Revista Casa Marx

Giovanna Magalhães: “muitas medidas de precarização da Copa estão na ’reforma’ trabalhista”

Diana Assunção

Entrevista com Giovanna Maria Magalhães Souto Maior, autora do livro “Retrocesso trabalhista: um estudo a partir dos efeitos da Copa do Mundo no Brasil”, concedida à Diana Assunção.

Ideias de Esquerda:No livro “Retrocesso trabalhista: um estudo a partir dos efeitos da Copa do Mundo no Brasil” você levanta a hipótese de que os arranjos necessários para a realização da Copa do Mundo de 2014 abriram espaço para um retrocesso trabalhista sem precedentes. Você pode comentar sobre essa hipótese?

Giovanna Maria Magalhães Souto Maior: A hipótese apresentada neste estudo é a de que as concessões feitas ao poder econômico pelo Estado brasileiro, para a realização da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, em 2014, incluindo a preparação para o megaevento, o que foi facilitado por uma série de elementos culturais, sociais, políticos e econômicos, que abrangem o futebol no nosso país, possibilitaram o aprofundamento do processo de fissuras na rede de proteção social do país, abrindo espaços ainda maiores para a generalização da precarização, fragilizando as bases do Direito do Trabalho.

Aqueles arranjos explicam muito do que vivenciamos hoje, em termos de retração de direitos trabalhistas.

A hipótese não é a de que a Copa em si é a razão do momento atual, e sim o quanto as concessões feitas para que o Brasil, efetivamente, se concretizasse como o país sede do mundial, refletiram nos cenários políticos e econômicos nacionais, afetando o projeto constitucional em torno dos direitos sociais.
As exigências feitas pela FIFA ao governo brasileiro foram muitas. Diversas dessas exigências não eram abarcadas pela legislação nacional, o que motivou a atuação do governo na direção da criação de normas específicas e excepcionais de modo a conferir garantias para o “sucesso” do Mundial. A criação da Lei Geral da Copa é um exemplo disso.

Diversas normas jurídicas tiveram a sua eficácia suspensa para que a Copa do Mundo de 2014 acontecesse, como é o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal n.º 8.069/1990), do Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal n.º 8.078/1990), da Lei Geral de Licitações (Lei Federal n.º 8.666/1993), do Estatuto do Torcedor (Lei Federal n.º 10.671/2003) e do Estatuto do Idoso (Lei Federal n.º 10.741/2003).

A aprovação dessa legislação de exceção, sob os argumentos da transitoriedade, da urgência e da necessidade, bem como, do interesse público, permitiu a fragilização de preceitos antes tidos como fundamentais, facilitando o caminho da já antiga reivindicação do poder econômico pela flexibilização, ou, mais propriamente, retração das leis trabalhistas.

Essa racionalidade econômica de cunho neoliberal, permeada de escravismo e colonialismo, foi retroalimentada pela Copa do Mundo de Futebol 2014 e é, precisamente sobre isto que o estudo se refere, além da avaliação da persistência, no período posterior ao do megaevento, dos efeitos provocados pelo estado de exceção, a fragilização do poder político e o aumento da influência do poder econômico, que restaram, estes sim, como efetivos legados da Copa no Brasil, e dos quais resultaram o desmonte da legislação de proteção social.

Ideias de Esquerda: Trabalho voluntário, trabalho dos gandulas, terceirização, jornadas extenuantes, acidentes de trabalho e mortes nos canteiros de obras. Seu estudo expõe os bastidores da Copa do Mundo de 2014 que a televisão não mostrou. Como foi a pesquisa sobre esses temas?

Giovanna Maria Magalhães Souto Maior: A Copa do Mundo de Futebol, em razão de sua dimensão e complexidade, exigiu para sua realização farta mão de obra, na qual se inclui grande quantidade de trabalhadores e trabalhadoras, em diversas funções. Entre esses trabalhadores(as) estão os(as) voluntários(as), os(as) gandulas, os(as) trabalhadores(as) da construção civil, os(as) trabalhadores(as) terceirizados(as).

No entanto, a forma como esses trabalhos foram realizados, no contexto da Copa de 2014, conforme evidenciado na pesquisa, afrontou o ordenamento jurídico brasileiro, sendo marcada pela precarização, por acidentes e mortes.

Por certo, noticiar pela televisão esse cenário de violações a que estavam submetidos os(as) trabalhadores(as) não era interesse do governo e dos gestores do negócio. Entretanto, a relevância internacional da Copa do Mundo de Futebol possibilitou que vários holofotes se voltassem a ela, evidenciando-se não apenas o espetáculo, como também os fatos por trás do fetiche, marcados pela exacerbação da exploração, de modo a reforçar as racionalidades da força do poder econômico, da mercantilização da vida, da opressão sobre o trabalho e da fragilização das normas jurídicas de conteúdo social.

A ampla visibilidade internacional dada ao megaevento, como também a grande repercussão nacional, permitiu, de forma paradoxal, o acesso à uma gama enorme de fontes para a pesquisa, como: reportagens, legislações, cartilhas sobre o mundial, processos jurídicos em curso relacionados à Copa, entre outros. De posse de todos esses elementos foi possível constatar que os argumentos em torno dos legados sociais e econômicos trazidos para justificar a realização mundial eram meros disfarces. O que se produziu, na verdade, foi um grande negócio de natureza privada, que se viabilizou por meio da superação de todos os limites jurídicos constitucionais, o que, ainda pior, abriu enormes fissuras na rede de proteção social que, mais adiante, provocaram graves consequências para a classe trabalhadora.

Ideias de Esquerda: É possível dizer que a Copa do Mundo de 2014 foi, em algum sentido, uma antessala para a reforma trabalhista do governo golpista de Michel Temer?

Giovanna Maria Magalhães Souto Maior: No período pós-Copa desenvolve-se um ambiente extremamente desfavorável aos direitos trabalhistas. As abordagens econômicas contra o Direito do Trabalho crescem na mídia e ganham força política, por conta, inclusive, do momento de fragilização do governo petista e da própria ação sindical, em grande medida atrelada à base governamental.

O retrocesso imposto pela “reforma” trabalhista, pode-se dizer, resulta, em grande parte, de violações efetivadas na Copa. Inclusive, muitas medidas de precarização reguladas durante a Copa são reproduzidas na “reforma”: a) a desconsideração da caracterização da relação de emprego que decorre da abertura para o trabalho voluntário; b) as várias fórmulas de violação da limitação da jornada de trabalho, que resultam da normalidade com que foram tratadas as jornadas excessivas de trabalho praticadas nas obras dos estádios da Copa; c) o aprofundamento do desrespeito ao direito de greve, que se concretiza pela disseminação das formas repressivas aos movimentos sociais e dos (as) trabalhadores (as); d) a despreocupação com a proteção ao meio ambiente do trabalho capaz de assegurar condições mínimas de saúde, higiene e segurança aos (às) trabalhadores (as), que resulta da suspensão de uma efetiva atuação fiscalizatória preventiva; e) a ampliação da terceirização, que decorre da concessão feita às grandes empreiteiras para a realização das obras da Copa, o que tem relação direta, inclusive, com a redução da proteção jurídica dos acidentes do trabalho traduzida pela tarifação das indenizações.

Ideias de Esquerda: Qual o papel do Poder Judiciário neste processo de degradação dos direitos trabalhistas, em particular do Supremo Tribunal Federal?

Giovanna Maria Magalhães Souto Maior: O Supremo Tribunal Federal, no período de 2007 a 2014, refletindo o momento político, volta-se, com maior intensidade à questão trabalhista. No entanto, com algumas poucas exceções, de modo geral, não se direciona, com a mesma intensidade, na linha de uma postura garantidora dos direitos das trabalhadoras e trabalhadores, como se via, no mesmo período, no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho.

Já nesta época é possível identificar diversas decisões do STF no sentido da restrição de direitos dos(as) trabalhadores(as). Mas a intensidade da intervenção e o grau de rebaixamento de direitos eram, por assim dizer, bastante contidos.

No pós-Copa, as coisas mudam consideravelmente e a atuação do STF em questões trabalhistas se intensifica e a retirada de direitos é admitida de uma forma aberta e assumida. O argumento econômico passa a ser o balizador prioritário para raciocinar a regulação das relações de trabalho. Por exemplo, o entendimento fixado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, em 30 de abril de 2015, conferindo especial relevância ao princípio da autonomia da vontade no âmbito do direito coletivo do trabalho, de que nos Planos de Dispensa Incentivada (PDIs) a transação extrajudicial que importa rescisão do contrato de trabalho confere quitação ampla e irrestrita de todas as parcelas decorrentes do contrato de emprego, desde que essa condição tenha constado de acordo coletivo de trabalho e dos demais instrumentos assinados pelo empregado. A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 590.415, com repercussão geral reconhecida pelo STF.

Em 8 de setembro de 2016, na mesma linha regressiva dos direitos trabalhistas, em sede de Recurso Extraordinário, o relator, ministro Teori Zavascki, deu provimento a um recurso para afastar a condenação de uma empresa ao pagamento das horas in itinere e dos respectivos reflexos salariais, considerando a possibilidade da prevalência do negociado sobre o legislado, em razão de outras vantagens que foram conferidas ao trabalhador de modo a compensar a supressão.

No ano seguinte, 2017, em 30 de março, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário (RE) 760.931, com repercussão geral reconhecida, referente à responsabilidade subsidiária da Administração Pública por encargos trabalhistas decorrentes do inadimplemento de empresa terceirizada (prestadora de serviços), confirmou o entendimento adotado na Ação de Declaração de Constitucionalidade (ADC) 16, que veda a responsabilização de forma automática da Administração Pública, que só pode ser condenada se existir prova inequívoca de sua conduta omissiva ou comissiva na fiscalização dos contratos.

Esses mesmos argumentos vão aparecer na sequência no âmbito da “reforma” trabalhista, após dado o último passo para isso que foi o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, cujo governo com o compromisso de não mexer em direitos trabalhistas constituía um óbice para levar adiante o processo de desmonte dos direitos dos(as) trabalhadores(as).

Ideias de Esquerda: Você também estudou sobre as resistências a esse processo tanto dos movimentos sociais quanto dos trabalhadores, como por exemplo a greve dos metroviários e a repressão que sofreram. Como se desenvolveu este processo mais de conjunto e qual foi o papel do governo Dilma?

Giovanna Maria Magalhães Souto Maior: É importante também fazer o registro do que se passou no âmbito dos movimentos sociais e trabalhistas no período da Copa, porque o direito não se perfaz apenas de leis e entendimentos jurisprudenciais, até para compreender melhor o alcance concreto do estado de exceção, que é a base de sustentação teórica desse estudo.

O período em que se insere a preparação e realização da Copa de 2014 no Brasil (2007-2014) foi marcado por uma série de greves, destacando-se as greves deflagradas nas obras de construção e reforma dos estádios para o Mundial, pelo fato dessas obras terem ganhado grande atenção da mídia e os estádios representarem o cartão postal da Copa do Mundo de Futebol.

Somam-se a esse contexto as mobilizações sociais, em especial, as mobilizações de junho de 2013, que estimularam diversas formas de lutas coletivas por direitos. As manifestações que ocorreram no mês de junho foram organizadas pelo Movimento Passe Livre, tendo surgido inicialmente como forma de protesto contra o aumento da tarifa de transporte público na cidade de São Paulo (de R$ 3,00 para R$ 3,20) e se estenderam para várias cidades brasileiras mobilizando milhares de pessoas.

O protesto rapidamente incorporou outras pautas, como transporte público, saúde, educação, gastos com a Copa do Mundo, com a Copa das Confederações, violência policial e PEC 37 (que retirava do Ministério Público o seu poder de investigação). [^1]

O pronunciamento realizado pela presidenta Dilma Rousseff, no dia 21 de junho de 2013, revelou que a principal preocupação do governo diante das manifestações era a ameaça que o movimento pudesse gerar para realização da Copa do Mundo em 2014, se instalando uma forte repressão policial em diferentes regiões do país para reprimir os protestos durante o evento.

Nesse sentido, a tentativa da criação de uma Lei Antiterrorismo pelo Estado Brasileiro nesse período que antecede a realização da Copa de 2014, e que foi marcado por intensas greves e pelo avanço das manifestações populares (políticas e sociais) em junho de 2013, pode ser compreendido como mais uma medida excepcional por parte do Estado, que, de forma autoritária e repressiva, visava dar ao conflito social instaurado no país uma solução que atendesse, naquele instante, aos interesses econômicos da FIFA, aliados aos de setores específicos da sociedade brasileira

Ideias de Esquerda: No livro fica claro um antes e depois de 2014. Como ficou o Direito do Trabalho pós-Copa?

Giovanna Maria Magalhães Souto Maior: Para muitos pode parecer que a Copa foi apenas mais um dos grandes eventos que o Brasil sedia anualmente, mas as circunstâncias históricas e a comunhão de interesses políticos e econômicos, aliados à força cultural do futebol na sociedade brasileira, fizeram com que os abalos jurídicos, típicos de um estado de exceção, fossem muito além do próprio evento.

No contexto da Copa, preceitos fundamentais constitucionais do Direito do Trabalho foram violados para que interesses econômicos específicos fossem preservados, sendo que muitas dessas violações, inclusive, foram incorporadas à “reforma” trabalhista.

A Copa deixou o legado de que a supressão das regras de proteção do trabalho pode ser assumida em razão de necessidades econômicas, mais ou menos dentro da lógica de que os fins justificam os meios, o que não tem encontrado limites. A bem que se diga, em vários outros países, notadamente quando o assunto é a realização de grandes eventos, a mesma lógica de produz, mas não com a profundidade que se tem verificado nos países situados na periferia do capitalismo.

Com isso, o estado de exceção instaurado que, segundo sustentavam, seria limitado ao período da Copa, se alastrou para o momento posterior, abrindo a oportunidade para novos ataques aos direitos trabalhistas, que culminaram com a “reforma” de 2017.

O fato é que a lógica empresarial suplantou os direitos dos(as) trabalhadores(as), abrindo caminho para que toda essa irracionalidade econômica avançasse.

Notas de rodapé

1. RESULTADOS das manifestações de junho. G1. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/linha-tempo-manifestacoes-2013/platb/. Acesso em: 29 jan. 2019.

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