Revista Casa Marx

A posição de São Paulo no Brasil da Frente Ampla e o projeto de Tarcísio

Redação

Thiago Flamé

Este artigo expressa discussões feitas na Direção do MRT São Paulo.

Para uma visão do papel de Tarcísio de Freitas no cenário político atual e nos pactos que visam a estabilização de um novo regime é fundamental partir da localização de São Paulo desde a transição e no regime de 1988.

A ascensão da extrema direita bolsonarista como resultado não planejado pelos impulsionadores da Lava Jato também é o resultado de transformações na estrutura econômica do país que, entre os seus muitos fatores, está também a lenta decadência econômica do estado de São Paulo. Durante os primeiros governos petistas, não só o centrão se fortaleceu no parlamento – fruto da política de conciliação de classes e do abandono de lutas democráticas tão elementares como o do direito ao aborto legal – como também o agronegócio, as igrejas evangélicas, a ideologia do empreendedorismo entre a juventude e a classe trabalhadora mais precarizada; os interiores ganharam mais peso econômico, social e cultural em detrimento dos centros urbanos. Novas frações emergentes do capital financeiro se colocaram na disputa, rivalizando com os atores tradicionais. Todas essas transformações ajudam a entender a dinâmica de classe por trás do golpe institucional de 2016 e do governo Bolsonaro, assim como, em São Paulo, de onde vem as forças que dão sustentação ao atual governador.

Como parte desses processos o Estado de São Paulo seguiu sua capital, que foram entre a década de 1930 e 1980 a locomotiva industrial do país, seguiram seu lento processo de perda relativa de posições na economia nacional. Evidentemente isso não significa que o Estado de São Paulo perdeu seu papel e ainda é de longe o maior PIB do país, e o estado que concentra a maior produção industrial. Porém, também a economia de São Paulo não é homogênea, e internamente se processou uma transformação similar que questionou o papel das representações burguesas tradicionais. Perdeu peso relativo a indústria paulista no país e avançaram o setor financeiro e de serviços na Grande São Paulo, assim como o peso relativo da agroindústria no interior. Também com objetivos próprios, voltados em especial a aumentar o nível de exploração da classe trabalhadora, a Fiesp e a indústria paulista estiveram entre os apoiadores do golpe institucional em 2016 e do próprio governo Bolsonaro.

O governo de Tarcísio e seu programa econômico e social são expressão direta tanto desse lento processo econômico de perda de posições de São Paulo, como dessa transformação nas frações burguesas predominantes, e do objetivo de reagir a essa perda relativa de peso do estado por um caminho específico. Enquanto a proposta de governo do PT em SP contra Tarcísio, que também aglutinou um setor da burguesia paulista, representaria outro caminho, também com o objetivo de conter esse processo e favorecer grandes interesses burgueses no estado.

Um problema estratégico para a burguesia paulista é que o salário industrial médio em São Paulo é significativamente superior à média nacional, uma diferença que nas indústrias de ponta chega a ser ainda maior. Ainda que seja um objetivo comum de todas as frações, o que explica em partes a colaboração entre Tarcísio e o governo federal, o projeto de Tarcísio implica um caminho específico para reduzir essa desproporção, o que passa fundamentalmente por um avanço sem precedentes na política de privatizações, de ataque ao salário e às condições de vida da classe trabalhadora, impondo aos setores mais organizados da classe um nível de exploração ainda maior, como já acontece em outros setores e em outros estados. Toda a política chamada “ideológica”, em que Tarcísio continua o bolsonarismo e, na tradição política de São Paulo, representa também uma retomada dos aspectos ideológicos mais retrógrados do velho malufismo, tem um sentido econômico. De dividir a classe trabalhadora e aumentar ainda mais a exploração sobre as mulheres e, em especial, sobre o povo negro no estado. Historicamente, todo tipo de opressão foi funcional ao capitalismo para dividir a classe trabalhadora, e possibilitar níveis de exploração ainda maiores para as camadas mais oprimidas. Com Tarcísio não é diferente.

Para estancar esse processo de lenta decadência, a burguesia paulista não busca relançar um projeto industrializante, não ao menos com as características da indústria tradicional de São Paulo – ainda que medidas como o plano Mover do governo federal, que prevê incentivos bilionários para a produção de carros híbridos favorece muito mais as montadoras tradicionais instaladas em São Paulo do que as novas montadoras que estão se instalando em outras regiões. A continuidade da ofensiva de Tarcísio delineia o projeto de futuro que traçam frações importantes da burguesia paulista, que, como dissemos, têm objetivos que unificam o conjunto das suas frações e modos de implementar e objetivos próprios que são objeto de intensas disputas. O objetivo de aumentar a exploração do conjunto da classe trabalhadora paulista é um ponto de unidade entre toda a burguesia paulista. A busca por manter a hegemonia de São Paulo frente ao processo de fortalecimento do agronegócio e dos interiores, mantendo a localização da capital do estado como a principal praça financeira da América do Sul é outro ponto de convergência. O peso relativo da indústria tradicional, o lugar das universidades e da intelectualidade e, em especial, a posição dos sindicatos nesse processo, assim como a posição geopolítica do estado e do pais são pontos de divergência.

O pacto com Tarcísio e a “segunda anistia” de Lula aos militares

Na ocasião do aniversário do golpe usamos a ideia de uma segunda anistia para ilustrar a tentativa de pacto que Lula estava oferecendo aos militares. O marco, mais do que simbólico, foi a determinação por parte de Lula de não haver eventos oficiais para relembrar o golpe militar e suas vítimas. Uma sinalização, junto com outras, de que Lula estaria disposto a incorporar também a extrema-direita militar em troca de avançar nos processos contra Bolsonaro.

Uma série de interesses cruzados, tanto políticos quanto de política doméstica, paralisaram aquelas tentativas de pactuação. O resultado foi o passo atrás na delação do Coronel Cid e o recuo, ao menos conjuntural, da ofensiva do STF.

Isso não impediu, no entanto, que seguisse firme a pactuação de Lula e Tarcísio, que buscaremos delinear. Ambos se favorecem com as chamadas “relações republicanas” entre o governador e o presidente, e a “governabilidade” que extraem daí. A Lula interessa mostrar seu compromisso com os grandes interesses burgueses de SP, e também que a extrema direita institucional se fortaleça em São Paulo, ocupando o lugar não só do bolsonarismo, como também da direita tradicional e bloqueando, pela direita, o ressurgimento do PSDB, cujo espaço político o próprio PT busca ocupar operando um novo e profundo giro à direita. E para Tarcísio, a possibilidade de fazer um governo que avance nos ataques que a burguesia exige, garantindo investimentos e uma certa reanimação econômica com a ajuda do governo, o coloca em uma ótima localização para liderar a oposição de extrema-direita ao governo de Frente Ampla.

O PT e Tarcísio não deixam de ser fortes adversários eleitorais, mas todos esses pactos expressam o que existe de consenso entre o conjunto das frações burguesas, sendo a base material desse republicanismo burguês contra a classe trabalhadora, que implica o avanço na precarização do trabalho e das privatizações. É por isso que cada um dos projetos privatizadores de Tarcísio têm sido apoiados com bilhões em verbas do governo federal e do BNDES, como foi abertamente declarado no evento no porto de Santos no início do ano.
A ampliação de linhas do metrô, da CPTM, o trem para Campinas e mais recentemente inclusive o projeto de construção de escolas com a gestão privatizada. Não à toa Lula guarda um silencio escandaloso sobre a sangrenta operação policial na Baixada Santista.

O retorno do “malufismo” na polícia paulista se deve a fatores estruturais

Em novas condições, a polarização política em São Paulo parece repetir aquela do período imediatamente anterior à consolidação da Nova República, antes da implementação do Plano Real e do início do governo FHC. Pela sua política repressiva, pelo seu ódio aos pobres, aos negros, às mulheres e aos LGBT, pela sua relação com a Rota e o conjunto da Polícia Militar, podemos chamar o governo de Tarcísio de um novo malufismo, mas é preciso pontuar uma diferença fundamental. Enquanto Paulo Maluf, o velho político do Arena, expressa a resistência histórica dos setores militares que perderam posições no fim da ditadura, o novo malufismo de Tarcísio expressa um movimento histórico em sentido contrário, de um novo protagonismo desses setores. Não como um eco do passado, mas como a anunciação de um futuro sombrio para a classe trabalhadora e o povo negro em São Paulo. É expressão de uma burguesia paulista que vê a possibilidade de uma recuperação do seu protagonismo através de um programa ultra neoliberal, do fortalecimento do agronegócio e dos ramos industriais conectados a ele e de uma diminuição da força dos sindicatos tradicionais. Esse programa, de continuidade da ofensiva golpista no estado de São Paulo, é visto como uma oportunidade para a burguesia paulista.

A Frente Ampla retoma a frente que se constituiu na luta pelas Diretas Já, no processo Constituinte, nas eleições de 1989 e no Fora Collor. Até a eleição de 1994 no plano nacional e até a vitória de Mário Covas em São Paulo a política estadual estava marcada pela disputa entre o malufismo, representando as piores heranças da ditadura e a aliança tida como progressista entre PT e PSDB. No entanto, como dissemos, apesar das semelhanças, um abismo separa os dois períodos históricos. O primeiro, da gestação e nascimento de um novo regime de democracia degradada substituindo a ditadura militar. O segundo, da crise deste regime, do ressurgimento dos fantasmas que se acreditava exorcizados de uma vez por todas.

A década de noventa foi marcada em São Paulo por uma enorme violência policial, contendo as revoltas dos que podemos chamar de perdedores absolutos (os trabalhadores com poucos ou direitos nenhum) do neoliberalismo pela via do terror policial. Os que estavam por fora do pacto social, que incluía os sindicatos e os setores mais tradicionais da classe trabalhadora. A necessidade dessa política de pressão era o que dava base social para a continuidade do malufismo (que tinha como bordão “Rota na rua”) nas policiais militares. Essa continuidade foi quebrada pelo PSDB, que demitiu a totalidade do comando da PM e substitui por coronéis mais alinhados com os novos tempos, se preparando para a entrada de Lula no Governo Federal. Os coronéis “Telhadas” e outros da fração malufista ou entraram diretamente no PSDB, ou em partidos aliados.

A partir da Lava Jato e do governo Bolsonaro, da crise do PSDB e da ofensiva contra o pacto social de 1988, esses setores também encontraram o terreno fértil para retornar certo protagonismo próprio. Na década de 1990, a política da repressão da pobreza era considerada como um dano colateral pela burguesia, voltada principalmente contra os maiores prejudicados pelo início da ofensiva neoliberal, enquanto se buscava incluir, pela via do PT e dos movimentos sociais, setores cada vez mais amplos no pacto social.

Agora a tendência é oposta, no sentido de que combina a repressão policial nas periferias com um profundo ataque aos setores mais organizados da classe trabalhadora e podemos esperar um papel cada vez maior da Rota, da PM e da extrema direita militar em São Paulo. Esse ataque mais generalizado cria também condições políticas mais favoráveis para uma unidade social poderosa que sempre foi bloqueada pelo corporativismo petista nos sindicatos, entre a classe trabalhadora e seus setores mais bem pagos e os setores mais precarizados e marginalizados no povo negro e das periferias.

São Paulo, bastião dos quatro partidos fundamentais do regime de 1988

Se falamos em partidos políticos no sentido forte da expressão, e não no sentido eleitoral das legendas, não são mais do que quatro os partidos existentes no Brasil na saída da ditadura. Do que era o Arena, uma ala direita se manteve e se aglutinou em torno do malufismo que foi o candidato dessa fração no colégio eleitoral de 1988. Uma outra ala do arena se desprendeu e uma parte aderiu ao PMDB e uma outra criou a Frente Liberal (de ACM e Marco Maciel) ambas rompendo com a ala direita militar e apoiando o centro democrático em torno de Tancredo Neves.

Também do PMDB surgiu o PSDB, partido dos intelectuais e da pequena burguesia democrática que, com um programa neoliberal e democratizante apresentado como modernizador, logo se tornaria o partido preferido da maioria da burguesia paulista para exercer sua hegemonia nacional, com os dois governos FHC e para rivalizar com o PT.

O Partido dos Trabalhadores também surgiu em São Paulo, das grandes greves metalúrgicas de 1978/80, se apoiando nos sindicatos mais fortes do país e aglutinando a juventude e a intelectualidade de esquerda das universidades estaduais.

A dinâmica do regime de 1988 era a de um giro ao centro das forças da extrema-direita e da contenção como parte do amplo movimento petista de todos os sindicatos e movimentos sociais, mesmo os que passaram para a oposição aos governos petistas. PT e PSDB, os dois partidos principais das diretas já polarizaram o país e continham dentro do pacto de 1988 todas as forças políticas.

Com a explosão deste pacto, a enorme crise do PSDB, o surgimento de uma nova extrema direita e a aliança de PT e figuras do PSDB tradicional, São Paulo de novo se torna o laboratório para a constituição de um novo pacto político.

A necessidade de uma nova alternativa política da classe trabalhadora

Por esses motivos estruturais que apontamos e por cálculo político, o governo Lula e o PT deixam correr sem oposição (ou por vezes com alguma oposição formal) os planos de Tarcísio e da burguesia paulista, que também está representada no governo federal. Isso, porém, é uma grande contradição para o PT, na medida em que significa um ataque não só à sua base social tradicional, mas também ao poder do seu próprio aparato sindical.

Nesse processo, ao buscar ocupar parte do espaço político tucano e ser cúmplice dos ataques mais profundos contra sua base social histórica, entre o progressismo e a classe trabalhadora, o PT enfraquece a luta contra a extrema direita e fragiliza as posições da classe trabalhadora. No entanto, é preciso refletir que também isso pode provocar novos realinhamentos políticos entre a classe trabalhadora, a juventude e a intelectualidade de esquerda e os movimento negros e de luta contra o racismo e a repressão policial.

A dinâmica deste processo coloca como uma das possibilidades históricas a abertura de um renovado espaço político para o crescimento dos revolucionários da oposição de esquerda ao governo federal entre a classe trabalhadora mais consciente e politizada de São Paulo e entre o povo negro e nas periferias. Isso implica superar o modo petista de militar e sua divisão entre o sindical e o político e entre os movimentos sociais, os sindicatos e a intelectualidade, que em vários aspectos é repetido inclusive por setores da esquerda que se reivindica revolucionário, e abrir caminho para que a nova experiência histórica com o petismo leve à construção de um grande partido revolucionário capaz de fazer frente aos ataques do novo malufismo de Tarcísio e da Frente Ampla entre o PT e o tucanato tradicional de São Paulo.

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