Revista Casa Marx

EUA e China no concerto internacional: incógnitas da conjuntura

Esteban Mercatante

Este artigo propõe algumas chaves para entender a situação internacional, com foco nas perspectivas dos EUA e da China.

O momento atual está marcado pela incerteza sobre o que acontecerá na corrida presidencial nos EUA. Até um mês atrás, quando o candidato democrata ainda era Biden, a corrida parecia ganha por Donald Trump. Hoje, o resultado parece mais aberto. Kamala Harris lidera as pesquisas, com uma margem que não é desprezível. Mas de modo algum se pode dizer que os democratas manterão a presidência, pois no sistema eleitoral norte-americano é preciso ver como cada candidato se sai na contagem de eleitores por estado. Lembremos que em 2016, quando Trump venceu Hillary Clinton, esta última obteve 2 milhões de votos a mais.

Em que aspectos esta eleição pode ser decisiva? Comecemos definindo um ponto central em que não haverá grandes mudanças. No curso de um confronto crescente com a China, uma eventual presidência de Trump pode alterar as formas, mas não a estratégia nem os métodos ou ferramentas, embora possa combiná-los de maneira diferente. Cada presidência, desde o final do primeiro mandato de Obama, tem intensificado cada vez mais a postura contra a China, e aqui existe uma política de estado que tem se fortalecido. Até mesmo a chamada “guerra comercial” de Trump, com tarifas em determinados setores, sempre com foco na disputa tecnológica, foi reforçada sob Biden. Na competição pela liderança dos semicondutores, os EUA, sob Biden, buscaram sufocar o desenvolvimento tecnológico da China, bloqueando o acesso a meios de produção de alta complexidade, alguns dos quais são produzidos nos EUA e outros não. Ou seja, buscou-se envolver outros países também nas sanções comerciais. No último ano, Biden aplicou contra a China um protecionismo mais “clássico”, no sentido de que visou sobretudo preservar o mercado interno em áreas nas quais a China está ganhando vantagem: baterias de veículos elétricos (com tarifas que aumentaram de 7,5% para 25%), painéis solares e semicondutores (de 25% para 50%) e veículos elétricos, onde as tarifas chegaram a 102,5%. Isso em um país que tem uma tarifa média sobre produtos industriais de 3,3%.

Portanto, aqui não veremos uma mudança substancial, independentemente de quem ganhe a presidência; o curso de colisão para enfrentar o desafio percebido pela classe dirigente norte-americana em relação à China continuará se aprofundando. A formação de várias alianças de segurança no Pacífico Asiático, com foco em Taiwan, cujo estreito está cada vez mais militarizado, continuará tanto com Trump quanto com Harris.

No Oriente Médio, também não veremos um cenário muito diferente, independentemente de quem ganhar. Trump promete um apoio aberto a Netanyahu, por isso este aposta abertamente na vitória do republicano, em meio a uma crise política interna em Israel que se agrava cada vez mais. Netanyahu tentou aproveitar os ataques do Hamas em 7 de outubro para lançar uma campanha sem fim à vista em Gaza. Esta guerra serviu ao propósito de Netanyahu de se manter no poder e bloquear as dissidências que enfrentava até então. No entanto, o massacre que ele está perpetrando não só contribuiu para o isolamento internacional de Israel. O belicismo gera, cada vez mais, um forte repúdio em setores da população israelense, como se manifestou nas mobilizações recentes. Cada vez mais setores exigem a renúncia de Netanyahu. E também em grande parte do mundo (especialmente nos EUA, Europa e países árabes) houve massivas mobilizações contra o massacre perpetrado pelo exército israelense, enquanto setores da juventude ocuparam universidades em protesto contra o apoio de seus governos a Israel. Harris provavelmente não poderá garantir a Netanyahu um apoio tão incondicional quanto o prometido por Trump. Mas dificilmente se afastará muito da linha de Biden. Este último, antes de outubro, apoiava uma mudança de governo. Durante toda a presidência de Biden, até antes da guerra, as divergências eram evidentes, e a linha do governo israelense nem sempre esteve alinhada com os EUA. Isso foi um dos sinais das dificuldades crescentes que o governo norte-americano enfrenta em manter sua liderança. Também foi resultado de que a administração Biden nunca esteve disposta a tensionar mais do que o prudente uma aliança histórica e considerada fundamental na região. Desde o início da guerra, Biden tentou moderar o governante israelense. Em março, permitiu que passasse no Conselho de Segurança da ONU uma resolução exigindo o cessar-fogo durante o mês do Ramadã, que só foi aprovada porque os EUA, embora se abstendo, não usaram o poder de veto que possuem como membros permanentes do Conselho. Mas foi só até aí. Não houve condenação explícita nem sinal de retirada de apoio a um aliado-chave dos EUA. Com Trump, haverá mais liberdade para os setores nacionalistas mais extremos em Israel, mas com os democratas em Washington esses setores continuarão tensionando a situação, com os riscos sempre presentes de uma maior escalada militar e a entrada em cena de novos atores.

Onde o retorno de Trump promete trazer mudanças mais drásticas – o que veremos se ele chegar à presidência – é na relação com os aliados da OTAN e na guerra na Ucrânia. Durante sua administração anterior, Trump levou a aliança transatlântica a uma situação de paralisia tal que o presidente francês Emmanuel Macron afirmou que a OTAN estava em “morte cerebral”. Com a unidade de propósito proporcionada pela guerra, a aliança foi reativada, não sem atritos entre o eixo europeu e Washington sobre os objetivos nos quais o apoio a Kiev deveria se basear. Trump ameaçou que, sob sua presidência, os EUA se desvinculariam completamente da segurança europeia, o que seria muito mais que a morte cerebral da OTAN, em meio à guerra no leste. Provavelmente, a incursão de tropas ucranianas na Rússia, que alimentou algumas especulações um tanto precipitadas sobre o que Kiev realmente poderia conquistar e sustentar, foi motivada pela busca de forçar definições ou negociações diante de uma possível vitória de Trump, que diminuiria o apoio ao governo de Zelensky. Em poucos dias, passamos da impressão causada pela ocupação ucraniana de Kursk para a cobertura da guerra ser dominada por mais um forte recuo das tropas ucranianas no Donbass diante do cerco da Rússia.

Em questões como o compromisso dos EUA com a governança da agenda ambiental ou o impulso de acordos comerciais, a presidência de Trump também pode significar mais uma vez uma guinada. O que se deve destacar é que, independentemente das intenções da atual equipe governante, nos últimos quatro anos não se reverteu o curso de estagnação ou retração que há muito tempo caracteriza as negociações comerciais. Após Trump, a pandemia e as guerras na Europa e no Oriente Médio, esse cenário não se reverteu. Embora tenhamos discutido por algum tempo se há desglobalização ou não, o fato é que o comércio e os investimentos internacionais continuaram perdendo dinamismo nesses anos. É notável que Biden nem sequer sugeriu, durante esse período, a ideia de retornar a grandes acordos de liberalização do comércio e dos investimentos, como os Tratados Transpacífico e Transatlântico, que foram idealizados durante a presidência de Obama e abandonados por Trump. De fato, como já mencionado, Biden continuou recorrendo às tarifas como uma arma na disputa geopolítica. Até mesmo com as sanções à Rússia, ele foi além e “militarizou” a questão das reservas internacionais dos bancos centrais.

Há vários anos, nas discussões sobre a gestão das empresas multinacionais, fala-se sobre a substituição do offshoring – localização massiva da produção em países de custos mais baixos – pelo “friendshoring” – priorizar a estabilidade das relações entre os países em vez dos custos na hora de decidir onde localizar a produção – ou até mesmo pelo “reshoring” – trazer de volta a produção para os países ricos de onde foi deslocada há décadas – facilitado, em parte, pelas possibilidades atribuídas à manufatura automatizada. Mas as menções não implicam que essa mudança esteja acontecendo tão rapidamente. Ainda há incógnitas a serem resolvidas, mas o fato é que a estratégia de expandir as cadeias globais de valor para derrotar os concorrentes hoje desperta ceticismo entre as gestões das multinacionais. Em um mundo onde a guerra está cada vez mais presente, onde os dois centros de gravidade do sistema econômico mundial aprofundam sua rivalidade, e onde as extremas-direitas soberanistas ainda não chegaram ao poder, mas continuam exercendo influência, sobretudo na Europa, parece improvável que a contínua decadência da globalização se reverta, por mais lenta e labiríntica que seja.

Independentemente do balanço de continuidades e mudanças que ocorreram até agora entre Trump e Biden, e do que possa surgir na próxima administração com Trump ou Harris, o que está claro é que a classe dirigente norte-americana está cada vez mais dividida em questões fundamentais sobre a estratégia que os EUA devem adotar para governar os assuntos globais. Isso não é novo, mas foi exacerbado ao longo das administrações, especialmente desde a crise de 2008. Desde as presidências de Clinton, e mais ainda com George W. Bush e durante Obama, começaram a surgir diferenças cada vez mais acentuadas sobre a forma de enfrentar os desafios que o comando norte-americano enfrentava. A crescente polarização política entre as massas no país, que não tem uma única causa, mas que não podemos dissociar dos efeitos econômicos e sociais profundos e duradouros da crise de 2008 nos EUA e no resto do mundo, aprofundou também a polarização nas elites, incluindo aquelas que têm negócios, interesses e laços globais, mas que muitas vezes não chegam a um acordo sobre o que o país deve fazer para manter sua posição no sistema internacional.

Para onde vai a China

Embora as guerras na Europa e no Oriente Médio tenham sido os elementos mais disruptivos no cenário internacional, todo o panorama mundial está atravessado pela rivalidade entre os EUA e a China, que provavelmente gerará novos fenômenos de instabilidade. Para entender como a visão de Pequim foi se transformando, é interessante observar os efeitos que a crise de 2008 teve.

Desde a visita de Richard Nixon a Pequim em 1972, para participar de uma cúpula histórica com Mao Zedong, abriu-se um novo período nas relações entre os EUA e a China. As tensões do regime do PCC com a União Soviética permitiram a possibilidade de uma aproximação, que para Nixon era fundamental com o objetivo de isolar Moscou. Com a morte de Mao e a chegada de Deng Xiaoping ao poder, as primeiras políticas de reforma pró-mercado possibilitaram uma maior aproximação. Nas décadas seguintes, a abertura econômica da China a investimentos estrangeiros e a criação de zonas econômicas especiais, onde as empresas estrangeiras podiam utilizar a mão de obra barata do país e organizar a produção para exportação sem muitas restrições, estimularia uma crescente integração econômica da China na economia mundial, especialmente com multinacionais e bancos de investimento dos EUA. Com a entrada da China na Organização Mundial do Comércio em 2001, o país tornou-se um polo de atração formidável para as multinacionais que buscavam mão de obra barata para desenvolver competitivamente suas Cadeias Globais de Valor. No início dos anos 2000, expressões como “Chimérica” ou “Chinamérica” tornaram-se comuns para descrever um vínculo profundo e complementar entre as duas economias. Embora a relação nunca tenha estado isenta de tensões e receios, foram notáveis os esforços de ambas as partes para contê-las. A China, fortalecida por sua crescente influência econômica, que a tornou um dos principais parceiros comerciais de quase todos os países do mundo, começou a estabelecer espaços próprios de influência e presença econômica, apelando a acordos bilaterais tanto comerciais quanto de investimentos e diplomacia. No entanto, durante a primeira década do milênio, os esforços para expandir a influência global ainda não desafiavam abertamente os EUA. Isso começou a mudar gradualmente a partir de 2008.

Da perspectiva da China, a crise confirmou as falhas do capitalismo desregulado ocidental e reforçou as fortalezas do “socialismo com características chinesas”, um termo eufemístico para englobar as reformas capitalistas na China, preservando, porém, a propriedade estatal majoritária de empresas estratégicas e limitando a desregulação de setores como o financeiro, o que deixou nas mãos do Estado vários instrumentos para intervir ativamente na programação econômica. Ao mesmo tempo, a crise afetou um dos grandes motores da transformação chinesa: a exportação de manufaturas para os países ricos. Embora as exportações tenham voltado a crescer a partir de 2010 após o colapso inicial no final de 2008, o ritmo de crescimento não atingiu os níveis anteriores à crise. O investimento em infraestrutura e o desenvolvimento imobiliário tornaram-se cada vez mais importantes para o crescimento do PIB.

O investimento bruto aumentou até atingir níveis de 50% do PIB. Mas essa taxa de investimento, que não poderia ser sustentável a longo prazo, tampouco seria suficiente para manter um crescimento econômico de quase 10% ao ano indefinidamente. Por isso, os capitais chineses começaram a crescer aceleradamente, sendo exportados para outros países. O capital proveniente da China passou a competir cada vez mais com os dos EUA, Europa, Japão ou Coreia do Sul. A China também se tornou uma financiadora de projetos de infraestrutura. Na última década, houve uma grande expansão de iniciativas como a “Nova Rota da Seda”, que inicialmente foi recebida com entusiasmo pelos países associados à iniciativa. No entanto, hoje o panorama parece menos promissor, dada a enorme dívida gerada por essas infraestruturas, cujo pagamento é incerto.

A percepção do fracasso do modelo capitalista dominante, a menor dependência das exportações e dos investimentos das multinacionais, e a crescente competição por espaços de acumulação alimentaram uma maior assertividade dos líderes chineses em relação ao Ocidente. Essa mudança foi reforçada pelas ações dos EUA, que apresentavam uma ameaça aos interesses da China, como o anúncio do “pivô para a Ásia”. As posturas nacionalistas ganharam peso crescente no PCC, especialmente com a chegada de Xi Jinping ao poder.

No cenário atual, enquanto as tensões entre o imperialismo norte-americano e a potência ascendente da China permanecem em níveis máximos, além das iniciativas bilaterais que buscaram conter o conflito, o governo de Xi Jinping precisa se concentrar cada vez mais nas dificuldades econômicas e sociais. O crescimento está se afastando das taxas históricas das últimas décadas. A sobreinversão dos últimos 15 anos, especialmente o excesso de investimento no desenvolvimento imobiliário, tornou-se um fardo pesado. A indústria está operando com altos níveis de capacidade ociosa.

Será necessário observar como essas dificuldades econômicas e seus efeitos sociais serão geridos. Os líderes do PCC consideram as altas taxas de crescimento econômico como uma condição básica para a estabilidade social. Todo o período de Xi Jinping foi marcado por uma acomodação das taxas de crescimento econômico, determinada pelo enfraquecimento das exportações, que se tentou compensar com maior investimento. Isso tornou mais difícil continuar prometendo um horizonte de maiores concessões materiais. Diante do descontentamento que isso poderia gerar, o regime de Xi agiu preventivamente, concentrando esforços para recentralizar o poder e reforçar o controle do PCC. Essa foi uma resposta para sustentar a estabilidade do regime frente às múltiplas ameaças no horizonte. As tensões internas e a resposta bonapartista também têm como causa a exacerbação das tensões internacionais, que alimentam o nacionalismo e reforçam os reflexos bonapartistas. Ao mesmo tempo, essa bonapartização contribui para retroalimentar as tensões da China com o imperialismo norte-americano, já que o conflito serve de válvula de escape para o PCC controlar qualquer indício de questionamento e canalizar o descontentamento. Diante de um cenário de dificuldades econômicas cada vez mais difíceis de administrar e taxas de crescimento significativamente menores do que nos últimos anos (e já mais baixas do que há uma década), é provável que essa tendência de intensificar o confronto se exacerbe, à medida que o imperialismo norte-americano também promete aumentar a pressão.

O mundo da “policrise”

Focamos na localização de dois atores fundamentais da cena internacional. Mas é importante destacar que as perguntas que fazemos sobre a conjuntura atual devem ser inseridas em uma crise multidimensional da atual configuração da ordem social capitalista em nível global, que vem sendo reconhecida e que se busca abordar a partir de diferentes enfoques.

Adam Tooze cunhou o conceito de policrise, que se tornou muito popular. Na chave marxista, Nancy Fraser, em Capitalismo Canibal, propõe a necessidade de entender de forma abrangente os efeitos conjuntos que a maneira como essa ordem social devora as condições necessárias para sua reprodução em várias áreas. A ideia de desordem mundial, talvez mais associada à geopolítica, mas que pode ser ligada a fatores estruturais da economia capitalista, também pode ser mencionada, e poderíamos continuar a lista.

Com diferentes perspectivas e ênfases, há um reconhecimento, inclusive a partir de visões mais próximas ao liberalismo, de que há um esgotamento profundo e de longo prazo em vários níveis: econômico, dos regimes políticos, das relações interestatais, e, cada vez mais ameaçador, das condições materiais de reprodução da vida humana e dos metabolismos do Sistema Terra. Nem tudo isso ocorre na mesma temporalidade, mas os diferentes níveis de crise remetem em todos os casos a contradições sistêmicas estruturais, e se retroalimentam, produzindo uma situação cada vez mais disruptiva, evidenciando que não há um retorno à “normalidade” possível, mas sim uma perspectiva de desordem exacerbada, um caos sistêmico cada vez mais aberto, tomando a definição de Arrighi, ou de tendências à ruptura do equilíbrio capitalista nos termos propostos por Trotsky. Somente o triunfo da revolução socialista pode oferecer uma saída progressiva dessa “policrise” capitalista. Para isso, é fundamental lutar pelo internacionalismo da classe trabalhadora, que permita construir uma alternativa à barbárie do capital.

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