André Barbieri
Recentemente, Elias Jabbour publicou artigo no blog da Boitempo em resposta a Luis Felipe Miguel, que contestou corretamente o escandaloso caso de trabalho escravo na fábrica da BYD na Bahia.
Jabbour, de longa data um admirador daquilo que classifica como o “socialismo do século XXI”, encontrou diversas maneiras para atenuar o caso nos seus detalhes sórdidos, alterando o rumo da conversa para as taxas de crescimento da China, que só não são vistas pelos “marxistas acadêmicos ocidentais”, dotados de “sistemas de valores pequeno-burgueses” e outras coisas pelo estilo. Cabe dizer que a política dos epítetos não é o recurso mais valente quando se debatem questões importantes. Para além do ponto particular em tensão, nos parece que vale a pena explorar as arestas de análise sobre o fenômeno chinês que não entraram no debate.
Afinal, a China seria de fato o “socialismo do século XXI”? Qual é a origem da atual República Popular de Xi Jinping, e como nela intervieram os resultados da luta de classes no final do século XX? Existe saída progressista possível por dentro do mecanismo de choque entre Estados Unidos e China, ou existe um “terceiro ator independente” faltante nesta equação?
Queremos dar seguimento a essa frutífera discussão em torno destes temas.
A contrarrevolução restauradora
Lu Xun, na sua crônica sobre a verdadeira história de Ah Q, retoma o dito de Confúcio: “Se o nome não está correto, a palavra não fará sentido”. Dizer que uma das principais economias capitalistas globais seria o “socialismo do século XXI”, ou que a China dos bilionários apresentaria a engenharia eficaz da transição socialista, faz perder o sentido da palavra: significa banalizar a correspondência dos conceitos com a realidade dos fatos. Quando falamos de socialismo, nos referimos a uma construção consciente, alheia ao automatismo irracional das relações anárquicas da produção capitalista. Exige forças materiais, de classe, que tenham como objetivo essa transformação revolucionária nos alicerces da sociedade, e que saibam os caminhos para a articulação política que leve a sua consecução. O processo de reorganização da economia sobre bases socialistas implica a existência de um Estado operário de transição que, sobre os efeitos da expropriação revolucionária da burguesia e a nacionalização dos meios de produção, deseje levar adiante essa transformação social, em que o nível nacional está indissociavelmente imbricado com o internacional. A China de Xi Jinping é uma formação social capitalista, surgida do desmonte do Estado operário deformado pelo próprio partido que havia ascendido ao poder em 1949. Distinta por sua gênese dos modelos tradicionais da economia capitalista ocidental, compartilha com estas, entretanto, os traços fundamentais de uma sociedade dominada pela produção anárquica de mercadorias: o domínio do trabalho objetivado sobre o trabalho vivo, cuja função primordial é a autovalorização e a obtenção de lucros privados, e não a satisfação das necessidades humanas.
De onde surgiu a atual configuração da China? De uma concentrada dinâmica de revolução e contrarrevolução, ou do asfixiamento da primeira pela segunda entre as duas pontas da Guerra Fria. A revolução de 1949 foi uma das maiores conquistas na história dos trabalhadores e camponeses. Um país que havia passado por um século de humilhações coloniais se levantou contra a invasão imperialista do Japão em 1937. A população trabalhadora que derrotou os japoneses na Segunda Guerra Mundial entrou em seguida numa guerra civil contra o Kuomintang, o partido da burguesia nacional chinesa (ajudado pelo imperialismo norte-americano), saindo novamente vencedora e expropriando a burguesia, em fuga para Taiwan. A Guerra Civil (1946-49) viu feitos heroicos de massas, como trabalhadores comunistas armados passando fome e frio nas cidades bombardeadas para guardar posições e impedir o avanço do Exército de Chiang Kai-shek – ou camponeses comunistas que queimavam colheitas para evitar o abastecimento dos nacionalistas. Essa revolução heroica, entretanto, foi dirigida politicamente pela burocracia do Partido Comunista Chinês (PCCh), que se assenhoreou do triunfo das massas e colocou o aparato do Estado a serviço de seu disciplinamento.
A estratégia nacionalista da burocracia de Pequim enfraqueceu e, em última instância, eliminou a possibilidade da transição ao socialismo, uma tarefa eminentemente internacional. Posteriormente, com a derrota do último ascenso revolucionário internacional, entre 1968 (com o Maio Francês e a Primavera de Praga) e 1981 (com a derrota da Revolução Polonesa), abriu-se uma etapa ofensiva de restauração do poderio imperialista – a globalização neoliberal. As derrotas operárias na década de 1980, pela política de Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margareth Thatcher na Inglaterra, se combinaram com a atuação das distintas burocracias stalinistas nacionais que, após décadas de debilitamento parasitário das economias surgidas da expropriação das burguesias locais (através de heroicas revoluções de massas, como na Rússia e na China, ou por “revoluções passivas” encabeçadas pelo Exército Vermelho, como na Iugoslávia e no Leste Europeu), abriram caminho à restauração capitalista. Na Rússia e na maioria dos ex-Estados operários burocratizados, esse desenlace se deu de maneira rápida e atroz, com o desmantelamento da indústria e a depressão das condições de vida da população. No caso da China, embora o ritmo tenha se dado de maneira muito mais gradual, o Partido Comunista Chinês encabeçou, organizou e administrou a contrarrevolução econômica que, na toada da ofensiva neoliberal, acabaria por recolocar o país na arena da extração de mais-valor.
Sobre as bases das reformas de abertura de Deng Xiaoping e a introdução do capital estrangeiro, avançou-se rapidamente a meados da década de 1990, com Jiang Zemin (posteriormente com Hu Jintao) na liberalização da economia: privatizou-se a esmagadora maioria das empresas de propriedade estatal (as que permaneceram, tornaram-se corporações orientadas ao lucro), demitiu-se dezenas de milhões de trabalhadores, criou-se um mercado de trabalho aberto à competição pelo acesso à força de trabalho barata e desvinculou-se os benefícios sociais do pertencimento às unidades urbanas de produção. Com quase 80% de sua população localizada no campo no início da década de 1990, a restauração capitalista se apropriou das conquistas da Revolução de 1949 (a unificação nacional, a alfabetização e treinamento de um contingente gigantesco de trabalhadores, certa centralização do aparelho de administração econômica, etc.) para saltar etapas em seu processo de urbanização e industrialização.
Mao Tsé-tung descongelou as relações com o imperialismo norte-americano no encontro com Nixon em 1972, e Deng Xiaoping restabeleceu as relações oficiais entre os países em 1979. A China, que era uma nação pobre e limitada no terreno internacional, colaborou com o período de distensão, ou relaxamento das tensões, entre a burocracia da URSS e os EUA, a fim de que os dois pudessem pôr fim ao ciclo revolucionário da década de 1970 que atingiu inúmeros países. Com a derrota desse ciclo revolucionário, os Estados operários burocratizados se enfraqueceram e ficaram mais isolados, inclusive o da China. Então, as próprias burocracias stalinistas passaram a mudar de planos e preparar a restauração do capitalismo nos seus territórios. A heroica revolução dos trabalhadores e camponeses chineses em 1949, que derrotou o imperialismo norte-americano e a burguesia nacional, viu suas conquistas serem apropriadas politicamente pela burocracia maoista em Pequim. No curso dos acontecimentos, essa mesma burocracia operou a reversão das conquistas dessa revolução.
Essa gênese do seu próprio sistema capitalista explica sua idiossincrasia em relação ao modelo ocidental. O PCCh, que operou a transição das bases nacionalizadas da economia para uma economia baseada na propriedade privada, inclui um marcante componente de “dirigismo estatal”. O Estado chinês supervisiona a economia, sobre a apropriação privada de mais-valor de milhões de trabalhadores e camponeses. Trata-se de uma economia capitalista sui generis, pela combinação entre o férreo disciplinamento imposto aos trabalhadores pelo Estado e as relações íntimas do PCCh no impulso da propriedade privada. Se há um segredo no rápido desenvolvimento da China dentro do circuito de acumulação de capital, foi ter sustentado mecanismos sofisticados de repressão e supervisão estatal que garantiram níveis de exploração do trabalho simplesmente impossíveis nas potências do Ocidente. Se existe algum sentido naquilo que Jabbour chama de “engenharia social mais avançada de nossa época”, é exatamente esse.
Cristalizando uma formação social capitalista na China
N’O Capital, Marx analisa a forma mercadoria porque acredita que este fenômeno da produção moderna descortina a forma básica da produção capitalista. Na China, tudo o que as pessoas necessitam para sobreviver é produzido em forma de mercadorias, e o gigante asiático está no centro das atuais cadeias globais de valor integradas por multinacionais ocidentais e nativas. A esmagadora maioria da população chinesa é obrigada a vender sua força vital – sua capacidade de trabalhar – como mercadoria a empresas do setor privado e a empresas de propriedade estatal em troca de um salário para sobreviver. De acordo com Marx, o trabalho “só pode aparecer como trabalho assalariado quando suas próprias condições objetivas o confrontam como potências autônomas […] como valor que se relaciona com o trabalho vivo como mero meio de sua própria preservação e crescimento” (Marx, 2022, p. 76). Com a Lei do Trabalho de 1994, o governo desmantelou a velha “tigela de ferro de arroz” da era maoista, que em troca de submissão e lealdade ao regime burocrático do PCCh assegurava a uma fração do proletariado urbano serviços essenciais como saúde, educação, moradia, previdência social, etc., sob financiamento estatal. Sob a égide de Deng e Jiang Zemin, esse esquema industrial da economia burocraticamente planificada foi extinto. Como resultado, a força de trabalho foi liberalizada e informalizada, cortou-se o acesso de massas aos bens básicos já não mais oferecidos pelo Estado, e empurrou-se o universo da força laboral disponível pelas demissões do setor estatal para a emergente economia privada. Nessa situação dramática da contrarrevolução, a população chinesa amargou um calvário de baixos salários, horas extras não pagas, ausência de contrato formal e a dantesca exploração nas fábricas de suor que abasteceram os lucros das multinacionais.
Em termos teórico-históricos, essa exploração do trabalho na China foi produto direto de sua reincorporação, ao final da década de 1990, à arena da produção capitalista, que está fundada na obrigatoriedade da venda da capacidade de trabalho como mercadoria, na medida em que todos os meios de produção, todas as condições objetivas de trabalho, todos os meios de subsistência – dinheiro, meios de produção e de vida – confrontam o trabalhador chinês como propriedade alheia. Toda a riqueza objetiva está diante do trabalhador como propriedade do possuidor de mercadorias, o que implica que o trabalhador realiza sua atividade como não proprietário, e que as condições de seu trabalho se lhe defrontam como potências autônomas e hostis, personalizadas no capitalista. Quando vemos explosões de greve entre os trabalhadores da Foxconn de Zhengzhou – a maior fábrica da iPhones do mundo – ou entre os entregadores da Meituan, que lutam para se organizar contra as plataformas digitais, ou nas fábricas de calçados de Sichuan, estas expressões de indignação tem como fundamento a luta pelo tempo de trabalho excedente, cuja natureza se manifesta como produto específico da produção de mercadorias. Estas mercadorias adquirem seu caráter de capital, justamente, porque na China – apesar de suas diferenças internas específicas já mencionadas – também os meios de produção e de subsistência se opõem à capacidade de trabalho.
O caso de trabalho escravo nas obras de construção da fábrica da BYD na Bahia reflete, numa nova etapa histórica – de internacionalização do capital chinês – a infinita série de violações laborais que se tornaram usuais na China durante as últimas quatro décadas. Jabbour sugere que o “macrossetor produtivo” chinês é capaz de “gerar excedentes aos quais Marx chamava de ‘fundos de consumo’”. Um exame correto da teoria de Marx mostra que, na China, o excedente que se produz é de trabalho não pago, mais-trabalho que deriva em mais-valor, fundado na exploração privada da capacidade de trabalho de milhões de seres humanos. Com suas particularidades, também na China os “meios de produção é que utilizam o trabalhador, de modo que o trabalho aparece apenas como um meio pelo qual certa massa de valor, isto é, certa massa de trabalho objetivado, absorve trabalho vivo para se conservar e aumentar” (Marx, 2022, p. 79). Como mostram Tianlei Huang e Nicolas Verón, em pesquisa ao Instituto Bruegel, tanto em termos de receita quanto em termos de valor de mercado as empresas privadas ganham destaque no ecossistema econômico chinês. Em 2023, 92% das empresas na China são de capital privado, segundo dados do governo, responsáveis por mais de 60% do PIB, 48,6% do comércio exterior, 56,5% do investimento em ativos fixos, 59,6% da receita tributária, 70% das inovações e 90% dos novos empregos urbanos. Estão no centro do desenvolvimento tecnológico do país, motivo pelo qual Xi Jinping organizou um simpósio no Grande Salão do Povo com dezenas dos principais empresários do setor tecnológico (incluindo Jack Ma da Alibaba; Pony Ma Huateng, da Tencent; Wang Chuanfu, da BYD; Ren Zhenfei, da Huawei Technologies; Liang Wenfeng, da DeepSeek, entre muitos outros) para consagrar o apoio do governo ao rápido desenvolvimento do setor. “A nova era oferece amplas perspectivas para o desenvolvimento do setor privado”, disse Xi Jinping. Não à toa, Tianlei e Verón concluem em seu estudo que “Vemos uma tendência estrutural de avanço do setor privado, que tem caracterizado a década de desenvolvimento da China sob a presidência de Xi Jinping. Assim, o ditado chinês ‘o Estado avança, o setor privado se retira’ (国进民退), que tem sido amplamente utilizado para descrever as tendências econômicas da China, não representa o quadro principal do que tem acontecido no mundo dos negócios da China sob Xi Jinping, mesmo nos anos mais recentes.”
Isso vai muito além do mantra governamental das “Três Representações”, que Jiang Zemin ofereceu ao público para explicar a admissão de capitalistas no interior do Partido Comunista, à época da entrada da China na OMC em 2001. A ordem agora é: bilionários à frente, a propriedade privada como carro chefe do Estado. Isso é o “socialismo do século XXI”? Não, estamos falando de um processo de ágil evolução de um país capitalista que, partindo de uma longa trajetória histórica de colonização, passou a adquirir traços imperialistas e coloniais. Esse rápido desenvolvimento seria inexplicável sem a expropriação da burguesia e o período de planificação burocrática da economia, ambos componentes da Revolução de 1949 cujas conquistas (unificação nacional, desenvolvimento econômico, integração da infraestrutura, etc.) foram apropriadas pela contrarrevolução na década de 1990. Trata-se de uma mudança dramática, mediada pela revolução e contrarrevolução comandada e gerenciada pelo Partido Comunista Chinês. Disso se deriva que a oposição do Estado chinês à ordem liderada pelo imperialismo dos EUA tem como objetivo a afirmação de seus interesses no capitalismo global, e não o avanço de uma política socialmente emancipatória contra esse sistema.
Empresas de propriedade estatal: atendendo à lei do valor
Jabbour fala sobre o “sistema empresarial público e não público” como fundamento do “socialismo” na China. A fórmula integra a noção de que existiria um equilíbrio entre modos de produção coexistentes – socialismo e capitalismo -, que o autor já havia apresentado anteriormente. Não retornaremos ao detalhe da argumentação, já que criticamos detidamente esta concepção aqui. Nessa oportunidade, é importante entender que a propriedade estatal de certas corporações não significa “socialismo”.
Efetivamente, ativos de propriedade estatal podem perfeitamente funcionar de maneira capitalista. Países como Taiwan, Coreia do Sul e Cingapura, nas décadas de 1980 e 1990, utilizaram a estratégia do controle estatal de ramos estratégicos para acelerar seu crescimento. A natureza social da propriedade estatal depende sempre do tipo de Estado de que se trata. Se são os próprios trabalhadores que controlam o Estado através de suas instituições de autoorganização e usam esse poder para planificar democraticamente a economia segundo as necessidades da sociedade – como ocorreu na Rússia entre 1917 e 1924 – então a propriedade estatal funciona como ativo público em seu sentido pleno. Mas se a classe dos proprietários capitalistas, através de uma burocracia partidária, utiliza o Estado a serviço da melhor extração de mais-valor – o que ocorre na China hoje – a propriedade estatal se converte em instrumento da opressão e exploração do trabalho. Nesse caso, se aplica o que disse Engels no Anti-Dühring, “O Estado moderno, qualquer que seja a sua forma, é uma máquina essencialmente capitalista; é o Estado dos capitalistas, o corpo coletivo ideal de todos os capitalistas. Quanto mais forças produtivas adquire como sua propriedade, mais se torna o corpo coletivo real de todos os capitalistas, mais cidadãos explora. Os trabalhadores continuam a ser trabalhadores assalariados, proletários. A relação capitalista não é abolida; antes, é levada ao extremo”.
A partir da quebra da “tigela de ferro de arroz” e a privatização desbragada das empresas estatais entre 1995 e 2004, as que restaram foram obrigadas a se converter em corporações orientadas à obtenção de lucro. No final de 2023, a receita operacional combinada dessas empresas foi de 68,97 trilhões de iuanes (cerca de US$9,71 trilhões) durante o período de 12 meses, um aumento de 3,9% em relação ao ano anterior, de acordo com o Ministério das Finanças. A maioria das principais empresas com controle do Estado possui participação privada, mediante capital acionário estrangeiro ou nativo. A lucratividade dessas empresas, que incide sobre melhoria das receitas do Estado, não responde a um enriquecimento social (à sua distribuição planificada democraticamente pela população autoorganizada), mas à preservação dos privilégios econômicos e financeiros dos funcionários ligados ao Partido Comunista, e aos lucros do capital estrangeiro que nelas investe.
As empresas de propriedade estatal da China se converteram em um ponto de apoio cada vez mais importante do capitalismo global, e estão sujeitas às suas pressões competitivas. A China National Petroleum e a SAIC Motors, por exemplo, competem a nível internacional com multinacionais como ExxonMobil, Chevron, Tesla ou Toyota, e atuam de acordo para garantir a lucratividade gerencial. Embora o Estado mantenha o controle acionário, as empresas estatais são autorizadas a listar suas ações nas Bolsas de Valores da China e do exterior, dando ao capital transnacional um confortável lugar à mesa de decisões. Eli Friedman, Ashley Smith, Kevin Lin e Rosa Liu, em China in Global Capitalism: Building International Solidarity against Imperial Rivalry, dão um exemplo instrutivo: três das maiores empresas estatais chinesas listadas nos mercados estadunidenses – a China Life, a PetroChina e a Sinopec – contam com uma capitalização de mercado combinada de US$312,6 bilhões. Suas principais seguradoras são colossos das finanças imperiais globais: Credit Suisse, Citigroup e Deutsche Bank para a China Life; Blackrock, JP Morgan, Citigroup e Goldman Sachs para a PetroChina; e Morgan Stanley e China International Capital Corp para a Sinopec. Guardadas as diferenças entre a estrutura das empresas de propriedade estatal e as abertamente privadas, é certo que o capital global não estaria tão envolvido em assegurar os riscos dos monopólios chineses se não estivesse convencido de que ali há sérios lucros a serem obtidos.
Muitas das maiores empresas estatais da China trabalham lado a lado com capitalistas estrangeiros. Após um acordo com o governo Trump, o maior banco da China, o ICBC, estabeleceu uma joint venture de gestão de patrimônio com o Goldman Sachs, enquanto o segundo maior banco, o China Construction Bank, fez o mesmo com a BlackRock. Isso ocorre após décadas de joint ventures entre empresas estatais e corporações estrangeiras em diversos setores, sendo o mais proeminente o automotivo. Do ponto de vista do trabalho, isso é ainda mais evidente. Os trabalhadores das empresas estatais estão inflexivelmente subordinados à administração, em relação similar ao que se verifica em uma empresa privada. Esses trabalhadores não encontram nas empresas de propriedade estatal qualquer tipo de instância decisória, não podem interferir, supervisionar ou influenciar a produção, muito menos opinar na utilidade social do produto. Não é novidade que as empresas controladas pelo Estado adotam estratégias de flexibilização laboral – a fim de maximizar os lucros – e são tão intolerantes à possibilidade de sindicalização independente quanto qualquer corporação privada.
Não há dúvida que há importantes diferenças de configuração entre as empresas estatais e as empresas privadas, diferenças que se integram de maneira particular na economia. Não obstante, essas empresas estatais não são, em nenhum sentido, propriedade “pública”, no sentido apresentado acima. Elas pertencem a uma burocracia estatal incontrolável, que responde aos interesses dos novos capitalistas de dentro e de fora do Partido Comunista de Xi Jinping. O universo da lei do valor funciona na China com o beneplácito do governo, e tanto mais nas empresas de propriedade estatal.
Os salários e condições de trabalho melhoram?
Jabbour fala de um “Welfare State com características chinesas”, em que “direitos sociais, trabalhistas e vencimentos” avançam como “em nenhum lugar do mundo”. Não é difícil examinar o gradativo aumento da massa salarial no gigante asiático, a partir de patamares muito baixos que em grande medida se preservam. De acordo com algumas pesquisas, o PIB per capita na China veio avançando nas últimas décadas, passando de US$300 em 1978 para US$12.300 em 2023; o salário médio na China aumentou de 47.593 iuanes em 2012 para 114.029 iuanes em 2022. Esses números, entretanto, são médias aproximadas. Uma vez que as diferentes regiões da China se desenvolveram de forma desigual, as diferenças salariais entre as pessoas que trabalham em diferentes regiões também são muito grandes. Mais importante, são números que ocultam a crescente desigualdade na China, enevoando a situação de intensa precarização da vida e do trabalho, ligada ao restabelecimento da propriedade privada no país.
Efetivamente, ao contrário da tendência anterior, os salários na China vêm caindo nos últimos anos, com a redução da taxa média de rendimentos ligada à desaceleração econômica nacional, à crise imobiliária e ao envelhecimento da população. Dados da agência Zhaopin Ltd., em 2024, mostram que a massa salarial em Pequim havia decrescido em termos anuais 2,7%, enquanto os salários na tradicional região industrial de Guangzhou (capital da província de Guangdong) havia caído 4,5%. Tomadas 38 das principais cidades chinesas, o salário médio oferecido pelas empresas caiu a uma taxa agregada de 1,3% (para 10.420 iuanes, ou US$1.458). Cortes salariais atravessaram diversos setores da indústria, incluindo o da tecnologia, da manufatura, da construção civil e do funcionalismo público. Ou seja, ainda sendo um salário médio acima de muitas economias, a dinâmica ascensional foi freada, e a população trabalhadora chinesa se defronta com os problemas da queda da taxa de produtividade, a retração comercial e as mudanças no padrão de desenvolvimento do próprio país.
Isso está relacionado com as dificuldades econômicas do país, relacionadas à decadência econômica dos Estados Unidos e da Europa. Na China, décadas de crescimento desequilibrado levaram a um enorme excesso de capacidade estrutural, que a envolvem em tendências deflacionárias, manifestação de sua crise de superprodução. A taxa de desemprego da juventude urbana é alta, atingindo quase 20% da população entre 16 e 24 anos. A China, ademais, enfrenta uma crise demográfica de proporções. A população chinesa encolheu pelo terceiro ano consecutivo em 2024, o que reflete o aumento do custo de vida, incremento do desemprego e receio sobre o futuro. Diante do primeiro declínio populacional desde a instauração da República Popular em 1949, o Partido Comunista Chinês aplicou uma dura reforma da previdência, elevando com essa medida (aplicada por muitos governos neoliberais) a idade de aposentadoria entre homens de 60 para 63 anos, e entre mulheres de 50 para 55 anos, política que foi largamente repudiada pela juventude nas redes sociais.
A precarização da massa de trabalhadores migrantes é um problema que se agrava. Trabalhadores migrantes usualmente não possuem contrato de trabalho legal, tornando extremamente difícil entrar em litígios por direitos laborais. O atraso salarial na China é tão endêmico que, diante de uma alta taxa de desemprego na juventude, a Suprema Corte do Povo foi obrigada a lançar uma campanha contra os salários não pagos, temendo instabilidade social. Além disso, para os trabalhadores migrantes, os serviços de seguridade social – seguro saúde, pensões, seguro contra acidentes de trabalho, seguro-desemprego, etc. – dependem da apresentação de um contrato de trabalho ou vínculo empregatício. Esse mecanismo responde ao hukou (sistema de registro domiciliar), uma herança da era maoísta que é utilizada para dividir os trabalhadores em estratos, rebaixando os direitos dos trabalhadores migrantes nas cidades onde vão exercer atividades produtivas – já que só podem gozar sem empecilhos dos serviços públicos ali onde possuem seu registro de natalidade. A informalidade laboral imposta implica que aqueles serviços que poderiam amortecer os efeitos da queda dos vencimentos mensais são de acesso incerto, e dependem da vontade da patronal, que por vezes usa a chantagem contra os trabalhadores, a fim de que aceitem condições de exploração maiores em troca da documentação que prova o vínculo empregatício. Filhos de trabalhadores migrantes têm maior dificuldade de se matricularem em escolas públicas, ou de ingressarem em hospitais públicos, em função dessa divisão. Muitas cidades possuem “classificações” de cidadãos, cuja pontuação para acesso aos serviços depende de fatores alheios (alto nível de educação, certificado de habilidades, obediência política na forma de “trabalhadores modelos”, etc.). A precarização dos serviços públicos no Ocidente, seu sucateamento e as campanhas de privatização constantes por parte dos governos burgueses, são certamente um sinal da decadência do capitalismo; na China, esta decadência se expressa por meios particulares também afetam as vidas de milhões de pessoas.
Nos conflitos trabalhistas, o Estado e a polícia atuam como a força repressiva particular das empresas. As greves são proibidas na China desde 1982. Isso não foi capaz de diminuir a resistência operária: a China é o país que mais registra greves no mundo, apesar dos índices serem maquiados nas estatísticas oficiais. Nessas greves, a polícia ataca via de regra os próprios trabalhadores que demandam direitos salariais e de condições de vida, sendo emblemáticas as atuações dos corpos repressivos do Estado na onda de greve das automotrizes em 2010 – iniciada na planta da Honda Foshan, em Guangdong – ou a supressão violenta da greve de quarenta mil trabalhadores na fábrica Yue Yuen, de capital taiwanês, em 2014. A greve da fábrica da Zhengzhou retratou enfrentamentos diretos dos trabalhadores contra as forças policiais. A Federação Sindical Nacional da China, ligada ao Partido Comunista, é um braço do governo, e atua nas empresas para dissuadir greves e conter a mobilização, participando diretamente das campanhas de perseguição dos trabalhadores que buscam construir sindicatos independentes, como no caso da greve da Jasic Technologies, em Shenzhen, em 2018. A resistência operária segue seu curso batalhando contra os enormes obstáculos opostos pelo Estado, o que encoraja as empresas a proceder a múltiplas violações dos direitos laborais.
Estamos longe de um “Welfare state com características chinesas”, ou de um universo salarial chinês que simplesmente “avança”. A China não é uma ilha isolada do mundo, e sua imbricação no metabolismo social do capital a mergulha na cadência própria da precarização do trabalho e da vida.
O enigma da luta de classes
De fundamental importância é o papel da classe trabalhadora como potencial sujeito de transformação, e não apenas objeto de exploração. A competição entre Estados capitalistas no Oriente e no Ocidente exacerba as tensões que promovem o retorno da luta de classes no mundo, e recoloca – para além da armadilha da estadolatria – a possibilidade de que as atuais revoltas se convertam em revoluções.
No que nos toca, a juventude chinesa vem demonstrando ser um caldeirão de inquietação ao governo, e um possível ativo da luta de classes. Uma pesquisa da China Quarterly, intitulada “Getting Ahead in Today’s China: From Optimism to Pessimism”, realizada pelos pesquisadores Scott Rozelle e Martin King Whyte, mostra como as atitudes na China mudaram em relação à desigualdade e às oportunidades econômicas, principalmente entre os grupos de baixa renda. Pesquisas anteriores semelhantes, realizadas em 2004, 2009 e 2014, mostraram que a maioria das pessoas comuns não estava muito preocupada com a crescente desigualdade, e a maioria estava otimista de que suas famílias melhorariam seus padrões de vida no futuro, em uma concepção da mobilidade ascendente relacionada ao mérito individual. A pesquisa de 2023 mostrou uma mudança acentuada: os entrevistados agora viam “oportunidades desiguais, discriminação e dependência de conexões como determinantes” para a ascensão social.
A inquietação dessa geração com a precarização da vida e do trabalho levou a fenômenos de resistência, talvez o mais importante sendo o rechaço ao sistema de trabalho 996, promovido por Jack Ma, da Alibaba: das nove horas da manhã às nove horas da noite, seis dias por semana. No setor tecnológico, a juventude trabalhadora repudiou uma “cultura” de exploração que avançou na mesma toada do setor privado no interior da economia. Muito além do chamado movimento “tang ping” (surgido em 2021, e que encoraja os jovens a desacelerar e a não se submeter à pressão da sociedade para trabalhar muito), houve manifestações públicas de descontentamento com um país que não cumpriu as esperanças que havia alimentado. Essa nova geração é parte do movimento feminista internacional, que defende os direitos das mulheres contra o assédio patronal e a misoginia estatal. Da mesma maneira, é a geração de jovens trabalhadores que denunciou nas redes sociais o genocídio do povo palestino em Gaza perpetrado pelo Estado de Israel, aliado dos Estados Unidos e do imperialismo ocidental.
Sobre as greves, mencionamos a efervescência social que atravessa a China. A história da luta de classes na China é demasiado pródiga em exemplos de sua força independente. Está, portanto, incluída no centro dessa hipótese a importância dos trabalhadores e camponeses para um desenlace distinto ao que se afigura no choque intercapitalista entre EUA e China. Como dissemos, os protestos operários desempenharam um papel central nas transformações políticas que atravessaram a China no século XX. A Revolução de 1911 que derrocou o sistema imperial, o Movimento 4 de Maio que inaugurou uma nova cultura política antiimperialista – uma nova geração de escritores, como o próprio Lu Xun e Chen Duxiu, que popularizaram o vernáculo chinês -, a Revolução de 1925-27, ascensão e queda do regime nacionalista, a vitória dos comunistas em 1949: todos esses eventos foram profundamente afetados pelo movimento operário chinês, em comunhão com as insurgências camponesas. No curso da República Popular, protestos operários contra a burocracia do PCCh surgiram no Movimento das Cem Flores de 1957, em 1967 no auge da Revolução Cultural, em 1979 durante o Movimento da Muralha Democrática e a ascensão de Deng Xiaoping, e no movimento de 1989 da Praça Tiananmen.
Estes são postais do futuro. A história é um processo aberto, e não prescreveu que a consciência de classe dos trabalhadores chineses estivesse circunscrita à luta contra a exploração na primeira metade do século XX. Existe uma poderosa sinergia latente entre a resistência nos locais de trabalho, o movimento de mulheres, o movimento das minorias étnicas oprimidas na China, e os efeitos das revoltas e rebeliões que sacudiram o mundo nos últimos anos. A recomposição objetiva da capacidade de elaborar uma política independente do PCCh está em curso, “com características chinesas”…
Xi Jinping e o governo chinês são parte da desordem mundial capitaneada por Donald Trump e os governos imperialistas ocidentais. O acirramento da concorrência internacional entre potências, a Guerra da Ucrânia, o genocídio na Palestina, a deriva autoritária dos regimes liberais democrático-burgueses, são todos sintomas de fissuras na arquitetura do equilibrio instável capitalista. A informalidade do trabalho, da precarização e exploração, da opressão às mulheres e às etnias, em sua versão chinesa, não é alternativa à bestialidade estadunidense. A independência política diante dos modelos capitalistas rivais, entre China e Estados Unidos, é a condição primordial para um combate decidido contra o imperialismo e suas tendências destrutivas. Nisso, os combates vindouros no campo da luta de classes expressam a flor viva que brota.
Bibliografia
MARX, Karl. Capítulo VI (inédito). São Paulo: Boitempo, 2022.