Revista Casa Marx

O que Marx diria sobre o fim da escala 6×1?

Gabriel Fardin

O tema do fim da escala 6x1 em poucas semanas se alastrou como pólvora pelas redes sociais ganhando apoio de amplos setores da juventude, da classe trabalhadora e de influencers por todo o Brasil. No centro das críticas à escala 6x1 está a impossibilidade do descanso, do lazer e o adoecimento mental. O que a obra de Marx pode nos revelar sobre este tema contemporâneo e a agonia dos trabalhadores que vivem na escala 6x1? Existe vida além do trabalho no capitalismo?

Desde a década de 90 a classe trabalhadora no Brasil e no mundo vem tendo seus direitos trabalhistas corroídos e sistematicamente atacados pelos governos e patrões, pelo processo de precarização e flexibilização das leis trabalhistas em uma grande operação política e econômica burguesa coordenada internacionalmente que ficou conhecida como neoliberalismo. O banco de horas, a terceirização, os contratos temporários e a deterioração dos salários, foram formas de precarização que dominaram o mundo do trabalho até meados da crise de 2008.

De lá para cá a precarização das condições de trabalho se tornaram ainda piores no Brasil e no mundo, com implementação da reforma trabalhista, reforma da previdência e aplicações tecnológicas na intermediação das relações de trabalho, deram forma aos contratos intermitentes, contratos de zero hora, a uberização do trabalho e destruição de direitos previdenciários que amparam a classe trabalhadora. Esses ataques as condições de vida nossa classe no Brasil foram efetuadas e alimentados pelos governos de todos os espectros da política burguesa, por conciliadores da centro esquerda, pelo centrão, direita e extrema direita, passando por FHC (PSDB), Lula (PT), Dilma, (PT), Michel Temer (MDB), Bolsonaro (PL). As medidas desses governos foram sustentadas e amparadas pelo STF. Enquanto os grandes sindicatos e centrais sindicais, como a CUT e a CTB, promoveram quase nula resistência da nossa classe para impedi-los, quando não diretamente contribuíram na implementação.

Nos últimos anos, desde que o trabalho uberizado por aplicativos e plataformas digitais, como Ifood e Uber, se multiplicaram em larga escala, o debate sobre a consciência da classe trabalhadora e sua própria constituição enquanto classe ganhou o centro do mundo do trabalho. Por todos os cantos, do dia a dia, na academia, nas universidades, na grande mídia, tudo que se ouvia é que a classe trabalhadora já não mais se identifica como tal, que a CLT não mais atende suas necessidades e preferências laborativas, que as leis trabalhistas é um entrave para a prática profissional e ascensão econômica, que não existe mais trabalhadores, e sim empreendedores autônomos em busca de seu enriquecimento. É neste contexto que a luta pelo fim da escala 6×1 se alastrou como pólvora pelas redes sociais, ganhando opiniões favoráveis de influencers e o apoio do conjunto da população. E o centro do debate da opinião pública tornou-se a redução da jornada de trabalho, garantida em lei. Uma reivindicação trabalhista ganhou os olhos de massas que passam a se ver como classe trabalhadora, em contraste às regalias dos políticos, que trabalham em escala 4×3 e ganham mais de R$40 mil, enquanto o salário mínimo de R$1,4 mil mal paga as contas ao final do mês. A luta contra a escala 6×1 girou em 180º os debates no mundo do trabalho, da crise da CLT para a redução da jornada de trabalho.

A vida para além do trabalho no capitalismo

O tema da escala 6×1 começou a ganhar visibilidade através do influencer Rick de Azevedo e o movimento, por este fundado, chamado de VAT (Vida Além do Trabalho). Desde que iniciou sua campanha, passou a proliferar pelas redes sociais, ainda que em baixa intensidade, publicações satirizando e criticando a escala 6×1. É interessante notar que os argumentos utilizados desde então para expressar o repúdio a esta jornada de trabalho se vincula especialmente as condições de vida fora do trabalho, ou seja, referentes a baixíssima qualidade de vida desses trabalhadores e a falta de tempo para o desfrute ao descanso, ao autocuidado, para dedicação aos estudos, afazeres domésticos, obrigaçõe familiares maternos e paternos, etc. Dentre as denúncias que mais sensibilizaram as redes sociais estão o adoecimento psicológico e emocional, o cansaço extremo, a incapacidade do descanso e de ser ter uma vida para além do ciclo laboral, acordar, trabalhar, recompor o mínimo das energias para retornar ao trabalho para a semana seguinte.

O interessante destas denúncias e argumentos reivindicativos, não necessariamente inovadores, mas há muito adormecidos entre a classe trabalhadora, é que em primeiro contato, não se refere a questões econômicas, como salário, progressão de carreira, e nem mesmo a condições dentro do cotidiano de trabalho, como direitos trabalhista e benefícios. Os argumentos se dirigem, como dito, ao período onde o trabalho não deveria arbitrar, e ainda assim este o impossibilita de existir.

Embora seja uma abordagem pouco usual dentro do mundo sindicalista e do conjunto reivindicativo das vertentes sindicais, economicistas e corporativas, trata-se de um dos temas centrais da obra de Marx, O Capital, obra que desnuda o modo de produção capitalista desde a perspectiva da exploração do trabalho. Em Marx, o tempo de trabalho que a classe trabalhadora passa fora do trabalho, tem um lugar bem determinado no capitalismo, que ele chama de tempo necessário para reprodução da força de trabalho, ou ainda, esfera da reprodução. Marx descreve este momento do cotidiano como aquele destinado dentro do capitalismo para a classe trabalhadora reconstituir sua força de trabalho para comparecer à exploração do dia seguinte, ou seja, limpar suas vestimentas, alimentar-se, cuidar das responsabilidades familiares, de sua saúde e descansar.

Essa parte do dia da classe trabalhadora, está em contraposição a jornada de trabalho, ou seja, o tempo que passamos trabalhando para um patrão, sendo explorados e vendendo nossa força de trabalho em troca de um salário, que utilizamos para gastar com os insumos necessário para reproduzir nossa força de trabalho, como casa, alimentação, vestimenta, etc.

Para Marx, esses dois momentos do dia a dia da classe trabalhadora estão intimamente conectados no modo de produção capitalista, pela interdependência e pelo antagonismo. Ou seja, não são momentos autônomos e independentes, mas ditados pela lógica de exploração capitalista e, particularmente, do lucro. Vejamos mais detidamente como Marx analisa essa questão através do que ficou conhecido como lei do valor, onde a disputa pelo controle do tempo de trabalho de um(a) trabalhador(a) tem um papel central no capitalismo, sendo um componente fundamental na luta de classe, entre patrão (burguesia) e a classe trabalhadora (proletariado).

No O Capital, Marx explica que o salário é equivalente ao valor da classe trabalhadora no capitalismo. Uma vez que neste modo de produção a força de trabalho é uma mercadoria, ou seja nós somos mercadorias, vendemos a única coisa que temos, que é nossa capacidade de trabalhar, e assim comprar, trocar, outras mercadorias que necessitamos para sobreviver e viver. O valor de um trabalhador portanto é equivalente ao conjunto de mercadorias consumidas para reproduzir sua força de trabalho. O salário, porém, é produto do nosso próprio trabalho, e nós produzimos o valor necessário para nossa subsistência enquanto trabalhamos para o patrão que nos retorna na forma de dinheiro. Porém nós produzimos muito mais do que é necessário para nossa remuneração. A quantidade de trabalho, ou então, o tempo de trabalho a mais que produzimos durante nossa jornada de trabalho, que é usurpado, roubado ou expropriado privadamente pelo patrão, é o lucro, ou então, a mais-valia.

Desta forma, quanto menor é nosso salário, maior é a quantidade de tempo do nosso trabalho roubado pelos capitalistas. Da mesma forma, quanto maior é a jornada de trabalho, ou mais rápido trabalhamos, maior é o lucro, maior é a mais-valia extraída de nosso trabalho. É falso portanto que quanto mais trabalhamos, melhor é a nossa remuneração. Ao contrário, quanto mais trabalhamos, quanto maior a jornada de trabalho, maior o lucro do capitalista, e mais estamos sendo roubado por este.

Até aqui, nenhuma novidade. Porém as conclusões dessa verdade incontestável do capitalismo é que, os capitalistas sempre querem aumentar ao máximo possível a nossa jornada de trabalho, o tempo que ficamos dentro do trabalho, em relação ao tempo que ficamos fora. Consequentemente, o tempo que temos fora do trabalho passa a ser cada vez mais consumido pelos afazeres indispensáveis necessários para estarmos aptos para trabalhar no dia seguinte, ou seja da reprodução da força de trabalho, em detrimento do descanso e da possibilidade de desfrutar a vida.

Entretanto, para Marx, o trabalho necessário para reprodução da força de trabalho, ou seja, cozinhar, limpar, cuidar, etc, também são trabalhos necessários para que a produção capitalista aconteça, sem os quais nenhuma pessoa poderia estar apta a ir trabalhar no dia seguinte. Além disso, o trabalho necessário para reproduzir a força de trabalho é feito gratuitamente pela classe trabalhadora, e, em uma sociedade patriarcal, especialmente pelas mulheres e a parcela feminina do proletariado. De tal forma, este trabalho feito no ambiente doméstico configura uma dupla jornada de trabalho, uma no trabalho, remunerada pelo salário, e outra não remunerada, feita no ambiente doméstico. Neste sentido a vida além do trabalho só é possível ser verdadeiramente concebida quando contabilizado não somente o tempo fora do ambiente de trabalho, mas também o tempo despendido para reprodução da força de trabalho, ou seja, para além do tempo de trabalho despendido no ambiente doméstico, como limpeza, cuidados, etc.

A disputa entre tempo de trabalho e tempo fora do trabalho, ou seja, da jornada de trabalho, é o motor mais elementar da luta de classes no capitalismo. É a disputa pela mais valia, do lucro em detrimento das condições de vida da classe trabalhadora. Quanto maior a jornada de trabalho, mais somos roubados pelos capitalista, e esse roubo, medido em lucro, também pode ser medido em horas de vida que nos é permitido viver fora do trabalho.

Portanto, o tempo que passamos sendo explorados pelos capitalistas, determina o tempo de vida que temos para nós mesmos enquanto seres humanos, de modo que os capitalistas sempre fazem de tudo para consumir todas as horas possíveis da nossa força vital. Por isso a classe trabalhadora está sempre lutando, durante toda a sua história, para diminuir o tempo que passa no trabalho.

Vale lembrar que no início da revolução industrial, Engels relata que a jornada de trabalho na Inglaterra era em média de 10 horas, alcançando 12 horas diárias, ou até mais, inclusive para crianças. A luta pela redução da jornada de trabalho foi incessante por parte da classe trabalhadora, para colocar limites para exploração dos capitalistas e diminuir a quantidade de trabalho despendido dentro das fábricas, por exemplo. A luta internacional da classe trabalhadora que conquistou o limite de jornadas de 10 horas, passou depois a ser a luta pela jornada de 8 horas. A jornada de 8 horas só foi conquistada no Brasil em 1943, com a CLT, durante a era Vargas, após incessantes greves operárias nos anos 30, especialmente concentradas em São Paulo. Mas o início desta luta data pelo menos desde 1864, sendo uma das primeiras bandeiras primeira Internacional Comunista, que participavam Marx e Engels.

Os limites históricos da jornada de trabalho

Voltando a luta contra a escala 6×1, vale ressaltar que, embora ela possa significar, no atual regime trabalhista brasileiro, alguma redução na jornada de trabalho, se mantida sempre 8 horas diárias, algo que não está garantido no Projeto de Lei enviado pela Erika Hilton (PSOL) conforme explica a jurista do trabalho Valdete Souto Severo, o centro da reivindicação está na possibilidade da reprodução a força de trabalho.

É interessante encontrar também dentre os argumentos contra a escala 6×1 a impossibilidade do lazer, do entretenimento, de ir ao cinema, teatro, de estudar, etc. São argumentos como dito anteriormente que fogem ao econômico, ou seja, a um quantitativo que pode ser medido em dinheiro e salário, como observamos no rotineirismo sindical das últimas décadas, mas para Marx, os limites colocados para exploração do trabalho não é apenas físico, mas também social, moral e subjetivo.

Embora no capitalismo tudo seja mercadoria e pode ser medido, trocado e vendido por dinheiro, transformando-se em questões quantitativas e monetárias – até mesmo o próprio conforto e o entretenimento podem ser comprado e vendido, através de um ingresso de cinema ou de uma cama confortável – o argumento apresentado neste momento é antes de mais nada moral. Quando os argumentos articulados contra a escala 6×1 afirmam que esta modalidade é “imoral” e “desumana”, afirma-se também que o descanso, conforto, entretenimento e o estudo, ainda que possam ser medidos em tempo de “não trabalho”, não têm preço. Embora para o patrão e para os capitalistas é justamente o contrário, cada hora perdida nos explorando resulta em uma quantidade proporcional perdida de lucro.

Vale mencionar que tal percepção desmonta o discurso empreendedor que vem sendo construído nos últimos anos, através dos influencers e coachs, que disseminam a idéia do enriquecimento através do não descanso, de que tempo é dinheiro, buscando condenar aqueles que querem usufruir do tempo livre, culpando-os pelo próprio empobrecimento. Trata-se de um avanço importante da consciência de classe perceber que a valorização do trabalho não é proporcional ao quanto se trabalha, mas sim na diminuição do tempo em que se trabalha para um capitalista.

Este cenário remonta às reivindicações históricas da luta pela jornada de 8 horas de trabalho, onde o mote se resumia a “8 horas de trabalho, 8 horas de descanso e 8 horas para fazer o que quiser”. Desta forma, o tempo para além do próprio descanso físico é considerado pelo trabalho enquanto um momento fundamental e inestimável para sua condição enquanto ser humano. Esta dimensão, moral, cultural, subjetiva e histórica está presente também nas obras do Marx, no O Capital. Vejamos um trecho:

Durante uma parte do dia, essa força tem de descansar, dormir; durante outra parte do dia, a pessoa tem de satisfazer outras necessidades físicas, como alimentar-se, limpar-se, vestir-se etc. Além desses limites puramente físicos, há também limites morais que impedem o prolongamento da jornada de trabalho. O trabalhador precisa de tempo para satisfazer as necessidades intelectuais e sociais, cuja extensão e número são determinados pelo nível geral de cultura de uma dada época. (Marx, O Capital)

Portanto, quando é denunciado por trabalhadores que lutam pelo fim da escala 6×1 que o adoecimento, a impossibilidade de exercer tarefas familiares e domésticas e, principalmente, a incapacidade do descanso, o que está em jogo é a possibilidade de recompor a força de trabalho, de estar apto a mais uma nova semana de jornadas diárias. Esta é uma realidade denunciada por trabalhadores ao longo de toda a história do capitalismo. A sede de lucro dos capitalista é tão voraz e insaciável, que as jornadas de trabalho passam atentar a própria capacidade de reprodução da força de trabalho, esmagando o tempo de descanso entre inúmeras tarefas da existência cotidiana, impossibilitando a vida da classe trabalhadora enquanto tal, destruindo sua saúde física e mental.

De tal modo que, a destruição das condições de vida da classe trabalhadora é uma necessidade imperiosa para o modo de produção capitalista existir e permanecer funcionando. O único limite para esta destruição, é o próprio limite físico da classe trabalhadora. Porém os capitalistas estão sempre atentando a este limite, pressionado para que se modifique a seu favor.

Neste sentido, em última instância, este limite é sempre definido pela luta de classes, ou seja, pela luta incessante entre a burguesia e o proletariado, a luta da classe trabalhadora contra os patrões e seus governos. A luta por uma vida além do trabalho é a causa histórica mais elementar da luta dos trabalhadores contra o capitalismo, desde seu surgimento.

A escala 6×1 e a redução da jornada de trabalho em nosso tempo

O enorme apoio que vem se demonstrando pelas redes sociais e manifestações pelo fim da escala 6×1 é o grito entalado na classe trabalhadora de que a jornada que atual jornada de trabalho está alcançando os limites físicos e subjetivos da classe trabalhadora. A jornada de 8 horas dos postos de trabalho formais já não corresponde ao nosso momento histórico.

O desenvolvimento tecnológico das últimas décadas elevaram enormemente a produtividade do trabalho, ao mesmo passo que criou uma vastidão de meios de entretenimento e mercadorias de bem estar que a classe trabalhadora mais precarizada e mais explorada não consegue desfrutar. A elevação da capacidade produtiva e tecnologia cria possibilidades de condições de vida superiores, na área da saúde, educação, cultura, arte, entretenimento, viagens, descanso, conforto. Mas nada disso pode ser consumido e desfrutado plenamente por aqueles que trabalham na escala 6×1.

Por outro lado, a infraestrutura pública também consome o pouco tempo fora do trabalho. Segundo o IBGE de 2021, a classe trabalhadora brasileira gasta em média de 6,4 horas semanais se transportando para seus locais de trabalho nas capitais. Um equivalente a mais de 1 hora por dia que se perde inutilmente nos transporte lotados e desconfortáveis, somando-se a jornada de trabalho. O caos urbano e a precariedade do transporte também aumentam o tempo de deslocamento para espaços de lazer e socialização.

A precarização da saúde também pesa, tornando qualquer tipo de atendimento uma odisséia nas filas de espera da rede básica. Um estudo de 2015 aponta que o tempo médio de espera no Brasil para uma consulta médica é de, em média, 15 min, nas unidades básicas de saúde, entre pessoas classificadas na classe D e E, é de 2 horas.

A exigência pela especialização e profissionalização contínua por parte do mercado de trabalho, torna quase compulsório o estudo junto ao trabalho para qualificação profissional. Os baixos salários exigem fontes de renda auxiliares, de modo que cerca de 31% da classe trabalhadora fazem os chamados “bicos” para complementar os salários, multiplicando as jornadas de trabalho. Além disso, com os intermédios digitais e redes sociais, a esfera do trabalho também passa a tomar posse do tempo destinado ao descanso.

A precariedade das atividades necessárias para a reprodução da vida consome as horas fora do trabalho, de tal modo que uma recente pesquisa aponta que 65% da população não tem nenhum momento de descanso. Outra pesquisa aponta um aumento de 38% nos afastamentos por transtornos mentais no trabalho no último ano, sendo que de 2022 à 2023 o aumento havia sido de 20%.

Tudo isto ocorre enquanto as tecnologias elevam a produtividade com os adventos da nova revolução tecnológica 4.0. Ou seja, a classe trabalhadora produz imensamente mais valor do que no século XX, mais mercadorias para serem comercializadas pelos capitalistas, sem reverter em aumento salarial ou redução da jornada de trabalho.

Em suma, a precarização do trabalho e das condições de vida tem tornado a reprodução da força de trabalho mais custosa, ao passo em que se multiplicam a contradições entre o tempo da jornada de trabalho e o tempo necessário para a reprodução da força de trabalho. As condições objetivas para a reprodução da vida social humana se elevam, mas se chocam com a organização do trabalho capitalista e a sede inesgotável do lucro dos patrões.

A luta pelo fim da escala 6×1 e a consciência de classe

Como vimos, as condições de reprodução da vida da classe trabalhadora esta indissociavelmente ligadas a esfera do trabalho, mas chama atenção que esta luta tenha se desenvolvido pelas redes sociais, ganhando forma de opinião pública, mas sem mobilizações dentro dos ambientes de trabalho, ou seja, através da organização da classe trabalhadora com seus métodos tradicionais, como assembleias, paralisações e greves. Torna-se uma luta reivindicatória de direitos trabalhistas ocorrendo paralelamente ao ambiente de trabalho.

Este talvez seja um dos principais elementos a se pensar na atualidade. A luta pela redução da jornada de trabalho para 8 horas no Brasil se deu através das greves, como, por exemplo, a greve geral de 1917 e as greves de trabalhadores industriais em São Paulo 1932 e 1941. As greves são as formas de luta mais tradicionais da classe trabalhadora, uma vez que é um instrumento poderoso de demonstrar sua força, parando a economia e impor prejuízos aos capitalistas, questionando a sociedade capitalista, onde nada se move ou se cria sem as mão do proletariado.

A solução deste enigma se revela nas manifestações nacionais pelo fim da escala 6×1 convocadas no dia 15/11, onde os grandes sindicatos e grandes centrais sindicais como a CUT e a CTB praticamente não compareceram, exceto por algumas bandeiras em algumas poucas capitais. Ficou evidente que mais uma vez as direções sindicais não mobilizaram a base dos trabalhadores para irem a manifestação e tão pouco estão promovendo a reivindicação do fim da escala 6×1 nos locais de trabalho. Isso sem dizer dos sindicatos e centrais sindicais pró patronais, como a Força Sindical, por exemplo.

Pela primeira vez em décadas a redução da jornada de trabalho torna-se tema de debate nacional, com amplo apoio da população, após sistemática precarização do trabalho. Em plena consolidação da uberização do trabalho, que obliterar os direitos trabalhista de uma enorme parcela de trabalhadores, que chegam a trabalhar de 10h à 12h horas por dia, retrocedendo o tempo da jornada de trabalho para o século XIX; em meio ao avanço da ideologia empreendedora, que dissolve a consciência de classe, buscando convencer que os setores mais explorados da classe trabalhadora são empresários autônomos e que precisam trabalhar cada segundo de suas vidas sem descanso; em um momento em que os partidos ditos de esquerda passam a reproduzir este discurso neoliberal, como ocorreu, por exemplo, na campanha para prefeitura de São Paulo, quando Boulos (PSOL) adotou as propostas empreendedoras da direitista Tábata Amaral (PSB) e da extrema direita radical representada por Pablo Marçal (PRTB); em meio a tudo isso, a classe trabalhadora se mostra disposta a lutar por um novo limite para exploração do trabalho, colocando em pauta o controle sobre o tempo, o direito ao descanso e a redução da jornada de trabalho, exigindo o fim da jornada 6×1.

O sindicalismo brasileiro passou do vício economicista de tratar apenas de salário e números que são corroídos pela inflação – permitindo a flexibilização dos direitos trabalhistas, a terceirização, a uberização e todas as formas de precarização – para tornar-se um verdadeiro freio da luta dos trabalhadores e pilar de sustentação do estado capitalista e seus governos. Há décadas longe do trabalho em qualquer tipo de escala, os dirigentes sindicais tornam-se burocratas sobrevivendo das regalias dos postos quase vitalícios de seus cargos nos sindicatos. O nome dado a este tipo de sindicalismo é burocracia sindical. Nas palavras do marxista Leon Trotsky:

O capitalismo monopolista cada vez está menos disposto a admitir sobre novas bases a independência dos sindicatos. Exige que a burocracia reformista e a aristocracia operária, que dividem as migalhas que caem de sua mesa, se transformem em sua polícia política aos olhos da classe operária (Trotsky, Os sindicatos na época de decadência imperialista)

O evidente motivo deste total abandono está no apoio destas centrais sindicais ao governo Lula-Alckmin, um governo de conciliação de classes, que tem pactos com o capital financeiro, expresso pelo Arcabouço Fiscal, por exemplo, e que manteve a Reforma da Previdência e a Reforma Trabalhista. A conciliação de classes mostra mais uma vez o seu verdadeiro papel na história e as direções sindicais tornam-se obstáculos para a classe trabalhadora e correia de transmissão dos governos e do estado capitalista.

Marx olharia esta situação com preocupação e alteraria a classe trabalhadora do risco da luta pelo fim da jornada 6×1 ser desviada e impedida. Sem a classe trabalhadora entrar em cena com seus métodos de luta, com assembleias, paralisações e as greves, todas as manifestações desta causa vão se canalizar para o congresso, a ser votado por políticos burgueses patrocinados pelos nossos patrões, que votaram todas as reformas e leis anti-operárias das últimas décadas, como a reforma trabalhista e da previdência. Passado isso, ainda terá de ser sancionado pelo STF, um órgão que ninguém vota, e ainda assim dita os rumos do país. Lembremos também que o STF vetou a Lei do Piso da Enfermagem mesmo após a pandemia. Em suma, estará nas mãos do estado capitalista arbitrar sobre o fim da escala 6×1 e a jornada de trabalho, e como diz Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista, “o estado burguês não passa de um balcão de negócios da burguesia”.

Marx, portanto, ao alertar para este risco eminente, chamaria, como fez em seu texto Crítica ao Programa de Gotha, a necessidade da independência política da classe trabalhadora, a necessidade de retomar os sindicatos em nossas, exigir das grandes centrais sindicais um plano de lutas rumo à greve geral, confiando somente na força da nossa classe e articulando junto do fim da escala 6×1, o programa histórico da classe trabalhadora de redução da jornada de trabalho. Mas Marx nunca deixaria de dizer que, enquanto o capitalismo estiver de pé, haverá a luta pela redução da jornada de trabalho, pois esta é a essência da luta de classes no capitalismo, e a vida para além do trabalho só será plena no comunismo, onde o trabalho poderá se libertar do parasitismo da burguesia.

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