Esteban Mercatante
Os enganos do capitalismo verde e uma perspectiva sobre as alternativas propostas diante da crise ecológica.
À medida que a crise ecológica se tornou cada vez mais difícil de negar, o capitalismo verde tem se consolidado, com suas diversas facetas. Existe uma linha mais empreendedora, que destaca o papel das empresas em tomar medidas de inovação em áreas relacionadas à sustentabilidade ou à transição energética. Temos também a regulamentação de cunho neoliberal sobre “falhas de mercado”, que podemos ver em impostos sobre o carbono, mercados de créditos de carbono, pagamentos por conservação, etc. E, ainda, intervenções de tipo keynesiano para subsidiar investimentos em energias renováveis ou na descarbonização da indústria, ou até mesmo iniciativas de investimento estatal. Paralelamente, desde os Acordos de Paris, houve avanços nos compromissos dos diferentes países para reduzir as emissões, em níveis que, conforme alertado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) em seus últimos documentos, estão longe de serem suficientes para evitar que o aumento das temperaturas ultrapasse os níveis críticos de 1,5 ou 2 ºC neste século.
Hoje, as empresas competem cada vez mais para demonstrar que estão alinhadas com objetivos de sustentabilidade, o que deu lugar a um generalizado greenwashing, com pouco ou nenhum impacto real em termos de mudança nas formas de produção. As projeções e cenários do IPCC consideram que esse capitalismo verde seguirá desenvolvendo-se em suas diversas facetas. Isso não é questionado, embora os relatórios se tornem cada vez mais alarmantes quanto aos limites planetários que estão sendo ultrapassados, indo muito além das mudanças climáticas, que já se encontram em um território perigosíssimo.
Mas a principal medida de sucesso do capitalismo verde não está em alcançar resultados efetivos nesses aspectos, mas sim no grau em que essas iniciativas permitam legitimar o ecologismo das grandes empresas. Manter o domínio dos discursos ecológicos significa assegurar que prevaleçam as propostas de soluções ecológicas que se ajustem às considerações de custo-benefício monetário.
O capitalismo verde pode ser algo mais que greenwashing? David Harvey nos lembra que o capital “tem uma longa trajetória de resolução de suas dificuldades ambientais” 1. Mas, o autor ressalta que o “sucesso” do capital em enfrentar esses transtornos ambientais se deu “nos termos do capital, que são os de uma rentabilidade sustentada” 2. Isso implica que a sustentabilidade das condições ecológicas a médio ou longo prazo tem um papel subordinado. De fato, a ideia de desenvolvimento sustentável se apoia em uma noção de sustentabilidade fraca, segundo a qual a destruição dos ecossistemas pode ser substituída por outras formas de “capital”, o que é um absurdo do ponto de vista ecológico, mas serve aos fins desse sistema.
Embora pareça cada vez mais hegemônico, o capitalismo verde, além das críticas que recebe pela direita (o que contribui para que setores progressistas aceitem sem questionamento a agenda neoliberal contra as mudanças climáticas), não visa, no imediato, substituir o capitalismo poluente, mas, no máximo, firmar compromissos. As indústrias de hidrocarbonetos, e todas as que dependem delas, continuam operando com lucros, ainda que se busque subsidiar mais as energias de transição. Ao mesmo tempo, o capitalismo verde foca em alguns limites planetários, como o do clima, mas não no conjunto de todos eles, porque reconhecê-los dificultaria esconder a ideia de que há um problema sistêmico com o funcionamento do metabolismo socionatural, o que implicaria questionar a ordem social como um todo para resolvê-lo.
As armas da crítica ecológica
Diante da crise ecológica, a ideia de que soluções eficazes podem ser geradas sem mudanças profundas no sociometabolismo é, provavelmente, mais perigosa do que o negacionismo. Trata-se de uma ideologia que precisa ser profundamente desmentida, revelada como a mistificação que é, e respondida com uma alternativa que permita projetar um sociometabolismo alternativo, que aponte para uma relação mais razoável no metabolismo socionatural.
Interessa-me, então, resgatar as contribuições do ecomarxismo, tanto como ferramentas que permitem discutir as raízes sistêmicas da produção de crises ecológicas neste sistema social, quanto como um ponto de apoio para o debate sobre horizontes pós-capitalistas e socialistas.
A crise ecológica vem colocando o desafio de buscar ferramentas teóricas adequadas para abordá-la, e isso tem gerado uma efervescência em todas as esferas de produção de conhecimento. Nesse cenário de crise, que há muito tempo atravessa todas as disciplinas, houve uma revalorização das elaborações de Marx, Engels e outros autores marxistas sobre a problemática ecológica e a relação sociedade-natureza, numa perspectiva não dualista, fruto do esforço do pensamento ecomarxista contemporâneo. Autores como John Bellamy Foster, Paul Burkett, Kohei Saito, apenas para citar alguns, contribuíram para a reconstrução do pensamento ecológico de Marx a partir do estudo cuidadoso de seus trabalhos publicados, bem como de manuscritos inéditos, como os cadernos de seus últimos anos. Na estrutura conceitual da crítica da economia política, destacaram as dimensões de um pensamento ecológico não sistematizado, mas profundamente enraizado na compreensão das dinâmicas da acumulação capitalista, e muito atual. A partir desse resgate, contribuíram para o diálogo e a polêmica com as várias posições do marxismo sobre essas questões ao longo do século XX.
O que surge dessa proposta é uma teoria que se distancia tanto dos materialismos mecanicistas quanto de abordagens que, contra essas posições, inclinaram-se por uma separação abrupta e unilateral das esferas natural e social. Sempre houve, no campo marxista amplamente definido, posições que partiam da continuidade entre o natural e o social, contra o dualismo antinaturalista, mas que, ao mesmo tempo, buscavam distinguir nessa continuidade uma especificidade do que é um construto social. A contribuição distintiva das leituras mais atuais é que, partindo das elaborações de Marx e, em parte, também de Engels, encontram conceitos relevantes para abordar as problemáticas ecológicas.
Talvez a contribuição mais crucial, que distingue a abordagem marxista da crise ecológica gerada pelo capitalismo, seja analisá-la a partir da dinâmica de funcionamento do sistema. Que esta é uma questão de grande atualidade é evidenciado, por exemplo, por Nancy Fraser, em seu recente Capitalismo Canibal. A autora destaca a importância de inscrever as opressões de raça e gênero, os danos ecológicos e as tendências antidemocráticas observadas na ordem social, em uma perspectiva integradora, que aborda as relações entre essas dimensões e as dinâmicas básicas da acumulação capitalista. Uma visão desse tipo é profundamente devedora das ferramentas críticas construídas a partir de O Capital de Marx, embora a autora, em alguns momentos, não reconheça isso ou mesmo critique, em parte, Marx. Marx aborda a produção e circulação de capital como um processo inseparavelmente social e material. Isso pode parecer óbvio, mas essa dupla dimensão tende a desaparecer na economia política, para não falar da disciplina econômica contemporânea.
Quanto mais o capital se torna a relação social dominante e transforma, de forma correspondente, os modos de produção, mais ele gera formas específicas de dominação sobre a natureza humana e não humana. Em sua crítica da economia política, Marx propõe evidenciar todas as mistificações escondidas nas categorias com as quais essa disciplina tenta explicar o funcionamento do sistema. Marx mostra como a reprodução da ordem social capitalista depende necessariamente de uma série de processos materiais e sociais que não são visíveis a partir de uma visão restrita dessas categorias econômicas. O aspecto mais óbvio é a explicação da exploração capitalista, que aparece na economia política como uma troca de equivalentes, onde cada parte obtém um preço “justo”. Mas também encontramos referências à exploração da natureza, ao aproveitamento de trabalho não remunerado e às lógicas econômicas do colonialismo, com suas implicações racistas. Não são referências superficiais. Embora não possamos dizer que Marx desenvolveu uma crítica ecológica do capitalismo, o que seria uma expectativa extemporânea, o problema dos transtornos nos metabolismos socioecológicos foi adquirindo cada vez mais presença em sua crítica da economia capitalista.
Se seguirmos o raciocínio com o qual Karl Marx se propõe, em O Capital, a reconstruir conceitualmente o modo de produção capitalista, podemos ver as diversas dimensões antiecológicas que distinguem o metabolismo socioecológico caracteristicamente capitalista. Acompanhar o caminho da mercadoria, desde a circulação de insumos e matérias-primas (incluindo a força de trabalho transformada em mercadoria), passando pela produção, até a circulação do capital e as leis gerais de sua acumulação (incluindo as formas de aumento da mais-valia) permite delinear as múltiplas determinações que fazem do capitalismo uma ordem social profundamente antiecológica. Não apenas porque, quantitativamente, o capitalismo se direciona a um aumento permanente da escala de valorização (o que pressupõe processos materiais em escala crescente), mas também qualitativamente, pois a tradução de todas as esferas da vida em valores ignora qualquer impacto nos ecossistemas. A própria separação dos produtores em relação aos meios de produção, pressuposto básico deste sistema, é convincentemente formulada por alguns autores como a chave para a relação indiferente e alienada que este sistema impõe em relação à natureza. A natureza é convertida em objeto de apropriação para a valorização, algo que é exacerbado nos extrativismos contemporâneos, que envolvem níveis cada vez mais extremos de mutilação ecológica.
Em suma, a abordagem proposta pelo ecomarxismo, com a extensão da crítica da economia política na vertente inaugurada por Marx, é fundamental para realizar o que Paul Burkett definiu como uma análise socioecológica, que seja ao mesmo tempo “consistentemente social e materialista” 3. Isso significa atender a dois requisitos ao mesmo tempo. Por um lado, abordar as relações entre as pessoas e a natureza como algo mediado socialmente de formas historicamente específicas, evitando concepções grosseiramente materialistas – sejam deterministas tecnológicas ou naturalistas – da realidade social como algo naturalmente predeterminado. Por outro lado, é preciso evitar uma visão social-construtivista que enfatize unilateralmente o papel das formas sociais na configuração da história humana, negligenciando como o conteúdo material dessas formas é limitado pelas condições naturais de produção e evolução humana.
Isso é importante para discutir, por exemplo, como entendemos o antropoceno. Alguns autores, como Andreas Malm, advertem de maneira correta sobre a tentação, muito funcional para a perpetuação da ordem social contemporânea, de entendê-lo como resultado da ação humana em geral, e não localizada em determinadas relações materiais, as capitalistas, que subordinam a organização da produção (e as formas de consumo por elas determinadas) à valorização do capital 4.
Aceleracionismo ecológico
Dentro do campo da crítica às saídas capitalistas verdes, encontramos divergências sobre como responder aos legados de crise ecológica deixados pelo capitalismo e para onde deve apontar uma sociedade pós-capitalista. Há duas posições que, de certa forma, tendem a polarizar o debate.
A primeira delas é a que poderíamos chamar de ecomodernista. Nessa perspectiva, a resposta à crise ecológica está na aceleração do desenvolvimento tecnológico. O diagnóstico central é que a inovação no capitalismo encontra-se cada vez mais limitada para liberar todo seu potencial, pois é cada vez mais difícil traduzir isso em modelos de negócios rentáveis que justifiquem os investimentos. Aaron Bastani, em Comunismo de luxo totalmente automatizado, exemplifica bem essa visão. Libertar o desenvolvimento tecnológico dessas limitações impostas pelas relações de produção capitalistas permitiria, na visão de Bastani, automatizar completamente os processos produtivos. Esse pensamento pós-capitalista, como criticaram acertadamente alguns autores, pensa mais em termos de eliminação do trabalho do que em transformação do trabalho. A ausência de uma noção de transformação também se encontra, além disso, na maneira como se pensa a abundância. Basicamente, democratizar, estender, os padrões de consumo dos ricos no capitalismo para toda a sociedade. Essa automatização comunista seria compatível, segundo esses autores, com a resolução dos problemas ecológicos. Isso pode ser possível graças a inúmeras mudanças, grandes e pequenas, que em alguns casos já estão em andamento, mas que poderiam ser aceleradas sob novas relações de produção comunistas.
O comunismo automatizado poderia investir em grande escala em energias renováveis ou outras tecnologias. Mas essa vertente modernista não para por aí. Uma suposição que lhe permite afirmar que um comunismo de luxo totalmente automatizado e ambientalmente sustentável é alcançável, se os limites impostos pelo capital ao desenvolvimento tecnológico forem removidos, é que, em grande parte, o “luxo” tende a se desacoplar do impacto ambiental. Isso seria ampliar a escala do que supostamente já ocorre nos países mais desenvolvidos, segundo algumas estatísticas; mas muitas dessas evidências de desacoplamento são obtidas abstraindo-se de como esses países ricos, imperialistas, sustentam sua reprodução (incluindo, com isso, os processos de acumulação capitalista comandados por suas multinacionais explorando trabalho e recursos em todo o globo) em numerosos processos materiais que ocorrem fora de suas fronteiras. Não há desmaterialização, mas sim deslocalização dos processos materiais em países terceiros, para onde “terceirizam” os impactos ambientais. Quando incluímos essa “deslocalização” da pegada material na equação, não ocorre tal desacoplamento. Sustentar a ideia de que um comunismo de luxo automatizado tem um caminho livre com base nesses frágeis pressupostos pode ser desastroso. Para não arriscar, eles imaginam então que, se não houver desmaterialização suficiente, a mineração espacial (a extração de metais de asteroides) e o uso do espaço podem ser um destino para o lixo que se acumula de forma cada vez mais insustentável em várias partes do planeta, podendo oferecer uma resposta.
Ao projetar além do capitalismo formas de consumo que são intrínsecas a esse modo de produção, contribui-se para naturalizá-las e des-historizá-las. Como essas formas não são universalizáveis de maneira sustentável nos limites impostos pelo planeta, não surpreende a necessidade de imaginar soluções intergalácticas para os desafios ambientais, como aquelas propostas por alguns ecomodernistas como Bastani, que oferece uma variante “comunista” (de luxo) dos delírios espaciais de Elon Musk ou Jeff Bezos.
Decrescimento
A proposta decrescentista postula que é necessário reduzir urgentemente e voluntariamente a produção e o consumo, através de mudanças profundas na maneira como esses processos são realizados. Reduzir, especialmente nos países ricos, é a única forma de diminuir a emissão de gases, mas também os efeitos da extração de recursos sobre os ecossistemas, que hoje supera amplamente a capacidade de reposição da natureza. A discussão sobre o decrescimento não é nova. Seus antecedentes remontam pelo menos ao livro A Lei da Entropia e o Processo Econômico, de Nicholas Georgescu-Roegen, de 1970-71. Também foi discutida, por exemplo, por Manuel Sacristán.
Nas propostas decrescentistas, encontramos a ideia de que são necessárias mudanças muito acentuadas nas formas de produção e consumo. A ideia de uma nova sociedade com formas de produção qualitativamente diferentes está presente até mesmo em autores que são mais ambivalentes quanto à necessidade de acabar com o domínio do capital, como Serge Latouche. O problema é que não há equivalência entre aquilo que se quer desmantelar e o que se propõe construir. Pretende-se que o fim de um modo de produção venha pela imposição do decrescimento. Mas este último, embora se afirme ser muito mais do que uma postura negativa em relação ao crescimento econômico, não consegue delinear uma rota coerente para subverter as bases do capitalismo.
Há uma contradição não resolvida entre as intenções anticapitalistas e a relutância em propor abertamente uma estratégia que ataque o principal centro de gravidade do capitalismo: a propriedade privada dos principais meios de produção. Latouche é explícito em questionar qualquer noção de que os objetivos decrescentistas devam ser alcançados por meio de uma socialização generalizada desse tipo. Entre o gesto anticapitalista e a rejeição da socialização dos meios de produção, a proposta de autores como Latouche não consegue ser mais do que um compêndio de medidas para limitar o capitalismo, a partir do Estado, sem aboli-lo. É uma contradição em termos esperar que o Estado capitalista atente dessa forma contra a acumulação de capital.
O decrescimento, como já mencionamos, é um conjunto heterogêneo. Mas é comum a ênfase no regional/local – em oposição ao nacional ou global –, onde seria próprio estabelecer iniciativas decrescentistas. Dá-se um papel chave a comunidades rurais, camponesas, originárias, etc. Também é recorrente a proposta de estabelecer espaços de autonomia em relação ao capitalismo nos interstícios das sociedades dominantes, não regidos pelo crescimento. Giorgos Kallis, por exemplo, propõe que a perspectiva decrescentista pode se configurar através de uma articulação “contra-hegemônica” de diferentes esferas da produção social e comunidades que possam dar lugar a “economias alternativas”. Esse microcosmo pode prefigurar um mundo em decrescimento.
São incubadoras, onde as pessoas realizam todos os dias o mundo alternativo que gostariam de construir, sua lógica tornada senso comum. Os bens comuns alternativos são novas instituições da sociedade civil que alimentam novos sentidos comuns. À medida que se expandem, desfazem os sentidos comuns de crescimento e tornam hegemônicas as ideias compatíveis com o decrescimento, criando as condições para que uma força social e política mude as instituições políticas na mesma direção. 5
Mas, mesmo que uma transição desse tipo fosse possível de ser gestada gradualmente nos marcos do capitalismo sem ser reabsorvida por este sistema, algo que é contraintuitivo porque a acumulação pressiona constantemente para integrar e subsumir todas as esferas onde haja potencial de produção rentável, seria uma transição longa, inconsistente com a urgência de acionar o “freio de emergência” para a crise ecológica que perpassa todas as propostas decrescentistas.
Há diferentes posturas e matizes, mas o debate global diante da crise ecológica nos setores críticos aparece dominado por variantes de um ou outro pólo dos que mencionamos. Muitos dos expoentes mais firmes das posturas mencionadas são propensos a simplificar a complexidade por trás da polarização. Simplificam-se as posições criticadas, desprezando os pontos relevantes que cada perspectiva tem a oferecer. A questão se enreda em binarismos sobre se uma sociedade pós-capitalista deve propor “menos” ou “mais”.
O comunismo, ou a ecologia da emancipação do trabalho
Uma ausência comum nas correntes que mencionamos, de modo geral, já que sempre é possível encontrar autores que percebem mais esse problema, é não considerar seriamente que não pode surgir outro tipo de metabolismo socionatural sem romper a relação alienada dos produtores com seus meios de produção. As relações de produção aparecem como uma “caixa-preta”, um terreno inexplorado ou apenas tratado de forma tangencial. Tanto ecologistas modernos quanto decrescentistas mencionam a importância da redução da jornada de trabalho, embora suas perspectivas sobre isso possam não ser as mesmas. Mas o que não aparece é o protagonismo da força de trabalho explorada pelo capital como agente de sua própria emancipação e, ao mesmo tempo, de uma transformação qualitativa das relações sociedade/natureza.
Pôr fim ao monopólio da propriedade privada dos meios de produção, terminando com o domínio social do capital, implica introduzir uma democracia ausente — a dos que produzem, que são também os que consomem boa parte do que é produzido — no terreno que hoje é domínio privado do capital. Se, no capitalismo, produção e consumo são uma “unidade diferenciada”, mediada pelo processo de troca, na qual a necessidade social só pode se expressar como demanda solvente (e só pode se manifestar na escolha de alguma das mercadorias que os capitalistas decidiram previamente enviar ao mercado), a socialização dos meios de produção pode permitir restabelecer a unidade real de ambos os processos, produzindo apenas na medida necessária para satisfazer a demanda social, passo inicial de qualquer planejamento. Esse é um aspecto chave para sair da polaridade entre “mais” ou “menos” que vem dominando as discussões no pensamento ecossocialista. A possibilidade de dominar racionalmente o metabolismo da sociedade com a natureza, abrindo as bases para tomar de forma coletiva as decisões de o que produzir (em função de quais são as demandas sociais que devem ser priorizadas e para onde devem ser direcionados os esforços de investimento) não evitará as decisões difíceis sobre como lidar com o legado de destruição ambiental deixado pelo capitalismo. Mas, em vez de que essas decisões sejam tomadas pelo poder privado do capital, com apoio dos governos cuja função central é a reprodução das relações de produção baseadas na propriedade privada e no trabalho assalariado, será o conjunto da classe produtora, tendo recuperado o domínio efetivo dos meios de produção, que poderá delinear as alternativas para resolver essas questões com vistas a tornar compatíveis três objetivos: alcançar a plena satisfação das necessidades fundamentais, produzir de uma forma não alienada e, ao mesmo tempo, ter em mente a necessidade de estabelecer um metabolismo racional com a natureza. Além disso, a “expropriação dos expropriadores”, ao pôr fim à alienação da força de trabalho e abrir caminho para a recuperação de uma noção mais ampla de riqueza, é a base para romper com a ideia de que a abundância deve se traduzir em consumismo crescente, com os mesmos esquemas que o capitalismo necessariamente desenvolve para colocar um volume crescente de mercadorias.
Diferentemente das imaginações pós-capitalistas, que projetam a supressão do trabalho graças à automação (e as próprias máquinas, encarnação última do capital, aparecem como demiurgo dessa realização), o comunismo, como o entendemos aqui, tem na transformação do trabalho (e de sua relação com a natureza) um ponto central.
Transformar a relação entre a força de trabalho e os meios de produção, o que vai muito além de simplesmente lutar pela “supressão” do trabalho por meio da automação (que, em si, não diz nada sobre como se produz, quanto, nem quem decide), é a pedra de toque para recuperar todas as potencialidades negadas à força de trabalho pela relação alienada pelo capital e, ao mesmo tempo, para pôr fim à abstração da natureza. Estas são as precondições para passar do reino da necessidade ao reino da liberdade, o que também pressupõe um metabolismo socionatural equilibrado (ou não “fraturado”).
Agora, como pode se forjar a aliança social que possa levar adiante essa perspectiva? Neste ponto, gostaria de destacar algumas questões. Para começar, ao contrário do que costuma aparecer como preconceito, há um profundo interesse da classe trabalhadora em questões vinculadas à ecologia. Muitas vezes, setores da própria esquerda mais sindicalista sustentam a ideia de que, para interessar a classe trabalhadora por esses temas, é preciso abordar pelo lado da economia. Por isso muitos acabam aderindo às versões keynesianas do capitalismo verde que unem crescimento e transição energética prometendo, ao mesmo tempo, recuperação dos empregos industriais, entre outros. Bem, há muitas experiências e evidências de que esse preconceito é equivocado. Um trabalho muito interessante de Karen Bell, chamado Ecologismo da Classe Trabalhadora, traz abundantes evidências do interesse da classe trabalhadora nesses temas. Entre outras coisas, porque obviamente a ecologia envolve os lugares onde vivemos, e porque as primeiras consequências dos desastres ambientais recaem sobre as classes trabalhadoras e o povo pobre. Portanto, a ideia de que a classe trabalhadora não pode ser um ator protagonista nas lutas ambientais não tem fundamento.
Podemos mencionar diferentes experiências interessantes na Argentina que mostram essa unidade entre ecologia e ativismo classista. Por exemplo, como os trabalhadores da Fasinpat, antiga Zanón, desde o início da gestão operária, propuseram mudar a relação com os mapuches, que habitavam os lugares de onde a antiga patronal extraía os insumos. Mais recentemente, dirigentes dessa fábrica, como Raúl Godoy, desempenharam um papel crucial em Neuquén na rejeição do acordo com a Chevron e no início do fracking.
A Madygraf, outra gestão operária na zona norte da Província de Buenos Aires, da antiga Donnelley, também vem apresentando há anos numerosas iniciativas de reconversão da fábrica ligadas a questões ecológicas.
É notável que o ativismo ecológico juvenil veja hoje a importância de se vincular profundamente à classe trabalhadora. A reconhecida ativista Greta Thunberg se aproximou recentemente para apoiar a luta dos trabalhadores da GKN na Itália contra o fechamento de sua fábrica e por sua reconversão ecológica. Em sua intervenção, pediu o fim da oposição entre trabalho e clima. Um setor do ativismo ecológico juvenil vê a necessidade de forjar essa aliança para que, em oposição às soluções do capitalismo verde, possam ser construídas alternativas de outro tipo. Alternativas que possam alterar os centros de gravidade deste modo de produção global para gerar, assim, alternativas que realmente possam incluir todos os setores camponeses, semicamponeses, comunidades etc., que hoje resistem ao avanço do capital. Precisamos conquistar uma sociedade de produtores livres associados, que é basicamente o que Marx entendia por comunismo, para buscar as articulações adequadas à atualidade da ambição comunista de assegurar “a cada um segundo sua necessidade”, o respeito aos modos de apropriação da natureza das comunidades que hoje continuam resistindo à margem (e resistindo a) das formas de valorização capitalista e o estabelecimento de um metabolismo socionatural mais racional.
Obviamente, não estamos propondo nenhuma solução mágica para as perigosas heranças de crise deixadas pelo capital. Conquistar novas relações de produção que se apoiem na deliberação coletiva não garante que possamos, da noite para o dia, reverter os transtornos ecológicos produzidos pelo funcionamento dessa ordem social. A proposta, mais sóbria, é não se iludir com um prometeísmo tecno-otimista do “comunismo de luxo automatizado” nem se resignar às restrições defendidas pelo decrescentismo. Pelo contrário, colocar o foco nas potencialidades da deliberação democrática baseada na mais ampla participação dos trabalhadores e comunidades, apoiada no planejamento socialista de todos os recursos da produção social, pode permitir discussões mais ponderadas sobre como uma sociedade baseada na socialização dos meios de produção, que hoje estão nas mãos de uma minoria de exploradores, pode tornar compatíveis os objetivos de (re)estabelecer um metabolismo socionatural equilibrado e a satisfação mais plena das necessidades sociais.
NOTAS
1. David Harvey, Diecisiete contradicciones y el fin del capitalismo, Quito, Traficantes de Sueños, 2014, p. 247.
2. Ídem.
3. Paul Burkett, Marx and nature: A Red and Green Perspective, Nueva York, Palgrave Macmillan 1999, p. 17.
4. Andreas Malm y Alf Hornborg, “¿La geología de la especie humana? Una crítica al discurso del Antropoceno”, Prácticas Artísticas de un Mundo en Emergencia, Centro Cultural Kirchner, Min. de Cultura, 2017.
5. Giorgos Kallis, Degrowth, Newcastle, Agenda, 2018, p. 138.