Flávia Telles
João de Regina
Ricardo Normanha é sociólogo, professor e pai. Atualmente é pesquisador de pós-doutorado na Faculdade de Educação da Unicamp e coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Diferenciação Sociocultural (GEPEDISC - Unicamp) e o Grupo de Estudos sobre Plataformas Digitais na Educação. Também integra o Observatório das tecnologias e Inteligência Artificial na Educação (Edutecia).
Ricardo, em primeiro lugar, agradecemos pela disponibilidade para participar desta entrevista. Para começarmos, gostaríamos que você falasse um pouco sobre sua trajetória como pesquisador. Suas investigações transitam por temas como educação e a formação do trabalho no capitalismo, com atenção especial à indústria cultural — em particular, o cinema — e às relações de trabalho nesse campo. Como a perspectiva marxista tem orientado seu olhar sobre esses temas e de que forma ela contribui para compreendê-los de maneira crítica?
R.N: Em primeiro lugar, gostaria de agradecer pelo convite e parabenizá-los pela iniciativa do Esquerda Diário, que está completando 10 anos de existência, e pela fundação do Instituto Casa Marx. Sou um frequentador assíduo da Casa Marx em São Paulo. É um espaço fundamental para formação política e de massa crítica em um momento tão crítico que vivemos no mundo. Coube à nossa geração fazer, mais uma vez, o enfrentamento ao fascismo e iniciativas como as que são levadas a cabo pelo MRT são muito importantes nesse momento histórico.
Sobre a minha trajetória, posso dizer que, de certa forma procurei sempre articular as atividades de docência, pesquisa e militância. Atuo como professor desde que me formei em Ciências Sociais pela Unicamp em 2006. Fiz mestrado em Educação e doutorado em Ciências Sociais, tudo pela Unicamp e mantive a atuação como docente na educação básica tanto na rede pública estadual quanto na rede privada. No mestrado e doutorado estudei as relações de produção e de trabalho na indústria cinematográfica brasileira, sempre buscando colocar luz sobre os processos produtivos do cinema inscritos numa dinâmica da Indústria Cultural, em que os produtos culturais assumem a forma de mercadorias. Nesse sentido, minhas pesquisas buscaram investigar como se configuram as relações de trabalho na produção dessa mercadoria: o filme de longa-metragem. E nesse tipo de observação, as perspectivas da tradição marxista são inescapáveis. A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt e as contribuições do marxismo inglês, com Terry Eagleton e Raymond Williams, foram fundamentais para se analisar a produção cultural no capitalismo. Para uma investigação sobre as metamorfoses do mundo do trabalho, a sociologia de Ricardo Antunes é igualmente importante, assim como as análises sobre o trabalho artístico desenvolvidas por Pierre Michel Menger. Essas análises sobre o trabalho inscrito nas produções cinematográficas brasileiras foram realizadas também a partir de uma perspectiva interseccional e, nesse sentido, as obras de Heleieth Saffiotti, Danièle Kergoat, Helena Hirata e Angela Davis foram de grande relevância.
Hoje você tem se dedicado a estudar a plataformização da educação. O que te sensibilizou ou motivou a voltar o olhar para esse tema? De que maneira ele dialoga com as preocupações que já vinham atravessando sua trajetória de pesquisa?
R.N: De fato, a compreensão da importância do desenvolvimento tecnológico como propulsor da acumulação capitalista já estavam presentes nas minhas pesquisas sobre o campo da cultura, em especial do cinema (que é um tipo de arte que depende, talvez mais do que outras, do aparato técnico). Mas a questão das plataformas e tecnologias digitais na educação se impuseram como um objeto de pesquisa, sobretudo, por conta da minha experiência como professor durante a pandemia. Não só a minha experiência, mas a de toda a categoria docente naquele momento histórico. A necessidade de um ensino remoto emergencial foi uma oportunidade ímpar para que as grandes empresas de tecnologia pudessem entrar de vez no campo da educação, especialmente nas instituições públicas, e os impactos sobre o trabalho docente foram particularmente sensíveis nesse momento. De 2020 pra cá, o que vimos foi um avanço significativo das Big Techs sobre a educação pública que, mesmo após o retorno às atividades presenciais, se entregou ao canto da sereia do discurso dominante que envolve as tecnologias digitais em um verniz salvacionista e neutro. E todo esse processo se dá às custas da deterioração das condições de trabalho de professores e professoras e da qualidade da educação pública.
Como professores na educação básica nesses últimos anos, temos a impressão que, embora a digitalização e o uso de tecnologias na educação possuam uma história mais longa, a pandemia parece ter sido um salto. Como você vê esse momento? Ela significou um salto também na precarização do trabalho docente?
R.N: Como disse, a pandemia foi a oportunidade de ouro para o avanço das grandes empresas de tecnologia sobre a educação. É claro que não é um fenômeno novo nem inaugurado pela pandemia. Sobretudo no setor privado e, especialmente, no ensino superior, a ampliação dos cursos EaD e os grandes grupos privados de educação, as tecnologias digitais foram peças chave para um duplo movimento: ao mesmo tempo em que se apropriaram do discurso ideológico de que o progresso e a modernidade estão diretamente vinculados ao avanço tecnológico, lançar mão de plataformas digitais, aulas online e um ensino cada vez mais concentrado nos cursos EaD foi também uma estratégia de redução de custo operacional dos negócios da educação, possibilitando a máxima lucratividade. Esse processo foi capitaneado pelos grandes grupos educacionais (Kroton, Virtu, YDUQS, etc.) e, de certa forma, “copiado” por universidades e faculdades privadas de menor porte na tentativa de se manterem competitivas no mercado ou, simplesmente, para se adequarem aos padrões impostos pelos grandes grupos empresariais e se tornarem aptas a serem incorporadas por esses grupos. Todo o crescimento do grupo Cogna/Kroton está baseado nesse processo. Então, mesmo antes da pandemia, o que se via nessa expansão do ensino superior privado era uma busca pelo aumento de lucros às custas da qualidade do ensino e da precarização do trabalho docente. O professor Lalo Watanabe Minto, da Faculdade de Educação da Unicamp, tem muitas contribuições nesse sentido. Nos sindicatos de professores da rede privada, a questão do ensalamento (juntas salas e turmas diferentes, fisica ou virtualmente) e a demissão em massa de professores já era uma questão latente antes mesmo de 2020.
A pandemia aprofundou essas questões no ensino privado e permitiu a expansão dessa lógica para a educação básica e para o setor público, porque a necessidade de redução da circulação de pessoas, na tentativa de conter o avanço da disseminação do vírus da Covid-19, impôs essa necessidade do ensino remoto emergencial. Mas é interessante pensar, e aqui, mais uma vez, menciono o professor Lalo Minto, que essa “necessidade” de manutenção das aulas durante o período mais crítico da pandemia também é uma construção permeada pelas necessidades da própria acumulação capitalista. Nas escolas privadas a questão se colocava era: os pais estão pagando por um serviço/mercadoria; então ele precisa ser entregue a qualquer custo. E nessa toada, o ensino público seguiu a mesma lógica. No estado de São Paulo, especialmente, foi notável como o governo já tinha uma estrutura pronta para esse processo de digitalização do ensino. Em pouco tempo após o início da pandemia, o Centro de Mídias do Estado de São Paulo já estava funcionando, com uma estrutura que certamente, não surgiu do dia para a noite. Ou seja, pelo menos aqui em São Paulo, o projeto de digitalização e plataformização da educação já existia e a pandemia foi uma janela de oportunidade para que o João Dória (governador de São Paulo na época) pudesse colocá-lo em prática. E o que foi a experiência do Centro de Mídias: aulas prontas, ministradas e gravadas por alguns professores e reproduzidas para toda a rede estadual. Ali já estabelecia um deslocamento da atividade dos professores e professoras responsáveis pelas turmas que passaram a apenas mediar a interação dos alunos com essas aulas gravadas. Os professores e professoras que conhecem a realidade de cada turma e que, portanto, teriam muito melhores condições de conduzir o processo de ensino-aprendizagem, foram apartados do processo. E o Centro de Mídias foi um laboratório para o desenvolvimento do processo que vem sendo implementado a toque de caixa pelo Tarcísio de Freitas e pelo Renato Feder, com a imposição de plataformas e materiais digitais de uso obrigatório atrelado a um sistema de métricas e metas a serem cumpridas e um esquema rigoroso de controle e vigilância. Então, nesse sentido, é notável que a partir da pandemia tivemos uma mudança substancial nos processos de deterioração das condições de trabalho docente que indicam de fato um processo de precarização. Essa precarização está associada a um processo de alteração profunda no conteúdo do trabalho docente. Processo esse que não é inaugurado com o uso de tecnologias digitais, mas que, sem dúvida, foi intensificado por elas.
Ainda pensando na precarização do trabalho, como podemos relacionar os impactos das plataformas digitais sobre o trabalho docente com o fenômeno mais amplo da uberização do trabalho em outros setores? Quais elementos você enxerga como comuns entre esses processos e o que os distingue do contexto educacional?
R.N: Não dá pra separar esse processo que estamos vivenciando na educação do contexto mais amplo que caracteriza a fase atual da acumulação capitalista. O avanço das plataformas digitais é um elemento fundamental para compreendermos os processos de exploração do trabalho e de geração de valor do capitalismo financeirizado. Aliás, acho que isso é importante de ser ressaltado: apesar de todos os nomes e adjetivos que são usados para definir o capitalismo atual, o metabolismo social – ou antissocial, como diz o Ricardo Antunes – do capital é o mesmo e se assenta nas mesmas bases descritas por Marx n’O Capital que é a propriedade privada dos meios de produção, a divisão da sociedade em classes e a exploração de uma classe pela outra. Dito isso, o que podemos dizer é que na sua fase financeirizada o capital avançou o processo de acumulação para a esfera especulativa / fictícia, sem perder o lastro na produção material. E as tecnologias digitais e plataformas têm sido os veículos privilegiados das novas estratégias de acumulação. O principal ativo das plataformas é justamente tornar ainda mais opacas as relações de trabalho que possibilitam a produção de riqueza e a acumulação de capital. Em diversos setores econômicos, esse processo de acumulação se dá por meio do expediente da chamada “uberização”, que no meu entendimento, é um fenômeno específico que diz respeito ao agenciamento, gestão e controle do trabalho por meio de plataformas e aplicativos. E aqui, acho importante a gente tomar cuidados com generalizações de fenômenos complexos e não colocar tudo no mesmo saco. É claro que existem nexos formais entre a “uberização” de diversos setores da economia e o processo de digitalização da educação, mas é fundamental ressaltar as especificidades. No campo da educação pública, pelo menos até o momento, as plataformas não são agenciadoras do trabalho docente, no sentido que os professores e professoras continuam sendo contratados pelo estado (com diferentes tipos de vínculos, quase todos marcados por múltiplas precariedades); a atribuição de aulas e escolas, embora até possam ser mediadas por alguma ferramenta tecnológica, não está subordinada a elas. Mas as tecnologias digitais têm, de fato, assumido um papel preponderante na gestão e no controle do trabalho docente, especialmente quando notamos esse “sistema fechado” que articula plataformas, materiais digitais, sistemas de avaliação externa (como a Prova Paulista) e os mecanismos de monitoramento de acesso e de verificação de métricas, como o Super BI. É claro que seria irresponsável fazer aqui uma previsão do futuro, mas me arrisco aqui a apontar uma possível tendência desse processo na rede estadual de ensino: submeter às plataformas também a contratação de força de trabalho e a atribuição / alocação dos professores nas unidades de ensino. Não é difícil imaginar, diante do apagão de professores que já é histórico na educação pública de São Paulo, um aplicativo para que professores eventuais procurassem por aulas vagas em escolas, estabelecendo uma disputa entre trabalhadores desprotegidos por trabalhos precários. Há alguns anos, a prefeitura de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, chegou a fazer um experimento desse tipo. Por sorte – e, certamente, por resistência – esse projeto não foi para frente. Mas eu não ficaria surpreso se isso surgisse no âmbito da rede estadual.
Outra especificidade do campo da educação é o fato de que esse processo de digitalização só foi possível após uma série de outros ataques à profissão docente que foram descaracterizando o trabalho docente e fragilizando a categoria. Só pra citar dois exemplos disso: primeiro, houve uma redução sistemática dos concursos públicos e o aumento do número de professores contratados (Categoria O) que possuem vínculos instáveis e precários; segundo, a Reforma do Ensino Médio, que fragmentou e diversificou os currículos e esvaziou o conteúdo do trabalho docente.
A implementação de plataformas educacionais no Paraná parece ter funcionado como uma espécie de laboratório, que depois foi reproduzido em São Paulo — primeiro nas gestões de Dória e Rossieli, e agora com Tarcísio, sob a mesma coordenação de Renato Feder. O que essa continuidade nos revela sobre o projeto de educação pública em curso no Brasil? E como esse modelo de plataformização se articula, em sua visão, com projetos mais amplos da extrema direita, como o da Brasil Paralelo, que promovem uma visão obscurantista e revisionista da história, da educação sem falar na promoção dos valores conservadores.
R.N: É muito importante a gente enfatizar esses vínculos entre todos esses projetos da extrema direita para a educação. É claro que não é só a extrema direita que vê na educação um alvo privilegiado. É só a gente lembrar o que os governos neoliberais do PSDB fizeram pela educação pública nas últimas décadas. Mas, sem dúvida, a extrema direita ganhou uma força considerável na sociedade brasileira, especialmente atuando no campo da educação. E é também muito importante dizer que esse avanço da extrema direita na educação foi um caminho pavimentado pelas políticas neoliberais dos anos anteriores. O que quero dizer é que a extrema direita radicalizou um processo de deterioração da educação pública de uma maneira mais explícita. Acho que um ponto fundamental que podemos perceber em todos esses projetos é a necessidade de submeter a educação ao projeto societário da extrema direita. E nem precisa ser marxista revolucionário para apontar isso. Émile Durkheim, o fundador conservador da sociologia na França, já apontava que todo projeto de sociedade está articulado com um sistema de educação que forme os indivíduos para as necessidades dessa sociedade. E qual é o indivíduo que a extrema direita quer ver sendo formado pelo sistema de educação? Um indivíduo que reproduza, sem questionar, todas as relações sociais que sustentam a exploração capitalista, que reproduz o patriarcado, o racismo, a LGBTQIAP+fobia, ou seja, um indivíduo que garanta as bases que sustentam o modo de produção capitalista, especialmente, aqui no Sul Global. É também um indivíduo que assume para si a lógica da auto-exploração, que sob a égide neoliberal é chamada de empreendedorismo. Além disso, outro nexo importante que há entre todos esses projetos é o ataque frontal aos professores e professoras. Pode-se perceber que todos esses projetos têm em comum a necessidade de limitar e cercear a atividade docente, atacar a autonomia e a liberdade de cátedra e transformar o professor em um executor de tarefas cada vez mais simplificadas. Isso quando não visa a abolição total do professor, como nos projetos de regulamentação do homeschooling. O Escola sem Partido ficou conhecido como o projeto da mordaça; a interdição dos debates sobre gênero e sexualidade – a tal da “ideologia de gênero” – tinha como alvo, especialmente a atividade de professores e professoras; as plataformas e materiais digitais, por sua vez, têm como finalidade limitar a atuação dos docentes. Tudo isso para que se abra espaço para outros canais que “eduquem” a juventude. Não existe espaço vazio. Se o professor perde espaço no processo de ensino-aprendizagem, esse lugar vai ser ocupado por outros atores: líderes religiosos fundamentalistas, coaches, Olavos de Carvalho e produtoras como o Brasil Paralelo.
Ricardo, há uma relação entre a digitalização curricular e a formalização de mudanças estruturais com a reforma do ensino médio, iniciada ainda no governo Temer após o golpe institucional — e que, no final das contas, foi mantida pelo governo Lula-Alckmin. Sabemos também do peso dos setores privados chamados “reformadores da educação”, como o Todos Pela Educação, nesse processo. Nós, do Esquerda Diário e do Nossa Classe Educação, temos denunciado reiteradamente a aliança do PT com esses conglomerados educacionais — desde a relação próxima com Haddad até políticas de fortalecimento de monopólios privados como a Kroton. Como você avalia a política educacional do terceiro governo Lula e do PT, tanto em relação a plataformizacão e mas também a presença do capital privado nas políticas educacionais?
R.N: Não há dúvida que o Ministério da Educação é, talvez, um dos mais “contaminados” pelos atores privados e privatistas. As relações de Camilo Santana com o setor privado são alarmantes. E isso tem se traduzido na manutenção de uma política educacional presa aos parâmetros neoliberais. Se por um lado, pelo menos no nível da superfície, o governo Lula afastou os setores mais obscurantistas da política educacional do ministério (é preciso lembrar que tivemos Ricardo Vélez e Abraham Weintraub!), por outro lado, é nítido que o ministério não está disposto a romper com os grandes grupos educacionais e as fundações privadas, como Instituto Ayrton Senna e Fundação Lemann. Não só não rompe com esses agentes, como não faz o mínimo esforço para oferecer resistência à influência deles na política educacional. Isso ficou claro no processo de reformulação da Reforma do Ensino Médio. Como vêm destacando vários estudiosos do tema, entre os quais destaco o Fernando Cássio da USP e Débora Goulart da Unifesp, o essencial da reforma foi mantido. Os itinerários formativos, a visão empresarial, a flexibilização curricular e a formação do indivíduo empreendedor e “resiliente” necessário para o estágio atual do capitalismo na periferia do sistema. Outro destaque negativo do governo Lula na educação nem é exatamente uma política educacional do MEC, mas sim uma orientação do BNDES no fomento e financiamento de políticas de privatização de serviços públicos. O projeto de privatização da construção e gestão de escolas estaduais que foi consumado nas violentas marteladas do Tarcísio no leilão das escolas públicas na bolsa de valores conta com o financiamento do BNDES e seu Programa de Parcerias para Investimentos. É lamentável!
Por outro lado, temos visto a promessa de ampliação da rede federal de ensino, com novos campi de Universidades e Institutos Federais. Mas observando a condução da política econômica do governo que insiste na manutenção do arcabouço fiscal, pairam muitas dúvidas se haverá recursos suficientes para garantir essa expansão.
Para encerrar, gostaríamos de te ouvir sobre os processos de resistência docente às políticas de plataformização do ensino. Que experiências ou iniciativas você destacaria nesse cenário? E, na sua opinião, quais alternativas a esquerda deveria defender frente a esse modelo de educação?
R.N: Confesso que tem sido difícil ver um processo de resistência forte, capaz de fazer frente a esse avanço. Mas tivemos no ano passado uma iniciativa importante da Apeoesp na Greve dos Aplicativos. Ainda que não tenha tido o êxito necessário para barrar essa política de digitalização do ensino, considero que a experiência possa ser, pelo menos, pedagógica para a categoria. Assim como os processos de resistência de outros trabalhadores precarizados. Sabemos também que a direção majoritária do sindicato não é conhecida por ser combativa. Mas há setores que têm buscado avançar nessa e outras pautas para resistir aos ataques contra a categoria.
Outra iniciativa importante, mas que se for isolada de um plano maior de lutas corre o risco de fracassar, é a investigação que o Ministério Público está conduzindo sobre a introdução das plataformas digitais na rede estadual. Temos também alguns mandatos parlamentares que vem buscando, pela via institucional, enfrentar esse processo. Nas universidades esse tema tem ganhado cada vez mais relevância e, de certa forma, as discussões têm tido alguma incidência no debate público. Mas falta uma articulação maior entre todas essas iniciativas.
Mas são muitos os desafios. Há quase um consenso em torno da ideia de que as tecnologias digitais são sinônimos de inovação, progresso e melhoria das condições de vida. Precisamos nos contrapor a essa visão ideológica sobre as tecnologias, mas tomando muito cuidado para não cairmos em uma “tecnofobia”. Acho que o recente debate em torno das Big Techs pode ajudar nesse processo. Mas não é uma tarefa fácil.
Outra dificuldade objetiva para consolidar uma resistência mais efetiva a esse e outros ataques à categoria é o fato de que grande parte dos professores e professoras da rede tem contratos precários e instáveis e estão sob constante ameaça de perderem seus vínculos de trabalho. Para os professores concursados e estáveis há riscos relacionados à atribuição de aulas. Por sua vez, gestores se veem pressionados a garantir o cumprimento das metas de desempenho sob o risco de perderem seus cargos ou de serem transferidos para outras unidades. A cadeia de controle e pressão atinge também os supervisores de ensino que são assediados pela secretaria de educação para que garantam que diretores e professores cumpram as metas de uso das plataformas. Enfim, o cenário é muito preocupante!
É difícil dizer o que a esquerda, especialmente a esquerda radical, deveria fazer para resistir a esse processo. Mas a saída passa, necessariamente, pela organização dos trabalhadores da educação e das comunidades escolares. Esse debate não pode ser esquecido. É claro que os ataques são tantos que muitas vezes as pautas se perdem diante da urgência de novas ofensivas. Vivemos sob um blitzkrieg na educação pública. Militarização, plataformização, privatizações, arrocho salarial. Mas é fundamental continuarmos no esforço de entender a fundo o processo, ampliar e aprofundar o debate, garantir que estudantes e familiares se envolvam também nessas discussões.