Vitória Camargo
Um dos tons do bolsonarismo em São Paulo, Pablo Marçal, autointitulado ex-coach, alçou-se como representante da ideologia do empreendedorismo. Queremos, nesta nota, analisar as bases dessa ideologia, partindo da crise de hegemonia que marca a falência de “grandes empreendimentos burgueses” na atual etapa do capitalismo, utilizando para isso noções de Gramsci. Vamos focalizar em particular nos impactos da Reforma Trabalhista e da uberização no Brasil e nos debates sobre o mundo do trabalho atual, à luz da noção de empreendedorismo.
Como viemos analisando, São Paulo está se mostrando um laboratório de novas experiências da extrema direita e também abre espaço a novas expressões de autoritarismo. Entre seus distintos tons, está Pablo Marçal, que se alçou como representante da ideologia do empreendedorismo. Para uma parcela de jovens do país, Marçal ficou conhecido como o coach que liderou a trágica excursão de 32 pessoas, em 2022, ao Pico dos Marins, sob fortes chuvas e ventos, com seu grupo tendo de ser resgatado pelo Corpo de Bombeiros. A iniciativa havia sido fortemente desautorizada por guias e conhecedores do local, mas o coach Marçal tinha como objetivo mostrar na prática que um empreendedor de verdade “sabe correr riscos para chegar ao topo”. Seu desfecho catastrófico funciona como uma analogia do conteúdo da própria ideologia que propaga – não basta o esforço e a vontade individuais para chegar ao “topo”, ainda mais quando tratamos de um sistema baseado na opressão e exploração. O fato de que essa figura neste momento esteja na disputa pela capital da cidade mais importante da América Latina, embora seja um tanto quanto expressivo da novela tragicômica que é a política brasileira em tempos de crise orgânica, obriga a que busquemos quais bases sustentam esse fenômeno, que deve ser combatido seriamente pelos comunistas, ainda que seu alcance e resultado estejam por se ver.
Louis Jacques Filion, responsável pela cadeira de empreendedorismo na Universidade de Montreal, foi um dos ideólogos burgueses que buscou as origens e a evolução do termo “empreender” 1. Junto a outros autores, atribui a Richard Cantillon, do século XVIII, o atual significado da palavra. Cantillon teria sido autor de um manuscrito sobre “empreendedorismo”, talvez o primeiro sobre o tema, que definia que os empreendedores compravam uma determinada matéria-prima por certo preço, com o objetivo de processá-la e revendê-la com um preço maior. Filion define Cantillon, acima de tudo, como um “individualista”. Sua família, da Normandia, emigrou para a Irlanda ao receber uma porção de terras do rei Willian, o Conquistador. Pelas circunstâncias da época, Cantillon foge a Paris e se torna patrono dos imigrantes irlandeses, vivendo de rendas e viagens para “investir”. Filion conta que Cantillon morreu em um incêndio ocasionado por um trabalhador da cozinha de sua mansão, revoltado porque o patrão se recusava a pagar seu salário.
Essa reconstrução histórica é interessante e até mesmo simbólica, uma vez que demonstra como, por trás de um reconhecido “empreendedor de sucesso”, há sempre o “favorecimento da realeza colonial”, de um lado, mas também há trabalhadores “desfavorecidos”, de outro – que podem muito bem se revoltar. Mas é impossível retirar o debate sobre as bases do empreendedorismo do contexto neoliberal, sob pena de incorrer em anacronismos históricos. Por isso, Filion sustenta que “como uma das consequências da queda dos países comunistas, ficou claro que a sociedade não pode evoluir sem empreendedores”, uma vez que “o maior bem de uma sociedade são seus recursos humanos, os quais devem ser mobilizados para projetos em caráter empreendedor”. Cita Fukuyama, para quem o empreendedorismo seria resultado de um “estado de confiança entre os indivíduos”. Em base a isso, Filion define que “o empreendedor é uma pessoa criativa, marcada pela capacidade de estabelecer e atingir objetivos e que mantém alto nível de consciência do ambiente em que vive, usando-a para detectar oportunidades de negócios”. Expressões como “evolução constante”, “tomar decisões moderadamente arriscadas” e “inovação” também são parte de sua cartilha.
Não é à toa que Filion associa a ideologia do empreendedorismo à “queda dos países comunistas”, em outras palavras, ao fim da URSS e à restauração burguesa no Leste Europeu e na China, com o ascenso do neoliberalismo. Esse “estado de confiança entre os indivíduos” que relata Fukuyama, teórico de que a história teria chegado ao fim com o triunfo do capitalismo naquele momento, demonstra o impulso realizado pela contra-ofensiva imperialista que radicalizou o “individualismo burguês”. Reforçando e dando nova roupagem aos pilares da ideologia capitalista, como aborda Matías Maiello, o neoliberalismo busca apresentar o indivíduo como um sujeito racional que, através do reconhecimento da possibilidade de maximizar suas capacidades e gerir seus comportamentos, pode conseguir maior benefício com menores custos. A sociedade passa a aparecer como “um conjunto de indivíduos concebidos como ‘agentes econômicos’ ativos e livres, guiados pelo egoísmo, que gerenciam suas condutas para obter o maior benefício”. Nesse sentido, retomando Foucault, o resultado é que a subordinação a um poder exterior se esconde em uma crença em exercer uma liberdade singular. Além disso, diante de uma competição de todos contra todos, vence, supostamente, quem melhor souber aproveitar as “oportunidades”.
Em um de seus vídeos, Marçal utiliza a metáfora da maçã, a qual, em toda sua bizarrice neoliberal, tem o único e inegável mérito de ilustrar com perfeição essa ideologia. Para introduzi-la, Marçal evoca sua pretensa trajetória de self-made man e obviamente esconde as fraudes: “minha vida é focada em crescer, em prosperar, não é em me curvar para coisas”, diz o milionário. Isso porque, para ser empreendedor, segundo ele, “você tem que fazer o dinheiro trabalhar para você”. A partir disso, explica a metáfora da maçã: “quem ganha salário ganha uma maçã, você tem que se virar em 30 dias para comer essa maçã”. Mas a chave, para ele, é que o empreendedor deve saber, além de “tirar as sementes para plantar”, “vender um pedaço da maçã para capitalizar”. Utilizando diversos recursos retóricos, compadece-se dizendo que sabe que é ruim “não poder comer a maçã toda”, mas que “é assim que funciona”. No empreendedorismo, “você planta a semente, a semente vinga, dá uma macieira”.
A partir disso, nas palavras dele, a localização do indivíduo no jogo muda: “você passa a ser o cara que é o dono do pé de maçã”. Mas não é fácil, admite. Marçal diz que fomos programados a vida toda para “só comer a maçã”, mas é hora de decidir, escolher, se você será “o dono da árvore” ou “o cara que espera a maçã todo o mês” (quem vive de salário). A doutrina do “jogo”, do “sistema”, segundo ele, é você se contentar com uma maçã por mês, “sofrendo”, “esperando uma maçã a mais”. Qual é a chave da mudança, para o coach? Claro, “mudar a mentalidade” (mindset) para algo como “eu quero dominar”, para saber transformar “uma maçã em macieira”, que possa virar “shampoo de maçã”, “uma linha de cosméticos de maçã”, um empreendimento. Enfim, suficiente ilustração.
Poderíamos dizer: empreendedorismo ou “milagre da multiplicação”? Para o coach, o sucesso ou fracasso, nesta sociedade que cada vez mais paga salários baixos (somente “uma maçã”, “maçãs menores”) e ataca direitos, depende unicamente da mudança de mentalidade do indivíduo que “quer dominar” e passa a encontrar oportunidades para crescer (“capitalizar”). Para isso, é importante ressaltar, serve uma variante da Teologia da Prosperidade, que remete à valorização protestante do sucesso material, afastando-se da ideia de que a pobreza poderia ser um exemplo de vida dedicada a Deus. Não à toa, há autores que localizam Weber, do alto dos pensadores burgueses, como um dos teóricos que se debruçaram sobre o espírito de “empreender” nas Ciências Sociais. Tratou do “espírito do capitalismo” a partir da afinidade com essa ética protestante, como forma de abrir caminho à valorização do lucro, contra a antiga moral cristã do ascetismo. Não é um detalhe, nesse sentido, que Marçal tenha se envolvido em uma polêmica com um pastor de Niterói no início do ano, ao questionar por que Jesus não teria se tornado rico, sugerindo que pela falta de esposa e filhos. O pastor, obviamente, considerou essa afirmação um ultraje ao Evangelho, mas, na realidade, é expressão da valorização empreendedora do lucro como concepção religiosa. Ao mesmo tempo, como se discute, Marçal não tem filiação a Igrejas (“a igreja não tem quatro paredes, a igreja tem duas pernas. Eu e você somos igreja“, diz ele) e diz que o cristianismo seria um lifestyle (estilo de vida) – daí o embate recente com Silas Malafaia. Teologia do Coaching, como dizem?
O que está claro é que se trata de uma ideologia propagada há décadas nas cátedras de empreendedorismo e administração de empresas, e sobretudo na cultura de massas e televisão em programas de “superação”, como a alegoria do recém-falecido Sílvio Santos (o mito do camelô que se torna milionário e passa a distribuir dinheiro). Contudo, com as redes sociais, essas ideias falaciosas invadem as telas e celulares do jovem que quer “prosperidade” em um sistema que dissemina cada vez mais miséria, que em sua crise promove ataques mais duros que dão nova vida ao empreendedorismo neoliberal.
Diálogos com Gramsci: americanismo, empreendedorismo e tempos de hegemonias débeis
Em artigo 2 , os pesquisadores de Sociologia e Ciências Sociais Henrique Amorim, Felipe Moda e Camila Mevis têm como ponto de partida a comparação entre o empreendedorismo e o americanismo, “no sentido de serem modos de vida hegemônicos que, em diferentes momentos históricos e formações sociais, promoveram (promovem) a subordinação da classe trabalhadora aos interesses do capital”. A comparação é particularmente interessante na medida em que parte da crítica a um certo esquecimento da elaboração do marxista sardo Antonio Gramsci no debate sobre o empreendedorismo. Também surge com o objetivo de superar uma compreensão corrente acerca do florescimento dessa ideologia neoliberal, como se o empreendedorismo se fortalecesse somente em termos “éticos”, “de espírito” ou de uma racionalidade que paira acima das classes sociais. Afirmam: “não se trata de algo exterior que paire na forma de espírito ou racionalidade sobre mentes incautas e inabitadas de ideias e concepções de mundo. O empreendedorismo é, contrariamente, o alicerce do neoliberalismo que reproduz, em um jogo de coerção e consenso, os interesses das classes dominantes, naturalizando-os como universais”. Essa definição nos parece um excelente ponto de partida.
Além disso, parece acertada a comparação que fazem do liberalismo sob a organização taylorista-fordista, embutida no americanismo, e do empreendedorismo. Afirmam que a noção de empreender poderia antes ser associada à ascensão por meio de uma empresa, propriedade ou grande fortuna, no primeiro (taylorismo-fordismo). No segundo, um empreendedor não precisa estar associado à propriedade (é forte a noção de “autônomo”), já que basta saber valorizar seu “capital humano” no mercado, atuando como empreendedor. Nas palavras de Amorim, Mevis e Moda: “a propriedade privada, obviamente, não perde sua centralidade. No entanto, a vontade e o esforço individual ganham maior evidência e passam a ser socialmente valorizados na medida em que se tornam marcadores sociais do sucesso”. Nesse sentido, equipara-se o trabalhador singular a uma microempresa, o “empresário de si mesmo”, apagando não somente o papel da classe trabalhadora como produtora da vida social de forma coletiva, mas sobretudo sua subordinação às relações de trabalho capitalistas.
Mas a tese central do artigo é justamente situar o empreendedorismo como um novo tipo de americanismo, uma vez que configuraria uma nova fase na qual o nexo psicofísico se estrutura com base em conceitos como “autotaylorização”, “autogerenciamento”, “autocontrole”, “autometa”. Remarcamos que, no “autogerenciamento” dos “empreendedores” de aplicativos de entrega, por exemplo, há subordinação (há metas definidas pelo aplicativo sobre as quais os entregadores e motoristas não têm controle, são penalizados e bloqueados frequentemente de forma arbitrária, etc). Mas o central é que, para os autores, se Gramsci analisa “um novo tipo de ser humano” e “modo de vida” que acompanha o americanismo, adentrando temas como a sexualidade, a família e a cultura, esses elementos do empreendedorismo seriam parte de um novo tipo de americanismo ao qual também corresponde um “novo tipo de ser humano” e um novo “modo de vida” sob o capitalismo.
Entretanto, nossa tese é de que a comparação entre americanismo e empreendedorismo esbarra em momentos históricos bastante distintos. Tratando do americanismo, Gramsci define, analisando o desenvolvimento histórico particular dos Estados Unidos: “foi relativamente fácil racionalizar a produção e o trabalho, combinando habilmente a força – a destruição do sindicalismo operário de alcance nacional – com a persuasão – altos salários, benefícios sociais diversos, propaganda ideológica e política muito hábil, conseguindo-se, assim, basear toda a vida do país sobre a produção. A hegemonia nasce da fábrica e tem necessidade, para ser exercida, de uma quantidade mínima de intermediários profissionais da política e da ideologia”. Em outras palavras, entre o fascismo e o americanismo, este último foi a saída encontrada pelo capital para responder à sua crise, o que só foi possível com uma guerra mundial, como previsto por Trótski, e a derrota da revolução nos países imperialistas. Estamos falando de uma potência que, mesmo com seu particular desenvolvimento histórico, havia enriquecido tremendamente nas décadas anteriores à Primeira Guerra Mundial, explorando colônias em toda a América. Não escapou a todo o reacionarismo burguês que marca a época imperialista. Pelo contrário, esse caso particular não evitou também ali o surgimento posterior de fenômenos fascistas. Além disso, o americanismo triunfou diante de um embate direto com a URSS e com a parte do globo que expropriou a burguesia no pós-Guerra, como símbolo de uma hegemonia alternativa.
O fato é que não estamos em tempos de hegemonias “fortes”, e sim em crise. Há comparações entre o momento atual e o período anterior à Primeira Guerra Mundial. A comparação entre o americanismo como “hegemonia que nasce da fábrica” e um empreendedorismo que radicaliza os preceitos neoliberais esbarra justamente na própria crise da hegemonia neoliberal na qual o empreendedorismo se ancora. Isso não significa que estamos vivendo um recuo do neoliberalismo enquanto tal. Mas é um mundo em interregno convulsivo, nascido da crise capitalista de 2008, dos levantes em diversos países na última década, que não ultrapassaram a dinâmica de revoltas até aqui, e das crescentes tendências militaristas. Sobretudo, o declínio da hegemonia neoliberal se mostra na própria decadência do imperialismo dos Estados Unidos, que só poderá ser derrotado na arena militar, mas vem desafiado pela ascensão da China ou como se vê, por procuração, na reacionária Guerra da Ucrânia. Se as políticas econômicas do neoliberalismo, como ajustes, privatizações e reformas, estão mantidas e até mesmo aprofundadas em vários países, é evidente a crise da globalização neoliberal. Mesmo a ascensão, com seus limites a se ver, de figuras como Marçal revela a crise dos regimes democrático-burgueses em países como Brasil, entre outros – o que Gramsci denomina como crises orgânicas – que marcam a falência desse “grande empreendimento burguês” neoliberal. Se o americanismo também foi baseado em elementos de “persuasão” como altos salários para o que se chama de uma “artistocracia operária”, a burguesia internacionalmente hoje não consegue oferecer concessões substanciais e se preocupa com a base precária permanente que marca essas sociedades. Não consegue ir além de debates parciais sobre uma “renda básica universal”, que mal se implementa como transferência de renda para setores mergulhados na precarização do trabalho. A ascensão de um novo tipo de americanismo passaria justamente pela resolução da crise de hegemonia atual, o que por ora está bastante distante.
Pelo contrário, Maiello sustenta: “Atualmente, o capitalismo carece de um projeto hegemônico alternativo, como o foram o fascismo ou o americanismo em seu momento. Contudo, o neoliberalismo tampouco está exposto a uma luta de hegemonias como a que marcou o século XX. Portanto, ele sobrevive em seu declínio”. Assim, se o americanismo pressupôs a derrota do movimento operário dos Estados Unidos e internacionalmente, combinando coerção e consenso, além da ascensão dos EUA como principal potência imperialista fruto da guerra, o florescimento de ideologias como o empreendedorismo neste momento se baseia sobretudo na falta de alternativas.
Queremos, com isso, analisar os limites do próprio empreendedorismo no Brasil no último período.
A carteira de trabalho: Reforma Trabalhista e a uberização
Os autores já citados concluem que o empreendedorismo não é apenas um novo ethos que orienta a conduta dos indivíduos, e sim um conjunto de relações sociais, entre elas trabalhistas. Nesses termos, quando se fala de ideologia do empreendedorismo no Brasil, o símbolo desse debate se condensa nos entregadores de aplicativos e nos milhões de trabalhadores que se vêem como “autônomos”, fruto da crescente informalidade no mercado de trabalho. A classe trabalhadora brasileira já parte de um lugar distinto em comparação aos países centrais e mais ainda aos anteriormente chamados Estados de Bem-Estar Social, já que carrega os traços de uma classe trabalhadora de um país dependente com traços semicoloniais, nascida das ruínas da escravidão e contando sempre com um contingente significativo de trabalhadores na informalidade e no desemprego. Mas, com a aprovação da Reforma Trabalhista e com o avanço da uberização, isso se aprofundou.
A Reforma Trabalhista é parte da obra econômica advinda com o golpe institucional de 2016 para aprovar ataques mais duros do que o PT já aplicava. O golpista Temer foi uma peça-chave para a sua aprovação, contando com o auxílio das centrais sindicais, que desmontaram paralisações nacionais em 2017, em prol de negociar seu lugar no regime em transformação. A Reforma alterou mais de 200 pontos na legislação trabalhista brasileira, abrindo caminho para um salto na precarização das condições de trabalho no país. Bolsonaro, ajudado, por sua vez, pela prisão arbitrária de Lula pelo Judiciário autoritário e com apoio das Forças Armadas, elegeu-se prometendo ainda mais, uma “carteira verde e amarela” e opondo “direitos a empregos”, além de aprovar a Reforma da Previdência, em 2019. Em seu governo, a precarização do trabalho se aprofundou enormemente.
A Reforma Trabalhista permitiu que um trabalhador seja considerado autônomo, mesmo que prestando serviços de forma fixa a algum tipo de empregador, já que rejeita a constatação do vínculo formal do emprego. Isso entra na conta do “trabalho por conta própria”, algo que cresceu em 2,5 milhões depois que a reforma entrou em vigor 3 , além dos “microempreendedores individuais”. Além disso, é lógico que há uma relação direta entre os impactos da Reforma Trabalhista e o avanço da uberização do trabalho, que nega qualquer vínculo empregatício na forma, com o aumento exponencial de motoristas e bikers em condição de uberizados como expressão de um mercado de trabalho mais precário. Para Ludmila Abílio 4 , o centro do processo de Uberização do trabalho é que “tal processo atualmente consolida o trabalhador como um autogerente-subordinado que já não é contratado, mas se engaja no trabalho via a adesão às plataformas. Nessa condição de quem adere e não mais é contratado, o trabalhador uberizado encontra-se inteiramente desprovido de garantias, direitos ou segurança associados ao trabalho; arca com riscos e custos de sua atividade; está disponível ao trabalho e é recrutado e remunerado sob novas lógicas”. O centro está no apagamento da relação de trabalho, que reforça a propaganda de “empresário de si mesmo”. Obviamente, tudo isso é uma base material para a ideologia do empreendedorismo.
Nesse cenário, há 4 anos, à luz do Breque dos Apps, o Ibope divulgava pesquisa cujo resultado apontava que 70% dos entregadores por aplicativo não queriam carteira assinada, preferindo a “flexibilidade” dos aplicativos com roupagem de “liberdade”, isto é, supostamente “fazer seu próprio horário” – o que, diante do contexto, precisamos desconfiar e analisar o quão “providencial” foi essa pesquisa naquele momento, comparando com outros dados. De outro lado, são inúmeras as pesquisas que demonstram que isso significa jornadas de mais de 12 horas, sem tempo para idas ao banheiro ou tomar água, além de recorrentes acidentes de trânsito que implicam em meses sem pagamento. Ainda assim, a carteira assinada aparecia, nessas pesquisas, como um “impeditivo” para empreender, “amarrando” trabalhadores a jornadas fixas e a uma patronal específica. Frente a isso, economistas petistas como Márcio Pochmann teorizavam sobre a necessidade de uma “CLT para a era virtual”, que nada mais era do que avançar no reconhecimento da uberização como forma de trabalho, partindo do desmantelamento dos direitos trabalhistas na crise.
Entretanto, há menos de um mês, a IFGV-Ibre divulgou nova pesquisa de que sete, a cada dez trabalhadores brasileiros considerados autônomos, desejam um emprego com carteira assinada. A notícia relacionava isso aos sete anos da Reforma Trabalhista, que se ancorou na falácia de “geração de emprego”, o que nunca ocorreu. Pelos critérios da pesquisa, o Brasil tem cerca de 25 milhões de autônomos. É um novo dado que desmonta a narrativa dos “autônomos que em maioria rechaçam a carteira de trabalho”. Ao mesmo tempo, Pablo Marçal, entusiasta do empreendedorismo, tem transformado a “carteira de trabalho” em um símbolo demagógico da valorização do esforço, para a extrema direita. Isto é, aquilo que se considerava “rechaçado” por uma categoria como a de entregadores, o que sempre foi intencionalmente enfatizado pela mídia e tomado como uma representação do conjunto dos precários, neste momento se encontra com respaldo na maioria dos trabalhadores autônomos e tem em uma figura como o coach seu falso “defensor” – sempre ligando, evidentemente, a baixos salários e aos moldes “verde e amarelo”, e buscando embutir a ideia de que os comunistas são contra o trabalho (sic). Ademais, é um dado interessante da realidade o alcance que vem existindo nas redes sociais e em locais de trabalho do rechaço à jornada 6X1.
Consideramos que esses elementos são um forte indício de que, em um momento histórico marcado por “hegemonias débeis”, ainda não é possível falar de um novo “modo de vida” que consolide o empreendedorismo como o americanismo do momento. Pelo contrário, se a aprovação da Reforma Trabalhista, que opôs direitos a empregos, contou com o papel das direções sindicais para desarticular o enfrentamento aos ataques em troca do imposto sindical, os trabalhadores de aplicativos foram o setor que, na pandemia, organizou uma das principais lutas, com o Breque dos Apps, revelando as contradições do Brasil “profundo”, fruto da precarização do trabalho. Isso enquanto se discutia que esse setor rechaçava a carteira de trabalho. A constituição de um “novo ser humano” aos moldes do empreendedorismo demonstra encontrar importantes obstáculos.
A velha fórmula de culpar os trabalhadores
Atribuir uma nova racionalidade que paire acima das classes sociais e que construa a imagem de um trabalhador empreendedor que termina buscando a precarização do trabalho, tomado pela ideologia da falsa liberdade pela extrema direita, tem uma função aos que vieram administrando as atuais condições precárias de trabalho e as bases do empreendedorismo. Isso pode ser visto já nos primeiros anos de governos petistas. Em 2004, o primeiro governo Lula criou o “Projeto Jovem Empreendedor”, fomentando a cartilha neoliberal de “protagonismo juvenil”, tão mobilizada no Novo Ensino Médio atual – isto é, responsabilizar a juventude pelo seu futuro. No contexto em que surgiram programas como esse, já cerca de 59% dos jovens entre 16 e 24 anos não tinham carteira assinada 5 . Além disso, é em 2008, no segundo governo Lula, que se cria a forma jurídica do MEI (Microempreendedor Individual), outra forma de precarização do trabalho da juventude – além do avanço, amplamente tratado, da terceirização do trabalho em seus governos.
Sob a Frente Ampla atual, o PT e Lula propuseram em seu PL da Uberização a categoria de “trabalhador autônomo por plataformas”, instituindo uma nova forma jurídica para a uberização que, em essência, nega a relação trabalhista por trás dos trabalhos por aplicativos. Como tratamos em ato com intelectuais e ativistas, o PL pretende institucionalizar a jornada de 12 horas, limitada a um único aplicativo, o que significa que ainda legaliza que um motorista uberizado termine suas 12 horas de corridas efetivamente realizadas e passe a trabalhar para outro aplicativo. Isso serviria como “referência legal” para todas as ocupações que já estão se uberizando, sendo neste caso o PL um veículo legal que institui essa forma de precarização do trabalho. Esse é o governo que iniciou seu mandato desarticulando uma paralisação de entregadores por aplicativo. Além disso, a Frente Ampla de Lula-Alckmin vem sendo responsável pela manutenção das reformas, como a Reforma Trabalhista e do Novo Ensino Médio, que têm vinculação clara com o empreendedorismo nas escolas.
Assim, os governos petistas e a Frente Ampla de Lula-Alckmin sempre fortaleceram as bases para o empreendedorismo, ao serem uma face da administração do capitalismo brasileiro que manteve intocadas os pilares do neoliberalismo – enquanto, com sua intelectualidade, faz parecer que não resta outro caminho se não se adequar à nova “racionalidade” que estaria embutida nos trabalhadores neste momento. Isso ganhou novos contornos na última década, diante do golpe institucional e da extrema direita. Nesse embate de ideologias com Pablo Marçal e todas as variantes que pregam a “máxima liberdade” que o capitalismo pode oferecer para empreender e agarrar oportunidades neste sistema, a falta de alternativas se mostra na necessidade de construir e fortalecer uma esquerda revolucionária que, com eixos programáticos claros, coloque no centro o enfrentamento à precarização do trabalho e da educação. A revogação das reformas e do Arcabouço Fiscal é um ponto de partida fundamental, assim como a defesa de plenos direitos para uberizados e terceirizados, que devem ser efetivados sem necessidade de concurso nos serviços públicos. Mais do que isso, é necessário batalhar pela redução da jornada de trabalho sem redução salarial, unindo empregados e desempregados, formais e informais (“autônomos”), num único combate por empregos com direitos.
No centro deste combate, os comunistas batalhamos por fazer emergir o sujeito operário, não como classe que é sujeito de direitos, cidadã ou mera base consumidora. Batalhamos pela classe produtora que carrega consigo o potencial de produzir novas relações de trabalho e cooperação, associando liberdade à satisfação das necessidades e nesse sentido atacando um modo de vida que se baseia na sustentação de uma classe parasitária, que é a única que verdadeiramente encontra oportunidades neste sistema.
Notas de Rodapé