Revista Casa Marx

O Maio Senegalês de 1968: uma revolta anti-imperialista e internacionalista

Noah Brandsch

Na última sexta-feira, um trabalhador senegalês, Ngagne Mbaye, foi assassinado covardemente pela PM no centro de São Paulo. Ao contrário do que buscam contar de que a história negra é do “negro dócil” e “passivo”, a realidade já provou o contrário com as mobilizações por justiça protagonizadas pela comunidade africana em São Paulo. Mas vamos voltar mais atrás, e conhecer um processo pouco conhecido e que é um capítulo dos vários da luta negra internacional: o Maio Senegalês de 1968, profundamente anti-imperialista e internacionalista.

O Senegal pré 1968

No período do pós Segunda Guerra Mundial, com a estabilização da Europa com o Plano Marshall, o centro da luta de classes passa a ser as lutas anti-coloniais. Insurreições são protagonizadas em colônias francesas como a Argélia e a Indochina, a mesma também perde Marrocos e Tunísia em 1956. Para tentar contornar a situação, a metrópole busca fazer uma manobra com um referendo que concede a “autonomia” das colônias francesas africanas para que sejam parte da “Comunidade Francesa” ultramarina, em setembro de 1958. Quase 100% da população de Senegal é favorável à tal resolução. Um ano depois, a República Sudanesa e o Senegal se fundem para formar a Federação do Mali. Em 28 de setembro de 1960, a Federação é dividida e tanto o Mali quanto o Senegal declaram sua independência. Nessa mesma década, a ampla maioria dos países africanos conquistaramconquistaria sua independência das metrópoles.

Mesmo com a independência, a forte presença imperialista da França seguiu no país da África Ocidental. A maior parte das empresas controlando setores chave da economia continuam francesas; as forças armadas da antiga metrópole seguem operando no território do país africano; e a educação no Senegal segue os ditames da França, com a Universidade de Dacar sendo conhecida como a “18° Universidade Francesa”. Segundo o Memorando da UDES (União dos Estudantes Senegaleses):

Os setores-chave da economia do nosso país são, mais do que nunca, propriedade de grandes trusts internacionais, em particular franceses. […] o nome de Gallenca. Francês, presidente da Câmara de Comércio e Indústria de Dacar, diretor de 16 empresas no Senegal, membro do Conselho de Administração de 8 empresas, diretor da Companhia Têxtil da África Ocidental, presidente da Companhia Têxtil Senegalesa, membro do Conselho Econômico e Social do Senegal e, finalmente, Grande Comendador da Ordem Nacional […] Os grandes trusts que controlam a nossa economia são dominados pelo capital francês na ordem dos 70% para as empresas comerciais, 80% para as empresas industriais e 56% para os bancos”.

Esse processo foi comum em praticamente toda a África, para que as potências imperialistas seguissem espoliando as riquezas nacionais e a mão de obra africana. No Senegal, o poder francês era também representado na presidência de Léopold Sédar Senghor, da União Progressista Senegalesa.

A situação internacional pressionava para a quebra da estabilidade política dos Estados nacionais no mundo todo. Se tratando da V República francesa, ela foi abalada desde sua promulgação pelas mobilizações internas em defesa da independência da Argélia, tanto do movimento estudantil quanto do movimento operário, e pela conquista da independência em si em 1962 com a vitória da Revolução Argelina. As mobilizações internacionais contra a Guerra do Vietnã, desde os EUA e Europa até o Japão e a própria África, também foram marcas profundas dessa década. No ano de 1968, o movimento estudantil eclode no mundo todo: na França, se soma à greve geral que paralisou milhões de trabalhadores na famosa “Noite das Barricadas”, com ocupações de universidades e fábricas; no México, o Exército massacra 300 estudantes após 3 meses de protestos constantes; o movimento estudantil Zengakuren no Japão toma universidades e confronta a polícia; na Tchecoslováquia e Polônia, a juventude sai às ruas contra o stalinismo e em defesa das conquistas da economia planificada, junto à conselhos de fábrica; na China, Brasil, Egito, Argentina, Uruguai, Inglaterra, Tunísia e diversos outros países ocorrem processos parecidos. O mundo está em chamas e a juventude ergue alto a bandeira do anti-imperialismo.

No Senegal, a Universidade de Dacar foi uma das três que o Império francês construiu em suas colônias africanas. Naquela época, apenas um terço dos estudantes eram senegaleses (32%), os outros dois terços eram franceses (27%) e estrangeiros de outros países africanos francófonos (38%). Ao mesmo tempo, existiam cerca de 260 estudantes senegaleses em universidades na França. Pelo lado das autoridades, a administração era francesa e a ampla maioria dos professores da universidade eram brancos e da França. Essa multi-nacionalidade dos estudantes, apesar de ser um dos motores da revolta estudantil pela negativa, com uma posição contra a presença francesa na educação, permitia um forte intercâmbio internacionalista: os estudantes sabiam de tudo o que ocorria no mundo, e a universidade se tornava um efervescente polo político e cultural.

Os estudantes africanos na França, junto à estudantes nativos franceses, discutem sobre a luta anti-imperialista (inclusive desenvolvendo livros sobre o tema junto à intelectualidade, como a obra Para Onde Vai o Senegal, com o professor de sociologia e diretor do Instituto Francês da África Negra Pierre Fougeyrollas, que pouco mais tarde se juntaria às fileiras do trotskismo). Fundam um Comitê de Ação Direta Contra o Imperialismo Francês em Senegal, e chegam a enviar aos estudantes senegaleses a receita do coquetel molotov, usado em ambos os países contra a repressão. O boletim Tricontinental Sorbonne relata o maio senegalês: uma das figuras desse intercâmbio foi o estudante Omar Boldin Diop, morto na prisão de Gorée, no Senegal. Do ponto de vista cultural, a Universidade de Dacar fluía ao ritmo de free jazz e música guineense, e desse processo surgiram artistas como o poeta senegalês Issa Samb “Jo Ouakam”, então estudante de filosofia, e o posterior movimento Agit-Art.

Essa politização no movimento estudantil senegalês já dava expressões dois anos antes de estourar a revolta. Em 1966, a Universidade de Dacar fechou suas portas por uma greve estudantil somada à mobilizações em frente às embaixadas dos EUA e Grã-Bretanha, países responsáveis por terem articulado a queda de Kwame Nkrumah em Gana após a independência. Aqueles estudantes, 6 anos antes, viviam a colonização e foram introduzidos cedo à luta política pela independência. Tal tradição política era precisamente o que os governos africanos, subservientes ao imperialismo por suas ligações às burguesias nacionais, mais temiam.

O Maio Senegalês

A gota d’água para que esse caldo político eclodisse foi o anúncio do governo de Senghor em cortar e dividir as bolsas de estudo do ensino superior no final de 1967, afetando diretamente os estudantes da Universidade de Dacar. A primeira mobilização foi convocada para o dia 18 de março do ano seguinte pela UDES, com mobilizações e debates até 21 de maio, em que há uma negociação fracassada com o governo. Três dias depois, os estudantes decretam uma greve ilimitada a partir do dia 27 com a ocupação da universidade, com suas reivindicações e um apelo à “liquidação do regime atual”, contra a presença da França nos assuntos internos do Senegal, especialmente na educação.

Como resposta, o governo fecha todas as universidades e escolas no dia 28 e persegue estudantes secundaristas que também se mobilizavam. Às 9h do dia 29, a polícia invade a universidade, prende estudantes, internando os nativos em campo militar e deportando os estrangeiros. Um estudante é morto, 69 feridos, e mais de mil deportados. As forças repressivas são especialmente dos Grupos Móveis de Intervenção, uma espécie de gendarmeria advinda da época colonial e reestruturada sob o novo Estado independente. Os estudantes decidem soltar uma carta aberta ao povo senegalês:

“De fato, Senghor está resistindo porque sabe que o golpe de misericórdia da burguesia, dos vales do colonialismo e do neocolonialismo acaba de soar, povo senegalês, povo africano, ao violar as liberdades acadêmicas, ao derramar sangue africano, não é mais hora de gritar revolução “nos salões”, tendo o próprio apóstolo do diálogo agido, mas de aceitar o desafio lançado por esse fantoche, por Senghor que só se sente senegalês por ser presidente de uma nação que ele saqueia para construir uma cidade imortal na Normandia.”  (UDES [ao] povo senegalês, feita em Dacar na quarta-feira, 29 de maio de 1968, Fundo Foccart – Processo AG 5 (FPU) 2256.)

O movimento estudantil contra-golpeia, com inicialmente o Sindicato de professores (SUEL) somando-se à sua greve. O resto da população, vibrante em apoio aos estudantes, pressiona a direção da União Nacional dos Trabalhadores de Senegal (UNTS), com ligações diretas à CFDT francesa (dirigida à época pelo Partido Comunista, cumprindo um papel traidor em desviar o Maio Francês no mesmo ano) à aderir em apoio.

A história do movimento operário senegalês é extremamente rica. Desde o início da colonização, os franceses entendiam como estratégico a construção do “arco ferroviário” no Senegal, com a ferrovia Dakar-Saint-Louis, em primeiro lugar, para exercícios militares e a expansão colonial contra tribos africanas; e em segundo lugar, para o transporte de matéria prima até o Porto de Dacar e expandir a extração de recursos naturais. Os ferroviários senegaleses protagonizaram inúmeras greves, um símbolo da luta anti-colonial: 1920, 1926 unificado com trabalhadores do correios, 1935-37, 1947 com uma greve que durou vários meses, para apenas citar as principais. Em 1949, foi criado o Sindicato Autônomo de Trabalhadores Ferroviários, ligado à CGT francesa. Esses trabalhadores que lutaram contra a colonização, agora se colocam em cena junto ao movimento estudantil.

A partir da região de Cabo Verde, onde fica a capital Dacar, a greve é generalizada em todo o país, impulsionada pela luta do movimento estudantil. Na capital, tudo está absolutamente paralisado, desde categorias tradicionais como ferroviários, professores, profissionais da saúde e correios, até trabalhadores informais, pequenos vendedores nos mercados e motoristas de ônibus. No interior do país, a greve é mais desigual, mas regiões como Djourbel, Kaolack, Thiès estão paralisadas por completo. Panfletos unificados de trabalhadores e estudantes são distribuídos para a população, organizando piquetes, barricadas, armas improvisadas e milícias de enfrentamento à repressão estatal. 

No mesmo momento, na França, ocorrem mobilizações de meio milhão de pessoas por todo o país, após um mês inteiro com ocupações de universidades, fábricas e enfrentamentos com a polícia. O presidente De Gaulle está fora do país, na Alemanha.

No dia seguinte, dia 30, De Gaulle volta à França, dissolve a Assembleia Nacional e anuncia a antecipação das eleições legislativas para junho. O processo é traído pelo Partido Comunista Francês que acata a nova agenda eleitoral, deixando a repressão passar de forma brutal. Ao mesmo tempo, Senghor faz um discurso nacional na rádio em Senegal, na qual acusa os estudantes de estarem servindo ao imperialismo, acusando os de copiar os estudantes franceses em sua revolta: 

“É curioso que tenham esperado que a revolta estudantil de Paris fizesse ‘a mesma coisa, toubabs’, imitando os estudantes franceses sem mudar uma vírgula.”

Também busca dissociar os estudantes dos trabalhadores, com os quais se coloca mais aberto à negociar, buscando dividir essa explosiva força que desestabilizou o regime. Acusa também o movimento de ser influenciado pela Guerra Fria, por “trotkistas, anarquistas e maoístas” que buscam conspirar contra a independência de Senegal. Ao mesmo tempo, Senghor faz um apelo por telegrama às Forças Armadas da França para que reprimam o movimento, e decreta um toque de recolher obrigatório. Junto a isso, busca organizar uma contra manifestação em apoio ao governo (assim como fez De Gaulle na mesma hora), com caminhões vindos do interior de regiões não mobilizadas. A manobra é um fracasso.

Se o governo senegalês acusa os estudantes de copiarem Paris, é porque reconhece que o seu próprio medo é explosão operário-estudantil no mundo todo. O que, do lado estudantil, é uma colaboração internacionalisa, do lado da burguesia, é cópia: o governo senegalês capacho do imperialismo imita as manobras de De Gaulle. 

Dia 31, uma grande manifestação é organizada em frente à Bolsa do Trabalho, no bairro de Medina, em Dacar, às 9h. A bandeira vermelha é hasteada. A polícia e o exército francês cercam o bairro e reprimem violentamente, com duas mortes e 900 presos (sendo 400 sindicalistas), que foram levados a um campo em Ferlo, do outro lado do país, sob custódia do exército francês, que é conhecido por toda prática de violação dos direitos humanos em territórios coloniais. Uma manifestação espontânea se desenvolve com 5 mil pessoas (em uma cidade de 500 mil), protagonizada pelo proletariado urbano precário, e marcha para o Centro da cidade exigindo a liberdade dos presos. 

No dia seguinte, o governo anuncia o início das negociações, especialmente com os sindicatos. A maioria das categorias ficou em greve até o dia 4 de junho, mas algumas seguiram alguns dias mais. Até o dia 9, todos os presos são libertados, fruto da intransigente luta contra a repressão. Rapidamente, no dia 13, o governo entra em um acordo tripartite com os sindicatos para conter os ânimos, concedendo um reajuste salarial de 15%. 

As negociações estudantis oficialmente começam apenas em setembro, em que o governo revoga a divisão das bolsas e é obrigado a conceder uma expansão e reforma universitária, com uma importante participação estudantil. Paris se vê obrigada a financiar tal projeto, com medo de novas revoltas. Os estudantes deportados também são readmitidos. A luta dos estudantes senegaleses não foi esquecida: durante uma visita de Senghor à Frankfurt nesse mesmo mês, estudantes alemães organizaram uma manifestação em apoio aos estudantes de Dacar, o que inclusive resultou na prisão de uma de suas lideranças, Daniel Cohn-Bendit.

Considerações finais

Naquele ano, a juventude no mundo inteiro se levantou pela bandeira do anti-imperialismo. Os estudantes e operários na França lutavam por melhores condições de trabalho e estudo, mas juntos, na poesia das ruas, questionavam o pilar da V República, o pilar que estruturava o capitalismo francês. Eles se levantavam em solidariedade aos povos oprimidos de todo o mundo. A luta pelas bolsas no Senegal significava também, e mais profundamente, a luta por poder produzir um conhecimento que esteja à serviço da transformação, à serviço de não ser mais um país espoliado pelo imperialismo.

Essa curta história nos revela alguns elementos para pensar a luta anti-imperialista hoje. No Senegal, se revelou a centralidade operária em uma revolta anti-colonial, capaz de hegemonizar setores de comerciantes e um subproletariado urbano. Assim como o movimento estudantil foi ponta de lança para se unificar ao movimento operário. Apenas para citar outros poucos exemplos de revoltas anti-coloniais que tiveram uma centralidade operária, mesclando-se com as características locais e com um potencial hegemônico sob outros setores sociais, como camponeses: a greve de 1935 nas minas da Rodésia do Norte, onde os trabalhadores divulgavam panfletos à toda a população “não vá para o trabalho (…) Somos todos africanos Nkana”; ou as greves ferroviárias e de trabalhadores marítimos de 1919, 1926 e 1929, que unificaram trabalhadores organizados e nativos do interior em Serra Leoa; ou mais recentemente, as greves dos mineiros em Marikana na África do Sul, em 2012, que resultou em um violento massacre. 

Essa discussão é importante pois, olhando para a história, há setores que se colocam ao lado da luta contra o colonialismo, mas negam o protagonismo da classe trabalhadora, e por vezes até, a própria luta de classes. Como os que reivindicam a decolonialidade, através de um “giro epistemológico”, para combater o racismo e o colonialismo. Sobre esse debate, aprofundamos mais aqui.

Fez falta na experiência do Senegal a existência de uma direção revolucionária, que organizasse a vanguarda, e impulsionasse uma coordenação entre a luta estudantil e operária nas diversas categorias, podendo hegemonizar o resto do país majoritariamente agrário. Através dessa coordenação, que já tinha seus embriões, dissolver as forças repressivas através do enfrentamento, com um programa que desse vazão a todas as demandas, nacionalizasse os setores estratégicos da economia dominada pela França, e estrategicamente lutasse pelo poder. Se essa direção não existiu, cabe à nós estudar as riquíssimas experiências da luta de classes na África, a fim de tirar seus balanços e recriar o imaginário da revolução socialista no século XXI, constantemente sequestrada pela burguesia, em suas diferentes matizes, mas também pelas teorias que de forma interessada buscam negar tais experiências.

Referências:

Uma História da Revolta Pan-Africana – CLR James

68 Mayo Francés: Cuando Obreros y Estudiantes Desafiaran al Poder

Sénégal 1968: révolte étudiante et grève générale – Françoise Blum

La révolte des étudiants au Sénégal en mai 1968: questions à Omar Gueye

 

Carrinho de compras
Rolar para cima