Revista Casa Marx

Crise ambiental: capitalismo e revolução permanente

Leandro Lanfredi

Diretor do Sindicato dos Petroleiros do Rio de Janeiro (Sindipetro-RJ).

O que estamos vivendo não é só uma crise, é uma catástrofe ambiental. Isso é visível com a sucessão de desastres. A catástrofe ambiental é multifacetada: é uma de extinção de espécies, é uma epidemia de microplásticos nos oceanos, são desastres como o de Mariana e Brumadinho, Chernobyl e Fukushima, aquecimento global, entre muitos outros exemplos. Ao contrário do senso comum que é difundido pelas burocracias sindicais que ensinam aos trabalhadores que a luta deles só pode ser uma luta por salário e emprego, a luta ambiental é e deve ser uma luta dos trabalhadores.

É uma luta dos trabalhadores porque somos nós que estamos expostos a produtos cancerígenos como é o caso do benzeno entre outros compostos que os petroleiros enfrentam, e é graças à nossa luta é que há um mínimo controle sobre como atuar diante desta substância. A luta ambiental é uma luta dos trabalhadores também porque cada luta pela redução das jornadas de trabalho, como agora na importante luta pelo fim da escala 6X1, ajuda a gerar mais empregos mas também a reduzir as emissões de gases de efeito estufa porque tendo mais tempo livre, há menos emissões com transporte, ficamos com nossas famílias, estudamos, fazemos exercícios físicos e sobretudo ganhamos tempo para a possibilidade de intervenção política, para pensar e lutar por outras formas de produção, planificadas e com outro metabolismo com a natureza.

A luta ambiental é uma luta dos trabalhadores também porque quando os trabalhadores lutam por transporte público, por exemplo, também se enfrentam com um modelo de consumo de materiais e poluição baseado no carro individual. A catástrofe ambiental afeta todo o planeta, mas sabemos que afeta ainda mais, coloca em maior risco, os trabalhadores, começando pelos mais precários, terceirizados e que em nosso país são negros e mulheres em sua maioria.

A urgência de uma resposta ao problema ambiental

Posto que encaramos assim esse tema, entendamos um pouco mais o nível de urgência em que estamos. Tomemos uma das mais catastróficas expressões deste problema, o aquecimento global. Segundo dados da agência oceanográfica e de atmosfera dos EUA, a NOAA, a concentração de CO2 na atmosfera mundial foi de 422ppm em outubro deste ano 1. A última vez que o planeta exibiu esse nível de gás carbônico foi há 3 milhões de anos 2, momento onde estava se desenvolvendo o Australopithecus, ou seja, toda história evolutiva dos hominídeos se deu em condições de gás inferiores ao aquecimento global de agora. Importante ter em nota que, se ocorresse total interrupção de novas emissões agora, o planeta seguiria aquecendo, devido ao efeito inercial que tem esse gás na atmosfera até ele decair, ser absorvido etc. Ou seja, no nível atual já haveria mais de 67% de chance que o planeta permaneceria acima de 1,5○acima do nível pré-industrial, temperatura esta que é ligeiramente superior aos recordes (e catástrofes) registrados desde 2022, diversos estudos mostram que a manutenção do status atual vai implicar num aumento de 3 graus na virada do século.

O aumento das concentrações de CO2 mostra a completa falácia de que os eventos anuais promovidos pela ONU, as COPs, enfrentariam essa catástrofe. Quando ocorreu a COP1 em 1995 em Berlim, a concentração era de 363ppm, hoje ao término da COP29 estamos 16% acima. Mais de 49% de todas instalações que concentram a emissão de CO2, foram colocadas em operação depois de 2004, ou seja desde a COP10 3. Paradoxalmente, ao mesmo tempo que há maior conhecimento do aquecimento global há aumento do mesmo, as petrolíferas, por exemplo, já tinham em mãos estudos deste tipo desde os anos 1970 4.

Dado o nível de impacto já mensurável, há um consenso científico mundial de que estaríamos em uma nova fase geológica, conhecida como Antropoceno, categoria esta que é questionada por muitos investigadores já que não se trata das ações feitas por qualquer homo sapiens, nem por qualquer civilização deste e desde que essa espécie existe, nem por todos os humanos atuais, não é a humanidade a responsável. São as ações desencadeadas pelo capitalismo, nomeando-o, portanto, de Capitalceno 5 6.

A degradação ambiental como consequência das contradições inerentes do capitalismo

Essa degradação ambiental é inerente ao capitalismo, como procuraremos mostrar de forma muito breve. Isso é particularmente gritante quando o presidente eleito da meca do capital, os EUA, adota como lema “drill baby drill” que em uma versão livre poderíamos dizer “produza petróleo querida, produza petróleo”. Também é chocantemente explícita essa relação no nível de desmatamento que Bolsonaro deseja que aconteça. Diante da poluição desenfreada e irrestrita, da provável ruptura em fazer parte dos ineficazes pactos globais das COP por parte de Trump, Milei e outros, veremos, novamente, uma pressão para “pelo menos” seguir a COP. Os trabalhadores, o movimento ambientalista, a juventude terão diante de si uma renovada pressão para embelezar o capitalismo dito verde.

Apesar de diferenças em projetos, independe do governo de turno a marcha a profunda degradação ambiental que o capitalismo produz. Pode-se ir em marcha acelerada, correndo ou a galope. Seja em governos de conciliação de classe do PT, seja nos governos do chavismo, do Evo Morales, do kirchenerismo, do golpista Temer, de Bolsonaro, Milei e outros, a América Latina está toda inserida em um ciclo extrativista e marchando, ou correndo, numa mesma direção. Agrava a dificuldade de percepção da gravidade do problema que é tradição da esquerda nacional, como discute por exemplo Vladimir Safatle, sua subordinação a um projeto desenvolvimentista e que portanto ignora as pautas ambientais 7, no máximo, encarando-a como uma consequência inevitável e que deveria ser “mitigada”, mas não seria um problema em si. Na forma mais caricata de tal desenvolvimentismo pode-se chegar a formulações de que encarar o problema ambiental como tal seria uma capitulação a ONGs europeias.

É particularmente ilustrativo dessa continuidade do ciclo extrativista, mesmo que debaixo de um novo discurso, agora bastante aguado, do desenvolvimentismo. Nota-se essa continuidade quando o financiamento ao agronegócio bate recorde no governo Lula, sendo esse financiamento principalmente pelos bancos estatais: Banco do Brasil e BNDES 8. Inclusive, o agronegócio é o principal negócio do BB, concentrando nessa rubrica 32% de seus ativos. Também é visível essa continuidade no extrativismo, quando o governo Lula organiza a Petrobrás para cada vez extrair mais petróleo e gás para exportar e gerar dividendos aos acionistas privados, que já são, em sua maioria, imperialistas. Assim, sob Lula, a Petrobrás que é a única empresa brasileira que se situa na lista mundial das 57 empresas que sozinhas são responsáveis por 80% do aquecimento global desde 1854, vai aumentando sua participação, já chegando na 19a posição mundial quando o corte temporal é dos últimos anos e não desde o século XIX 9. É assim que, ano a ano, a Petrobrás vai aumentando a produção, exportação, vão subindo seus dividendos aos acionistas privados e sua contribuição à catástrofe ambiental global 10.

Aqui no Brasil, como na nossa vizinha Argentina, existe o argumento que é preciso aprofundar o extrativismo para ter maior desenvolvimento. Nada mais falacioso, como mostram nossos camaradas Esteban Mercatante e Juan Duarte em livro que estão organizando na Argentina 11. E se quiséssemos desmentir com uma ideia simples essa falsa relação entre extrativismo e desenvolvimento social, bastaria olhar Macaé ou Campos aqui no Rio, elas se tornaram alguma Suíça?

Outro discurso que defende a extração de bens naturais e aumentar a poluição “pelo bem” é agora um lugar comum das empresas de petróleo. Frases como “usaremos o petróleo para a transição energética” abundam nas publicações do “Big Oil”. Isso, inclusive é o discurso não só da Shell, da BP, da Total, mas também da Petrobras e do governo Lula.

Esse discurso não para de pé. Quando se pega o novo plano de negócios da Petrobrás 12 e fazemos as contas do que estão dizendo, pode-se ver que a Petrobrás, provavelmente uma das petroleiras “mais verdes” do mundo, passaria de produzir 1,3 exajoules de energia de combustíveis fósseis em 2022 para produzir 1,9 exajoule em 2050, ou seja contribuindo ainda mais na poluição, mesmo que a parcela de combustíveis fósseis diminua comparativamente num bolo que cresceu! No mesmo relatório vemos que a Petrobrás vai “bater recorde de pesquisa em fontes renováveis”, mas esse recorde ocorrerá investindo míseros 2% dos dividendos planejados para os acionistas. Mesmo nesta empresa que investe no greenwashing e algumas mínimas medidas mitigatórias, especialmente com a fauna marinha, se vê como não há capitalismo verde.

É inerente à lógica da valorização do valor, uma tendência ao aumento da composição orgânica do capital, ou seja de aumentar o capital morto em relação ao trabalho, fonte da mais-valia. Há cada vez mais capital “morto” em máquinas, matérias primas em relação ao que produz a mais-valia, o trabalho. Isso significa que há um consumo energético crescente na reprodução ampliada do capital, cada vez mais em cadeias globais de valor que exploram o trabalho barato e precário em cada rincão do globo terrestre. Para gerar cada vez mais capital é preciso cada vez mais capital morto, e ele é sobretudo máquinas, matérias primas e em resumo: consumo energético. E como o mundo organizado pelo capital produz energia? Principalmente via combustíveis fósseis, gerando como subproduto do processo de valorização do valor, uma emissão crescente de gases de efeito estufa.

O marxista sueco Andreas Malm ficou conhecido por seu interessante livro onde argumenta que há um “capital fóssil”. Nele demonstra como a transição da energia hidráulica à de carvão na revolução industrial inglesa, não se deu por via de custos menores do segundo. Ela se deu pela dificuldade de coordenar esforços entre os diferentes capitalistas que precisavam cooperar – e não competir – no uso da energia hidráulica, e como sobretudo a adoção do carvão permitia localizar as fábricas nos centros urbanos onde era possível melhor enfrentar o movimento operário devido a ocorrência ali de um maior exército industrial de reserva. A localização das fábricas permitia não só a criação de um espaço abstrato, mas também de uma temporalidade especificamente capitalista – e abstrata – não mais medida por processos naturais e sazonais, como o fluxo de um rio, mas sim pelo consumo que se quisesse ter do carvão. A adoção do carvão, Malm desenvolve o que já estava presente n’O Capital de Marx, também permitia quebrar o coração do movimento operário nascente do ludismo e do cartismo: os desfiadores de algodão. Estas poucas dezenas de milhares de homens tinham uma posição estratégica, podiam com sua paralisação parar toda produção. Através de máquinas movidas a carvão e atendidas por mulheres e crianças não especializadas, pode-se substituir os desfiadores e quebrar o movimento operário. Como resultado ocorreu duas coisas: aumento da composição orgânica do capital (ou seja maior investimento em capital constante) e aumento na geração de resíduos industriais e gases de efeito estufa 13.

Hoje, 2024, mesmo com tudo que se sabe sobre aquecimento global, o consumo mundial de carvão, e não de petróleo ou gás, mas do primeiro que gera o dobro de CO2 por unidade de energia que o gás, bateu recorde no ano passado 14, e possivelmente este ano bata novo recorde. Em tese o pico do consumo de carvão já deveria ter chegado segundo as COPs e suas promessas, mas não há como ter certeza se, e quando, ocorrerá esse pico. Isso é ainda mais válido para o petróleo e o gás natural. Desde o acordo de Paris em 2015, quando os países, liderados pelas potências imperialistas, comprometeram-se finalmente em supostamente reduzir suas emissões de CO2, ocorreu uma movimentação de US$6,9 trilhões em empréstimos, emissões de títulos e debêntures para empresas de combustíveis fósseis, sobretudo petróleo, mas também nas demais fontes 15. Esse himalaia de capital para produzir mais CO2 encontrou na Petrobrás a sexta maior destinatária de recursos, perdendo somente para a yankee Exxon, a estatal saudita Aramco, a inglesa BP, a anglo-holandesa Shell e a francesa Total.

Essa montanha de capital morto investido precisa ser retornada de forma aumentada aos capitalistas. Tomemos o custo que a Petrobrás declara para suas novas plataformas, US$ 3 bilhões cada, e cada uma produzindo 225mil barris/dia, considerando que a Petrobrás declara um custo de produção US$6 por barril, e considerando um preço US$70 por barril, e cerca de 40% entre royalties e participações especiais, são necessários 370 ao menos dias para pagar o que foi investido. Muitos equipamentos das indústrias de hidrocarbonetos têm taxas de retorno muito menores do que o excepcional pré-sal brasileiro, podendo demorar décadas para “pagar” o capital investido, sendo isso particularmente verdade para refinarias, oleodutos, gasodutos e termelétricas. Ou seja, o capital hoje investido requer, do ponto de vista capitalista, décadas de funcionamento para se pagar. Quanto menos convencional for o petróleo e gás, ou seja se ele for de xisto, de areias betuminosas, de fracking, o tempo para ter retorno do capital investido é muito maior já que há gastos maiores de capital e de água e energia (com ainda maiores consequências no colapso ambiental), e seus custos de produção são muito mais elevados, da ordem de US$40 por barril.

Ou seja, parar a produção e consumo de petróleo, gás, carvão, exige derrotar os interesses de capitalistas que investiram, só nos últimos 9 anos, 7 trilhões de dólares. É fazer eles perderem essa fortuna que querem devolvida de forma acrescentada. Esse montante equivale a mais de 3 PIBs do Brasil, ou um pouquinho menos do que uma soma anual de toda produção de França e Alemanha, potências imperialistas.

Algumas chaves marxistas para entender a terrível degradação ambiental

Nas últimas décadas se desenvolveram diversos estudos mostrando como há, em Marx, uma categoria de metabolismo e de fratura metabólica desta relação entre humanos e natureza, criada pelo capitalismo. Essa “escola” iniciada por John Bellamy Foster e continuada por diversos outros intelectuais, como Kohei Saito, entre outros, demonstra como no próprio arsenal teórico marxista há chaves para entender o colapso ambiental em curso. Marx afirma que o processo de trabalho é “um processo entre o homem e a natureza, um processo pelo qual o homem, por meio de suas próprias ações, medeia, regula e controla o metabolismo entre ele mesmo e a natureza” 16. Ou seja, como argumenta Saito

“Embora o metabolismo incessante entre humanos e natureza penetre em toda história humana, uma necessidade eterna que não pode ser abolida, Marx enfatiza que o desempenho concreto do trabalho humano assume várias “formas” econômicas em cada estágio de desenvolvimento social e, consequentemente, o conteúdo do metabolismo transistórico entre humanos e natureza varia significativamente, A maneira como o trabalho alienado na sociedade industrial moderna faz a mediação da interação metabólica dos humanos com seu ambiente não é a mesma que ocorria nas sociedades pré-capitalistas. Qual é a diferença? Porque a revolução capitalista da produção, com seu rápido desenvolvimento de máquinas e tecnologias, distorce a interação metabólica mais do que nunca, de modo que hoje ameaça a existência da civilização humana (…) o problema não pode ser reduzido às consequências inevitáveis do rápido desenvolvimento quantitativo das forças produtivas no século XX. Sua crítica fornece uma visão sobre as diferenças qualitativas entre o modo de produção capitalista e o de todas as outras sociedades precedentes. Ele mostra que a crise moderna do ecossistema é uma manifestação da contradição imanente do capitalismo, que necessariamente resulta da forma especificamente capitalista de organizar os metabolismo social e natural.” 17

A forma que o valor assume nessa sociedade é uma forma abstrata que faz da natureza (incluindo os seres humanos e sua saúde) tão e somente um objeto da valorização do capital. O capital pega a heterogênea natureza (e humanidade) e lhe impõe uma lógica de homogeneizar e atropelar tudo em sua busca de lucro. O colapso ambiental que vivemos não é uma consequência de más políticas de determinados governantes, não é somente uma consequência quantitativa da “grande aceleração” da produção de mercadorias (e de poluição) desde os anos 1950, é algo qualitativo, posto que inerente ao capitalismo. Daí, portanto, que a resposta comunista, também deve partir desse ponto de vista e visar uma estratégia e um programa que estabeleçam outro metabolismo entre humanidade e natureza.

Green New Deal e algumas versões do ecossocialismo: limites de abordagens das transições ecológicas propostas para o estado burguês ou que tenham este como sujeito

Apesar de reconhecerem a característica especificamente capitalista do colapso ambiental, há muitas correntes ditas socialistas no mundo que adotam como programa o “Green New Deal” que a ala dita radical dos democratas americanos propagandearam em 2020 (e sumiu este ano na campanha de Harris, mesmo por parte do DSA e do “squad”). Ou seja, argumentam que ocorrendo mobilização popular o Estado poderia intervir no capitalismo, fazer investimentos massivos que tornassem rentável uma nova matriz energética e um novo ciclo de desenvolvimento capitalista e de direitos sociais em detrimento do combustível fóssil e até mesmo do trabalho precário.

Tal proposta é completamente inverossímil. Ela não responde sequer como resolveria a perda que precisaria ser causada aos bancos e demais setores capitalistas que estão investidos nos hidrocarbonetos e, na verdade, o Green New Deal nas alas democratas nem sequer coloca seriamente a questão do fim do petróleo, carvão e gás. A realidade de tal proposta, e não sua defesa quando é feita meramente para passar pano para democratas, é o que Biden implementou: incentivos bilionários aos setores eólicos e solares que ajudaram esse setor a lucrar mais, porém sem produzir nenhum efeito real na matriz energética. Passados 4 anos de governo Biden e entregando 1,6 trilhão de dólares entre investimentos e incentivos fiscais, a matriz energética americana continuou sendo somente 21% de renováveis.

Para além dos defensores do Green New Deal há outros setores que inclusive se reivindicam marxistas ou ecossocialistas, como Michel Lowy, que discutem que não há capitalismo verde, mas que levantam um programa de ação que é basicamente para regulamentações estatais. Ele escreveu isso em seu o que “O que é o ecossocialismo” lá em 2005, mas ele mantém essa mesma ideia em artigo de 2023. Ele diz: “se não devemos nutrir ilusões sobre um “capitalismo limpo”, devemos, entretanto, tentar ganhar tempo e impor aos poderes públicos algumas mudanças elementares: a proibição dos gases CFC que estão destruindo a camada de ozônio, uma moratória geral da produção de organismos geneticamente modificados, uma redução drástica da emissão de gases que causam o efeito estufa, uma regulamentação estrita da pesca industrial e da utilização de pesticidas como substâncias químicas na produção agroindustrial, uma taxa sobre os automóveis poluentes, um desenvolvimento muito maior do transporte público, a substituição progressiva de caminhões por trens. 18 .

O Estado capitalista é o garantidor dos interesses do conjunto da classe burguesa, ele não pode ser o sujeito de tais medidas de transição ecossocialista que Lowy lhe exige. Apesar do chamado imperativo de “ganhar tempo” que Lowy coloca, o sujeito desloca-se da classe trabalhadora ao Estado, que seria pressionado a tomar decisões que necessariamente seriam despóticas contra a burguesia, e que, portanto, são completamente inviáveis no Estado burguês ao qual ele traça as suas exigências.

Outros defensores do chamado ecossocialismo, como Sabrina Fernandes, articulam de outra maneira a relação da transição ecológica e capitalismo, nela a manutenção do Estado capitalista fica ainda mais acentuada que em Lowy, pelo menos nas elaborações mais recentes de ambos. Para Fernandes, países como Brasil, como ela fala em artigo recente, deveriam “empregar políticas a partir do estado e da sociedade civil que tragam mais coerência para o que é defendido, possibilitando escapar de situações em que dizemos proteger a Amazônia, ao mesmo tempo que se pauta a exploração de petróleo na margem equatorial, como se um ecossistema existisse isoladamente de outro ou como se valesse muito menos que outro.” 19.

Fernandes aborda as transições, a partir de “desinvestimento” no agro e no petróleo e na indústria bélica, mesmo que em escala regional, ou até mesmo internacional, mas o faz num novo-velho diapasão de cores onde já não é muito claro se há sequer uma defesa de um pós-capitalismo. Sua proposta, deste modo, torna-se mais parecida a um multilateralismo ou uma geopolítica sul-sul de décadas atrás: “ao pautarmos transições regionais e internacionalistas, podemos juntar forças para agirmos em blocos alternativos, fortalecendo caminhos não-alinhados e verdadeiramente multipolares, que tecem outras alianças capazes de preencher as lacunas dos parceiros comerciais, como Israel, que largarmos no meio do caminho.” 20

Resumindo, guardadas todas as diferenças entre os diferentes autores defensores do ecossocialismo: a) a transição ecológica ocorre no capitalismo, ou b) ela começaria ainda no capitalismo, ou c) a transição iniciada ainda no capitalismo seria um pressuposto para a transição socialista dada a catástrofe que vivemos. Essa última ideia dialoga com uma percepção tanto da gravidade da situação que vivemos, bem como valoriza, mesmo que minimamente, a dificuldade de qualquer programa mínimo com alguma força vital debaixo das ordens do capital. Eduardo Sá Barreto oferece uma crítica muito interessante às ideias de transição no capitalismo. O nível de oposição que precisamos enfrentar para as medidas mínimas contra o colapso ambiental que vivemos exigem no mínimo uma força insurrecional. O mínimo não é realizável nos marcos do capitalismo e do Estado burguês. Como se derrotaria pacificamente, por exemplo, os 7 trilhões de dólares só de novos investimentos nos combustíveis fósseis? Por isso, acompanhando ele, podemos afirmar que “superar o capitalismo é o programa mínimo para enfrentar a crise climática que se avizinha” 21.

A tomada do poder como programa mínimo, o tema ambiental como fator para permanência da revolução

Essa ideia da tomada do poder como programa mínimo é muito produtiva. Supondo a revolução em alguns países e seu vitorioso avanço a uma escala mundial, a humanidade teria imensas novas possibilidades libertada das amarras da propriedade privada dos meios de produção e da anarquia capitalista. Porém, mesmo assim, herdaremos o mundo tal como legado pelo capitalismo, com suas forças produtivas, com sua base energética em combustíveis fósseis, com os hábitos de consumo e satisfação de necessidades dos trabalhadores construídas no capitalismo e não na sociedade futura. Aí nesse ponto, se coloca um outro interessante debate, o que seria o programa ecológico comunista numa sociedade de transição do capitalismo ao socialismo?

Para além de respostas simplistas que tomam como um dado que a revolução resolveria tudo num passe de mágica, há basicamente duas respostas: decrescimento e de um otimismo ecomodernista. Abordaremos de forma muito simplificada as duas propostas para tentar oferecer com o legado da Teoria da Revolução Permanente de Leon Trotski um caminho que possa partir de argumentos corretos de ambas e situar no sujeito revolucionário, o proletariado, o agente destes imensos e necessários desafios. E neste esboço, buscar apontar como o próprio desenvolvimento objetivo da realidade com a catástrofe ambiental mundial e os desenvolvimentos teóricos do marxismo particularmente no tema do “metabolismo” enriquecem essa mesma teoria que oferecemos com uma chave para encarar a discussão.

De forma muitíssimo resumida e de forma não exaustiva, não abarcando todas propostas e fundamentações, podemos dizer que os teóricos que defendem o decrescimento apontam, com correção, que os padrões de consumo hoje vigentes em países imperialistas já são insustentáveis hoje e seriam ainda mais insustentáveis se colocados numa escala global. Advogam entre outras questões pelo desmantelamento da indústria baseada em combustíveis fósseis, pelo fim da obsolescência programada, pela redução da jornada de trabalho, pela busca de substituição do consumo de proteínas animais por proteínas vegetais para reduzir os impactos climáticos, entre várias outras medidas, e, diferentes interpretações do decrescimento também advogam por um desmantelamento do comércio global para reduzir emissões. Entre vários autores, um importante defensor do decrescimento em nossas terras é o professor da Unicamp Luis Marques 22 e mundialmente o marxista japonês Saito, que já citamos aqui, ainda que este último crescentemente faça essa defesa nos marcos do capitalismo e não como um programa para uma sociedade de transição.

Todas essas questões levantadas são relevantes, porém há alguns buracos na argumentação. Pressupondo uma revolução socialista em escala planetária, haveriam diversas localidades onde seria necessário um crescimento e não um decrescimento, mesmo que em outra chave do que as realizadas no capitalismo. Como se dará o debate para que os trabalhadores escolham consumir menos proteínas animais? Outra questão relevante a desenvolver é que as forças produtivas e as necessidades que os trabalhadores julgam necessárias que sejam satisfeitas já não podem ser satisfeitas em uma escala local ou mesmo regional. É pensável que os trabalhadores abririam mão de celulares e outros equipamentos que exigem terras raras, lítio, e outros materiais extremamente raros e que não são distribuídos em forma uniforme no planeta? Evidentemente há diversos materiais que devem ser reciclados localmente, mas há demandas que os trabalhadores, mesmo que num primeiro momento, gostarão de ver satisfeitas e que entrariam em choque com um programa de forte redução ou até mesmo fim do comércio intercontinental como alguns defendem.

Por outro lado, os que advogam um ecomodernismo ou futurismo, como Bastani 23 por exemplo, que além de propor a redução da jornada de trabalho, aumento da automação faz um princípio de fé que os trabalhadores, libertos das amarras impostas à inovação tecnológica pela propriedade privada, desenvolveriam tecnologias que permitiriam não somente aspectos de geo-engenharia para resolver problemas ambientais como permitiriam níveis de consumo de luxo das classes dominantes, a todos trabalhadores do mundo.

Evidentemente as possibilidades humanas são infinitas, não somente do que poderíamos desenvolver como tecnologias mas sobretudo como forma de vida, filosofia, arte, cultura, desenvolvendo tantos múltiplos aspectos das possibilidades individuais tolhidas pelo capitalismo. Porém, esse mundo dos Jetsons comunista, precisaria enfrentar o problema emergencial do agora que o decrescimento aborda. Não há um tempo imenso para que muito tempo depois da revolução surjam novas tecnologias etc e tal. As tendências catastróficas ao mundo – e à humanidade – já impostas pelo capitalismo precisam ser abordadas.

O nível de aumento da concentração dos gases de efeito estufa precisam ser interrompidos ou diretamente revertidos e já. A burguesia mundial, com todo seu show nas COP, já está abrindo mão de qualquer ideia de captura de carbono. Alguns anos atrás a sigla nas COPs era CCS (Carbon Capture and Storage – Captura e Armazenamento de Carbono) para agora acrescentar um U de uso (use). Não é racional do ponto de vista da acumulação de capital só reverter a poluição, esse carbono capturado deve servir para algo. Qual o principal uso? Aumentar a pressão nos poços de petróleo para produzir de forma mais eficiente mais petróleo que quando queimado vai gerar mais CO2. É assim que a Petrobrás se vangloria de sozinha contar por 25% do CCUS do mundo 24.

Os investimentos desta empresa administrada pelo Estado brasileiro em prol de seus acionistas privados são para aumentar sua capacidade de reinjetar CO2 que está lá nos poços de petróleo para assim extrair mais petróleo e não para sequestrar CO2 que está no ar. Possivelmente essa e outras tecnologias, sob controle operário, poderiam se desenvolver para atacar o problema ambiental, mas ainda assim seria um trabalho hercúleo de aumentar em 900 vezes a capacidade atual de injeção, alterar a tecnologia para injetar CO2 atmosférico e não da captura do que já está lá no petróleo, e ainda criar um novo trabalho crucial de monitoramento, porque injetar imensas quantidades de CO2 em poços demanda acompanhá-los, senão a humanidade estaria criando uma bomba relógio ainda pior para o futuro. Essas hipóteses aqui dão conta de pensar um problema, o aumento de emissões de CO2, mas há muitíssimos outros, outros poluentes, microplásticos, acidificação de oceanos e tantos outros, e ainda assim, ainda assim, estaríamos muito longe “do comunismo de luxo totalmente automatizado” do Bastani.

A classe operária, tomando o poder hoje, terá que se colocar diante de múltiplas decisões coletivas que: equacionem o parque industrial existente, o atendimento das necessidades historicamente constituídas da classe operária e, garantam a redução da emissão de gases de efeito estufa e outras formas de poluição. Este complexo entrelaçamento do problema ambiental, econômico e social se dá numa escala muito superior em 2024 do que 1917 e isso será mais um motivo para a permanência da revolução e a constante luta política de ideias e consequente constante mutação e revolução da sociedade em sua transição ao socialismo.

Esta ideia permite pensar que os debates ambientais do socialismo no século XXI enriquecem uma das 3 “leis” da Teoria da Revolução Permanente de Leon Trótski 25. Para este revolucionário, a primeira destas leis das revoluções em sociedades de classe era que “nos países atrasados, o caminho da democracia passava pela ditadura do proletariado”, mostrando como na etapa atual do capitalismo a resolução de questões democráticas, como a reforma agrária, o pleno desenvolvimento do direito da autodeterminação dos povos, questões tomadas pela burguesia em sua aurora já não conseguem se resolver de forma integral se não pela luta revolucionária do proletariado pelo poder. A terceira lei da Teoria da Revolução permanente é talvez a mais conhecida, nela afirma-se “o caráter internacional da revolução socialista”, mas talvez um dos aspectos menos conhecidos desta teoria é a segunda lei, nela afirma-se que

“Ao longo de um período de duração indefinida e de uma luta interna constante, vão se transformando todas as relações sociais. A sociedade sofre um processo de metamorfose. E, neste processo de transformação, cada nova etapa é consequência direta da anterior. Este processo guarda forçosamente um caráter político, o que significa dizer que se desenvolve pelo choque de diferentes grupos da sociedade em transformação. Às explosões de guerra civil e das guerras exteriores sucedem períodos de reformas “pacíficas”. As revoluções da economia, da técnica, da ciência, da família, dos costumes, se desenvolvem em uma complexa ação recíproca que não permite à sociedade alcançar o equilíbrio. Nisto consiste o caráter permanente da revolução socialista como tal.”

Este segundo aspecto, ou segunda lei, é o que destacamos que ganha maior impulso pelos desenvolvimentos do que a deriva anti-ecológica do capital impôs com renovado ardor ao proletariado e à sociedade de transição. Há de se esperar que uma parte da luta política partidária em um pluripartidarismo soviético (tal qual defendia Trótski) se dará entre frações da classe trabalhadora com diferentes e cada vez mais complexas respostas aos problemas por hora postos por “escolas” como do decrescimento e do ecomodernismo. O sujeito revolucionário, o proletariado, no choque entre suas diferentes camadas e frações precisará encontrar resoluções desses problemas, que dia a dia avolumam-se como mais pesadas e difíceis heranças do passado que o proletariado terá que enfrentar para erguer o futuro.

Desenvolver o sujeito operário e um programa hegemônico a partir dos problemas do aqui e agora

A classe trabalhadora nunca foi tão grande como é hoje e, ao mesmo tempo, nunca esteve tão fragmentada, dividida como agora. Isso é resultado de décadas sem revoluções, de heranças da ofensiva contra esta com a ofensiva neoliberal e restauração do capitalismo no Leste. No entanto, há sinais, mesmo que iniciais, de recomposição de sua constituição enquanto sujeito de luta e sujeito social. O problema “operário” ganha uma centralidade como não se via em décadas na política estadunidense. Temos ali, no coração da besta, uma crescente simpatia aos sindicatos e uma geração “U” (de “union”, palavra em inglês para sindicato). No Brasil, ainda que como temática nas redes sociais e debates nos locais de trabalho, mas não ainda nas ruas, temos pela primeira vez em décadas uma demanda operária ofensiva pautando a política nacional, como foi a luta pelo fim da escala 6X1.

Um instrumento importante para a garantia da hegemonia da burguesia é que esta conte com burocracias sindicais a dirigir os sindicatos. Estes policiais da burguesia, como as chamavam Trótski e Gramsci, atuam para impedir que os trabalhadores assumam posições que coloquem em xeque a hegemonia burguesa. Quando possível, fazem isso impedindo que qualquer luta ocorra, perseguindo dissidência, e até mesmo empregando violência física (muitas eleições e debates sindicais, até mesmo no Brasil, resolvem-se pelo recurso de bate-paus, pessoas armadas etc). Outras vezes, quando para essas burocracias não pareça possível impedir que ocorram lutas, procuram conduzi-las a becos sem saída e a educar as amplas massas que sua luta direta do local de trabalho pode ser no máximo sobre salário e emprego, ignorando qualquer perspectiva política e até mesmo negando que esta classe deva responder a problemas do racismo, misoginia, nem falar problemas ambientais. No máximo os sindicatos criam “secretarias” para que algumas pessoas tomem essas tarefas como aspecto isolado, secundário e subordinado da atividade sindical. Boa expressão desta posição economicista está no dirigente da influente revista americana Jacobin, Bhaskar Sunkara, que argumenta que a resposta ao problema do sexismo e machismo são sindicatos 26. E não, leitor otimista, não é que os sindicatos tomem esse problema, é a luta por salário dos sindicatos que ajuda a resolver o problema do racismo, por exemplo, sem nem mencioná-lo.

Na temática ambiental, o máximo que é formulado pelas burocracias sindicais é um apoio ao Green New Deal (já abordado acima) ou a uma temática de “transição energética justa” que traça corretas críticas à moderação da transição nas mãos das empresas capitalistas mas limita-se a colocar-se como conselheira destas mesmas empresas e a lutar por medidas compensatórias aos trabalhadores quando ocorrer uma mudança das bases energéticas. Um rico e detalhado exemplo desse tipo de posicionamento extremamente limitado à mitigação dos efeitos do que o capitalismo verde produziria pode ser encontrado no livro “Petróleo, clima e trabalho” recentemente publicado pela FUP e DIEESE 27.

Não é fortuito o desespero e pessimismo que nota-se em tantos ambientalistas e teóricos da temática. Isso porque, diante deste cenário, as expressões “mais à esquerda” no movimento operário são lutar por compensações por perda de empregos quando se fechar uma refinaria ou exigir investimentos capitalistas para que a indústria eólica e solar sejam competitivas vis a vis os combustíveis fósseis como no Green New Deal. Com esse pessimismo diante do movimento operário, compreende-se como diversos autores da ecologia marxistas tendem crescentemente a desenvolver um programa ambiental como exigência ao Estado capitalista. Por outro lado, há aqueles que corretamente apontam que é necessário “lutar contra o desespero”, como formula Andreas Malm em seu recente livro “Como explodir um oleoduto” 28.

Malm, em sua resposta contra esse desespero que sentem aqueles que têm consciência da gravidade do problema ambiental, faz uma interessante valorização da importância da violência revolucionária apoiando-se em Fanon, para afirmar a necessidade da ação direta e de enfrentar a propriedade privada. Porém seus exemplos vão de furar pneus de SUVs a diversas ações com vanguardas ampliadas de alguns milhares que bloqueiam externamente algumas instalações poluentes. Ou seja, a temática da violência necessária para parar a máquina do capital e sua poluição, a ação direta, aparecem como ações por fora ou até mesmo contra determinados setores da classe trabalhadora.

Por outro lado, na contramão do ceticismo, é um interessante sintoma da radicalização de uma juventude sensível ao tema ambiental como Greta Thunberg vem evoluindo de exigências a ONU e ao imperialismo a adotar posições de que a transição energética deve salvar empregos operários e que os operários devem ser agentes da transição, como fez recentemente em vídeo apoiando ocupação de fábrica na Itália 29. Para além das posições individuais de Greta, pode ser um sinal do que está acontecendo em um setor de vanguarda do movimento ambiental na Europa. Exemplo ainda mais profícuo de um potencial que a classe operária seja ela sujeito da transição energética podemos ver na greve da Total de Grandpuits na França onde, contra o fechamento da refinaria por greenwashing da petrolífera francesa que queria transferir sua produção poluente para a África os operários, entre eles o dirigente trotskista de seu sindicato, Adrien Cornet, desenvolveram uma luta pela manutenção dos empregos e reconversão da fábrica. Nesta luta, mostrou-se na prática o potencial hegemônico da classe trabalhadora que pode influenciar e dirigir nesta luta o movimento ambientalista, com a inédita, e talvez até insólita, nota do Greenpeace da França defendendo o controle operário da fábrica para reconvertê-la 30.

O avançar do pouco e díficil de agora a esta necessidade de constituição de um massivo sujeito proletário que assuma posições anticapitalistas, e que portanto dê respostas aos problemas ambientais, de gênero, raça, entre outros, passa pela batalha para construção de frações no movimento operário, estudantil, e de massas em geral, que tomem essas bandeiras e em sua interação formem partido. Esse “novo” só poderá se erguer com a crítica implacável contra o “velho” para que camadas dos trabalhadores e outras classes e camadas sociais cheguem a conclusão dos limites dos programas e consciência que suas atuais direções lhes impõem.

Trata-se de criar braços de um grande partido revolucionário internacionalista que levante o correto, mesmo que em minoria (exemplo mínimo, “de casa”, defesa de não instalação de nenhuma nova plataforma pela Petrobrás ao passo que fazer forte exigência de gerar mais empregos com pesquisa). Essa batalha pelo correto, mesmo em minoria, tem mil e uma nuances táticas de como fazer a cada caso, mas não pode ter a autocomplacência de um centrismo que contenta-se com ideias como “esse programa é importante, necessário, mas é difícil de ser defendido”. Esta constatação da dificuldade é um ponto final para o centrismo. Para os revolucionários deve ser o ponto de partida da inquietação de, portanto, como defender, como tornar compreensível, como conseguir cada passinho adiante para que um programa difícil emplaque. Ficando “em casa” petroleira novamente, como a necessidade de uma corrente socialista de petroleiros encontrar maneiras de dizer em alto e bom som “não à exploração da margem equatorial”.

O avanço a posições marxistas, portanto revolucionárias, não se fará só com teoria. Precisará ganhar espaço como programa parcial que vá se fazendo carne nas lutas dos trabalhadores e outros setores. Programas como redução da jornada de trabalho sem redução dos salários, transporte estatizado sob controle operário para garantir qualidade do trabalho e transporte e reduzir drasticamente as emissões de gases de efeito estufa do transporte, estatização sob controle operário e popular de todo agronegócio, mineração e indústrias de combustíveis fósseis, defesa da reforma agrária e urbana radical, entre outros aspectos de programa são parte da necessária, mesmo que dura, luta para que a classe operária constitua-se como hegemônica de todas classes e tudo que precisará ser desfeito do que o capitalismo nos lega.

O problema dos problemas de fazer da classe trabalhadora ela mesma sujeita de um programa anticapitalista e que dê conta da problemática ambiental, recoloca o velho problema da relação entre imanência e exterioridade da consciência operária, ainda mais nesta temática onde a esquerda brasileira é, quando muito, desenvolvimentista, e por outro lado há uma crítica ambiental que defende um capitalismo verde. A consciência espontânea que pode surgir a partir deste acumulo prévio não pode dar resposta adequada ao problema. É conhecida a posição de Lênin dos limites de que pode alcançar a consciência operária por fora de processos revolucionários, ele formulava em 1903 que “a consciência social-democrata, os operários nem sequer a podiam ter. Esta só pode ser introduzida de fora.” 31. Para além da propaganda externa à classe que os revolucionários deveriam fazer, o objetivo principal dessa formulação é o embate contra o sindicalismo (fora da consciência sindical), por isso Lênin também formulava a necessidade de que os revolucionários fossem “tribunos de todo o povo” que elevassem a compreensão de cada fato, afetando cada classe social (ou o planeta de conjunto ou em suas partes, acrescentamos) e disso virasse uma consciência política, uma conexão com o programa revolucionário. Dizia Lênin:

“A consciência da classe operária não pode ser uma verdadeira consciência política se os operários não aprenderem, com base em fatos e acontecimentos políticos concretos, e além disso, necessariamente prementes (da atualidade), a observar cada uma das outras classes sociais em todas as manifestações da sua vida intelectual, moral e política; se não aprenderem a aplicar na prática a análise materialista e a apreciação materialista de todos os aspectos da atividade e da vida de todas as classes, camadas e grupos da população.” 32

A atividade do revolucionário enquanto tribuno de todo o povo ganha mais um aspecto a se somar a outros, diante dos problemas ambientais. A necessidade hegemônica de que o proletário revolucionário articule cada opressão sofrida por outros segmentos e classes também é premente diante do problema ambiental que coloca em brasa viva o problema de sobrevivência de diversos segmentos humanos, em primeiro lugar os negros e as mulheres, setores mais precarizados da classe trabalhadora. O problema de articular um programa que traga detrás de si os povos originários, camponeses, pobres urbanos, parcelas não proletárias do movimento de mulheres e de negros, da juventude, recoloca em forma aumentada o problema do tribunos e da consciência socialista (e que necessariamente advogue por outro metabolismo com a natureza). A hegemonia seguindo Lênin é também intelectual, moral e política. É a construção de um novaa visão de mundo e de um novo mundo. Esses debates podem parecer “futuristas”, mas como dizia Hegel “nada de grande se realizou no mundo sem paixão”.

Não iremos derrotar o monstro multifacetado de hoje (econômico, social, racial, de gênero, ambiental….) sem paixão pelo que podemos – e devemos – construir. O marxista italiano Gramsci pensava os momentos de consciência culminando num “terceiro momento [que é] aquele em que se adquire a consciência de os próprios interesses corporativos, em seu desenvolvimento atual e futuro, superam o círculo corporativo (…) é a fase em que as ideologias geradas anteriormente se transformam em “partido” entram em confrontação e lutam até que uma delas, ou pelo menos uma única combinação delas, tenda a prevalecer, a se impor, a se irradiar por toda a área social, determinando, além de unicidade intelectual e moral, pondo todas as questões em torno das quais ferve a luta não no plano corporativo, mas num plano “universal” 33.

A hegemonia também é uma luta pela visão de mundo, pela construção de uma nova sociedade. Isso, hoje mais que nunca, também passa por uma resposta ao âmbito ambiental dos problemas que até aqui o capitalismo nos trouxe. Do mesmo jeito que a revolução proletária será negra, feminina, internacionalista ou não será, é preciso dizer, que ela precisará lidar com o legado de destruição ambiental do capitalismo ou também não será.

Notas de rodapé

3. MALM, Andreas. How to blowup a pipeline. Londres: Verso, 2021. Páginas 7 e 28.
5. MALM, Andreas. Fossil Capital. Londres: Verso, 2016. pp 255-272.
6. SÁ BARRETO, Eduardo. Ecologia Marxista para pessoas sem tempo. São Paulo: Usina Editoral, 2022. pp 143-154.
8. Lanfredi, Leandro. “O Brasil em chamas: a culpa é do agro, do Estado, mas é também dos bancos. https://esquerdadiario.com.br/O-Brasil-em-chamas-a-culpa-e-do-agro-do-Estado-mas-e-tambem-dos-bancos
10. Lanfredi, Leandro e Camargo, Vitória. “Petrobras, aquecimento global e tragédia no RS: desvendando suas conexões e as respostas que os trabalhadores podem dar”. https://www.esquerdadiario.com.br/Petrobras-aquecimento-global-e-tragedia-no-RS-desvendando-suas-conexoes-e-as-respostas-que-os.
11. MERCATANTE, Esteban; DUARTE, Juan. “Introducción a Extractivismo en Argentina, Saqueo, resistencias y estrategias en disputa”. https://www.laizquierdadiario.com/Introduccion-a-Extractivismo-en-Argentina-Saqueos-resistencias-y-estrategias-en-disputa.
13. MALM, Andreas. Fossil Capital. Londres: Verso, 2016. pp 96-193.
16. FOSTER, John Bellamy. A ecologia de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2023, p.208.
17. SAITO, Kohei. O socialismo de Karl Marx. São Paulo: Boitempo, 2021, p.86.
18. LOWY, Michel. “Ecossocialismo e planejamento democrático”. https://jacobin.com.br/2023/03/ecossocialismo-e-planejamento-democratico/.
19. FERNANDES, SABRINA. “Para salvar Gaza e o planeta precisamos mudar o petróleo e o agro”: https://www.intercept.com.br/2024/12/13/para-salvar-gaza-e-o-planeta-precisamos-mudar-o-petroleo-e-agro/.
20. Idem.
21. SÁ BARRETO, Eduardo. Ecologia Marxista para pessoas sem tempo. São Paulo: Usina Editoral, 2022. P.208, mas também sugerimos todo capítulo 16, páginas 225-235.
22. MARQUES, Luiz. O decênio decisivo. São Paulo: Elefante, 2023.
23. BASTANI, AARON. “O que é o comunismo de luxo totalmente automatizado”. https://jacobin.com.br/2023/09/o-que-e-comunismo-de-luxo-totalmente-automatizado/.
25. Trótski, Leon. La teoria de la revolución permanente. Compilación. Buenos Aires: CEIP, 2005, pp 418.
28. MALM, Andreas. How to blow up a pipeline. Nova Iorque: Verso, 2021.
31. LÊNIN, Vladimir. O que fazer. São Paulo: Boitempo, 2020, pp.47.
32. IDEM. pp.86.
33. GRAMSCI, ANTONIO. Cadernos do Cárcere. Vol3. Caderno 13 §17. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020. pp.41-42.
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