Martín Schapiro
Com o colapso da União Soviética tornou-se senso comum o capitalismo como um sistema econômico insuperável, e o socialismo, baseado numa economia planificada, como inviável. Para os defensores do pensamento econômico austríaco, e também aqueles que não o reivindicam, isso se mostrou como uma confirmação das críticas dos libertários que desde a década de 1920 tentaram refutar a teoria da planificação. A ideia deste artigo é trabalhar as principais críticas desses autores: o cálculo econômico é possível? Existe uma possibilidade de inovação e descoberta fora do sistema capitalista? Será viável uma forma de adaptação das preferências e necessidades dos consumidores sem um sistema regido por um valor de mercado? Pode o socialismo integrar o trabalho humano e a natureza num único cálculo?
A seguir, apresentaremos os argumentos de alguns austríacos como Mises, Hayek e Don Lavoie e depois responderemos a eles.
Mises e o cálculo econômico
O economista da Escola Austríaca, Ludwig von Mises, criticou o socialismo em uma série de publicações ao longo do século XX. Sua argumentação tinha como base o pressuposto de que as economias funcionam de forma “natural” sob o capitalismo, manifestando-se numa rede de indivíduos atomizados que se coordenam entre si.
Em “O cálculo econômico em uma comunidade socialista” (1922), Mises argumentou que, sem um sistema de valores estabelecido pelo livre mercado, a economia centralizada não pode realizar cálculos econômicos racionais. Segundo Mises, os valores funcionam como um medidor na economia, transmitindo informações essenciais sobre o valor que os consumidores atribuem aos diferentes bens e serviços, como também até que ponto estão dispostos a sacrificar recursos para adquiri-los. Esta perspectiva introduz uma série de pressupostos sobre a formação de valores e a participação na valorização do consumidor que divergem significativamente das abordagens propostas pela Economia Política clássica e pelas suas críticas, particularmente pelo marxismo.
A tentativa de Mises de estabelecer uma teoria de valores baseada em aspectos subjetivos é um dos vários esforços que não apenas deixaram de corresponder às expectativas, como também foram um fracasso, uma vez que foi impossível encontrar uma forma de medir essa valorização. No entanto, esta abordagem conseguiu promover a ideia de que a teoria do valor havia sido superada. Na realidade, optou-se por desviar a atenção que se tinha para a construção de uma teoria sobre novas premissas, um projeto que enfrentou desafios significativos. Esta crítica, baseada no princípio da minimização dos custos monetários com que o capitalismo é gerido, argumenta então que, na ausência de valores de mercado gerados pela oferta e demanda, seria impossível aos planificadores socialistas obter a informação necessária para fazer alocações eficientes de recursos, o que levaria a ineficiências e desperdícios.
Para que os produtores decidam o que produzir, como produzir e em que quantidade, necessitam de informações sobre os custos relativos dos recursos e sobre o valor que os consumidores atribuem aos diferentes produtos. Assim, Mises nos diz que, numa economia de mercado, a informação é transmitida através do sistema de valores. A título de pequeno esclarecimento, o que descrevem como “economia de mercado” refere-se – na realidade – ao capitalismo. O termo abrange muito mais do que simplesmente mercados: implica um sistema de produção dominado pela valorização, isto é, pela procura do lucro e pela exploração do trabalho assalariado.
Continuando na linha de Mises, ao comparar os valores de venda dos produtos com os custos dos recursos necessários para produzi-los, os produtores podem determinar o que é mais lucrativo. Segundo essa visão, no mercado, os valores emergem da interação entre oferta e demanda, refletindo as preferências dos consumidores:
Na comunidade socialista a existência de contabilidade econômica é impossível, de modo que o custo ou a execução de um ato econômico não pode ser determinado nem o resultado do cálculo pode ser tomado como a norma do ato. Esta razão por si só seria suficiente para demonstrar que o socialismo é impraticável. Mas, além disso, uma segunda razão, muito difícil de superar, também se opõe à concretização do socialismo. Não é possível encontrar uma forma de organização que torne a atividade econômica do indivíduo independente da colaboração de outros cidadãos, sem fazer desta atividade um jogo de azar, do qual ficaria excluída toda a responsabilidade do indivíduo. Enquanto estes dois problemas não forem resolvidos, o socialismo será apresentado como algo irrealizável em qualquer economia que não esteja completamente estática 1.
Ou seja, segundo Mises, sem valores de mercado não há forma eficaz de realizar esse cálculo econômico. O planificador central não tem forma de saber o valor relativo que os consumidores atribuem aos diferentes bens e serviços, nem quanto realmente “custa” produzi-los em termos de recursos sacrificados. Como resultado, a produção e distribuição de bens e serviços torna-se ineficiente e arbitrária.
Mises critica a planificação socialista pela sua incapacidade de gerir eficientemente bens não reproduzíveis, como minerais únicos e obras de arte, devido à ausência de um sistema de valores de mercado. Argumenta que sem valores que reflitam a oferta e a demanda, a escassez destes recursos não pode ser corretamente medida, levando à sua possível sobre-exploração ou subutilização. Segundo ele, apenas a dinâmica de valores proporcionada pela oferta e pela demanda pode oferecer informações essenciais para direcionar as decisões econômicas, garantindo que os recursos sejam utilizados onde são mais valorizados e contribuam eficazmente para o bem-estar geral. Ele critica que, ao ignorar estes valores e ao considerar os recursos como ilimitados, a planificação socialista leva a alocações ineficientes e não pode determinar o custo de circunstâncias dos recursos, o que é essencial para um cálculo econômico eficaz em qualquer sistema econômico.
Em contraste, as críticas dirigidas ao socialismo por não contemplar o valor real dos bens naturais realçam, na verdade, uma deficiência e falência significativa do capitalismo. Longe de simplesmente omitir o impacto ecológico, o capitalismo promove ativamente um modelo de exploração que negligencia consequências ambientais críticas, como a poluição dos rios e o aumento do dióxido de carbono na atmosfera, ignorando estas realidades na sua estrutura de valores. Este comportamento reflete não só uma subestimação dos danos ecológicos, mas também uma vontade inerente de sacrificar a saúde ambiental em prol de ganhos econômicos. No capitalismo, os chamados custos ambientais “externos”, que só existem porque as empresas ignoram, tanto quanto possível, os efeitos das suas ações fora da órbita direta da sua empresa, raramente se refletem nos valores de mercado, levando à exploração insustentável dos bens comuns naturais e a graves danos ecológicos. Mas mesmo nos casos em que foram implementados mecanismos para tentar internalizar esses impactos ambientais como custos, como é o caso dos impostos sobre carbono, eles acabam por se tornar um negócio. Em The Value of a Whale: On the Illusions of Green Capitalism, Adrienne Buller conta como funciona esse mecanismo e detalha o Sistema de Comércio de Emissões da União Europeu (ETS), que nada mais é do que uma transferência dos problemas de emissões para o mecanismo de mercado. Fazendo com que grandes empresas em setores com alta emissão começassem a obter lucros altos em razão da possibilidade de monetizar seus “direitos de emissão” estimados em 50 bilhões de euros desde que o plano começou em 2008. É invertido o princípio de “quem polui paga”, que procura apoiar e justificar o valor do carbono, para “quem polui ganha” 2. Isto, antes de mais nada, é um exemplo da ineficiência que o capitalismo possui para resolver estes problemas. É necessário demonstrar como outra forma de organização da produção pode superar este desafio. Mais adiante, neste artigo, veremos como uma alternativa socialista é possível.
Hayek e o conhecimento
Hayek, outra referência da economia austríaca e discípulo de Mises, também foi muito crítico em relação à possibilidade do socialismo. Mas diferente de seu professor, sua base central girava em torno do conhecimento subjetivo das pessoas. Segundo Hayek, os valores são um grande mecanismo que transmite as informações necessárias da economia. Eles são os meios pelos quais o conhecimento é disseminado.
Hayek argumentou que a economia é um sistema complexo e vasto, cuja diversidade e escala escapam à plena compreensão de qualquer entidade centralizada, como um Estado sob um regime socialista. Este desafio é conhecido como “problema do conhecimento”, que não só destaca a dispersão e a natureza tácita do conhecimento, mas também a capacidade do mercado de facilitar processos de descoberta espontânea. Segundo Hayek, é através da interação no mercado que os indivíduos, guiados pelo sistema de valores, podem revelar e agir com base no seu conhecimento local, subjetivo e muitas vezes indescritível, adaptando-se continuamente às novas circunstâncias.
Hayek argumenta que a afirmação de que o Estado pode coletar, processar e coordenar com eficiência uma quantidade incontrolável de informações é um exemplo de “arrogância fatal”. Esta suposição não só é impraticável como também resulta em ineficiência e escassez, evidenciando a superioridade do mercado na gestão da complexidade econômica devido à sua capacidade de integrar fragmentos dispersos de conhecimento e preferências através dos valores de mercado. Em contraste, uma economia planificada como a proposta por Marx, da forma que Hayek interpretava, mostraria claramente as deficiências da planificação, que tenta impor a ordem por decreto em vez de permitir que ela se desenvolva através do processo de valores, destacando assim a ineficiência da planificação socialista diante da complexidade e dinâmica do mercado.
Finalmente, o que está subjacente ao argumento central de Mises e Hayek, posteriormente reforçado por Lavoie, um economista americano da escola austríaca, centra-se na capacidade do sistema econômico de se adaptar e responder rapidamente às constantes mudanças no ambiente. Assim, a eficácia com que um sistema se aproxima do equilíbrio desejado depende crucialmente da rapidez com que consegue se ajustar às mudanças. Argumenta que os valores estabelecidos de maneira centralizada carecem da flexibilidade inerente aos valores de mercado, não conseguindo se adaptar de maneira eficaz às variações contínuas nas demandas dos consumidores e avanços tecnológicos. Este ponto realça uma preocupação maior: se os processos de cálculo necessários à planificação socialista não conseguirem acompanhar a velocidade em que ocorrem as mudanças nas preferências dos consumidores e os avanços tecnológicos, então o sistema de planificação enfrenta um sério desafio.
Mas então, é possível planificar a economia?
Embora concordemos que alguma forma de “cálculo econômico” ou de gestão eficiente de recursos é importante, não é necessário que o valor (que contém todos os problemas já mencionados) seja a única forma de determiná-lo. A riqueza é gerada a partir do trabalho humano, aplicado a uma variedade de bens naturais e outros insumos ou meios de produção. O que o “cálculo socialista” propõe não é planificar sobre um pressuposto sistema de valores, mas justamente tornar consciente o que nas relações capitalistas só pode ocorrer de forma objetiva(reificada) de costas para os produtores, que é a organização do trabalho social em função das prioridades sociais definidas deliberadamente através da democracia dos produtores.
Mises propõe três cenários possíveis de cálculo econômico (planificado em espécie, unidade de medida em tempo de trabalho e valores de mercado) e conclui que apenas o último é possível e, portanto, ali mora a impossibilidade do socialismo. No entanto, existem múltiplas demonstrações de que tanto a planificação em espécie como em horas de trabalho são possíveis.
Sem entrar no debate sobre qual alternativa entre estas duas é superior, podemos ver que, no caso da planificação em espécie, esta é uma organização da produção e distribuição de bens baseada diretamente nas quantidades físicas e nas necessidades reais, sem o uso de dinheiro ou valores como intermediários, Mises argumentou que era impossível planificar dessa forma porque a mente humana é limitada pelo grau de complexidade com que pode lidar:
A mente de um único homem, por mais perspicaz que seja, é fraca demais para compreender a importância de um único entre os inúmeros bens de ordem superior. Nenhum homem poderá jamais dominar todas as possibilidades de produção, por mais inumeráveis que sejam, de modo a estar em posição de fazer juízo de valores óbvios sem a ajuda de algum sistema de cálculo 3.
Já em 1939, o economista-matemático soviético Kantorovich demonstrou a viabilidade de utilizar a programação linear para alcançar uma equivalência de proposições entre diferentes bens, considerando os seus insumos, e assim otimizar uma função objetiva sem ter que recorrer a valores monetários. Por outro lado, Paul Cockshott, no seu livro Cibercomunismo, defende que as redes informáticas modernas têm uma capacidade de concentração e análise de informação que lhes permite realizar cálculos econômicos com uma eficiência e velocidade muito superiores às da mente humana individual. O avanço tecnológico poderia ser alavancado como o sistema regulatório nas mãos dos produtores através da democracia soviética. Este elemento de controle é vital para evitar a burocratização na formação do plano e ao mesmo tempo ter as informações necessárias para a sua elaboração.
Como sublinha e desenvolve com maior profundidade Matías Maiello, esta democracia soviética ou de conselhos pode transformar-se num poderoso instrumento de cooperação entre produtores e consumidores. Sobre este aspecto, Mandel escreveu em “En defensa de la planificación socialista” que a forma mais simples, bem como a mais democrática, de adaptar os recursos materiais às necessidades sociais não é interpor através do dinheiro esses dois, mas descobrir as necessidades das pessoas simplesmente às perguntando quais são.
Outro autor que assume este aspecto é Daniel Saros que argumenta que as limitações tecnológicas do passado impediram os economistas socialistas de conceber um modelo de planificação mais descentralizado e eficiente. Hoje, porém, a tecnologia oferece novas possibilidades para uma “infra-estrutura de retroalimentação” avançada, que poderia substituir e melhorar as funções do sistema de valores na coordenação social. Saros imagina um sistema integrado num catálogo geral, onde os produtores organizados em conselhos de trabalhadores, listam os seus produtos e serviços. Este sistema seria acessível aos consumidores através de uma identificação digital, permitindo-lhes expressar as suas necessidades num “período de registo de necessidades” no início de cada ciclo de produção. O consumidor pode indicar quais produtos necessita e em que quantidade para o próximo ciclo, incentivando assim uma planificação mais precisa destas produções. Embora a compra de produtos não registados anteriormente seja permitida após este período, o sistema incentiva previsões precisas, atribuindo bónus àqueles cujas compras se alinham com as suas necessidades previstas. Além disso, a eficiência e a moderação no consumo são incentivadas através da concessão de bônus aos consumidores que compram menos itens do que a média. Estes prémios, juntamente com outros incentivos como a permanência no emprego, somam-se a um rendimento básico universal garantido para todos os cidadãos, criando um equilíbrio entre incentivar a precisão na planificação das necessidades e a promoção da moderação e sustentabilidade no consumo.
Para além desta ou daquela alternativa, a ideia deste artigo é mostrar algumas das possíveis soluções, de sistemas não mercantis, já propostas por diversos autores. Ao mesmo tempo, novos certamente surgirão à medida que a tecnologia avança e a própria organização social deverá enfrentar esses problemas concretos, sendo os próprios soviets quem terão que definir qual alternativa seguir enquanto debatem e escolhem o seu próprio caminho.
Em relação à outra alternativa de planificação que utiliza o tempo de trabalho como unidade de medida, dois argumentos para criticar o trabalho como unidade de valor:
1) a utilização dos valores do trabalho implica um descaso com o custo dos recursos naturais: por um lado e como vimos antes, é precisamente o capitalismo que, por omissão ou valorização da natureza, está a destruir o planeta, mas é precisamente uma planificação democrática que pode reverter esta situação e colocar no centro a necessidade de uma produção verdadeiramente sustentável que considere um orçamento para o consumo de bens naturais. Não só é possível, mas é a única forma de evitar a extinção. Existem diferentes propostas como as discutidas por Cockshott, Troy Vettese e Drew Pendergrass em “Half-Earth Socialism” entre outros. Longe de ser uma fraqueza do socialismo, a capacidade de integrar conscientemente a consideração dos bens naturais na planificação econômica representa uma vantagem distintiva, uma vez que coloca no centro a deliberação de todos os setores envolvidos e afetados na tomada de decisões dos impactos ambientais, que hoje ambos, Estados e empresas, procuram impor e apresentar como inevitáveis.
2) A crítica de Mises de que o trabalho não pode ser considerado de maneira homogênea não parece muito fundamentada. Na verdade, como mostra Marx, esta homogeneização é um pressuposto do sistema de valores que torna possível a troca de mercadorias. Existem métodos, como os propostos por autores como Kantorovich, que podem superar algumas das críticas mencionadas por Mises. Kantorovich mostrou que é possível ajustar o valor do trabalho usando programação linear e matrizes de input-output. Esta abordagem permite atribuir valores objetivos ao trabalho, diferenciando-o por tipo e qualificação através da utilização de coeficientes específicos. Existem também outros autores que tentam diferenciar por tipo de trabalho. Paul Cockshott em ”Towards a New Socialism” propõe métodos para calcular diferenças no valor do trabalho, como taxas de transferência para diferentes competências e habilidades, mostrando que a diversidade do trabalho, se necessário, pode ser eficazmente integrada e gerida na planificação econômica.
Para além destas alternativas, é sempre bom regressar a Marx. Na Crítica ao Programa de Gotha esclarece que embora o trabalho possa ser medido em termos de duração ou intensidade e possa ser diferenciado de acordo com qualificação, dificuldade e esforço, o essencial é que, ao contrário do sistema capitalista, uma economia socialista organiza a divisão de trabalho de acordo com as necessidades coletivas, não o fazendo sem considerar os produtores.
Em relação às críticas que Hayek faz, se analisarmos as empresas, podemos perceber que o processo de descoberta através do conhecimento individual que ele menciona não funciona assim. Portanto, o que mais deveria horrorizar Hayek é a grande empresa capitalista, que longe de permitir a “dispersão”, centraliza as informações e busca o sigilo protegido por razões econômicas. Hoje em dia é comum que as empresas mantenham registros de seus procedimentos, insumos e produtos em algum tipo de banco de dados. Quase todas as formas de produção são objetivas e quantificáveis e é cada vez mais comum que empresas como Walmart, Amazon, entre outras grandes multinacionais, concentrem uma grande quantidade de informações de forma centralizada. Isto permite-lhes acumular um volume de dados que nos permite compreender determinados comportamentos sem a necessidade de um sistema de valores. Muitas dessas empresas possuem até departamentos de “melhoria contínua” que analisam informações agregadas sobre ineficiências de processos para propor melhorias. É até comum que áreas dessas empresas “emprestem” recursos quando é necessário desenvolver determinadas iniciativas e o critério é acordado com base no impacto, mas as colaborações internas não são vendidas ou cobradas, ou seja, a tendência de todo o capitalismo é objetivar o conhecimento humano.
Também é cada vez mais comum dentro do setor privado os sistemas mistos que combinam valores com aspectos de coordenação e retroalimentação (Feedbacks). As classificações de um Uber, as resenhas de produtos comprados via Amazon, as pontuações de restaurantes encontradas no Google maps, entre outros exemplos, demonstram como a tecnologia permite cada vez mais um sistema de retroalimentação (feedback), onde os valores não são as suas bases, dos quais estes casos servem como exemplos parciais da possibilidade adaptativa e coordenada de outro sistema não mercantil. Estes fatos não apenas colocam em questionamento as afirmações de Hayek e sua soberania do sistema de valores, mas também abrem as portas de como explorar esses mecanismos de informação que podem ser utilizados ou adaptados em sistemas econômicos alternativos.
No âmbito das preferências de consumo, também não é verdade que elas possuem um caráter subjetivo e único. Ao menos a grande maioria dos serviços e bens se mantém de forma constante. As estatísticas de alimentos como trigo, arroz, carne, frutas e vegetais, possuem comportamentos estáveis ao longo do tempo. O mesmo ocorre com a maioria dos bens e serviços, estes mostram que na maioria dos casos não são os preços e as subjetividades que determinam as necessidades de produção,que a maioria destes são, na verdade, previsíveis.
Um exemplo claro de fracasso na tentativa de por em prática esta teoria subjetiva se pode ver como certos sites de comércio (eBay, Amazon, Mercado Livre) tentaram realizar um esquema de leilão, onde cada consumidor exigia um determinado valor. Na tentativa de utilizar de um esquema onde cada usuária tinha uma valorização específica das mercadorias. Esses modelos não foram adiante por serem poucos práticos e desconexos com a realidade. Até mesmo o sistema do Uber foi modificado a partir de um esquema de leilão de valores muito mais limitado devido a reclamações dos próprios usuários.
Por fim e em relação a adaptabilidade do socialismo, essa não é uma crítica reivindicada ou vista como válida atualmente, já que com os avanços da tecnologia moderna como a inteligência artificial e as análises de grandes quantidades de dados, se poderia facilmente superar esse desafio. Permitindo que os planificadores ajustem rapidamente a produção e distribuição, através do recolhimento e análise de informações sobre as preferências e as tendências tecnológicas em tempo real. Isto inclusive se vê nos gigantes tecnológicos que reúnem muitos dados e os utilizam em tempo real para se adaptar. Em, Socialismo Digital, Morozov detalha o funcionamento dos sistemas de retroalimentação digital utilizando alguns conceitos similares a aqueles mencionados de Saros, como os feedbacks em tempo real (Amazon por exemplo atualiza o seu catálogo de recomendações com base em sua informação: quando faz calor e tendo em conta as visitas e compras reais, começa a recomendar mais ar-condicionado). Esta retroalimentação digital também permite realizar melhorias baseadas nos feedbacks dos próprios usuários, sem a necessidade de olhar a competência, muitas dessas plataformas fazem uso das insatisfações dos clientes para melhorar a experiência dos usuários.
Mas para além dessas aplicações concretas ou modificadas destas questões que serão definidas em seu momento, está mais do que claro que os avanços da tecnologia e da retroalimentação digital abrem muitas alternativas para a planificação e sua adaptação, que não precisam de um sistema de valores controlado pela mão invisível do mercado.
Existem diferentes debates sobre as melhores formas de pôr em prática a economia planificada. Desde os desafios entre centralização e descentralização, a necessidade de se repensar a produção de maneira sustentável à natureza, a forma mais democrática de colocar em prática a planificação da economia e o papel da tecnologia ante isso. Mas as críticas que determinam a sua impossibilidade não se sustentam na atualidade.
Mas porque esse debate é importante?
Concluindo, o debate sobre a possibilidade do socialismo, alimentado pelas críticas da Escola Austríaca, continua sendo de grande importância no contexto econômico e político atual. A queda da União Soviética proporcionou um terreno fértil para que as críticas ao socialismo planificado ganhassem potência, reafirmando os argumentos contra a possibilidade de um cálculo econômico sem a necessidade de um valor de mercado. Ademais, percebemos que essas críticas não apenas refletem a supervalorização do mercado como mecanismo perfeito, como também muitas dessas críticas tornam-se cada vez mais obsoletas devido ao avanço das tecnologias que poderiam facilitar uma planificação econômica democrática.
As críticas à planificação socialista baseadas na suposta impossibilidade de realizar um cálculo econômico efetivo e pela análise das liberdades individuais de cada um pode ser separado em dois. Por um lado, os genuínos que não têm em conta o potencial de sistemas econômicos alternativos que, através da participação democrática e da utilização de tecnologias avançadas, podem organizar a produção e distribuição de bens e serviços de forma eficiente e sustentável e ao mesmo tempo alcançar as bases para poder exercer verdadeiramente a liberdade de cada um, mobilizando os nossos talentos, a nossa criatividade e as nossas paixões. Por outro lado, pessoas grosseiras como o presidente argentino libertário Javier Milei que procuram apenas traficar ideologia barata para tentar alcançar um novo avanço neoliberal.
A discussão sobre o futuro da planificação econômica deve, portanto, transcender os limites impostos pela crítica tradicional e abrir-se à exploração de novas formas de organização social e econômica. Isto implica reconhecer que a eficiência, a inovação e a satisfação das necessidades humanas não são exclusivas do capitalismo (e tampouco nele são satisfeitas) e que o socialismo, longe de ser uma utopia inatingível, oferece um quadro possível e necessário para construir outro tipo de sociedade.
Além disso, é essencial questionar a premissa de que o capitalismo representa o auge da organização econômica possível. Os problemas ambientais, a crescente desigualdade e a alienação do trabalho são testemunho das limitações de um sistema baseado na acumulação de capital através da exploração. Neste sentido, o socialismo, longe de ser uma relíquia do passado, surge como uma alternativa necessária e urgente aos desafios do século XXI.
Em última instância, o debate sobre a planificação socialista contra o capitalismo não deve ser visto como mera confrontação teórica, mas sim uma discussão vital sobre o futuro que queremos construir. Então a tarefa que se apresenta é imaginar e trabalhar para uma sociedade em que a economia esteja ao serviço das necessidades humanas e em harmonia com o cuidado do planeta, superando as limitações impostas pela procura da rentabilidade. A possibilidade do socialismo, adaptado às realidades do mundo de hoje, não é apenas uma questão de viabilidade técnica, mas, acima de tudo, de um compromisso revolucionário e da determinação de sonhar e consequentemente lutar por um mundo diferente.