Revista Casa Marx

Michel Foucault: a crítica à modernidade e a arqueologia do saber (parte 1)

Iuri Tonelo

É parte dos desafios do marxismo contemporâneo revigorar a dialética no embate com as principais tendências filosóficas de nossa época. E nessa empreitada, chama a atenção que muitas das correntes filosóficas ou sociológicas de crítica ao marxismo na atualidade têm, de uma maneira ou de outra, a ancoragem na obra de Michel Foucault.

Certamente não estamos nos referindo a um autor ajustado aos padrões do sistema. O filósofo francês é renomado por sua crítica da ciência e do poder, uma crítica das instituições de dominação, na sua microfísica, disciplina dos corpos, biopolítica, legitimação a partir de discursos oficiais.

Para estabelecer uma contraposição marxista a sua obra é necessário, portanto, uma abordagem global de seu método e suas bases filosóficas, com seus desdobramentos políticos. Ainda que um empreendimento dessa natureza poderia se dar com uma exposição mais adensada, nossa proposta, nessa série, é abordar introdutoriamente quatro momentos da obra de Foucault para indicar caminhos para a crítica dialética. O primeiro, seu método arqueológico, e como sua oposição a historicidade esconde um claro fundo antimarxista. O segundo, sua genealogia do poder, e para isso recorreremos também a base filosófica nietzscheana. O terceiro, abordaremos a análise de Foucault sobre o neoliberalismo, em particular tomando a obra “O nascimento da biopolítica”. E o quarto, buscaremos compreender como essas mudanças políticas do filósofo francês no final dos anos 1970 e 1980 levaram a sua ênfase na ética do cuidado de si, com sua releitura da filosofia socrática.

Para essa primeira proposta, que levaremos a cabo em seguida, vale notar que a medida em que Foucault elege aspectos corretos em suas críticas ao estado de coisas, em um contexto de grandes convulsões sociais, conduz a discussão para uma proposta filosófica que, escondida nas críticas, tem sido influente em seus aspectos de rota oposta à dialética e ao materialismo. O ponto é que não é simples definir essa base filosófica, e muito tem se debatido analisando o filósofo francês ora como estruturalista, ora como pós-estruturalista ou pós-moderno.

Em vista disso, mais que enquadrar a extensa obra de Foucault em uma definição rápida, nosso objetivo será abordar aspectos de sua teoria buscando desvelar o que está na raiz filosófica de seu pensamento, e dar evidência ao que influencia as novas tendências sociológicas e filosóficas anti-marxistas e, por vezes, o próprio pensamento que se pretende marxista, mas que se constrói sob bases foucaultianas.

O ponto de partida: a história da loucura e da clínica

Em 1981, já em sua fase de maturidade intelectual, olhando retrospectivamente Foucault comenta em uma conhecida entrevista realizada em 1981, por André Berten, professor da Universidade Católica de Louvain, dois aspectos importantes para a compreensão da primeira fase de seu pensamento. O filósofo argumenta quais foram as três principais tendências que ele acreditava existir no período e que era preciso ir além: primeiro, a fenomenologia de Husserl (e Heidegger), em que se punha ênfase na descrição da experiência interior, experiência da consciência como método “dominante” nas academias do período; além dela, para Foucault, o marxismo era expressivo na realidade intelectual da França, com nomes como Jean Paul Sartre ou Louis Althusser; e por fim, a História das ciências, com autores como Georges Canguilhem e Gaston Bachelard, com o primeiro com sua obra sobre normalização e patologia sendo muito influente nos trabalhos iniciais de Foucault. Daqui que sua obra parte de se influenciar, mas também enfrentar, essas três tendências descritas.

Foucault elege a temática da loucura em sua abordagem historiográfica, dos autores que o influenciaram da História das ciências. Uma história da loucura aparecia como um duplo desafio: por um lado, dizia que não era convencional nem para fenomenologia, por seus interesses muito acadêmicos e universitários, nem para o marxismo, que aparecia como uma “roupa desajustada” para analisar uma temática como essa 1.

Aqui começa a se revelar um mecanismo do pensamento foucaultiano que vai ter relação com toda sua obra. Na História da loucura ou O nascimento da clínica, o autor parte de uma crítica radical da forma como as instituições e o pensamento “científico” será utilizado para dividir “o normal” e o “louco” ou “patológico” com objetivos de poder, dominação e disciplina dos corpos. É um argumento sensível e forte, afinal, sob o argumento “científico” do “normal” e “anormal”, por exemplo, perseguiu-se a população LGBT+ durante décadas e a homossexualidade foi considerada oficialmente uma doença até 1990, quando a OMS retirou a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID).

E eis aqui um dos segredos da filosofia foucaultiana. Com o seu ponto de partida, da loucura e da clínica, no geral expressa particular capacidade analítica em reconhecer e evidenciar uma questão real (o mesmo se dará nos anos 1970 com o tema das prisões). O problema está na forma como o aborda, no geral desvinculada do capitalismo, enquanto sistema de acumulação exploração, como centro da problematização, e isso tem raízes e implicações filosóficas. Ou indo além, pode-se dizer que existe um esforço de retirar a centralidade do capitalismo e desconfigurá-lo como conceito, como modo de produção, em sua base econômica. O que se revela é até onde é possível abstrair em torno da crítica proposta, se voltada a uma dada ciência e a determinadas instituições, com raízes históricas e sujeitos (classes sociais) determinados, ou à ciência e ao poder, tomados em sentido amplo e indeterminado.

O desenvolvimento das fases de Foucault vai expressar tensões e contornos para essa questão, mas sem dúvida um aspecto revelador para compreender sua reflexão sobre a ciência e a história estará em sua crítica à modernidade, que aparece em sua forma mais clara em sua obra de 1966, antecedendo o maio francês.

As palavras e as coisas: a crítica à modernidade

Uma das mais ressonantes reflexões de Foucault na atualidade é sua crítica à modernidade. Correntes teóricas diversas compartilham, à sua maneira, de uma ideia que aparece em sua forma chamativa no prefácio do livro As Palavras e as Coisas, de 1966.

A escrita envolvente do autor, que parte de refletir um conto de Jorge Luís Borges e abre o livro com a análise do quadro de Velásquez talvez tenha sido um ponto de clivagem na fama do autor, tanto pelo conteúdo, quanto pela forma da sua escrita. E no prefácio Foucault desenvolve uma definição que consideramos muito importante no que será sua crítica à modernidade, quando argumenta que “o homem não passa de uma invenção recente” e “desaparecerá”. Para compreender essa passagem ofereceremos o argumento em seu conjunto, partindo de que Foucault busca compreender a coerência que existia na idade clássica e qual foi a mudança advinda com a modernidade. Diz o autor:

A análise pôde demonstrar a coerência que existiu, durante toda a idade clássica, entre a teoria da representação e as da linguagem, das ordens naturais, da riqueza e do valor. É esta configuração que, a partir do século XIX, muda inteiramente; a teoria da representação desaparece como fundamento geral de todas as ordens possíveis; a linguagem, por sua vez, como quadro espontâneo e quadriculado primeiro das coisas, como suplemento indispensável entre a representação e os seres, desvanece-se; uma historicidade profunda penetra no coração das coisas, isola-as e as define na sua coerência própria, impõe-lhes formas de ordem que são implicadas pela continuidade do tempo; a análise das trocas e da moeda cede lugar ao estudo da produção, a do organismo toma dianteira sobre a pesquisa dos caracteres taxinômicos; e, sobretudo, a linguagem perde seu lugar privilegiado e torna-se, por sua vez, uma figura histórica coerente com a espessura de seu passado 2.

É extremamente representativa essa passagem para refletir sua crítica à modernidade. Primeiro porque coloca ênfase na coerência entre a teoria da representação e as da linguagem com demais dimensões (naturais e econômicas) no período “pré-moderno”. E o que a modernidade faz, entendendo-a como o período que se abre com o século XIX, é desaparecer com a teoria da representação e desvanececer a linguagem, “esse suplemento indispensável entre a representação e os seres”. O processo traumático estaria em que “uma historicidade profunda penetra no coração das coisas” e tira a linguagem de seu lugar privilegiado. Evidentemente a clareza e modulação da crítica de Foucault vai se expandir, mas não por um acaso se pode pensar o autor, mesmo não sendo um filósofo da linguagem, com diálogo privilegiado com a “virada linguística” ao se pensar sua crítica à modernidade, e inclusive uma base para a crítica à “metanarrativa moderna”, que se desenvolverá no pensamento pós-moderno (Lyotard).

Mas o autor vai além, quando parte dessa crítica para questionar a própria “invenção do homem”, que vai ser percebida por algumas correntes como a invenção de uma dada epistemologia ocidental. Vejamos como argumenta Foucault:

Na medida, porém, em que as coisas giram sobre si mesmas, reclamando para seu devir não mais que o princípio de sua inteligibilidade e abandonando o espaço da representação, o homem, por seu turno, entra, pela primeira vez, no campo do saber ocidental. Estranhamente, o homem — cujo conhecimento passa, a olhos ingênuos, como a mais velha busca desde Sócrates — não é, sem dúvida, nada mais que uma certa brecha na ordem das coisas, uma configuração, em todo o caso, desenhada pela disposição nova que se assumiu recentemente no saber. Daí nasceram todas as quimeras dos novos humanismos, todas as facilidades de uma “antropologia”, entendida como reflexão geral, meio positiva, meio filosófica, sobre o homem. Contudo, é um reconforto e um profundo apaziguamento pensar que o homem não passa de uma invenção recente, uma figura que não tem dois séculos, uma simples dobra de nosso saber, e que desaparecerá desde que este houver encontrado uma nova forma.

Foucault vai argumentar 3 anos depois que As palavras e as coisas não apresentou uma resolução metodológica, mas está claro que o projeto teórico, que tinha como um dos aspectos reconsiderar o lugar da teoria da representação e da linguagem na relação entre a representação e os seres, e que isso passava por combater a “profunda historicidade” do século XIX e a invenção do homem, seu saber, sua ciência, seus “regimes de verdade”, suas formas de poder, entendendo não como formas contraditórias a partir da divisão de classes, das desigualdades sociais, de grupos em conflito, do sistema capitalista, mas como uma expressão de uma “dobra de nosso saber”, ou seja, como expressão de uma dada invenção, de uma dada epistemologia geral, em suma, da modernidade.

Num texto do final de sua vida, “O que é Aufklärung?”, em que trata de um texto de Kant sobre o tema, chama a atenção como Foucault modela melhor sua reflexão sobre a modernidade, mas no essencial percebe-se uma continuidade e coerência de sua crítica. Foucault argumenta que no texto de Kant de mesmo título, datado de 1784 (cinco anos antes da Revolução Francesa), o filósofo alemão introduz uma questão propriamente moderna, que é pensar sua obra dentro de seu contexto ou, em suas palavras, “a primeira vez que um filósofo liga assim, de maneira estreita e do interior, a significação de sua obra com relação ao conhecimento, uma reflexão sobre a história e uma análise particular do momento singular em que ele escreve e em função do qual ele escreve” 3. E o fundamental dessa ligação e pensar do ponto de vista histórico é que com isso busca-se “definir a finalidade interna do tempo e o ponto para o qual se encaminha a história da humanidade” 4. Na medida em que ao Kant pensa sua obra em perspectiva histórica, estaria fadado a pensar um tempo histórico e, portanto, localizar-se teleologicamente dentro desse tempo. Assim, a modernidade não seria um período, mas uma “atitude de modernidade”, de modo a definir o peso da questão em termos de um ethos, uma ética.

Foucault volta-se a Baudelaire, pelo peso de sua reflexão, tão retomada, sobre a modernidade, e sem deixar de notar que o poeta enfatiza o fugidio, de recuperar o eterno que vai além do instante presente, deriva sua conclusão de que “A modernidade não é um fato de sensibilidade frente a um presente fugidio; é uma vontade de heroificar o presente” 5.

A conclusão vai em dois sentidos e permite compreendermos os aspectos que desenvolveremos no próximo tópico sobre a reflexão metodológica: por um lado, Foucault se separa da pós-modernidade em sentido estrito ao dizer que “É preciso escapar tanto da chantagem intelectual e política de “ser a favor ou contra a Aufklarung”, que é uma maneira de dizer que a “descontrução” ou mera “rejeição completa” da modernidade descarrilaria qualquer projeto. Em outros momentos, Foucault abre a porta do irracionalismo, mas não decide transpô-la. A questão seria questionar o universal, histórico, necessário, enfatizando o singular, contingente, arbitrário, sabendo que se apontar para a “arbitrariedade geral” sua própria obra e críticas estariam em questão.

Mas o projeto de desviar-se do profundo historicismo do século XIX e, portanto, do universal, das ciências e mesmo da atitude de modernidade, apresenta-se em forma límpida em suas consequências políticas, que falam bastante do momento em que vivenciávamos a ascensão de Ronald Reagan derrotando a greve dos controladores de voo nos Estados Unidos em 1981 e, precisamente no ano que Foucault esta escrevendo esse texto, 1984, Margareth Thatcher fazia uma ofensiva brutal contra os mineiros na Inglaterra, símbolo do neoliberalismo. Diz Foucault ao defender a chamada “ontologia histórica de nós mesmos”:

O que quer dizer que essa ontologia histórica de nós mesmos deve desviar-se de todos esses projetos que pretendem ser globais e radicais. De fato, sabe-se pela experiência que a pretensão de escapar ao sistema da atualidade para oferecer programas de conjunto de uma outra sociedade, de um outro modo de pensar, de uma outra cultura, de uma outra visão do mundo apenas conseguiu reconduzir às mais perigosas tradições 6

A solução ética e crítica de Foucault se volta explicitamente contra grandes projetos de transformação, de modo que não por um acaso o foucaultinismo subsequente vai ter como traço marcante a “crítica epistemológica” do eurocentrismo em detrimento da crítica das bases materiais do sistema capitalista.

Partindo desse projeto e sua crítica à modernidade, torna-se pertinente compreender, ainda nesse estudo da primeira fase de sua obra, como vai se assentar sua síntese metodológica, que vai marcar a primeira fase de Foucault. Intitulada como arqueologia do saber, o autor formulará sua base, de modo que o conceito de formação discursiva vai assumir um importante lugar na teoria.

O método arqueológico

Em 1969 Foucault se volta a sua obra precedente a partir dos métodos testados e desfeitos, e em particular de uma “ausência da balizagem metodológica” quando se refere a As palavras e as coisas 7. A discussão metodológica proposta em A arqueologia do saber se combinará com a reflexão genealógica sobre o poder nos anos 1970, mas servirá de baliza para a proposta de Foucault até o final de sua obra.

A proposta de Foucault do ponto de vista da história, novamente, parte de um ponto de crítica pertinente: se opor a uma maneira teleológica de abordar a história, incluindo todos os enquadramentos “racionais”. De fato, empreendimentos positivistas do século XIX por vezes observaram de forma linear a “evolução social”. Embora em geral o filósofo francês simplifique a complexa e rica abordagem da história em Hegel, pode-se argumentar, nesse ponto, também que existe uma visão teleológica da história no filósofo alemão (guiada por uma providência, que se expressava na Ideia). Coincidindo com essa visão, uma parte considerável da filosofia e da sociologia no século XX tem questionado essa noção de evolução linear histórica.

O problema é que, como é habitual em Foucault, essa crítica correta se converte em seu contrário, em uma negação de qualquer perspectiva histórica, de “projetos globais” de transformação e uma ênfase exacerbada contra qualquer análise de continuidade. Nesse sentido, seu método arqueológico tensiona em pensar de forma oposta, uma maneira de abordar a história de modo a “formular uma teoria geral da descontinuidade, das séries, dos limites, das unidades, das ordens específicas, das autonomias e das dependências diferenciadas” 8.

Esse será sem dúvida um ponto decisivo em seu método, que aparece como radical ao propor a “ruptura”, mas de forma que essa descontinuidade leva a uma forma de ler a história sem que um evento seja analisado em seus nexos, conexões, afastado de qualquer ponto de vista da totalidade. Daqui que a história deve se voltar para a arqueologia, uma vez que lidaria com objetos sem contexto, como um método:

Havia um tempo em que a arqueologia, como disciplina dos monumentos mudos, dos rastros inertes, dos objetos sem contexto e das coisas deixadas pelo passado, se voltava para a história e só tomava sentido pelo restabelecimento de um discurso histórico; poderíamos dizer, jogando um pouco com as palavras, que a história, em nossos dias, se volta para a arqueologia – para a descrição intrínseca do monumento 9

Retirar o evento da perspectiva histórica e da totalidade é por excelência o método foucaultino. O sentido proposto é o de “descarrilar” o evento de contextos e de uma trilha de causalidades ou teleologia. Tomar o evento “por si mesmo”. A proposta é se afastar da “historicidade que penetrou nas coisas no século XIX” e voltar-se à linguagem e teoria da representação, de modo que o centro do método de Foucault volta-se ao discurso. Como em outros momentos, a “beleza” literária da proposta esbarra no descarrilar filosófico que aponta, senão para a pós-modernidade, em direção a ela.

Na sua exposição de 1970, A ordem do discurso, o filósofo talvez sintetizará de forma mais expressiva as implicações da proposta, mas em Arqueologia do saber o autor desenvolve a obra a dar contornos de uma espécie de aparato conceitual. Nesse sentido, desenvolve noções que serão pilares de sua reflexão arqueológica, a saber, formação discursiva, positividade e arquivo. E estabelece um domínio da reflexão, o dos enunciados, o campo enunciativo e as práticas discursivas. Sem querer descrever cada um dos elementos, consideramos que sua exposição sobre a definição de formação discursiva trata de uma noção central e que nos facilita a sintetizar o argumento. Diz Foucault:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e consequências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais como “ciência”, ou “ideologia”, ou “teoria”, ou “domínio de objetividade” 10

Para contrapor-se às noções de ciência, teoria, ideologia, objetividade, com um conteúdo filosófico que faz jus ao projeto de As palavras e as coisas, Foucault propõe a noção de formação discursiva. Daqui que o próprio evento histórico, o “objeto”, deve ser refletido como discurso, dentro de um campo de práticas discursivas e enunciados, e a historiografia se torna arqueologia dos discursos.

As consequências implacáveis dessa visão podem ser narradas de forma poética por um filósofo quando diz:

Como se caracteriza toda décadence literária? Pelo fato de a vida não mais habitar o todo. A palavra se torna soberana e pula fora da frase, a frase transborda e obscurece o sentido da página, a página ganha vida em detrimento do todo — o todo já não é um todo. (…) A vida, a vivacidade mesma, a vibração e exuberância da vida comprimida nas mais pequenas formações, o resto pobre de vida. (…) O todo já não vive absolutamente: é justaposto, calculado, postiço, um artefato. 11

A passagem foi escrita por Nietzsche em seu O caso Wagner, e é irônico que o filósofo, tão influente na forma de Foucault pensar a questão, percebe no campo das artes os sintomas de decadência no aspecto da fragmentação.

Sob a forma arqueológica de Foucault, o conjunto das coisas, em seu movimento, transitoriedade, historicidade, perde sua cadência, sua beleza, sua exuberância. Invade na análise histórica, por um lado, um reavivar linguístico e da teoria da representação (o que não deixa de pagar tributos ao idealismo) e, por outro, a perda de sentido, do sujeito, das possibilidades de transformação radical. Invade, na filosofia sobre a história, um profundo ceticismo.

E no anseio de se desfazer do ponto de vista da totalidade, estilhaça-se a historicidade colocando em seu lugar novas críticas, chegando a inserir nos chamados “sistemas de exclusão” do discurso a própria “separação entre o verdadeiro e o falso” e a subsequente “vontade de verdade” 12. Dessa forma, o que são constituídas com as formações discursivas são “regimes de verdade”, em que a própria separação entre verdadeiro e falso é derivada da constituição desses regimes, uma base para sua crítica ao conjunto da ciência em geral e das ciências humanas em particular – o que vai abrir a porta para a crítica pós-moderna da década de 1980.

Mas para compreender esse movimento devemos ter em mente que a crítica da modernidade e o ponto de vista arqueológico de Foucault, não podem ser plenamente abordado se não percebemos da crítica da noção de “normal e o patológico” para a crítica da noção de “verdadeiro e o falso” e os “regimes de verdade”, em que não se coloca em evidência apenas os limites modernos da ciência, mas como ela se articula ao poder, uma categoria central na obra de Foucault dos anos 1970, e para a qual nos debruçaremos no próximo texto.

Notas de Rodapé

 

1. Ver entrevista de 1981.
2. Michel Foucault. As palavras e as coisas. São Paulo, Martins Fontes, 2016, p. XX
3. Michel Foucault, O que são as luzes? In: Ditos e Escritos II: Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Editora Forense Universitária, 2005. p. 341
4. Idem.
5. Idem, p. 342
6. Idem, p. 348
7. Michel Foucault. A arqueologia do saber; tradução de Luiz Felipe Baeta Neves, -7ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. No texto, pode-se ler: Este trabalho não é a retomada e a descrição exata do que se pode ler em Histoire de la folie, Naissance de la clinique ou Les mots et les choses. Em muitos pontos ele é diferente, permitindo também diversas correções e criticas internas. De maneira geral, Histoire de la folie dedicava uma parte bastante considerável, e aliás bem enigmática, ao que se designava como uma “experiência”, mostrando assim o quanto permanecíamos próximos de admitir um sujeito anônimo e geral da história. Em Naissance de la clinique, o recurso à análise estrutural, tentado várias vezes, ameaçava subtrair a especificidade do problema colocado e o nível característico da arqueologia. Enfim, em Les mots et les choses, a ausência da balizagem metodológica permitiu que se acreditasse análises em termos de totalidade cultural” p. 19
8. Foucault, Idem. p. 13
9. Idem p. 8
10. Idem, p. 43
11. O caso Wagner : um problema para músicos ; nietzsche contra Wagner : dossiê de um psicólogo / Friedrich Wilhelm nietzsche ; tradução, notas e posfácio Paulo césar de souza. — 1a ed. — são Paulo : companhia de bolso, 2016. §7
12. Michel Foucault. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2008. p. 19
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