Thiago Flamé
Mais que qualquer outra coisa, Lula sempre foi, como ele mesmo em outros tempos gostava de repetir, uma metamorfose ambulante. Um líder sem ideologia definida que adota a ideologia que mais lhe convém a cada momento. Mas como Lula, a metamorfose ambulante, que governou e governa ao lado dos banqueiros, latifundiários e do centrão, ainda é considerado um grande líder da esquerda brasileira?
O próprio Lula, diversas vezes negou ser comunista ou socialista e, em geral, quando perguntado se é de esquerda sempre começa respondendo, sou torneiro mecânico… Num desses momentos, ao ser perguntado se era comunista, soltou um desabafo. A situação foi emblemática. Na véspera da sua prisão, em 2017, seu biógrafo Morais perguntou se ele não era um comunista de coração. A resposta de um Lula irritado e ressentido com as classes dominantes diz muito: “Em 1980, eu tinha meio milhão de trabalhadores atrás de mim, e impedi uma greve. Se eu fosse comunista, teria então iniciado uma revolução. Mas o que é que eu fiz? Em vez disso, comecei um partido e uma central sindical”.
Para dizer que nunca foi comunista, Lula mostrou os serviços que prestou para a ordem capitalista. E não teve serviço maior do que aquele prestado em 1980. Essa leitura, expressa numa frase, contradiz a explicação de grande parte da esquerda brasileira, dentro e fora do PT, para sua política nos anos oitenta e noventa, que apoiou e sustentou a figura de Lula e negou que as greves de 1978/80 colocaram na ordem do dia a possibilidade da derrubada da ditadura e o início de um processo revolucionário no Brasil.
Qual greve Lula impediu em 1980? Não foi a dos metalúrgicos, que ocorreu. A greve a que Lula realmente faz referência, num verdadeiro ato falho, é a greve geral que nunca ocorreu, mas que tinha todas as possibilidades para derrubar a ditadura. Os metalúrgicos sozinhos não tinham força para derrotar o bloco dos militares e patronal, mas tinham o apoio e a solidariedade das grandes massas trabalhadoras para convocar uma luta generalizada, passando da greve salarial para a greve a greve geral política. Essa era não uma suposição, mas uma tendência da própria luta, o único caminho para o triunfo dos metalúrgicos do ABC. Ao impedir esse caminho, Lula deixou a greve ser derrotada às minguas. E, depois, “fez” um partido, o PT, fundado logo depois em 1980, e uma central sindical, a CUT, fundada em 1983, para não deixar que os trabalhadores o fizessem por fora do seu controle.
Naquele momento existiam duas formas – ou três, se considerarmos a posição vergonhosa dos PCs – de conceber as grandes greves que se iniciaram em São Bernardo, se alastraram pelo ABC e por São Paulo e abalaram os dois grandes pilares da política econômica da ditadura: o arrocho salarial e a proibição das greves.
Como lutas econômicas de cada categoria com sua patronal e de pressão pela abertura política da própria ditadura, como fez Lula e a direção do futuro PT. Para Lula, a greve não podia extravasar o marco de uma luta salarial dos metalúrgicos do ABC e de cada categoria em separado, enquanto a luta política contra a ditadura caberia aos partidos de oposição e ao PT, depois de fundado – nesse sentido, uma luta institucional, eleitoral, no máximo com as ruas como pressão. Nesse quesito a posição dos PCs foi ao extremo, concebiam as lutas econômicas dos metalúrgicos como uma ameaça à transição e uma provocação contra a chamada “linha dura” militar, que era contra a abertura dos erroneamente chamados “moderados”, mostrando que não aprenderam nada com 1964. Os dois partidos comunistas, PCB e PCdoB, juntos com outras tendências menores como PCR/UP e o velho MR-8 que hoje está do PCdoB, enfraquecidos e blocados com os sindicalistas pelegos do MDB, rechaçaram aquelas greves e foram soterrados pela avalanche do movimento de massas, como traidores que foram.
A outra forma de conceber as greves seria como uma luta de vida ou morte, um choque decisivo entre as classes que definiria o futuro, em que era preciso colocar todas as forças para triunfar. Instintivamente a base operária se moveu nesse sentido e a própria onda pró-PT veio da necessidade sentida pela classe trabalhadora de elevar sua luta econômica ao enfrentamento político com a ditadura. Infelizmente nenhuma das correntes do que seria a esquerda petista no futuro confluiu, e deu uma expressão organizada ao sentimento da base operária, se adaptando à posição de Lula.
Comunismo e Lulismo
O lulismo pode ser entendido de duas formas. Como uma corrente política , predominante na direção do PT e com uma influência eleitoral que sempre foi maior que a do próprio partido, nesse sentido que sempre se disse que Lula é maior que o PT. E também como uma forma de governo que se consagrou no livro escrito por André Singer, “Os sentidos do lulismo”, em que analisa o deslocamento da base social tradicional do PT e do próprio Lula da classe operária mais organizada e das classes médias progressistas do Sul e do Sudeste, que foram a base do ascenso do final da ditadura, para se os setores mais precários da classe e para o Nordeste. Em qualquer dos sentidos da expressão, o lulismo é uma corrente ou uma forma de governo incompatível com a tática, a estratégia e o objetivo final dos comunistas, uma sociedade sem exploração nem opressão, em que a humanidade se reintegre à natureza. Parafraseando Rosa Luxemburgo, podemos dizer que quando um comunista se torna lulista, não é Lula que vai à esquerda, mas o comunista que deixa de ser comunista.
Nos anos setenta e oitenta faltou uma expressão organizada àquele sentimento da base, que buscasse justamente o que Lula não queria, iniciar uma revolução. Toda a esquerda da época, mesmo os setores que se reivindicavam revolucionários e as três organizações trotskistas (Democracia Socialista, O Trabalho, Convergência Socialista) que chegaram a ser fortes como ala esquerda do PT e da CUT nos anos oitenta, se adaptaram à concepção lulista e não apresentaram uma alternativa revolucionária para além dos discursos inflamados. Para isso teria sido necessário romper politicamente com Lula e sua política de manutenção da ordem capitalista e disputar os rumos do PT e da CUT contra a direção lulista. A ideia etapista de primeiro batalhar pela democracia e depois lutar pelo socialismo acabou sendo a predominante, assim como a exaltação de Lula como um grande líder operário nato.
Não é possível retroativamente saber qual seria o resultado prático de uma batalha frontal contra a direção lulista no PT e no movimento de massas nos anos oitenta. O que sim é possível afirmar é que mesmo que não fosse possível alterar o resultado do processo, Lula e a direção majoritária do PT não teriam a hegemonia que tiveram sobre a esquerda ao longo dos anos noventa. Como esse balanço não foi feito até o erro nunca foi corrigido. O PCB, que tinha sido contra a fundação do PT em 1980, apoiou o governo Lula nos primeiros anos e até o PSTU, que havia sido expulso 1992, ainda 2002 aprovava no sindicato mais importante que dirigia, a Federação dos Metalúrgicos de MG, voto nos “candidatos classistas”, Zé Maria e Lula.
Hoje, quando vemos o PSOL de dentro do governo repetir as palavras de Lula e de… Dirceu, de que a tarefa chave do momento é se aliar com a direita e até com partidos que apoiariam Bolsonaro para supostamente se opor ao bolsonarismo, é a tragédia se repetindo como uma farsa ainda mais perigosa. A lição que parte desse setor, como Arcary e a Resistência, tirou das décadas de regime de 88 e sua degradação, na realidade, revisa não a ausência de uma ala revolucionária que apresentasse uma política alternativa no ascenso operário e no surgimento do PT, mas pelo contrário a ruptura da oposição com esse projeto nos anos 90. Esses setores vão no curso oposto. Para enfrentar consequentemente as ameaças da extrema direita que são o filho legítimo do mesmo sistema capitalista que Lula quer preservar, é preciso romper com o governo de frente ampla e organizar uma oposição de esquerda consequente, que não repita os erros do passado.
Num diálogo do filme “entreatos” Lula explica por que ter os trotskistas e os revolucionários dentro do PT sempre foi bom para ele. O partido não governa, por isso Lula sempre diz que ele é de esquerda, mas que seu governo não. A esquerda petista é apenas uma espécie de consciência crítica que garante a Lula sua imagem de esquerda e impede que surja uma esquerda revolucionária de massas por fora do PT.
A metamorfose ambulante original, Raul Seixas, o cantor, gostava de dizer que era na verdade ator, cada hora fingindo um papel diferente. E Lula, a cópia, também foi na verdade um grande ator, sempre interpretando um papel. Só que na arte o que pode até ser o ponto de partida de uma postura estética subversiva, a radical ausência de princípios, na política não passa de oportunismo descarado. Da nossa parte, como comunistas revolucionários, acreditamos que o velho sonho de que a revolução socialista é a única forma de salvar a humanidade da barbárie e da extinção é mais atual do que nunca. E, como dizia Lenin, “é preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho, de observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossas fantasias.” É preciso tirar as lições da trajetória de Lula e do PT e contruir um partido revolucionário independente para colocar o sonho de construir uma nova sociedade na ordem do dia.