Revista Casa Marx

Friedrich Nietzsche: o indivíduo aristocrático contra a coletividade

André Barbieri

Uma reflexão sobre a questão do indivíduo e do coletivo na filosofia de Friedrich Nietzsche. A cisão entre os dois polos, e a resposta do socialismo com a perspectiva da refundação do indivíduo nos marcos da coletividade.

Em nossa época, a questão do indivíduo, a preservação de sua personalidade e as condições ideias para que sua subjetividade floresça, é um tema tratado amplamente. As correntes de opinião vinculadas ao capital buscaram durante toda sua história heroicizar a figura do indivíduo como o rival do outro, em cujo isolamento encontraria o locus amoenus de um gozo frutífero das possibilidades de ascensão no mercado, palco para um humano que alcançaria o estatuto racional ao entronizar a maximização do seu lucro. Seu anátema é a concepção socialista, que tem como objetivo a reinvenção do indivíduo como parte da coletividade, a emancipação da sua personalidade através da íntima associação com gênero humano que coopera entre si.

Esta poderosa concepção de um indivíduo reconectado à espécie humana como potência cooperativa ainda não alcançou converter-se em força material na consciência de massas. Não obstante, a aparente invulnerabilidade do “sujeito empreendedor” mostra suas marcas de falha em meio ao esgotamento do ciclo neoliberal. A demonstração dada pela juventude norte-americana, que ocupou universidades no coração do imperialismo para defender as bandeiras do povo palestino contra o genocídio perpetrado por Israel (financiado e auxiliado pelos Estados Unidos) é um dos mais prementes sinais do ciclo histórico que se abre. Com efeito, no seio da crise capitalista, a sensação implantada pelo neoliberalismo de que a salvação daquele “si mesmo” está na busca isolada pela redenção empreendedora começa a ser desafiada pela percepção de uma sociedade decadente, em que é necessário alguma espécie de unidade de ação e solidariedade com o outro para reaver as conquistas perdidas. O modus operandi destrutivo do capital cria cada vez maiores dificuldades para a ilusão do sujeito neoliberal invencível.

Isso não impede que essa velha noção seja recauchutada com o auxílio das toneladas de escritos que nas décadas da restauração burguesa foram tomados pelo ceticismo diante da revolução e da emancipação humana. Não admira: um modo de produção em crise sempre buscou destacar que a própria possibilidade de evolução pessoal dependia da manutenção de sua ordenação social específica. O capitalismo, que sobrevive a si mesmo, o fez de várias maneiras. Notoriamente, o empreendedorismo aparece como tentativa de renovar a carcomida ideologia positivista, de que na vida real os mais fortes devem superar os mais fracos, e triunfar à custa de sua derrota. Como uma espécie de salva-vidas, as variantes da extrema direita mundial abusam da retórica empreendedora contra a coletividade, o espírito de solidariedade e comunhão entre os seres humanos por uma sociedade superior àquela da exploração e da opressão capitalista. Essa separação entre o indivíduo e o coletivo é exercitada pela propaganda oficial e pelas atuais representações da burguesia, cuja mediocridade, como dizia Marx, está medida pelos seus “grandes calibres” – um arco que vai de Donald Trump a Javier Milei, de Pablo Marçal a Nayib Bukele.

Entretanto, há refinados pensadores que trabalharam de uma maneira bastante sofisticada, embora explícita, este temário tão caro aos espíritos conservadores. Talvez nenhum deles tenha marcado tanto a modernidade quanto o filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Como estabelece György Lukács em seu A Destruição da Razão (1954), muito antes da própria época imperialista, Nietzsche antecipava a ideologia que a burguesia em sua época de declínio usaria para se opor a qualquer transformação social como resposta a suas catástrofes, separando o indivíduo de qualquer intenção de livre atividade emancipatória enquanto coletividade. A aparente radicalidade de sua filosofia foi instrumentalizada, quer como estímulo, quer como inspiração, por distintas correntes que ligaram seu descontentamento parcial ao existente a uma oposição férrea ao materialismo histórico e à perspectiva socialista.

Por tais razões, retomamos a abordagem crítica à filosofia e ao pensamento de Friedrich Nietzsche, cujas bases conservadoras e antissocialistas expusemos já neste Ideias de Esquerda (ver aqui e aqui). Retomando a reflexão sobre a questão do indivíduo nos marcos do esgotamento do ciclo neoliberal, expandimos a discussão sobre a concepção nietzscheana da separação indivíduo/coletivo nesta entrega.

O indivíduo anti-revolução

Independente do ângulo pelo qual se deseje observar, podemos dizer que há em Nietzsche uma distinta cisão entre o individual e o coletivoentre as dimensões do pessoal e do social. Para Nietzsche o indivíduo está acima do coletivo, e o social se reduz a um palco para servir aos interesses dessa mônada individual – que na escala social se traduz no sujeito dominante, ou que busca dominar o restante. Veremos adiante que na fase madura de sua elaboração, aquela mais animada pelo irracionalismo monista do indivíduo, Nietzsche sustenta que a sociedade seja sacrificada para que os indivíduos mais seletos possam finalmente aceder às suas tarefas superiores de desenvolvimento humano-cultural, não importa os custos da redução de milhões de outros indivíduos – aquela maioria da humanidade privada do privilégio da vontade de potência – “a escravos, homens imperfeitos e meros instrumentos” (Para Além do Bem e do Mal, capítulo IX, § 258). A oposição de princípios com o socialismo é manifesta, na medida em que a filosofia nietzscheana só vê possibilidade de evolução individual com a negação do social.

Em geral, pelo caráter aforístico e muita vez contraditório de seus escritos, Nietzsche – que escrevia “não com palavras, mas com relâmpagos”, segundo diz em Ecce Homo – é retratado como um filósofo radical dotado de uma visão crítica do mundo moderno. A oposição à valoração moral instituída, a vontade de combater por aquilo que se considera verdadeiro para além do bem e do mal, e o impulso irrestrito da vontade sobre os demais: tais atributos se tornam atrativos para os descontentes com as misérias do capitalismo. Entretanto, apesar da pertinência de certas críticas, essa bateria de antagonismos se coloca em embate frontal com a luta pela emancipação da da humanidade contra o capital. Trata-se de uma crítica aristocrática do presente, conservadora no sentido da retrodatação de seus objetivos. A resultante no campo social é manifesta: apesar da política não ocupar um lugar central nas suas reflexões, toda a sua filosofia tem uma carga de choque frontal com o socialismo. Tem um conteúdo, portanto, reacionário.

O socialismo, com efeito, seria para Nietzsche o avassalador das personalidades, justamente por ter como perspectiva a emancipação social de todos os indivíduos oprimidos, pela ação dos próprios oprimidos. A ação seria, a princípio, um requisito louvável para um filósofo que tanta importância dá ao mito fáustico, ao axioma de que no início de tudo, havia apenas a ação. Não por outro motivo, Nietzsche despreza todos os freios morais como sustadores da atividade que aspira à potência (a Vontade de Potência do sujeito de dominação, que pode ser pessoal, ou um chefe de Estado). Isso explicaria o “alto e nobre para quê” do ser vivo. Entretanto, quando se trata da ação das massas, ela mesma se torna propriamente desprezível. Em suas Considerações Extemporâneas, escritas em 1874, Nietzsche arremete contra a história escrita pela atividade de massas: “Somente sob três perspectivas as massas me parecem merecer um olhar: uma vez, como cópias esmaecidas de grandes homens, impressas em mau papel e com chapas gastas; em seguida, como obstáculo contra os grandes; e enfim, como instrumentos dos grandes; de resto, leve-a o diabo e a estatística!” (Segunda Consideração Extemporânea, § 9).

A rigor, Nietzsche sequer considera que a ação de massas, promovida pelos socialistas, prosperaria em mantê-las coesas como forças, pois o povo “naufragaria no egoisticamente pequeno e mísero, na ossificação e no amor-próprio”, se desagregaria e deixaria de ser povo, criando “irmandades para fins de pilhagem contra os não irmãos, e semelhantes criações de vulgaridade utilitária”. Essa pulverização fatalística das massas em “novos sistemas de egoísmos individuais” sugeriria a luta redentora contra a influência socialista e a ilusão do coletivo. Na seção “Um olhar sobre o Estado”, em sua obra Humano, demasiado humano (1878), diz o filósofo alemão:

O socialismo é o fantasioso irmão mais jovem do quase decrépito despotismo, do qual quer ser o herdeiro; suas aspirações são, portanto, reacionárias no sentido mais profundo. Porque o socialismo deseja uma plenitude de poder estatal como só o despotismo alguma vez possuiu – efetivamente, ele supera todo o passado, na medida em que objetiva o completo aniquilamento do indivíduo, o qual lhe aparece como um injustificado luxo da natureza, que deve ser transformado e melhorado por ele em um órgão da comunidade adequado a seus fins (Humano, demasiado humano I, capítulo VIII, § 473)

Tal perigo de aniquilamento do indivíduo é a tarefa cotidiana do modo de produção capitalista, ao sufocar a vida de milhões de individualidades a nada mais do que trabalho como imposição, e tratar o trabalho excedente como sinônimo de mais-valor. Pelo contrário, para Nietzsche, esse mesmo perigo se encontrava nas revoluções, aniquiladoras do indivíduo aristocrático. É evidente que há uma semântica dupla quando se concebe o indivíduo segundo Nietzsche, e aquele de acordo com os socialistas.

Efetivamente, Nietzsche viveu no último período de desenvolvimento criador do capitalismo, que envolveu severas crises e guerras, como antessala da época imperialista. Viu a Europa da segunda metade do século XIX, já animada economicamente pela Revolução Industrial e socialmente pelo relâmpago da Revolução Francesa, uma sociedade dividida em classes sociais que passou pela Primavera dos Povos e pela Comuna de Paris. Nietzsche participou pessoalmente, de algum modo, de alguns desses momentos decisivos. Aos 26 anos ele serviu no exército de Otto von Bismarck como ajudante de enfermagem durante a guerra franco-prussiana de 1870, que daria origem não só à unificação alemã, mas também à Comuna de Paris. Apesar da breve participação, essa experiência deixou marcas indeléveis no seu pensamento, especialmente em função de sua preocupação com a renovação cultural germânica. Em cartas dessa época, o filósofo alemão cultiva a esperança de que as virtudes militares pudessem ser canalizadas do campo da política para o das tarefas culturais, como ele escreve ao amigo Carl von Gersdorff.

Mas a Comuna também gerou sentimentos políticos firmes em Nietzsche: sua reação foi decididamente negativa diante do primeiro governo de trabalhadores da história. É possível que essa postura fosse influenciada pelo momentâneo ufanismo alemão que dominava o país unificado, mas especialmente pela percepção aristocrática sobre a tragédia que a revolução na França teria sobre o patrimônio cultural europeu. Em carta a Wilhelm Vischer, datada de 27 de maio de 1871, Nietzsche afirmou que se sentia “atomizado” diante do “pior dia da sua vida”, quando acreditou real a falsa informação de que os communards haviam queimado o museu do Louvre.

Em O Nascimento da Tragédia, primeira obra de Nietzsche, publicada em 1872 em seguida à Comuna de Paris, o filósofo alemão parece dar razão ao apontamento de Trótski sobre o receio de que o indivíduo social (e não a individualidade monista da aristocracia) conectasse sua consciência com a ação de superação de sua condição atual. Em suas próprias palavras, carregadas de um prenúncio sombrio, diz: “Devemos notar: a civilização alexandrina [moderna] precisa de uma casta de escravos para poder existir e durar: mas nega, em sua consideração otimista da existência, a necessidade de tal casta, e por isso, quando o efeito de suas belas palavras de sedução e apaziguamento sobre a ‘dignidade do homem’ e a ‘dignidade do trabalho’ estiver gasto, irá pouco a pouco ao encontro de um horrível aniquilamento. Não há nada mais terrível do que uma casta bárbara de escravos que aprendeu a considerar sua existência como uma injustiça e que prepara a vingança, não só por si mesma, mas por todas as gerações. Talvez essa última apreciação possa ser lida como a conclusão de Nietzsche sobre a Comuna, que Marx saudava como “um governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política finalmente encontrada para se levar a efeito a emancipação econômica do trabalho” (O Nascimento da Tragédia, § 18).

Assim, ainda que tivesse certas críticas ao Estado como fator de paralisia sobre as conquistas no campo cultural e artístico, a desconfiança de Nietzsche sempre foi assacada contra os movimentos de trabalhadores, sob a convicção de que as reivindicações de igualdade e justiça social que caracterizam os movimentos de emancipação da classe trabalhadora eram incompatíveis com o engajamento que Nietzsche julgava necessário para a elevação da cultura. Dito de outro modo, o filósofo alemão associou, ora implícita ora explicitamente, seu ataque contra a coletividade ao ataque contra a concepção socialista, um projeto de sociedade superior cujo núcleo – a libertação da humanidade e a substituição da dependência humilhante à matéria pela planificação racional e harmônica entre a natureza e as necessidades humanas – é visto por Nietzsche como um perigo à divisão hierárquica da sociedade entre exploradores e explorados, base creditada de toda a elevação da cultura.

Na sessão “A ilusão nas doutrinas subversivas”, em Humano, demasiado humano, Nietzsche recorre ao iluminismo francês, que considera predecessor do socialismo do século XIX (e dos não nomeados Marx e Engels), para negar nele o espírito revolucionário. A liberdade do indivíduo está aqui está conectada com a moderação e a oposição a toda mudança repentina na sociedade:

Existem fantasistas políticos e sociais que de maneira ardente e eloquente clamam pela subversão de toda a ordem, na crença de que o orgulhoso templo da beleza humana se erguerá imediatamente, por sua própria força. Nesses sonhos perigosos há ainda um eco das superstições de Rousseau, que acredita na bondade primordial da natureza humana, como que soterrada, atribuindo às instituições da civilização, na sociedade, no Estado, na educação, a culpa por esse soterramento. Infelizmente, é bem sabido pela experiência histórica que cada subversão dessa espécie reanima as energias mais selvagens, os horrores e extravagâncias enterrados desde as eras mais remotas […] Não é a natureza moderada de Voltaire, inclinada para a regulação, purificação e reconstrução, mas os desatinos apaixonados a as meias-mentiras de Rousseau que excitaram o espírito otimista da revolução, contra a qual eu grito, “Ecrasez l’infâme!” [Esmague a infame!]” Quando a perfeita resolução intelectual e investigativa, isto é, a liberdade de espírito, se introjetou no caráter, ela produz a moderação, e mostra a inutilidade e o perigo de todas as mudanças repentinas (Humano, demasiado humano I, capítulo VIII, § 463).

A ameaça oferecida pela coletividade ao projeto individualista nietzscheano se dá na própria evolução dos instrumentos da comunicação e interpretação dos seres humanos. Na obra Para Além do Bem e do Mal, em seu último capítulo, Nietzsche busca elucidar a problemática daquilo que seria o nobre, esclarecendo primeiramente o que é ignóbil, ou seja, o não nobre. A história do desenvolvimento humano, das suas civilizações, das suas nações, estaria baseada na aproximação cada vez maior de indivíduos que compartilham das mesmas experiências. Esse compartilhamento de experiências similares é a base do desenvolvimento da linguagem, dos signos e da própria fala, de maneira que a necessidade acercaria os seres humanos que expressavam vontades similares através de símbolos similares. Essa crescente facilidade na comunicação da necessidade, ao se basear em experiências comuns, usuais, ordinárias do dia a dia, aproximavam os seres humanos mas ao custo de reduzir sua atividade, segundo Nietzsche, ao que é medíocre, ao que é facilmente compreensível por qualquer um. Para o filósofo alemão, essa “negação do extraordinário, do único, do incompreensível, do refinado e do seleto na atividade humana” em nome da evolução através do que é “similar, do ordinário, do medíocre, do gregário” – isso é o ignóbil. O não nobre para Nietzsche seria aquele que renuncia ao refinamento individual, à incompreensão do extraordinário, em nome da diluição na mediocridade social. O nobre, então, deveria ser o oposto disso. “O que significa ainda a palavra nobre entre nós hoje em dia? Não é através de suas ações que um homem se mostra como nobre – ações são sempre ambíguas, sempre inescrutáveis; também não é através dos seus trabalhos. É através da crença que determinamos de maneira decisiva a sua escala na gradação social, é através dessa certeza fundamental que uma alma nobre tem de si mesma, em outras palavras, a alma nobre é aquela que reverencia a si mesma, a que se considera como criadora de valores” (Para Além do Bem e do Mal, capítulo IX, § 268). Em outras palavras, a dimensão coletiva significa o rebaixamento ordinário das capacidades do indivíduo, a anulação das individualidades, que em verdade sempre se apoiaram na cooperação para desenvolver todas as capacidades da personalidade humana.

Dessa forma, os fundamentos filosóficos com os quais Nietzsche compreende e ordena a realidade operam de maneira diferente dependendo de se ele quer tratar do indivíduo (limitado a seu corpo físico) ou da sociedade: a mudança do indivíduo é vista positivamente, a mudança do coletivo é vista negativamente, porque o indivíduo só pode evoluir contra os demais.

Vemos aqui um dos ângulos da separação entre o indivíduo e o coletivo em Nietzsche, que tinha raízes filosóficas mais profundas, tributárias de uma interpretação muito particular da cultura da Grécia Antiga.

O retorno ao helênico: entre a cultura e o extemporâneo

Em um artigo intitulado “A propósito da filosofia do além-do-homem”, Trótski assinala em Nietzsche um receio orgânico de que a massa de escravos assalariados da indústria moderna se tornasse imbuída de sua moralidade, e passasse a considerar indigna de si mesma a condição de mero fator de exploração no trabalho cotidiano, cinzento e produtivo. A essa massa não estava reservada a dinâmica do “além-do-homem”. A subalternidade daquele que trabalha (vítima do tripalium, instrumento romano de tortura que se tornou a raiz da palavra “trabalho”) trazia consigo a possibilidade da insurreição, uma espécie de “superação de si” incompatível com a ansiedade de Nietzsche pela elevação seletiva do indivíduo. Diz Trótski que:

Para a humanidade inteira, não apenas não é necessário seguir a “moral dos senhores”, criada para os senhores e tão somente para estes, senão, pelo contrário, exige-se de todas as pessoas comuns, os não-super-homens que “executem as tarefas comuns, em fileiras cerradas”, em obediência aos que nasceram para levarem uma vida superior. Destes se exige que encontrem a felicidade no cumprimento consciencioso das obrigações que lhe são impostas para a existência da sociedade, na cumeeira da qual se encontra o ínfimo número de “super-homens”. Pretender que as “castas” inferiores encontrem uma satisfação moral na execução do serviço prestado aos grandes não se trata de algo particularmente novo…

A moral dos senhores que Nietzsche não reserva à maioria esmagadora dos indivíduos humanos é a moral aristocrática que fundava a culturalmente rica sociedade na Grécia Antiga – e, mais em geral, a sociedade da bacia do Mediterrâneo na Era do Bronze, como retratados no ciclo homérico que vai da Ilíada até a Odisseia, e da tragédia ateniense do século V antes da nossa era. Nessa cultura, o bom e o mal não estavam categorizados segundo a moral, mas segundo a força. Em Humano, demasiado humano, na entrada sobre a “dupla história do bom e do mau”, Nietzsche se apoia na cultura grega para dizer que todo aquele que tem o poder para retribuir o bem pelo bem, e revidar o mal causado causando o mal, é chamado de bom, e o impotente, que não tem força para a retribuição justa, é chamado de mal. Diz que “o bom e o mau significaram por um longo tempo a mesma coisa que o nobre e o vil, o mestre e o escravo. O inimigo não era visto como mau, na medida em que podia retribuir na mesma moeda. Em Homero, os troianos e os gregos são ambos considerados bons. Não é aquele que nos causa dano, mas aquele que é desprezível, que é considerado mau” (Humano, demasiado humano, capítulo II, § 45). Essa abordagem social é já fruto de uma compreensão aristocrática do mundo.

Se existe uma mudança coletiva desejada por Nietzsche, é o retorno ao passado helênico, à exacerbação da estratificação social. Estamos falando do retorno ao universo grego da Antiguidade, berço apoteótico da vida aristocrática. Nietzsche tinha especial predileção pela cultura, a mitologia e a filosofia da Grécia antiga, conhecia os filósofos e os debates das escolas de pensamento gregas. Cursava tanto pelos pensadores ditos “pré-socráticas” ou pré-platônicos, – entre os quais, Tales, Anaximandro, Heráclito, Anaxágoras, Empédocles e Demócrito, sobre os quais escreveu em 1873, n’A filosofia na época trágica dos gregos – quanto as figuras clássicas da tríade Sócrates, Platão e Aristóteles – com os quais mais dialoga em suas obras, e frequentemente com posições contraditórias, até mesmo aflitivas, sendo Sócrates o principal exemplo. Em muitas passagens de sua obra se nota o caráter agônico da relação do filósofo alemão com a persona de Sócrates, criticado por Nietzsche como plebeu inimigo da arte trágica e da ética gregas, um agente de dissolução do instintivo e do mítico em favor da plenipotência da razão, mas que colhe ao mesmo tempo uma assombrada admiração de Nietzsche, a ponto de o considerar “tão próximo de mim que quase sempre tenho de combatê-lo”. Em Nietzsche, essa vontade pelo helênico, pela ressurreição de uma sociabilidade inspirada na Grécia Antiga, o movia a escrever diligentemente em defesa da remodelagem da sociedade moderna à maneira dos gregos, inclusive em seu aspecto ético-moral. O desenvolvimento da sociedade na segunda metade do século XIX gerou novas ideias, que correspondem a um indivíduo determinado cujas escolhas ético-morais não eram satisfatórias para Nietzsche. O melhor caminho estaria em reconstituir a virtude da sociedade aristocrática da Grécia Antiga, e substituir a moralidade herdada da tradição judaico-cristã pela moralidade da aristocracia escravista grega: uma moral individualista, que prezava a bravura e a coragem, que associava o forte ao que é bom e o fraco e indefeso ao que é ruim e mau, que tinha aversão pelos modos pacíficos e idolatrava a guerra como caminho da glória e da superação pessoal.

Nietzsche se aproveita de maneira um tanto…extemporânea…da cultura social grega para, em tempos de industrialização capitalista e de luta de classes entre trabalhadores e burgueses, separar o indivíduo do coletivo e os opor decididamente. Também em Humano, demasiado humano, Nietzsche desenvolve essa separação hierárquica, e reduz as dimensões do compromisso social a um intercâmbio valorativo entre sujeitos aristocráticos, que não devem nada à sociedade “inferior” a eles. Aqui, o filósofo alemão estabelece o apotegma segundo o qual só pode haver justiça entre iguais“A Justiça (igualdade) tem sua origem entre poderes iguais, como bem compreendia Tucídides: isto é, tem origem onde não se pode reconhecer nenhuma clara supremacia […] cada parte satisfaz a outra, e cada um recebe do outro aquilo que mais aprecia. A Justiça, portanto, é a recompensa e o intercâmbio baseados num grau semelhante de poder […] não sentimos nenhuma injustiça quando a diferença é muito grande entre nós mesmos e outra criatura (Humano, demasiado I, capítulo II, § 92). Para Nietzsche só pode haver Justiça e igualdade entre aqueles que são iguais em poder, entre frações da classe dominante – em termos marxistas – e não deve haver igualdade entre o forte e o fraco, o poderoso e o impotente, ou entre a classe opressora e a classe oprimida. Para fins de ilustração, assinala que os gregos não recriminam Xerxes, rei persa que os enfrentou na Segunda Guerra Médica, quando eliminou cruelmente os súditos que o contrariavam, na medida em que entre eles havia uma enorme diferença de poder (idem, capítulo II, § 81). Essa forma de encarar o bom e o mau, a diferença de direitos entre o sujeito de força e as demais criaturas ditas “inferiores” são aspectos centrais do individualismo aristocrático nietzscheano, sumamente anti-socialista se o consideramos sob essa luz.

A cisão de princípios entre o individual e o coletivo que move o Nietzsche entra na sua própria aplicação dos princípios da sabedoria helênica. Aquela superação permanente de si mesmo que Nietzsche valida ao indivíduo (até atingirmos o Übermensch, o além-do-homem, o ideal do indivíduo nunca satisfeito em avançar) se converte no seu contrário quando trata da sociedade existente, que para Nietzsche não deve ser superada de modo algum. Essa separação completa entre o individual e o coletivo, e a subordinação do social ao pessoal, está na raiz do caráter extremamente conservador e reacionário da sua filosofia. Vamos ver como isso se expressa na filosofia. Nietzsche tem uma afinidade nominal explícita com os princípios de Heráclito de Éfeso, filósofo pré-socrático que entre nós é conhecido pelo lema “Tudo flui”. Heráclito deixou excertos filosóficos sobre os princípios basilares do movimento que depois serão usados por muitos pensadores, incluindo dialetas como Hegel e Marx. Heráclito enfatizava que tudo o que via no mundo era vir-a-ser, devir, o permanente ser-outro da natureza. Enxergava isso positivamente, e não como uma maldição, como o fazia Anaximandro, que lamentava a “maldição do vir-a-ser” como uma punição do cosmos aos erros humanos. Heráclito respondeu a isso: “Não vejo nada além do vir-a-ser. Não vos deixeis enganar! É vossa curta vista, e não a essência das coisas, que vos faz acreditar ver terra firme em alguma parte do mar do vir-a-ser e do perecer. Usais nomes das coisas como se estas tivessem uma duração rígida: mas nem mesmo o rio em que entrais pela segunda vez é o mesmo que dá primeira vez”. Em Heráclito, o mundo está destituído de permanência, indestrutibilidade, ausência de mudança; existe, pelo contrário, uma total inconstância de todo o efetivo. Afirma, portanto, que da guerra dos opostos é que surge todo o vir-a-ser, por isso ele considera a guerra como algo necessário.

Nietzsche aprova explicitamente esses princípios, ao menos quando dizem respeito ao indivíduo. A ideia do permanente vir-a-ser vai ser depois trabalhada no conceito da vontade de potência e do Übermensch, e em sua última obra, Ecce Homo (1888), Nietzsche tece um elogio a Heráclito. Dizendo que não havia encontrado nenhum filósofo com “sabedoria trágica”, complementa dizendo: “restou-me uma dúvida quanto a Heráclito, em cuja proximidade me sinto mais aquecido, sinto mais bem-estar do que em qualquer outra parte. A afirmação do perecimento e do aniquilamento, o que é decisivo em uma filosofia dionisíaca, o dizer-sim à contradição e à guerra, o vir-a-ser – nisso tenho de reconhecer o mais aparentado a mim que até agora foi pensado” (Ecce Homo, § 3).

Mas quando se trata dos sistemas sociais e estatais, esse eterno prazer pelo vir-a-ser desaparece em Nietzsche. Pelo contrário, alerta contra todo o vir-a-ser social, o perigo da transformação da coletividade, do levante dos escravos insurretos que descobrem a injustiça de sua existência e querem acabar com ela, como vimos em relação à Comuna de Paris. Falando contra os falsos “espíritos livres”, escravos das ideias democráticas, em Para Além do Bem e do Mal (1886), diz:

Eles são o oposto daquilo que propõem nossas intenções e instintos: pertencem à natureza dos levellers [a plebe revolucionária da Revolução Puritana na Inglaterra, NdA], não são livres, são ridiculamente superficiais, especialmente em sua parcialidade inata em enxergar a causa de todo o fracasso e toda a miséria humana nas velhas formas em que a sociedade existiu – uma noção que inverte alegremente a verdade! O que prazerosamente conseguiriam com toda a sua força são as verdes pradarias do rebanho universal, junto à segurança, o conforto e o alívio da vida para todos; suas duas sonatas e doutrinas mais cantadas são “a Igualdade de Direitos” e a “Simpatia a todos os Sofredores” – e o próprio sofrimento é visto por eles como algo que deveria ser absolutamente eliminado […] Nós acreditamos que a severidade, a violência, a escravidão, o perigo em cada rua e no coração, o secretismo, o estoicismo, a arte dos tentadores e o diabólico de toda espécie – acreditamos que tudo o que é perverso, terrível, tirânico e predatório serve tanto para a elevação da espécie humana quanto o seu oposto (Para Além do Bem e do Mal, capítulo II, § 44).

Aquele amor ao vir-a-ser, ao perecimento e aniquilamento das formas de que falava Heráclito é deixado de lado. As transformações revolucionárias de sociedades humanas são condenadas pelo próprio fato de servirem para colocar fim aos traços da exploração e opressão mais selvagens, que segundo Nietzsche são as condições em que “a planta humana cresceu até hoje mais vigorosamente”.

A guerra como elixir à degeneração social

O ódio à dimensão do coletivo como rebaixamento das aquisições culturais daquela leva à concepção de que as guerras são favoráveis aos seres humanos que querem elevar a cultura. Em uma das suas conversas com Johann Peter Eckermann, Goethe – o maior escritor alemão, muito admirado por Nietzsche – diz uma frase que marcou profundamente a obra nietzscheana, e que aparece explicitamente em O Nascimento da Tragédia de 1872. Eckermann registra essa conversa com Goethe em 1828. Nela, o grande poeta faz uma avaliação sobre Napoleão Bonaparte, o general francês que mudou a face política da Europa com suas campanhas e triunfos militares, e a quem Goethe conheceu em 1808. Em base a esse encontro, Goethe sugere que a guerra é uma forma de produtividade, e que a ação seria tão importante quanto obras escritas para a evolução histórica do humano. “Napoleão foi um dos seres humanos mais produtivos que já viveu; viveu como um semi-deus, atravessava o mundo de batalha em batalha, e de vitória em vitória, e pode-se dizer dele que vivia em constante estado de inspiração; sim, meu caro, não é somente por meio de poemas e peças teatrais que se pode ser produtivo, há também uma produtividade dos atos”. Nietzsche adaptaria essa reflexão para seus propósitos. A guerra seria essa produtividade dos atos que teria um papel de inspiração criadora através da violência que regenera.

Da Grécia antiga também vinha a inspiração guerreira da filosofia nietzscheana. Heráclito, que já havia inspirado Nietzsche na concepção do vir-a-ser, considerava que a polaridade vir-a-ser e perecer era o desdobramento de uma força única em duas atividades qualitativamente opostas, e que lutavam pela reunificação. Então, a guerra de cada uma das qualidades ou virtudes na terra tinha uma função: da guerra dos opostos nasce todo vir-a-ser. Heráclito o afirmava no sentido de que aquelas qualidades que parecem duradouras a nós exprimem apenas a preponderância momentânea de um dos contrários, uma luta que perdura pela eternidade. Em Humano, demasiado humano, Nietzsche combina Heráclito e Goethe para encontrar a virtude de todas as guerras na sociedade moderna: “Uma humanidade altamente cultivada e portanto necessariamente debilitada, tal como vemos na Europa moderna, não só precisa de guerras, mas das maiores e mais terríveis guerras, de ocasionais recaídas na barbárie, antes que, em função da existência da cultura, perca sua cultura e sua própria existência” (Humano, demasiado humano II, capítulo VIII, § 477).

O ódio impessoal e o extermínio com boa consciência, próprio das guerras, eram para Nietzsche meios de revigorar a cultura de um país, às expensas da destruição de sociedades rivais. É na rivalidade e no impulso destrutivo que o filósofo alemão encontra o elixir da regeneração. Deriva daí sua admiração por figuras militares, ou sujeitos de dominação, como César, Alexandre Magno, Napoleão Bonaparte. Para Nietzsche, essa tensão produtiva das guerras contrastava diretamente com o desejo de cooperação harmônica entre os seres humanos. Se a ausência de guerra gera a degeneração, os instintos mais selvagens do indivíduo não podem ser cerceados pelo sentimento comunal e harmônico da sociedade. Nietzsche postula que a cooperação cria uma espécie animal que é dependente uma da outra, que é cooperativa ao invés de combativa, que prefere viver sempre que possível sem a luta. Esse seria o caminho da degeneração da espécie.

Trata-se de um assalto contra a cooperação e colaboração do trabalho humano. Uma leitura deturpada, que com muita dificuldade tenta esconder a crescente unidade entre cooperação e combate entre os trabalhadores que adentravam o terreno da luta de classes e construíam suas organizações políticas e sindicais, suas greves e manifestações contra os governos capitalistas – e inclusive suas revoluções contra as guerras, como na Comuna. Não foi a violência dos senhores, mas a violência organizada dos escravos insurretos que teve um papel criador na história, como dizia o Engels. É a violência revolucionária das massas – aquela que é inadmissível a Nietzsche – mediada por um programa bem meditado e por uma direção consciente, que pode colocar fim à barreira que os capitalistas estabelecem contra a generalização e desenvolvimento da cultura em todos os seus aspectos.

Essa é uma manifestação da polaridade entre as dimensões do individual e do social para Nietzsche: o primeiro admite a máxima mudança, o segundo não admite mais que a conservação. E não deixa de ser chamativo que do ponto de vista da lógica filosófica Nietzsche se delimite do método dialético em que o desenvolvimento de toda a matéria se dá pelo movimento dos contrários. Nietzsche é um franco inimigo da dialética, e não é difícil encontrar não apenas Hegel, mas o próprio Marx, à sombra das críticas que fazia ao método dialético socrático. Na obra Crepúsculo dos Ídolos (1887), em que dedica um capítulo ao problema de Sócrates, Nietzsche descreve Sócrates como “o mais baixo entre os baixos na escala social”, e conecta a isso o método de exame da dialética socrática. Com Sócrates, o grego teria passado a saborear a dialética, que antes era evitada na alta sociedade, que não estava acostumada a ser questionada sobre as razões de suas ações – o poder da aristocracia escravista ateniense lhe dava o privilégio de não explicar por que razões agia de tal ou qual forma. Nietzsche chega mesmo a dizer que o viés moral da filosofia grega, de Platão em diante, era resultado do amor patológico à dialética (O Crepúsculo dos Ídolos, capítulo II, § 10), referindo-se aos diálogos de Platão em que Sócrates aparece como o agente de dissolução do instinto e do inconsciente da elite grega. Para Nietzsche, a ferramenta da dialética é a adaga nas mãos dos mais pobres que querem reverter o sistema social – “com a dialética, a plebe vem ao topo” (O Crepúsculo dos Ídolos, capítulo II, § 5). Na própria sociedade grega antiga, o conservadorismo nietzschiano busca castigar aquilo que julgava ameaçar de maneira subversiva o status quo da hierarquia social.

A sociedade subordinada ao indivíduo

A discussão sobre a moral e os valores da Grécia Antiga possuía um aspecto decisivo na forma como Nietzsche encararia o problema da edificação cultural da humanidade. A sociedade grega era profundamente ligada à ideia do governo pela excelência, por aqueles que superavam os demais em cada uma das suas tarefas particulares. O termo aristocracia está ligado etimologicamente à palavra aristos, que em grego significa o melhor; mas também lembra o termo aretê, que significa excelência. A arte grega está repleta de episódios que retratam a excelência de suas figuras exemplares – efetivamente, a aristeia é uma das convenções dramáticas da poesia épica, em que um heroi em batalha tem seus melhores lances contra os adversários e se torna quase invencível, virtualmente um deus (na Ilíada tais momentos ocorrem a Aquiles contra os troianos, assim como com Heitor contra os gregos). Se traduzimos para a política, a aristocracia seria o poder daqueles que superam os demais, o poder dos melhores, que no caso grego eram sempre escolhidos no interior da elite escravista. Em sua República, Platão sugere um governo aristocrático formado pelos melhores governantes, que na sua imaginação seriam os filósofos.

Influenciado por sua leitura particular dos gregos, Nietzsche transpunha essa concepção para todos os ramos da atividade criadora humana, da cultura à política, e fazia a associação entre aqueles que seriam os “melhores” com os economicamente dominantes. A questão é que o filósofo alemão utilizava a organização hierárquica da sociedade escravista grega para pensar o mundo moderno, e isso se relacionava diretamente à existência de indivíduos senhoriais que elaborariam as riquezas culturais, e a sociedade de escravos que trabalharia para sustentar o tempo de ócio dos senhores.

Em Humano, demasiado humano, Nietzsche escreve: “Uma cultura mais elevada só pode se originar onde existem duas castas distintas de sociedade: aquela da classe trabalhadora e aquela das classes ociosas, ou seja, a casta que é capaz de um verdadeiro ócio. Expresso em termos mais duros, a casta do trabalho compulsório e a casta do trabalho livre. O ponto de vista da divisão da felicidade não é essencial quando se trata da produção de uma cultura mais elevada” (Humano, demasiado humano I, capítulo VIII, § 439). A produção da cultura para Nietzsche está condicionada pela divisão da sociedade em classes sociais, mas não só isso: a escravidão é tratada como algo naturalmente conectado com a produção intelectual. Como acreditavam Platão e Aristóteles, os escravos, trabalhadores rurais da Era do Bronze na região do Mediterrâneo, eram indispensáveis para que os patrícios pudessem fazer filosofia e participar da vida política. Essa divisão entre o trabalho manual e intelectual era traduzida por Nietzsche pela arte de comandar e a arte de obedecer, e quando essa atividade dupla não funcionava, quando a subordinação não era mais possível, “uma multidão de resultados maravilhosos deixam de ser alcançados, e o mundo como um todo se torna mais pobre”. No último capítulo do Para Além do Bem e do Mal, que se chama “O que é Nobre?”, Nietzsche é ainda mais claro:

Toda elevação da espécie humana foi até hoje fruto do trabalho de uma sociedade aristocrática – e assim sempre será – uma sociedade que acredita numa férrea gradação de estamentos e em diferenças de valor entre os seres humanos, e que requer a escravidão, de uma forma ou de outra”. E como esse grupo seleto dos melhores, essa aristocracia, deveria se comportar em relação à sociedade? Nietzsche responde, “A questão essencial, numa boa e saudável aristocracia, é que não deve enxergar a si mesma como mera função de uma comunidade, mas o seu maior significado e justificação – ela deve aceitar de bom grado o sacrifício de uma legião de indivíduos, que, para o benefício dessa aristocracia, devem ser suprimidos e reduzidos a escravos, homens imperfeitos e meros instrumentos. Sua crença fundamental deve ser precisamente que a sociedade não deve existir para o seu próprio bem, mas apenas como uma fundação ou andaime através do qual uma seleta classe de seres humanos pode-se elevar às suas tarefas superiores, e em geral a uma existência superior (Para Além do Bem e do Mal, capítulo IX, § 258).

Em seguida, Nietzsche conclui:

Evitar a injúria, a violência, a exploração, colocar a vontade individual em sintonia com a do outro: isso pode resultar grosso modo numa boa conduta entre indivíduos quando as condições necessárias estão dadas […] Tão cedo, entretanto, quanto se queira generalizar esse princípio, e mesmo torná-lo o princípio fundamental da sociedade, ele se mostraria imediatamente como aquilo que é – uma Vontade de negação da vida, um princípio de dissolução e decadência. Aqui se deve pensar profundamente e resistir a toda fraqueza sentimental: a vida em si mesma é essencialmente apropriação, violação, conquista do mais fraco pelo mais forte, supressão, severidade, intromissão das formas peculiares, incorporação, e para dizer de alguma maneira direta, exploração”, e ele segue, dizendo que uma saudável aristocracia deve saber fazer isso a outros corpos, “essa é a encarnação da Vontade de Potência, e se esforçará para assim crescer, assim ganhar terreno, atrair as coisas para si mesmo e adquirir ascendência – não em função de qualquer moralidade ou imoralidade, mas porque esse ser vive, e porque a vida é Vontade de Potência. De nenhuma maneira, entretanto, a consciência comum dos europeus está disposta a ser corrigida nesse aspecto. Todos agora falam, mesmo sob o manto da ciência, sobre as condições de uma sociedade futura em que desaparece o caráter de exploração – o que soa a meus ouvidos como a promessa de um modo de vida destituído de qualquer função orgânica. A exploração não pertence a uma sociedade depravada, imperfeita ou primitiva: pertence à própria natureza humana, é uma consequência da Vontade de Potência, que é precisamente a Vontade de Vida (Para Além do Bem e do Mal, capítulo IX, § 259).

A justificação da escravidão como base fundamental para a cultura moderna é uma forma de ressignificar a separação entre o indivíduo e o coletivo – através da subordinação violenta da sociedade aos interesses pessoais do sujeito de potência. Em A Gaia Ciência (1882), Nietzsche assentara uma base para esse pensamento, de uma maneira mais explícita: “A antiga coloração da nobreza nos falta, porque falta ao nosso sentimento o escravo antigo. Um grego de ascendência nobre encontrava, entre sua altura e aquela última baixeza, tão descomunais graus intermediários e uma tal distância, que mal podia ver com clareza o escravo: nem mesmo Platão o viu mais por inteiro. É diferente conosco, habituados que estamos à doutrina da igualdade entre os homens” (A Gaia Ciência, Livro I, § 18).

O resgate da rica cultura grega é usado para assumir uma postura retrógrada em toda a linha. Se o melhor que a humanidade deu depende da relação entre senhor e escravo – traduzida no antagonismo completo entre o indivíduo e o social – a transição a modos de organização social futuros estaria vedada. A única transformação possível é apenas a volta ao passado. Da mesma forma, o heroi deve ser o “senhor”, o mestre, e não as classes empobrecidas. Não à toa, Nietzsche ataca a ideia do trabalhador como o sujeito social revolucionário da época, um valor alheio à sociedade aristocrática antiga, em que aos patrícios era atribuída a capacidade de produzir culturalmente. Os gregos não viam a existência – ou a continuação da existência – como algo bom em si mesmo, e como o trabalho era visto como mero estabilizador da situação humana na terra, como algo não criador, nunca poderia ser celebrado. Na obra Aurora (1881), considerada por Nietzsche uma de suas obras mais pessoais, o filósofo alemão afirma que o perigo é que o medíocre se torna o ideal, o extraordinário se tornou o ordinário, aquilo que era o mais baixo e comum, o trabalhador, se torna o modelo a se seguir. E o trabalhador não poderia ser isso, porque é o homem mais perigoso, o homem revolucionário, que deve ser contido por aqueles que prezam a moderação contrária a toda mudança repentina ou estrutural, que odeiam toda revolução.

A refundação do indivíduo no marco da coletividade

Essas linhas são categóricas para entender como o Nietzsche cria uma atmosfera de desconfiança e hostilidade por parte do instinto individual contra o social, e desenvolve um ódio à Revolução explícito, ao sujeito revolucionário, o desprezo pelo trabalhador como servo necessário e a veneração à hierarquia social como fio de coesão social. E aqui é necessário responder: a alta cultura humana é produto de uma sociedade aristocrática?

Definitivamente, Nietzsche está equivocado, cego por sua recuperação enviesada dos valores gregos. A cultura humana não se resume ao eurocentrismo nietzscheano. Como dizem Marx e Engels, a cultura se multiplica por todas as civilizações e povos antigos até hoje, e em suas particularidades específicas é um símbolo da riqueza do ser humano em cada continente e região da terra. Além disso, essa riqueza cultural, assim como toda a riqueza material dos seres humanos em todos os tempos, não foram fruto de meros “esforços individuais” – ainda que sem dúvida o indivíduo deixa sua marca. São fruto do trabalho cooperativo, da cooperação do trabalho.

Esse trabalho cooperativo, multiétnico, que envolve mulheres e homens, negros e brancos, trabalhadores de todas as latitudes, tornou-se cada vez mais complexo e mais indispensável para a moderna produção humana. Aqueles que modelam e constroem tudo o que existe no mundo, os trabalhadores, são fundamentais para essa edificação cultural da humanidade. Imaginemos, por exemplo, os trabalhadores mineiros que extraem minérios como lítio, silício e outros, fundamentais para a fabricação dos modernos semicondutores, indispensáveis para o desenvolvimento de alta tecnologia como a inteligência artificial, a internet da coisas e a computação em nuvem – todos parte do general intellect. O que o socialismo levantou como bandeira é a abolição da divisão impositiva entre o trabalho manual e intelectual, na batalha por uma sociedade em que todos os seres humanos possam combinar as duas dimensões numa só, aumentando de maneira exponencial a capacidade de criação cultural, literária, musical, artística em todos os níveis, ao ponto de multiplicarmos os Goethe, Shakespeare, Cervantes, Monet, Rembrandt, Beethoven, e a humanidade consiga acessar o gênio da própria espécie.

Para isso, é claro que a escravidão louvada por Nietzsche tem de acabar: em nosso caso, a escravidão assalariada no capitalismo. Os socialistas trataram disso com a perspectiva da redução do tempo de trabalho socialmente necessário a um mínimo possível, que significaria a eliminação do trabalho como imposição e o ressurgimento do trabalho como necessidade vital, vinculando liberdade e necessidade em uma comunidade de produtores livremente associados. Uma condição semelhante exige que seja superada a separação nietzscheana entre o individual e o coletivo, a fim de que a humanidade alcance uma forma de individualidade distinta em que a condição do enriquecimento das personalidades individuais seja o contato íntimo e a colaboração com o outro. Em outras palavras, trata-se da refundação do indivíduo como parte da coletividade.

Corrigindo o grande equívoco de Nietzsche, é necessário concluir que o indivíduo que luta pela transformação de toda a sociedade é ele mesmo transformado, e avança em uníssono com ela.

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