André Barbieri
Nada é mais simbólico sobre a situação estrutural de “dupla dependência” do Brasil no cenário internacional do que a postura de Lula na crise da Venezuela. Traçando uma linha irregular, Lula opera com cuidado e a passos incertos. Aliado de Hugo Chávez desde que chegou à presidência em 2002, o mandatário petista encontra dificuldade em sustentar politicamente sua simpatia por Nicolás Maduro após a crise eleitoral de 28 de julho, em que o governo assegurou ter conquistado nas urnas um novo mandato. Sua hiperatividade internacional e o reconhecimento como líder regional da América Latina o colocou, entretanto, na posição de destaque como responsável por articular uma delicada solução às disputas entre um regime burguês autoritário derivado da degeneração chavista, de um lado, e uma extrema direita pró-imperialista irmanada a Trump, de outro.
Como já dissemos aqui, tanto o regime repressivo e autoritário de Nicolás Maduro quanto a oposição de extrema direita encabeçada por Maria Corina Machado, falsa democrata e reconhecida golpista, são inimigos do povo pobre e trabalhador. Ambos os bandos burgueses são responsáveis pela catástrofe que vive a Venezuela. Maduro busca sustentar-se no poder para seguir as negociações com as transnacionais petrolíferas dos Estados Unidos, mas também da Rússia e da China, submetendo o país ao calvário de um selvagem capitalismo extrativista. Maria Corina Machado e a extrema direita golpista venezuelana, amiga de Donald Trump e de Javier Milei, desejam privatizar toda a economia do país, entregar todos os recursos nacionais ao imperialismo e aprofundar os ataques do chavismo, sem ruborizar em convocar intervenções estrangeiras, sanções e inclusive intervenções militares dos Estados Unidos na Venezuela.
Diante desse panorama, Lula trabalha em função de acomodar todas as partes. Havíamos escrito que a inclinação de Lula ao “multilateralismo capitalista” está inscrito na dinâmica da “dupla dependência” do Brasil no campo mundial. Ou seja, na debilidade estrutural que força o Estado brasileiro a servir dois amos, Estados Unidos e China, sem romper com ninguém e aproveitando, mediante reforço da submissão, para extrair o possível nas negociações com ambos os adversários. Isso confere um caráter ainda mais pragmático à política externa brasileira, que movimenta-se em diagrama pendular entre os interesses de suas principais lealdades estrangeiras.
Isso se expressa em sua posição acerca da Venezuela, por trás da união entre Brasil, México e Colômbia. Não é preciso dizer que Lula preside um sistema de governo muito distinto daquele de Maduro, e busca com isso aumentar seu potencial mediador aos olhos das potências. Particularmente, Lula de início pediu a divulgação das atas eleitorais, mas minimizando a crise e afirmando que não via nada de grave no processo. Preservava com isso a possibilidade de dialogar com ambos os bandos. Aproveitava o holofote internacional para exigir que o Conselho Nacional Eleitoral apresentasse os relatórios discriminados por urna, sustentando ao mesmo tempo a autoridade exclusiva do órgão na apresentação dos resultados. À Rádio Gaúcha, Lula referiu-se ao regime venezuelano como desagradável com viés “autoritário”, ainda que “não ditatorial”. Com o aumento da pressão ocidental, Lula foi obrigado a insistir na crítica à fraude eleitoral madurista. Também no Rio Grande do Sul (em que o bolsonarismo é forte), disse que “ainda não” reconhece Maduro como presidente eleito, que o Brasil não o reconhecerá até a divulgação das atas, e sugeriu a formação de um governo de coalizão com a oposição de direita – oferecendo seu exemplo na composição do governo de Frente Ampla com a direita brasileira. Nas palavras do próprio Lula, “Muita gente que está no meu governo não votou em mim e eu trouxe todo mundo para participar do governo”.
Por fim, ofereceu a saída de novas eleições, sob os auspícios de Celso Amorim, o que desagradou tanto o oficialismo chavista quanto a oposição pró-imperialista. “O Maduro ainda tem seis meses de mandato, só termina ano que vem. Se ele [Maduro] tiver bom senso, ele poderia fazer uma conclamação ao povo da Venezuela, quem sabe até convocar novas eleições, estabelecer um critério de participação de todos os candidatos, criar um comitê eleitoral suprapartidário, que participe todo mundo, e deixar que entrem olheiros do mundo inteiro para ver as eleições”, disse Lula.
Longe de rechaçar os bandos burgueses reacionários na Venezuela, Lula busca uma acomodação conciliatória entre ambos. A Frente Ampla subiu-lhe à cabeça. Não há que dizer que inexiste qualquer postura progressista (menos ainda “independente”) nessa política. Não sendo afim à ala trumpista da política internacional, Lula, entretanto, atua transmitindo a pressão de um leque de potências estrangeiras, que quer ver seus interesses cumpridos na arena latino-americana.
Há motivos geopolíticos de distintas ordens para essa posição de Lula, que embora endureça o tom contra Maduro e exiba publicamente uma desconfortável impaciência com Caracas, trabalha para evitar ex-abruptos e um resultado turbulento para a crise num país vizinho.
A primeira delas está na própria dupla dependência brasileira que assinalamos anteriormente. Estados Unidos, de um lado, China e Rússia, de outro, possuem linhas divergentes para o caso. Os Estados Unidos haviam imediatamente reconhecido Corina Machado e a oposição de direita, sob a candidatura de Edmundo González, como vencedora das eleições de 28 de julho – foram acompanhados pelo pequeno fanfarrão ultraliberal argentino, Milei. Pelas próprias dificuldades políticas internas e a corrosiva crise orgânica que se expressa na campanha presidencial entre Kamala Harris e Donald Trump, o governo Biden se viu obrigado a moderar a grita, e retirar o reconhecimento a González, exigindo a publicação das atas eleitorais. Por enquanto, o imperialismo norte-americano está apostando em um isolamento total de Maduro, forçando-o a uma saída negociada para não colocar em risco seus próprios negócios econômicos petrolíferos (entre a empresa Chevron e a PDVSA) e, mais fundamentalmente, para evitar o perigo de desestabilização regional.
Por sua vez, no polo do “multilateralismo”, China e Rússia apoiaram desde a primeira hora o resultado anunciado pelo próprio oficialismo chavista. Xi Jinping e Vladimir Putin congratularam Maduro pelo triunfo auto-concedido pelas autoridades eleitorais controladas pelo PSUV. Os interesses de Moscou na Venezuela são estratégicos, e ultrapassam as relações energéticas, sendo o exército russo um dos principais provedores militares para o Exército bolivariano, encontrando na Venezuela um ponto de influência geopolítica na América Latina. A China também busca enraizar sua influência em Caracas para opor-se aos interesses norte-americanos na região, e usar o país como base de operações de suas multinacionais energéticas (não apenas para a extração do petróleo, mas também para a corrida pelo lítio na Argentina, Chile e Bolívia).
Lula absorve partes da política de Washington e Pequim, na medida em que não pode abrir mão de nenhum dos dois senhores da economia mundial. O Brasil depende da China, seu principal parceiro comercial, para escoar boa parte da produção agrícola nacional, em particular a soja, o petróleo e o minério de ferro. Por outro lado, depende dos Estados Unidos para a importação de insumos manufaturados e alta tecnologia, no campo dos maquinários, da robótica e dos semicondutores. A crítica aos métodos de Maduro não levou o governo brasileiro a romper com o regime chavista, ou tomar uma posição definitiva contra o resultado apresentado pelo governo. Isso vai além da necessidade de não queimar pontes para preservar a capacidade de diálogo diplomático. Estruturalmente, diz respeito à forma particular de submissão do país às potências estrangeiras no governo de Frente Ampla. Lula deseja maior autonomia para ter margem de negociação e prestígio no palco internacional, mas sempre exercendo as dependências cruzadas que possui com Estados Unidos e China.
Entretanto, há também a forma particular com que o pragmatismo da política externa lulista deseja apresentar-se no cenário internacional, a saber, como líder da América Latina e ator responsável pela solução dos problemas mundiais. Absorvendo parte de sua política, Lula não aderiu completamente nem à posição dos Estados Unidos, nem à posição do bloco China-Rússia. Buscou apresentar uma política própria, reunindo Brasil, México e Colômbia em um esforço conjunto das principais economias latino-americanas (excluída a Argentina, pela posição abertamente pró-imperialista de Milei). Os três países chegaram a emitir comunicado conjunto oficial declarando a necessidade da divulgação das atas (um piscar de olhos aos EUA e à União Europeia), mas que a solução viria da Venezuela, e não do estrangeiro (um gesto a Pequim). Embora o México tenha recuado alguns passos, pela política de Andrés Manuel López Obrador de aguardar a decisão do Tribunal Superior de Justiça venezuelano, Lula segue tentando mostrar capacidade de articulação regional para uma saída latino-americana da crise. A sugestão de novas eleições foi acompanhada por Gustavo Petro da Colômbia – e por um sucinto “eu apoio” de Joe Biden, comicamente corrigido pela Casa Branca.
O cuidado no manejo da crise e a busca por um perfil relativamente autônomo diz respeito à própria política interna brasileira. A Venezuela faz fronteira com o país, que durante o governo Bolsonaro foi oferecido como base de operações para a tentativa golpista do imperialismo norte-americano na administração Donald Trump, em 2019. Bolsonaro foi fervente apoiador da tentativa de impor Juan Guaidó como governo fantoche dos Estados Unidos em Caracas. Biden e os Democratas desenvolveram uma política diferente, diante do fracasso das tentativas golpistas: exploraram os acordos comerciais e econômicos extrativistas com um regime chavista degradado mais que disposto a conceder o petróleo nacional às multinacionais. De todo modo, a participação direta dos Estados Unidos na política latino-americana não beneficia a figura internacional que Lula busca dispor. Da mesma maneira, Lula deve acautelar-se dos governos que o cercam. Tendo já um trumpista como Milei na Argentina – que participou com Bolsonaro do Conservative Political Action Conference em Santa Catarina para impulsionar a extrema direita brasileira nas eleições municipais – a perspectiva de um governo de Maria Corina Machado na Venezuela fortaleceria ainda mais as apostas bolsonaristas no país.
A resultante é uma política conservadora por parte do lulismo senil. Para evitar um desenlace dramático que saia ao controle, Lula atua como articulador de uma solução negociada entre o madurismo e a oposição de extrema direita, com a proposta de um governo de coalizão entre os bandos burgueses responsáveis pela catástrofe. Trata-se da síntese da “dupla dependência”, absorvendo parte da política dos Estados Unidos e da China: um governo Maduro com a direita “esquálida” golpista venezuelana. Tudo fica mais irônico – para não dizer trágico – quando o exemplo dado é o do próprio governo de Frente Ampla no Brasil, em que a extrema direita tem cadeira cativa não apenas na Esplanada dos Ministérios (com partidos como o Republicanos na pasta de Portos e Aeroportos), mas conta com o apoio do governo federal para governar estados (como o pacto de governabilidade entre Lula e Tarcísio de Freitas em São Paulo). Não só do governo, mas das próprias campanhas para as eleições: em 85 municípios, o PT estará em coligação com o PL de Bolsonaro apoiando o mesmo candidato à prefeitura.
Esse acordo pelo alto entre os inimigos dos trabalhadores e do povo pobre venezuelano, proposto pelo setor menos trumpista dos governos latino-americanos, acaba fazendo o jogo da própria direita. É uma política que faz confluir o regime autoritário, de arrocho salarial e ajuste econômico brutal de Maduro com o programa das privatizações universais e entrega pró-imperialista por parte da extrema direita de Corina Machado. Negociações em que são os interesses capitalistas os que importam, tanto os da casta civil-militar dominante quanto os representados pela oposição trumpista. A exportação da política frenteamplista e de conciliação de classes do PT assume gradações extremamente antioperárias e antipopulares na Venezuela. Mais uma vergonha para um governo que legitimou o golpe de Dina Boluarte no Peru, que deseja enviar policiais para a nova missão da ONU no Haiti, e que preserva todos os acordos econômicos e políticos com o genocida Estado de Israel.
Segmentos do petismo, como Breno Altman, criticam a posição de Lula com um viés patentemente unilateral e esquivo à realidade. Em nome de combater, corretamente, a extrema direita, a resposta é engolir o regime absolutamente anti-operário e ajustador de Maduro. É o espelho invertido das posições do mainstream. O que dizer do aprofundamento das relações do governo cívico-militar de Maduro com Joe Biden, da lei de concessão do petróleo venezuelano à Chevron e às multinacionais estadunidenses e dos acordos diplomáticos com o mesmo país que lhe aplica sanções criminosas? Isso, para além da proximidade com os regimes capitalistas autoritários da China e da Rússia? Naturalmente Maria Corina Machado representa a submissão pró-imperialista exacerbada, patologicamente vinculada à destruição ultraliberal da economia. Seria um aprofundamento dos ajustes e ataques que Maduro multiplicou. A extrema direita se combate na luta de classes. De nenhuma maneira, estar com Maduro seria estar “longe dos EUA”, menos ainda junto à população venezuelana.
Se a continuidade do governo Maduro representaria o seguimento das relações com Rússia e China (e a exacerbação do extrativismo petrolífero que durante o ciclo chavista colocou a Venezuela de joelhos diante do capital estrangeiro), um governo de Edmundo González se alinharia com os Estados Unidos e se tornaria um ponto de apoio para a política norte-americana na região, além da já aliada Argentina com o governo de Milei – especialmente se Donald Trump retornar à Casa Branca. Não há perspectiva independente com nenhuma dessas variantes. A cobiça das potências destrutivas do capital – quer venham de Washington, quer de Pequim – deve ser combatida com uma política de independência de classe. Há muito em jogo.
Como propusemos a partir da Liga dos Trabalhadores pelo Socialismo (LTS), organização irmã do MRT na Venezuela, a questão central para a esquerda socialista é batalhar por um polo de independência de classe dos trabalhadores, contra Maduro, o imperialismo e a extrema direita. A articulação desse polo de independência de classe – que estendemos em proposta a distintas organizações da esquerda – deve se dar com um programa anticapitalista que ataque o conjunto do sistema da propriedade privada, a estrutura de espoliação extrativista e a subordinação ao FMI, na perspectiva de um governo dos trabalhadores em ruptura com o capitalismo. Somente com a mobilização independente dos trabalhadores e dos oprimidos, enfrentada a ambos os bandos burgueses em conflito, poderemos lutar pelos direitos democráticos plenos do povo e da classe trabalhadora, bem como por melhores condições de vida, pela liberdade dos trabalhadores presos e detidos por se manifestarem, contra as medidas de austeridade e os aumentos de tarifas provenientes de qualquer uma das variantes capitalistas, unindo os setores que lutam dentro de uma perspectiva própria dos trabalhadores.
Diante da débâcle dos nacionalismos populistas latino-americanos, incapazes de dar solução à unificação independente do nosso subcontinente, é necessário levantar a perspectiva de uma política anticapitalista e antiimperialista que termine com o flagelo de atraso e dependência na região. Algo que somente se poderia dar com uma Federação de Repúblicas Socialistas na América Latina, que atuasse como ponto de apoio irradiador da revolução internacional.