência às vítimas, responsáveis por oferecer atenção integral às vítimas. Além disso, o plano deve contar com medidas que são parte do enfrentamento das mulheres contra a dependência econômica, como a implementação da igualdade salarial, a efetivação imediata de todas trabalhadoras terceirizadas, anulando as leis de terceirização e as reformas trabalhista, da previdência e do novo ensino médio. Defender a legalização do aborto e a educação sexual em todas instituições escolares, desde a infância.
Os recursos para o Plano Nacional de Emergência contra a violência às mulheres devem estar previstos pelo Governo Federal no orçamento público, com a revogação do Arcabouço Fiscal neoliberal de Lula e a implementação da taxação progressiva das grandes fortunas e empresas do país, assim como do confisco imediato dos bens de todos os empresários e políticos corruptos e do não pagamento da dívida pública brasileira. O Governo Federal deverá garantir em todos os casos a capacitação e assistência às trabalhadoras e aos trabalhadores integrantes das equipes.
Desde o Pão e Rosas, seguiremos intervindo na luta para arrancar Justiça por Clara, Vitória e todas as vítimas de violência de gênero, batalhando para organizar a nossa classe em cada local de trabalho e estudo, defendendo que o conjunto do movimento de mulheres possa tomar para si a defesa desse plano emergencial. Colocando em cada uma dessas lutas nossa perspectiva de enfrentamento à opressão e exploração que é sustentada por esse sistema capitalista e patriarcal.
NOTAS DE RODAPÉ
1. https://www.esquerdadiario.com.br/Patriarcado-crime-e-castigo
2. https://www.esquerdadiario.com.br/O-agressor-os-homens-e-o-patriarcado
3. https://www.esquerdadiario.com.br/E-urgente-um-Plano-Nacional-de-Emergencia-contra-a-violencia-as-mulheres