Revista Casa Marx

A crise histórica da relação transatlântica e os desafios dos internacionalistas proletários

Juan Chingo

As declarações de Trump sobre a guerra na Ucrânia abriram uma crise histórica nas relações transatlânticas. Esses transtornos trouxeram novamente à tona a questão da guerra e colocam a necessidade de uma política antimilitarista e antibélica.

Nos últimos dias, as declarações de Trump sobre a guerra na Ucrânia, sua disposição em encerrar rapidamente o conflito por meio de negociações com Putin e sua recusa em assumir as “garantias de segurança” exigidas por Zelensky e pelos europeus, pelo menos como ator principal, desencadearam uma crise histórica nas relações transatlânticas. A disposição dos Estados Unidos de desempenhar um papel menos central no Velho Continente, diferente do que vem exercendo desde a Segunda Guerra Mundial e que se manteve após a Guerra Fria, gerou uma crise de grande magnitude na Europa, confrontando os principais Estados imperialistas europeus com desafios sem precedentes em termos de segurança e diplomacia. De maneira dramática, e com repercussões que afetarão toda a população, esses transtornos trouxeram a questão da guerra novamente para o centro do debate.

As razões da guinada na política trumpista

A política de Trump representa, na verdade, uma mudança radical em relação à política que vinha sendo seguida pelo imperialismo norte-americano na Ucrânia.

Desde 2022, a política de Biden consistiu em utilizar a Ucrânia para enfraquecer a Rússia, aprisionando-a em uma guerra de desgaste, ao mesmo tempo em que respeitava certas linhas vermelhas, especialmente no que se refere ao envio de tropas ou ao uso de determinadas armas, para evitar que o conflito evoluísse para uma guerra nuclear ou levasse ao colapso do regime de Putin (o que abriria um cenário desconhecido e perigoso no maior país do mundo, equipado com milhares de ogivas nucleares). Após o fracasso da chamada “ofensiva de primavera” em 2023, a situação no front se estabilizou, resultando em uma guerra de desgaste na qual a Rússia tinha vantagem, mas não o suficiente para provocar o colapso total da frente militar ucraniana. Paralelamente, a guerra fortaleceu os laços entre Rússia e China, beneficiando esta última e colocando a Rússia em uma posição cada vez mais dependente, apesar da histórica animosidade entre essas duas potências (que chegaram a entrar em conflito armado até mesmo durante a era “comunista”), que persiste apesar das atuais demonstrações de amizade.

A política de Trump reconhece que essa estratégia tornou-se cada vez mais custosa e contrária aos interesses do imperialismo norte-americano, ao mesmo tempo em que o apoio à Ucrânia dentro dos Estados Unidos vem se deteriorando ao longo do tempo. O objetivo de Trump é tentar afrouxar os laços entre Rússia e China, ainda que um projeto mais ambicioso, semelhante à política de Nixon — que conseguiu colocar Pequim contra Moscou no início dos anos 1970 —, seja difícil de alcançar depois de décadas de inimizade entre os Estados Unidos e a Rússia. Além disso, Putin enxerga o teste norte-americano na Ucrânia como um parâmetro para avaliar a eficácia e a confiabilidade de Trump; em outras palavras, um cessar-fogo é um pré-requisito para qualquer passo mais significativo (distensão?) nas relações entre as duas potências.

Levando em consideração o enfraquecimento da Alemanha, a ruptura de seus fortes laços geoeconômicos com a Rússia e o fato de que a Rússia já não é a potência que era (como demonstra sua incapacidade de conquistar Kiev, Odessa ou Kharkiv na guerra), Trump busca criar condições para reduzir o investimento norte-americano na OTAN e na Europa, concentrando-se em suas prioridades estratégicas no Indo-Pacífico. Ao mesmo tempo, reforça sua hegemonia no hemisfério ocidental (Canal do Panamá, Groenlândia etc.), levando em conta o caráter menos central do Velho Continente para os interesses imediatos dos Estados Unidos. É evidente que uma guinada geopolítica dessa magnitude, alterando um dos pilares — talvez o mais importante — da hegemonia norte-americana, ou seja, seu papel central não apenas militarmente, mas também geopolítica e politicamente no teatro europeu, carrega consigo fortes contradições estratégicas.

No curto prazo, embora Trump pareça ditar o ritmo das negociações sobre a Ucrânia, o processo ainda está longe de ser concluído. Um erro semelhante ao de Biden no Afeganistão não estaria isento de repercussões para a imagem do líder norte-americano. O dano à credibilidade dos Estados Unidos, embora possivelmente não fatal, criaria distrações na agenda interna, que é a prioridade absoluta do governo. O risco de que um governo pró-Rússia se estabeleça em Kiev, como consequência de um colapso vergonhoso da linha de frente, seria uma perspectiva sombria para o magnata norte-americano. No que diz respeito à negociação, a parte russa ainda não fez a menor concessão. Pelo contrário, as concessões feitas por Trump, humilhantes para os ucranianos, parecem para o líder russo apenas um empate, enquanto Putin ainda quer e precisa de uma vitória. Em outras palavras, ainda há uma divergência significativa entre a abordagem dos Estados Unidos e as aspirações russas. O líder russo deseja alcançar, por meio de negociações, o que ainda não conseguiu pela via militar. Não está claro se Trump está disposto a ir tão longe.

Por sua vez, a maioria dos ucranianos deseja um armistício, mas não a qualquer preço, ou seja, sem capitular diante dos russos. No entanto, também não querem perder o apoio crucial dos Estados Unidos, que a disputa dentro da Casa Branca colocou em risco. Após essa disputa, o setor empresarial instou Zelensky a assinar o acordo com Trump em sua versão revisada e reduzida em relação à original, pois limita a transferência de metade das receitas para novos projetos, sejam eles de extração de recursos ou infraestrutura. Isso significa que os oligarcas receberam garantias de Washington quanto à preservação de suas respectivas rendas.

Em síntese, qualquer que seja o resultado da negociação e, de maneira mais geral, as modalidades da retirada dos Estados Unidos, os acontecimentos dos últimos dias evidenciam um ponto de inflexão histórico para as relações transatlânticas. As difíceis negociações para o fim da guerra na Ucrânia vão além do próprio conflito, pois o que está em jogo é a reescrita do equilíbrio de segurança europeu. O modelo anterior fracassou porque a guerra eclodiu e porque os Estados Unidos já não estão dispostos a sustentá-lo. A insistência em pedir que os Estados Unidos estendam para o leste um cobertor já rasgado apenas demonstra a impotência estratégica da Europa.

Um choque que reforçará a escalada militarista na Europa

O discurso de J.D. Vance na Conferência de Segurança de Munique e, sobretudo, a humilhação de Zelensky por Trump no Salão Oval na sexta-feira, 28 de fevereiro, tiveram um impacto internacional não apenas entre os líderes europeus, mas também entre as massas populares. Desde então, multiplicam-se as cúpulas internacionais para organizar uma resposta à nova situação que se apresenta. Na Europa, para além das divisões existentes, que podem ser exacerbadas pela retirada dos EUA, chegou a hora da corrida armamentista.

Vários líderes europeus pedem o aumento dos orçamentos militares para 3% do PIB de cada Estado, enquanto a maioria dos países-membros está atualmente abaixo de 2%. Segundo o Financial Times, que cita dois especialistas, “se não for possível contar com os Estados Unidos, a Europa precisaria de mais 300.000 soldados e de pelo menos 250 bilhões de euros adicionais em gastos com defesa por ano – quase dobrando de 2% para 3,5% do PIB – para compensar a perda de capacidade” 1. Na última terça-feira, Ursula von der Leyen revelou um gigantesco plano de rearmamento no valor de 800 bilhões de euros, cujo alcance e real significado foram debatidos em uma cúpula extraordinária da UE na quinta-feira.

O mais significativo é a guinada radical na Alemanha, que alguns analistas descrevem como a maior desde 1969, quando o país começou a reavaliar o marco alemão. O acordo entre a CDU e o SPD, pilares da futura grande coalizão, prevê um plano que combina investimentos massivos no exército e em infraestrutura, totalizando 900 bilhões de euros. Mas, se esse número já impressiona, o mais notável é o abandono do “freio à dívida”, a regra constitucional de equilíbrio orçamentário da Alemanha, introduzida pelos próprios partidos em 2009. Essa mudança permitirá uma ampla margem de manobra fiscal que vai além dessa cifra surpreendente. Do ponto de vista militar, posiciona a Alemanha como o potencial exército mais importante da Europa no futuro – uma perspectiva carregada de significado à luz da história do continente.

No entanto, o acordo vai além, marcando um grande passo para reequilibrar os superávits estruturais da conta corrente da Alemanha. Diante da crise do neomercantilismo alemão – resultado do fato de que os Estados Unidos não estão mais dispostos a absorver os superávits globais de poupança por meio de déficits fiscais e comerciais – o antigo modelo alemão já não pode funcionar. Esse enorme pacote fiscal de rearmamento e gastos em infraestrutura representa uma resposta neokeynesiana da outrora potência fiscalmente mais ortodoxa da Europa à crise estrutural do modelo alemão, no contexto de um mundo trumpista. Suas consequências inflacionárias de longo prazo ainda são incertas, especialmente considerando que a Alemanha atuava como âncora fiscal da zona do euro. Vale ressaltar que os conservadores fiscais estão furiosos: um conhecido comentarista econômico conservador afirmou que essa decisão põe fim a todas as reformas.

Na França, Macron fala, por ora, em elevar os gastos militares para 3,5% do PIB, embora a fragilidade do atual governo torne difícil prever como isso será implementado, pelo menos com a urgência desejada pelo Eliseu. Isso tem provocado diferentes abordagens entre o Palácio do Eliseu e Matignon, já que este último deseja manter uma postura benevolente em relação aos parceiros sociais e ao Partido Socialista.

Neste contexto, o debate sobre a Europa voltou com força. Na França, vozes que estavam em segundo plano ressurgem, como Michel Barnier (ex-primeiro-ministro de curta duração após a dissolução da Assembleia), o ex-presidente François Hollande, Bruno Le Maire (ex-ministro da Economia de Macron) e até mesmo François Fillon, ex-candidato presidencial republicano em 2017, que se afastou da vida política após um escândalo de corrupção.

Marine Le Pen está na defensiva, tentando se esquivar das acusações de “putinofilia” frequentemente atribuídas ao Rassemblement National (RN), ao mesmo tempo em que se mantém afastada do imprevisível presidente dos EUA, que é visto com bons olhos por parte de seus eleitores. Essa tentativa de equilibrar uma posição de “nem Washington nem Moscou” é politicamente difícil, já que o RN também não deseja uma solução europeia, devido ao seu euroceticismo.

Mélenchon também enfrenta uma situação complicada, pois sua postura gaullista não alinhada está desatualizada diante da realidade do imperialismo francês atual, que depende de uma política europeísta para ter influência no jogo das potências.

Acima de tudo, é Emmanuel Macron quem voltou ao centro da cena francesa e europeia, da qual havia desaparecido após a crise política aberta com sua decisão inexplicável para a burguesia e seus homólogos europeus de dissolver a Assembleia depois da estrondosa derrota do campo presidencial nas eleições europeias de 2024. Em tom solene, Macron afirmou que “a ameaça russa está aí” e “nos afeta”, sem “fronteiras”, assegurando que, “diante deste mundo perigoso, permanecer como espectador seria uma loucura” 2 . O presidente francês ofereceu aos parceiros comunitários o guarda-chuva nuclear transalpino com um viés antirrusso, embora mantendo firmemente os códigos e o botão de controle em Paris. Uma forma de irradiar sua influência na Europa centro-ocidental sem, de fato, conceder nada. O ministro das Relações Exteriores da Federação Russa, Serguei Lavrov, comparou imediatamente o presidente francês a Adolf Hitler e Napoleão Bonaparte, que alimentaram a louca pretensão de conquistar e submeter a Rússia. Por sua vez, o primeiro-ministro britânico, Starmer, tenta aproveitar os crescentes temores de segurança da Europa para ressuscitar a influência britânica no continente, um papel que foi desperdiçado com o Brexit. Junto com Macron, ele lidera um dos dois únicos países da Europa Ocidental com um poderio militar significativo, embora reduzido após décadas de cortes progressivos desde o fim da Guerra Fria.

O desafio de uma política anti-militarista e anti-guerra contra a corrente

Enquanto as discussões sobre a guerra e o futuro da situação internacional estavam até agora limitadas às cúpulas internacionais e pareciam, para a Europa Ocidental, um problema distante, o “choque” entre Trump e Zelensky no Salão Oval teve um impacto sem precedentes nas massas desde o início da guerra na Ucrânia. A situação internacional está se tornando o centro da política nacional da maioria dos países europeus. Na França, em particular, pesquisas mostram que o discurso dos governos está influenciando a população, com uma maioria querendo continuar ajudando a Ucrânia e expressando sua hostilidade a Trump. No entanto, essa situação esconde divisões entre um “povo de esquerda” especialmente permeável às pressões europeístas – enquanto o PS e o EELV estão totalmente alinhados com as propostas de Macron – e um eleitorado mais popular, que pode ser mais hostil à ajuda à Ucrânia.

Nesse contexto, e diante da aceleração do militarismo, uma orientação estratégica decididamente internacionalista deve erguer com força um discurso anti-militarista e anti-guerra, contra a propaganda estatal que estará no auge frente à ameaça russa, apresentada quase como um perigo às portas de Paris. Devemos enfatizar, em particular, os grandes riscos da situação e o fato de que, sempre que a Europa se armou, o resultado foi uma guerra, com consequências dramáticas para milhões de pessoas. Devemos fazer tudo o que for possível para que essa voz seja ouvida, ainda que, no início, os internacionalistas estejam indo contra a corrente, sem descartar uma repressão estatal crescente, como já demonstrou o movimento contra o genocídio na Palestina.

Ao mesmo tempo, devemos nos apoiar nas contradições da escalada militarista, que mal começou, e, em particular, no fato de que ela implica uma ofensiva imensa, possivelmente sem precedentes, contra os direitos dos trabalhadores, denunciando sistematicamente as propostas nesse sentido. Antes da declaração de Macron, o atual primeiro-ministro francês, Bayrou, afirmou que “construir uma defesa europeia nos obrigará a refletir sobre nosso modelo e nossas prioridades”. Para Barnier, “será necessário reduzir os gastos públicos e reformar o país”, enquanto para Bruno Le Maire, “será preciso redefinir um melhor equilíbrio entre um Estado de bem-estar e um Estado poderoso”. Após o discurso do chefe de Estado francês, seus ministros e deputados se adiantaram: “Não podemos dizer na terça-feira que vamos aumentar nossos esforços e, na quarta-feira, que voltaremos a uma idade de aposentadoria de 60 ou 62 anos”, explicou Benjamin Haddad, ministro da Europa, na RTL. Nos últimos dias, vimos as alusões de Macron ao modelo dinamarquês de aposentadoria aos 70 anos. O deputado macronista Charles Sitzenstuhl resume a situação assim: “Temos um modelo social de tempos de paz que já não é apropriado”. Neste contexto, devemos personificar a recusa de que os trabalhadores paguem pelos interesses dos Estados imperialistas: “Nem um euro, nem uma vida para suas guerras!” ou “Dinheiro para hospitais, aposentadorias, não para o Exército” devem ser nossas palavras de ordem.

No próximo período, a luta contra a escalada militarista e o retorno ao caminho da guerra na Europa deve estar no centro de toda a intervenção da esquerda revolucionária, além da luta contra a Internacional reacionária e da necessidade de relançar o internacionalismo proletário frente a qualquer mínima capitulação ao nacionalismo reacionário, como lamentavelmente fazem certos setores decoloniais para agradar os afetos dos votos da extrema direita. Também devemos combater a posição de Mélenchon, que defende “saída da OTAN, não alinhamento”, reduzindo-se a uma posição meramente antiestadunidense e em defesa da potência francesa, ou seja, exatamente o oposto do antimperialismo consequente que precisamos diante do nacionalismo reacionário. Ao mesmo tempo, sua defesa de um vago “altermundialismo de ajuda mútua” se reduz a uma expressão vazia. A centralidade “francesa” da localização de Mélenchon e sua defesa do imperialismo francês nos “cinco continentes” se opõem frontalmente à necessidade de fraternidade entre os povos. No período de intensificação das contradições do capitalismo imperialista, apenas um internacionalismo operário consequente pode oferecer uma resposta, pois busca se basear no proletariado internacional como a única classe que tem um interesse comum em deter a guerra.

 

Notas de rodapé 
1. Martin Sandbu, “Making Europe’s defence spending great again”, 06/03/2025.
2. Exagerar as ameaças é um recurso habitual dos estados-maiores para justificar e fazer consentir as escaladas militaristas. A realidade da Rússia e de seu Exército é muito diferente da que foi apresentada pelo presidente francês.
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