Matías Maiello
A revista Jacobin América Latina dedicou seu último número ao que define como o fim de um ciclo da esquerda em nível global. Isso se soma a um avanço avassalador da direita, diante do qual parece que a única possibilidade é uma resistência na última trincheira. Sob o título "Quando a melhor defesa é um bom ataque", Ariel Petruccelli polemizou com essas teses em um número recente do Ideas de Izquierda argentino. Outro debate ocorreu entre Martín Mosquera, Claudia Cinatti e Alejandro Kaufman, durante a apresentação da revista na Fundação Rosa Luxemburgo. Nas próximas linhas, revisitaremos esses debates. Em particular, vamos nos concentrar na situação da esquerda e da direita, nas conclusões dos processos recentes de luta de classes e nas consequências estratégicas que delas se depreendem.
A tese da Jacobin é que “o fechamento de um ciclo histórico para a esquerda global deixa um panorama de desilusão”. De fato, há um fim de ciclo, mas de uma esquerda específica. Aquela que ficou presa ao ecossistema dos regimes burgueses em crise após abandonar o programa anticapitalista e se alinhar às variantes neorreformistas ou populistas de esquerda. Limitando-se à pura resistência sob o pressuposto de “barrar a direita”, acabou contribuindo para o contrário. A seguir, algumas reflexões em torno desse problema.
O ciclo de uma esquerda que deixou de ser radical
Ao ler o editorial da Jacobin, fica a sensação de que os infortúnios políticos ocorrem como catástrofes naturais. Apenas a coalizão grega Syriza mereceu uma crítica explícita por capitular diante da Troika, e o partido espanhol Podemos por culminar em um cogoverno com o PSOE. Sobre a Venezuela, o editorial se limita a apontar que “a crise econômica se aprofundou, exacerbando uma situação humanitária crítica”. O PT do Brasil é mencionado apenas como vítima do golpe institucional. O governo de Alberto Fernández e Cristina Kirchner é descrito como “interlúdio peronista frustrado”. Nos casos do Reino Unido e dos EUA, apenas se afirma que “Jeremy Corbyn e Bernie Sanders concluíram suas aventuras em 2020”.
Agora, o ponto central do editorial é que: “Após os fracassos do reformismo, a esquerda radical continua tão impotente quanto antes. Não apenas não se beneficia quando as desilusões reformistas são expostas, mas é arrastada pelo espiral depressivo de sua crise”. Claro que essa equação depende do que entendemos por “esquerda radical”. Se entendermos o termo, como se utiliza na França, como um intermediário entre uma “esquerda institucional” social-liberal e uma “extrema esquerda” anticapitalista, a afirmação citada não faz muito sentido, já que a “esquerda radical” encarnaria efetivamente o reformismo. No entanto, ganha força como problema se, seguindo Marx, associarmos o termo “radical” a uma alternativa anticapitalista. Então surge a pergunta sobre o caminho que essa esquerda radical efetivamente seguiu nos últimos anos.
Quatro décadas de ofensiva neoliberal e a identificação do estalinismo com o “socialismo real” não passaram em vão do ponto de vista da subjetividade da classe trabalhadora. Este é o contexto de qualquer resposta séria sobre a evolução da esquerda radical. No entanto, após uma década e meia de fenômenos políticos e de luta de classes, as coordenadas dessa crise de subjetividade já não são as mesmas. Retomaremos esse ponto mais adiante, mas há uma primeira questão que é necessário abordar. A saber: quais políticas e estratégias se expressaram na esquerda radical e quais foram seus resultados? Mais especificamente, elas contribuíram para reverter anos de retrocesso subjetivo ou foram parte do problema? Sem sermos exaustivos, a seguir alguns exemplos relevantes nesse segundo sentido.
Estados Unidos. A revista Jacobin original surgiu nos EUA há mais de uma década, em paralelo à emergência da organização Democratic Socialist of America (DSA). O DSA cresceu significativamente ligado ao fenômeno juvenil conhecido como o “socialismo millennial”. Essa juventude deu vida ao movimento Black Lives Matter, à geração que protagonizou muitos dos recentes processos de luta e organização do movimento operário norte-americano, bem como ao recente movimento contra o genocídio em Gaza. Das páginas da Jacobin e do DSA, popularizou-se a estratégia “inside-outside” (dentro-fora) do Partido Democrata. Eric Blanc, na época, a sintetizava da seguinte maneira: “Bernie Sanders, Alexandria Ocasio-Cortez e outros radicais recém-eleitos aumentaram as expectativas dos trabalhadores e mudaram a política nacional. Os socialistas devem participar desse crescimento eleitoral para promover movimentos de massas e organizar centenas de milhares de pessoas em organizações independentes da classe trabalhadora”. Para se adaptarem ao rígido bipartidarismo norte-americano, propuseram a esses jovens, que viam com bons olhos a ideia de um “socialismo”, arrecadar fundos e militar as eleições para candidatos do Partido Democrata, um dos principais partidos imperialistas do planeta. Após as derrotas sucessivas de Bernie Sanders nas primárias de 2016 e 2020, acabaram apoiando mais ou menos explicitamente – sempre apresentado como o “mal menor” – setores do establishment como Hillary Clinton e, depois, Joe Biden, rebatizado de “Genocide Joe”. Hoje, a política da maioria do DSA é praticamente indistinguível do Partido Democrata, em oposição àquela juventude que levanta a voz contra o genocídio do povo palestino. Isso é consequência de uma estratégia focada em demandas econômicas, que deixou de lado a luta contra o belicismo bipartidário das classes dominantes norte-americanas, o mesmo que ameaça colocar o mundo à beira de uma terceira guerra mundial e que coloca a necessidade de uma esquerda norte-americana verdadeiramente radical que se proponha a liderar a luta internacional contra o genocídio em Gaza.
Grécia. O caso da “Plataforma de Esquerda” dentro do Syriza é outro exemplo da derrocada desse tipo de “esquerda radical”. Pouco depois de chegar ao governo, em janeiro de 2015, como parte do processo de passivização das enormes mobilizações de 2010-2012 que incluíram mais de 30 greves gerais, Stathis Kouvelakis, membro do Comitê Central do Syriza e referência da Plataforma de Esquerda, afirmava que o que estávamos vendo era a implementação da “estratégia de ‘guerra de posições’” de Gramsci. Já em julho daquele mesmo ano, quando o Syriza capitulou diante da Troika, ignorando um referendo em que 61% dos eleitores decidiram romper, Kouvelakis descrevia “um desfecho completamente desastroso para um experimento político que deu esperança a milhões de pessoas lutando na Europa e em outras partes do mundo”. Kouvelakis expressava uma ilusão difundida de que seria possível um caminho intermediário entre uma estratégia de ruptura com o capitalismo e a gestão “de esquerda” do existente. Alinhada à liderança de Alexis Tsipras, a Plataforma de Esquerda, que reunia os setores mais radicais e chegou a constituir 30% da coalizão, foi reduzida à sua mínima expressão em meados de 2015, sendo expulsa do Syriza sem deixar marcas.
Brasil. O PT governou durante anos em benefício do capital, assimilando seus métodos. Frente à crise e à enorme irrupção de massas das jornadas de junho de 2013, respondeu com novos ataques à classe trabalhadora, nomeando o neoliberal Joaquim Levy como ministro da Fazenda para implementar ajustes. Assim, contribuiu para a desmoralização de sua própria base social e abriu caminho para a direita, que levantou suas próprias bandeiras “hegemônicas” com a operação Lava Jato e mobilizou as classes médias para o golpe institucional que levaria à ascensão de Bolsonaro. Boa parte da intelectualidade petista, cuja porta-voz foi Marilena Chaui 1, em vez de responsabilizar o PT, culpou as jornadas de 2013 pela ascensão da direita. Por sua vez, a resposta da esquerda radical a esse processo foi catastrófica. O PSOL aprofundou sua assimilação ao lulismo, que hoje é praticamente total. No caso do setor do PSTU, após anos presos ao sectarismo burocrático e no sindicalismo que os levou a apoiar o impeachment, uma fração liderada por Valerio Arcary – colunista da Jacobin – rompeu com aquela organização e, em uma guinada de 180 graus, aderiu completamente ao PT. Assim, esses setores da “esquerda radical” brasileira, com o argumento de “barrar o fascismo”, terminaram apoiando a chapa Lula-Alckmin, o que, em termos argentinos, seria uma espécie de chapa CFK-Larreta. Hoje, uma figura do PSOL como Guilherme Boulos se apresenta como candidato competitivo nas eleições municipais de São Paulo, mas seu programa de gestão capitalista e suas alianças já são indistinguíveis das do lulismo.
França. O país é um dos grandes laboratórios da luta de classes do último período, com processos como a revolta dos Coletes Amarelos em 2018 ou a enorme luta contra a reforma da previdencia, que incluiu não apenas grandes mobilizações e greves gerais, mas também greves intensas em setores estratégicos do movimento operário. Foi necessária a ação conjunta de Macron e da burocracia sindical para impedir que se transformasse em uma greve geral. Uma boa parte da extrema-esquerda, desde 2009, propôs diluir seu programa revolucionário na ilusão de avançar politicamente 2. Assim, a histórica Liga Comunista Revolucionária se autodissolveu no Novo Partido Anticapitalista (NPA). No entanto, longe de poder se projetar politicamente, sob essa mesma lógica, o NPA foi se dissolvendo, seguindo o desprendimento do Partido Socialista liderado por J. L. Mélenchon. Com o argumento de “enfrentar o fascismo”, acabou se diluindo na Nova Frente Popular (NFP), junto com o Partido Comunista e o Partido Socialista francês, na ilusão de transformar Mélenchon em primeiro-ministro e administrar o Estado imperialista francês “pela esquerda”. Finalmente, depois que milhões votaram na NFP, Macron vetou essa possibilidade com os mecanismos bonapartistas da Quinta República, e a Nova Frente Popular ficou imersa na impotência. A outra parte da extrema-esquerda, Lutte Ouvrière, também não teve mais sucesso. Passou todos esses anos convulsivos isolada no sindicalismo, sem um papel relevante no processo político e na luta de classes.
Se tomarmos essa série de exemplos — que poderiam ser ampliados, e muito —, podemos responder à pergunta de por que, após os fracassos do reformismo, essa esquerda radical ficou reduzida à impotência. Ela se liquidou como esquerda anticapitalista, aderindo a variantes neorreformistas ou populistas de esquerda, declinando qualquer possibilidade de se transformar em alternativa política. Dessa forma, transformou o fracasso do “reformismo” em seu próprio fracasso. Se há uma conclusão que pode ser tirada de tudo isso, é que a ideia de deixar o programa anticapitalista em segundo plano para confluir com forças políticas que pretendem administrar o Estado capitalista é uma catástrofe para a esquerda. No entanto, a conclusão de Jacobin para “superar a crise da esquerda” parece ser a repetição desse tipo de experiências, esperando um resultado diferente.
A esquerda que não olhamos
Nesse contexto, a edição de Jacobin América Latina, inteiramente dedicada à análise da esquerda, praticamente não menciona a Frente de Esquerda e dos Trabalhadores – Unidade (FITU). A FITU seria um contraexemplo à dissolução da esquerda radical por trás do neorreformismo ou populismo de esquerda. Há mais de uma década, enquanto todo o resto da esquerda em um sentido amplo (PC, Pátria Grande, PCR, etc.) se alinhava com o kirchnerismo, cuja política buscava lidar com a relação de forças herdada de 2001 (direitos humanos, concessões salariais, negociações coletivas, estatização das AFJP, etc.) e estabelecer que, à sua esquerda, “não havia nada”, a Frente de Esquerda foi constituída em 2011, na contramão, como um polo de independência de classe. Desde então, não permaneceu estática e passou por mudanças importantes em seu interior. O MST foi integrado, um setor do PO rompeu (atual Política Obrera) e dentro dela o PTS foi ganhando peso determinante.
Hoje, a Frente de Esquerda já tem mais de uma década como referência política da esquerda no país. Isso apesar de que, após os dias de dezembro de 2017 — que marcaram um dos pontos mais altos da luta de classes do último período —, houve um amplo processo de desmobilização liderado pelo peronismo/kirchnerismo, primeiro em torno de uma saída eleitoral com o famoso “há 2019” e depois sob o governo de Alberto e Cristina, que incluiu uma trégua de 4 anos da burocracia sindical e social peronista. Tudo isso enquanto as condições de vida do povo trabalhador se degradavam enormemente, o que contribuiu para abrir caminho ao fenômeno Milei. Nesse contexto, adquire toda sua significação o fato de que uma esquerda com um programa transicional, que contém medidas anticapitalistas e culmina com a proposta de “governo das e dos trabalhadores imposto pela mobilização dos explorados e oprimidos”, tenha uma presença tão contínua e em um nível que nunca teve.
Em condições semelhantes de crise de subjetividade da classe trabalhadora e em uma situação de muito menor luta de classes, comparada com exemplos como a Grécia ou a França, a FITU conseguiu uma influência sustentada de entre 800.000 e 1,2 milhão de votos, dependendo da eleição, com figuras nacionais de destaque como Myriam Bregman (PTS) e Nicolás del Caño (PTS), presença parlamentar (nacional, provincial e municipal), presença na maioria das províncias do país, enraizamento na vanguarda operária e estudantil, no movimento de mulheres, no movimento ambiental, na juventude e em setores da intelectualidade de esquerda. Uma força minoritária, mas inescapável na cena política, o que lhe dá uma posição privilegiada que, no caso do PTS, buscamos aproveitar para enfrentar o desafio vital de construir um grande partido socialista dos trabalhadores que possa ser uma alternativa ao peronismo diante de processos de radicalização.
Na Argentina, a esquerda não apenas se manteve apesar do avanço da direita, mas é a única força que, hoje, apresenta uma oposição decidida, tanto no parlamento quanto nas ruas, a Milei, o que é reconhecido por todos os lados. Por isso, tem uma dinâmica muito diferente da esquerda radical em outras partes do mundo. Se tivesse seguido os conselhos de Jacobin, provavelmente hoje participaria da desmoralização do kirchnerismo. Mas não se trata de uma excepcionalidade argentina, mas de um determinado tipo de estratégia. Um exemplo sintomático é Révolution Permanente (RP) na França. Em uma situação crítica para a extrema-esquerda, no contexto da dissolução do NPA no melechonismo, RP resistiu a essa guinada. Hoje, apesar de ser uma força muito jovem, é a corrente militante mais dinâmica da esquerda francesa. O segredo, que não é tal, foi intervir decisivamente com uma política independente e de auto-organização nos múltiplos cenários da luta de classes que a França viveu nos últimos anos. Assim, conseguiu se ligar aos setores mais avançados desses processos do movimento operário, estudantil, antirracista, imigrante e da intelectualidade.
Nas páginas de Jacobin, Martín Mosquera aponta que: “O movimentismo e o populismo […] ignoram principalmente a necessidade de construir uma organização política solidamente enraizada na classe trabalhadora, capaz de desenvolver um projeto estratégico em torno do qual formar e mobilizar seus membros”. No entanto, ao percorrer a revista, o que se destaca é a ausência de uma reflexão estratégica nesse sentido, começando por uma avaliação da esquerda realmente existente. No caso do Jacobin dos EUA, os debates sobre esses temas eram muito mais concretos, ligados ao desenvolvimento do DSA, com os problemas que mencionávamos antes. Mas no Jacobin América Latina essa reflexão se mantém em um nível abstrato e indeterminado, onde a “esquerda radical” não fica clara e desaparecem as experiências que, como a FITU, não se encaixam em seus esquemas.
As “novas direitas”, o impressionismo tático e a ingenuidade estratégica
Em sua análise sobre Bolsonaro na revista, Valerio Arcary aponta que a emergência do que ele chama de “neofascismo” não responde ao perigo de revolução — como aconteceu com o nazifascismo —, mas sim à radicalização de uma fração da burguesia que lidera uma ofensiva contra os trabalhadores. De fato, as novas direitas atuais não enfrentam um movimento revolucionário. No entanto, a conclusão neste ponto deveria ser o oposto do que Henrique Canary sugere em Jacobin, propondo o abandono virtual de um programa de ruptura com o capitalismo e uma retirada para um programa mínimo. O fato de que, mesmo sem grandes lutas revolucionárias, tenham surgido direitas radicalizadas é um prenúncio do que podemos esperar se elas ocorrerem. Mostra que as saídas que a burguesia tem preparadas diante do desenvolvimento da luta de classes são contrarrevolucionárias. É um alerta de que, se o movimento de massas não articular uma resposta revolucionária à altura, será derrotado na luta ou, o que é pior, sem apresentar batalha.
Agora, em que momento estamos? Para responder, é necessário distinguir pelo menos três dimensões, muitas vezes confundidas, do que poderia ser interpretado como “fascista”. Uma coisa é um discurso fascista, outra é um movimento ou grupo fascista, e outra é um governo fascista. A preeminência do discursivo é característica de boa parte da teoria política contemporânea. Sob essa perspectiva, é fácil se perder na fluidez das cadeias de significantes. Muito do uso e abuso do termo “fascismo” para catalogar todo tipo de variantes de direita está relacionado a visões focadas no discurso. Claro que cada um pode chamar de “fascismo” o que quiser; o problema é o que queremos explicar.
Uma das novidades que surgiram após a crise de 2008 é o fenômeno da direitização da direita, com suas respectivas combinações de religião, nacionalismo, xenofobia, misoginia e racismo, dependendo do caso. No entanto, as chamadas “novas direitas”, na grande maioria dos casos, estão à direita dos liberais e conservadores tradicionais, sem romper definitivamente com o marco do consenso neoliberal. Ao contrário do fascismo dos anos 30 do século passado, as direitas atuais ainda não constituem respostas de conjunto à necessidade de uma reconfiguração em larga escala que o capitalismo de hoje exigiria. Não apresentam, em termos de Gramsci, formas de “revolução passiva”; tratam-se de fenômenos infinitamente menos orgânicos. Nos países centrais, tentam expressar a projeção internacional de seu imperialismo — como no caso de Trump —, enquanto, na periferia, expressam a dependência mais servil ao capital imperialista — como no caso de Bolsonaro ou Milei.
Além disso, essa direitização da direita também não é evolutiva nem homogênea. Tanto Giorgia Meloni, na Itália, quanto Marine Le Pen, na França, atualizaram seus discursos aos padrões de seus respectivos regimes (e, sobretudo, ao alinhamento com a OTAN) para fortalecer suas aspirações de governo; com sucesso no primeiro caso, sem sucesso no segundo. Um caso diferente é o de Alternative für Deutschland (AfD), que se impôs nas recentes eleições regionais da Saxônia e da Turíngia, com um de seus líderes sendo Björn Höcke, uma figura com um discurso abertamente fascista. Um elemento que distingue essa formação é seu discurso antiamericano e anti-OTAN. A multiplicidade de fenômenos de direita a nível global se debate entre a atualização e a radicalização discursiva.
Junto com esse fenômeno, existe outro que é característico desde a crise de 2008 em diante: a proliferação de elementos autoritários e a concentração de poder em determinadas instituições – em geral no Poder Executivo – dentro dos regimes democrático-burgueses existentes; o que na tradição do marxismo chamaríamos de traços “bonapartistas”. Confundir a conjunção entre ambos os fenômenos com a existência de governos fascistas propriamente ditos implicaria subestimar o que realmente significaria um governo desse tipo. Retomando alguns termos de Trotsky, poderíamos definir um governo fascista como um tipo de bonapartismo que se constitui após a destruição e desmoralização do movimento de massas. Isso faz com que se caracterize por uma estabilidade muito maior do que qualquer outro bonapartismo.
Hoje em dia, nenhum dos fenômenos de direita que estamos descrevendo tem essa força nem de longe, chamem-se como quiserem. Embora tenham se desenvolvido todos os tipos de variantes de extrema direita, aquelas que conseguiram triunfar eleitoralmente e dirigir Estados não conseguiram se consolidar no governo. Bolsonaro e Trump foram exemplos nesse sentido. No caso deste último, se for eleito pela segunda vez, voltará a lidar com as contradições que atravessaram seu primeiro mandato, agora exacerbadas. Nesse contexto deve-se inscrever a consolidação de uma base própria de direita, que é essencialmente eleitoral, como ficou demonstrado no caráter marginal, tanto da invasão do Capitólio nos EUA quanto da Praça dos Três Poderes no Brasil, depois das quais ambos os presidentes tiveram que entregar o poder.
Adotar uma abordagem precisa a esses fenômenos é fundamental, pois o reverso do impressionismo tático é a ingenuidade estratégica. No pano de fundo da ampliação quase ilimitada do termo “fascismo” está a ideia de que fenômenos como os dos anos 30 do século passado seriam irrepetíveis. Um autor como Maurizio Lazzarato sintetizava essa ideia, muitas vezes pressuposta, mas não explicitada, quando dizia que “O novo fascismo nem precisa ser ’violento’, paramilitar, como o fascismo histórico, que tentava destruir militarmente as organizações de trabalhadores e camponeses, porque os movimentos políticos contemporâneos, ao contrário do ’comunismo’ do entre guerras, estão muito longe de ameaçar a existência do capital e de sua sociedade” 3. De fato, hoje não estamos diante de fenômenos como aqueles do “fascismo histórico” pelos elementos que Lazzarato aponta. Mas isso não significa que tenham sido substituídos por “novos fascismos” – que nem precisam ser violentos ou paramilitares –; significa que as classes dominantes ainda não tiveram que recorrer à alternativa da guerra civil.
O problema é que o “fascismo histórico” não é uma questão do passado, mas do futuro; e não estamos falando de um futuro indeterminado, mas de um que está inscrito nas tendências mais profundas da etapa atual, junto com a guerra e a revolução. Milícias de extrema direita como os Proud Boys, Patriot Prayer ou Boogaloo Boys nos EUA até agora foram marginais, mas amanhã podem não ser. Em termos de estratégia revolucionária, a preparação para o ressurgimento desses fenômenos mais “clássicos” é fundamental. Isso não implica que surjam com características idênticas, mas que sua essência – a guerra civil contra a classe trabalhadora e o movimento de massas – não pode ser perdida de vista como questão definidora para evitar qualquer pacifismo fora de hora.
Se, como sustenta Canary, a forma de enfrentar o “fascismo” fosse deixar de lado uma estratégia de ruptura com o capitalismo, essa estratégia nunca teria lugar na história, já que, quanto mais radical é o desenvolvimento da luta da classe trabalhadora, mais se pressupõe a emergência de forças igualmente radicalizadas, mas em sentido contrário. Revolução e contrarrevolução, historicamente, andam de mãos dadas. A questão é quem tem forças mais bem preparadas e decididas para o momento do (inevitável) confronto. A história argentina recente dos anos 70 nos oferece um exemplo clássico sobre esse ponto.
O ecossistema político dos regimes burgueses em crise
Para entender o pano de fundo desses fenômenos na atualidade, devemos situá-los em um quadro mais amplo do que nos oferece Jacobin. Esse quadro é determinado pelos processos de “crises orgânicas” (Gramsci) ou elementos delas que atravessam grande parte dos regimes políticos capitalistas atuais. A prolongação sem resolução dessas crises se traduz na conformação de um ecossistema de reprodução de regimes em decadência com forças de direita e ultradireita, por um lado, e neorreformismos e populismos de esquerda por outro, onde estes últimos cumprem o papel de válvula de escape frente aos processos de mobilização para sustentar politicamente um capitalismo incapaz de consolidar novas hegemonias. A história recente da América Latina, com a alternância entre “ondas rosas” e ciclos de direita, e a Argentina em particular, com a sucessão CFK-Macri-Alberto-Milei, são exemplos muito ilustrativos 4.
A estratégia de se ajustar a esse ecossistema foi fatal para a esquerda radical, como vimos nos exemplos dos EUA, Grécia, França e Brasil. Da mesma forma, não seguir essa estratégia foi essencial para a consolidação da esquerda radical na Argentina. Nesse último caso, Jacobin insistiu no sentido contrário, inclusive chamando o FIT-U a desistir de sua campanha eleitoral em favor de Massa nas eleições presidenciais passadas. Conforme criticava Martín Mosquera naquela ocasião:
A Frente de Esquerda está comprometida em levar a cabo sua própria campanha eleitoral, que está em competição com qualquer movimento social que priorize a luta contra a extrema direita, já que esta última poderia desviar apoios eleitorais da esquerda para a candidatura oficialista.
É estranho que essa insistência para que a esquerda se subordine a variantes burguesas de conciliação de classes conviva com a pergunta de por que a esquerda radical não emerge como alternativa aos neorreformismos ou populismos de esquerda em crise. Apenas quebrando essa lógica é possível encontrar um caminho para a esquerda radical e enfrentar verdadeiramente o avanço da direita.
Na Argentina atual, essa discussão é muito concreta. O governo de Milei carece de partido, de força parlamentar, de governadores e de apoio popular. É impossível entender o equilíbrio que o sustenta sem considerar o papel do peronismo (sindical, social e político), um tecido que vai desde Scioli como secretário do governo e o colaboracionismo dos governadores peronistas, passando por Cristina Kirchner propondo uma agenda que inclua a reforma trabalhista e Máximo dizendo que “não devemos nos irritar com o veto”, até Kicillof como possível candidato confrontando Milei ou Grabois fazendo o mesmo com o apoio do Papa. Enquanto isso, a principal contribuição para o equilíbrio de Milei vem da CGT, das CTA e dos movimentos sociais peronistas.
Como apontou Trotsky a propósito do fenômeno do bonapartismo, se dois garfos forem cravados simetricamente em uma rolha, esta pode se manter equilibrada até mesmo sobre a cabeça de um alfinete. Diante desse cenário, há duas opções: ou esperar até a próxima polêmica com a Jacobin sobre por que o FIT-U deve votar em 2027 no próximo Massa, Scioli, Alberto ou, na falta deles, Kiciloff ou Grabois; ou buscar formas de quebrar o ecossistema político que permite a reprodução do regime burguês nos marcos do que Fernando Rosso chamou de “a hegemonia impossível”. Prolongando a alternância entre variantes de direita e antidireita, como aposta Jacobin, degrada-se a situação da classe trabalhadora e do movimento de massas, e as condições se tornam mais adversas para resolver o “empate hegemônico” a favor das maiorias.
Segundo Canary, ao lutar por um programa anticapitalista, “os revolucionários apenas eliminam a possibilidade de unidade e perdem a oportunidade de entrar em contato com uma ampla camada da classe trabalhadora dirigida pelo reformismo”. O que o autor imagina ser contraditório na verdade não é. Podemos ilustrar isso com alguns exemplos do último mês de setembro, que mostram a evolução da situação do movimento em locais destacados.
Na Mondelez Pacheco (ex-Kraft), uma das fábricas mais importantes da região metropolitana de Buenos Aires e símbolo da história recente do movimento operário – em 2009 protagonizou um duro conflito contra o governo K, a embaixada dos EUA e o sindicato –, a lista Bordô, com militantes do PTS e ativistas, obteve 43% dos votos contra a lista conjunta da burocracia de Daer e do PCR kirchnerista. Em outro local emblemático como o Astillero Río Santiago, que nos anos 90 foi a única empresa estatal cujos trabalhadores conseguiram impedir a privatização de Menem, a lista Negra obteve 49% dos votos (1.062 contra 1.105 da burocracia peronista), com uma campanha pela recuperação da assembleia geral como método de decisão, contra a subordinação da direção ao governo de Kicillof e pela unidade com outros setores em luta, entre outros pontos. A docência de Neuquén, protagonista de grandes combates como o de 2007, quando Carlos Fuentealba foi assassinado pela repressão policial, é outro exemplo; a recente luta, que se prolongou por oito semanas, na qual as direções seccionais opositoras, onde a esquerda tem influência, desempenharam um papel importante como motor, mostrou um caminho para defender os direitos trabalhistas e a educação pública junto à comunidade escolar. Se hoje a luta está em um impasse, é resultado da política da burocracia peronista em acordo com o governo provincial.
Mas podemos ir além dos exemplos argentinos, onde a esquerda é mais forte. Um dos conflitos de fábrica mais importantes deste ano na França, com ampla repercussão nacional, foi protagonizado pelos trabalhadores da Neuhauser, empresa do grupo InVivo, uma das maiores multinacionais do agronegócio na Europa. Lá, uma das patronais radicalizadas de que fala Arcary atacou o combativo sindicato CGT Neuhauser, demitindo um de seus dirigentes, Christian Porta, militante da Révolution Permanente, por “assédio moral” à direção. Em outras palavras, por sua atividade como dirigente sindical. Meses de luta, greves na fábrica, mobilizações, com ameaça de fechamento da fábrica no meio, envolveram não só os trabalhadores, mas também articularam uma frente única com toda a comunidade ativista local (a confederação camponesa, ecologistas, estudantes, organizações políticas da cidade, outros sindicatos etc.). Tudo isso com a autoridade de serem reconhecidos como um dos sindicatos mais combativos, que havia resistido aos cortes em grandes conflitos em 2017 e 2018, e até conseguido que jovens da região fossem contratados. Também por serem uma das poucas seções sindicais que organizam delegações nas marchas pelos direitos das mulheres e do Orgulho, comprometidas com os direitos dos imigrantes (catalogados pelos advogados da empresa como “islamo-esquerdistas”). Finalmente, a ofensiva patronal para quebrar o sindicato foi derrotada, e a luta foi vitoriosa.
O que esses exemplos mostram é que tanto a unidade quanto o contato com amplas camadas da classe trabalhadora não dependem de a esquerda deixar de ser o que é, mas, ao contrário, de permanecer fiel a si mesma. Em particular, na Argentina estamos diante de um momento histórico crucial, com uma nova tentativa de reestruturar o país em função dos interesses das grandes corporações e do capital financeiro. O regime político está altamente fragmentado, o peronismo está em uma crise profunda, e as primeiras batalhas da luta de classes do período estão começando a ser delineadas. Ao contrário do conselho de Canary, de que “os revolucionários devem dar um passo atrás”, o que está colocado é partir da autoridade que a esquerda vem conquistando por se manter independente e estar na linha de frente de todas as lutas contra Milei para impulsionar a construção de um grande partido revolucionário dos trabalhadores, com um programa anticapitalista e socialista, que lute pela frente única, impulsione a auto-organização e conecte-se com os setores de vanguarda do movimento operário, estudantil, de mulheres, etc. Apenas um partido assim pode aspirar a confluir com as massas que romperem com o peronismo diante de uma, muito provável, intensificação da luta de classes.
Duas estratégias
Ao buscar uma explicação sobre o fato de que “após os fracassos do reformismo, a esquerda radical continua tão impotente quanto antes”, Martín Mosquera encontra um problema nos “clássicos do socialismo”. Segundo ele:
Os clássicos do socialismo tendiam a pensar que a classe trabalhadora era instintivamente revolucionária e que apenas fatores conjunturais poderiam levá-la a um letargo reformista temporário. Mas a realidade se mostrou mais complexa. Apenas em circunstâncias de crises excepcionais e com uma grande acumulação de forças é possível superar a hegemonia reformista na classe trabalhadora. Além disso, isso não é alcançado apenas denunciando o reformismo como uma ilusão e antecipando capitulações.
Se isso fosse assim, por que então a Internacional Comunista, conduzida por Lenin e Trotsky, dedicou tanto tempo a pensar nos problemas da revolução no Ocidente? Por que elaborou táticas como a da frente única? Por que buscou desenvolver programas “transicionais”? Por que discutiu tanto táticas como a de “governo operário”, assim como as múltiplas vias para desenvolver partidos revolucionários que tivessem uma influência majoritária nos países europeus? Difícil imaginar.
O autor ignora quase todas essas elaborações, apesar de que, em seu artigo “Luzes e sombras da ‘via democrática ao socialismo’” na última edição da Jacobin, ele se propõe a discutir a “estratégia socialista no Ocidente”. Ele se limita a algumas referências sobre a tática de “governo operário” da Internacional Comunista na Alemanha de 1923, mas apenas para sugerir que ela compartilharia uma abordagem estratégica semelhante à da “via democrática ao socialismo”. Sobre este ponto, remetemos a outros trabalhos em que debatemos contra esse tipo de interpretação. Aqui, queremos nos referir a duas questões que ganham especial relevância hoje e que estão diretamente relacionadas ao problema que Mosquera aponta sobre a acumulação de forças para superar a hegemonia reformista na classe trabalhadora. Referimo-nos à tática da frente única e à articulação “transicional” do programa.
A primeira coisa a esclarecer é que, por exemplo, no prólogo à História da Revolução Russa, Trotsky toma como ponto de partida o caráter profundamente conservador da psique humana para explicar as mudanças que ocorrem na consciência em momentos revolucionários. As instituições nunca mudam à medida que a sociedade necessita; mesmo quando estão em uma grande crise, podem passar longos períodos em que as forças de oposição apenas servem como válvula de escape para aliviar o descontentamento das massas e, assim, garantir a continuidade do regime social dominante. Isso pode ser visto hoje em todo tipo de “progressismo” ou “populismo de esquerda”. Esse caráter cronicamente atrasado das ideias e das relações humanas em relação às condições em que estão imersas é o que faz com que, quando essas condições desmoronam e as grandes maiorias irrompem no cenário político, as mudanças na subjetividade superem, em poucos dias, os anos de evolução pacífica 5.
A abordagem tanto do programa transicional quanto da tática da frente única visa, justamente, operar sobre essa discordância temporal entre crises econômicas, políticas e a subjetividade dos diferentes setores do movimento de massas. Assim, no primeiro caso, busca-se estabelecer uma ponte entre as demandas imediatas que surgem de um determinado estágio “atual” da mobilização e aquelas consignas que se colocam como “necessárias” para enfrentar uma determinada situação de crise a partir de uma perspectiva anticapitalista e socialista. Da mesma forma, a frente única busca estabelecer uma ponte na organização para a articulação das forças capazes de concretizar aquelas demandas.
Claro que, ao contrário de Jacobin, nem a Internacional Comunista nem Trotsky, ao elaborar o Programa de Transição, estavam dispostos a renunciar ao programa revolucionário. O caráter conservador da psique humana, de que fala Trotsky, ou o apoio às velhas organizações reformistas, sobre o qual Jacobin insiste tanto, fazem com que, na maioria das vezes, haja uma certa distância, mais ou menos ampla, entre duas dimensões que um programa revolucionário precisa abordar. Por um lado, uma dimensão que poderíamos chamar de mais “objetiva”, que busca articular uma resposta à altura de uma determinada situação de crise ou do ataque das classes dominantes. Por outro lado, o nível de consciência e experiência alcançado pelo movimento de massas. Por exemplo, quando ocorreu a greve geral política de julho de 1975 na Argentina, o programa das Coordenadoras Interfabriles tinha como eixo a homologação dos contratos coletivos e a queda de Celestino Rodrigo e López Rega. No entanto, esse programa era brutalmente insuficiente, já que o que estava em jogo era o problema do poder diante de um governo que, com o plano Rodrigo, havia jogado uma carta contrarrevolucionária, que tinha seu correlato militar na ação da Triple A e das Forças Armadas. As consequências desse descompasso foram catastróficas.
O objetivo de um programa transicional é ajudar as massas a superar as ideias, métodos e formas herdadas e a se adaptar às exigências da situação objetiva [^6]. Por isso, Trotsky apontava que “algumas reivindicações parecem muito oportunistas, porque estão adaptadas à consciência atual dos trabalhadores […], outras reivindicações parecem demasiado revolucionárias, porque refletem mais a situação objetiva do que a consciência dos operários” [Ibídem, p. 120.]]. A abordagem transicional visa ligar a necessidade imediata (econômica ou democrática) que impulsiona a mobilização a consignas “transicionais” que buscam dar uma resposta estrutural e profunda às dificuldades impostas pelo capitalismo, sem se deter diante do limite da propriedade privada e da institucionalidade da sociedade burguesa [Para um desenvolvimento sobre o programa transicional, ver: Maiello, Matías, De la movilizaición a la revolución, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2022.]]. Por exemplo, hoje precisamos derrotar a reforma trabalhista de Milei (objetivo imediato), mas, para resolver o problema estrutural de fundo (o desemprego e a informalidade trabalhista que o kirchnerismo também reproduziu), seria necessário reduzir a jornada de trabalho e repartir as horas de trabalho às custas dos lucros capitalistas.
Seguindo o exemplo anterior, isso pressupõe a convergência com todos os setores dispostos a lutar contra a reforma trabalhista, mas, ao mesmo tempo, a proposta de repartir as horas de trabalho – articulada da forma mais simples possível – é central para que a classe trabalhadora possa apresentar sua própria solução, a qual necessariamente entra em choque com os interesses dos capitalistas. Esse mesmo enfoque fundamenta a tática da frente única. Popularizada pela III Internacional com a fórmula “golpear juntos, marchar separados”, ela remete, por um lado, à possibilidade de unificar a classe operária na luta de classes para enfrentar a burguesia, independentemente das divisões impostas pela burocracia – por exemplo, trabalhadores contratados/efetivos, empregados/desempregados, sindicalizados/não sindicalizados, etc. Por outro lado, busca, com base nessa experiência comum, agrupar os setores mais avançados da classe em um partido revolucionário, subproduto da confrontação de programas e estratégias.
A proposta da frente única é outro dos grandes ausentes nas reflexões da última edição da Jacobin. Nesse sentido, ela estaria negada na própria ideia de Canary de que, para conquistar “a unidade” em um contexto onde os revolucionários não têm força suficiente e a classe trabalhadora está fragmentada, é necessário dar um passo atrás e aceitar seguir o “reformismo”. Evidentemente, para impor a frente única – que a burocracia boicota permanentemente, como aconteceu aqui com a Lei de Bases ou o veto contra os aposentados – são necessárias forças suficientes. Sob essa perspectiva, os desenvolvimentos de Trotsky em torno do que ele chamou de “comitês de ação” ganham especial relevância. Ou seja, instituições permanentes de unificação dos setores em luta, combativos e organizações políticas da classe trabalhadora que permitam articular forças suficientes para impor a frente única à burocracia. Por exemplo, como fizeram as Coordenadoras Interfabriles em julho de 1975, impondo à burocracia a greve geral. Em uma escala menor, pudemos ver algo semelhante com o papel das assembleias de bairro durante toda a luta contra a Lei de Bases. Ao mesmo tempo, em instituições desse tipo, os revolucionários podem aumentar sua influência, convergindo com os setores de vanguarda.
É claro que todos esses elementos correspondem a uma determinada estratégia vinculada à articulação de um poder alternativo capaz de romper a relação circular entre processos de mobilização e institucionalização e sair do ecossistema dos regimes burgueses formados por forças de direita e frentes “anti-direita”. Claro que uma coisa é formular uma estratégia e outra é conseguir levá-la adiante. Não há vitória garantida, mas a luta passa por aqui. A estratégia da esquerda que abandonou o programa anticapitalista já demonstrou não servir para enfrentar a direita, mas apenas para diluir a esquerda radical, tornando-a participante dos fracassos dos diversos neorreformismos ou populismos de esquerda.
Crisis de subjetividade, o que há de novo?
O mencionado artigo de Canary parte da crise capitalista de 2008 para apontar que “pela primeira vez na história, um debacle econômico de dimensões globais se combinou com o ápice (ou, se preferir, o fundo) de uma crise subjetiva do proletariado”. Ou seja, a “novidade” seria a soma de uma crise de subjetividade que remonta a pelo menos três ou quatro décadas atrás, a qual se combina com uma crise do capitalismo que começou há 15 anos. Se podemos chamá-la de novidade, é uma bastante antiga. Há uma década, algo tão geral podia fazer mais sentido; de fato, com perdão pela autocitação, em 2011, dando conta do começo do fim de uma etapa – a da “Restauração burguesa” – dizíamos, no contexto do início da “Primavera Árabe”:
Primeiras batalhas que se travam após anos em que temos testemunhado a recomposição social e também reivindicativa da classe trabalhadora. No entanto, essa recomposição parte de uma situação de atraso político do movimento operário com poucos precedentes. Uma aguda crise de subjetividade do proletariado, fruto da ofensiva neoliberal, da restauração capitalista nos ex-estados operários burocratizados e da desmoralização resultante da identificação do estalinismo como “socialismo real”.
Continuamos a subscrever essas palavras. No entanto, hoje em dia, dizer apenas isso equivale a dizer muito pouco. A crise de subjetividade continua sendo uma realidade operante, porém, seus termos mudaram. O horizonte da revolução socialista como perspectiva ainda está ausente; o estalinismo e a ofensiva ideológica das últimas décadas causaram grandes danos nesse sentido. Mas o que há de novo é que, desde o início da segunda década do século XXI, uma infinidade de revoltas ocorreu em diferentes países ao redor do mundo. Embora não tenham dado lugar a novas revoluções, contribuíram para colocar em primeiro plano um de seus elementos distintivos: a intervenção direta das massas nos acontecimentos históricos. Desde a Primavera Árabe de 2011, dezenas de processos de luta de classes ocorreram em diferentes países do mundo. Aquele primeiro ciclo também se estendeu da Grécia e do Estado espanhol até a Turquia e o Brasil. Um segundo ciclo começou em 2018 e teve seu ponto mais alto em 2019. Esse ciclo atravessou, de uma forma ou de outra, 37 países 7, entre eles França, Chile, Colômbia, Equador, Bolívia, EUA, o Estado espanhol, Argélia, Sudão, Haiti, Hong Kong.
Depois de todos esses processos, uma noção genérica de “crise de subjetividade” como chave explicativa não é mais suficiente. Precisamos investigar os problemas políticos e estratégicos precisos que esses processos deixaram em aberto, que, por sinal, são muitos, tanto subjetivos quanto objetivos. Entre os últimos, ao considerar por que não se desenvolveram como processos revolucionários, é indispensável levar em conta que o pano de fundo daqueles dois primeiros ciclos não foram catástrofes da magnitude das que ocorreram durante a primeira metade do século XX. Não basta constatar que a crise de 2008 representou um “debacle econômico de dimensões globais” sem dar conta do curso que ela teve. Embora 2008 tenha sido uma espécie de “queda do muro de Wall Street”, evitou-se um colapso da economia mundial como o de 1930. Claro que a um grande custo, acumulando novas contradições, graças a uma intervenção estatal maciça para salvar os grandes bancos e corporações às custas das condições de vida das maiorias.
Essa situação híbrida de crise profunda, mas sem colapso, explica a diferenciação de dois setores entre aqueles que protagonizaram os dois ciclos de luta de classes. Um que poderíamos chamar, na falta de uma denominação mais ilustrativa, de “perdedores relativos” da “globalização”, que conseguiram algum avanço (mesmo que apenas sair da pobreza) e viram suas expectativas de progresso frustradas pela crise. E outro que poderíamos denominar “perdedores absolutos”: setores empobrecidos, precarizados, quando não desempregados, muitos deles jovens que ficaram virtualmente excluídos do “pacto social” neoliberal. No primeiro ciclo de luta de classes (2010-2013), além da Primavera Árabe, o protagonismo nos processos foi dos “perdedores relativos”. No segundo ciclo (2018-2020), a irrupção dos “perdedores absolutos”, inclusive nas revoltas de países imperialistas como a França, deu-lhe um caráter explosivo e violento.
Sob essas coordenadas, é necessário analisar as características desses processos, ou seja, a forma concreta como a crise de subjetividade se manifestou. Entre elas: 1) a primazia da dinâmica da revolta onde, se retomarmos uma conceituação clássica de Charles Tilly, vemos uma grande “divisão na comunidade política”, mas, ao contrário da revolução, uma “transferência de poder” muito limitada onde houve, e quase nula em termos marxistas de transferência de poder de uma classe para outra; 2) o caráter predominantemente “cidadão” – atomizado e em grande medida desorganizado – que os movimentos de massas adquiriram; 3) uma ocupação peculiar do “espaço público”, limitada na maioria dos casos a “praças”, à margem do tecido socioeconômico; 4) o não aproveitamento das “posições estratégicas” detidas por setores do proletariado nos transportes, logística, grandes indústrias e serviços; 5) em todos esses pontos, a ação das burocracias (sindicais, políticas e sociais) como “organismos de polícia política, de caráter investigativo e preventivo” 9 desempenhou um papel determinante para fragmentar e/ou apassivar os movimentos.
Esses são apenas alguns dos elementos mais notáveis, que analisamos com mais detalhes e profundidade em outros trabalhos. Sem eles, é impossível interpretar o resultado desses processos. Por exemplo, a incidência dos elementos mencionados (atomização, isolamento dos setores estratégicos, fragmentação burocrática dos movimentos, etc.) foi determinante para impedir que se enfrentasse com sucesso o aparelho estatal e permitiu ao regime separar – até mesmo geograficamente – os manifestantes supostamente “legítimos” dos “violentos” e “incivilizados”, experimentando para os primeiros diferentes tipos de concessões para retirá-los das ruas e assim isolar os segundos e criminalizá-los. Vimos isso, por exemplo, no Chile em 2019, por meio de uma combinação de desvio político ao qual a burocracia aderiu (“Acordo pela Paz Social e Nova Constituição”) e repressão redobrada contra os setores mais combativos e as “populações”. É uma operação que se repete em cada um dos processos, chave para desgastá-los, desativá-los ou derrotá-los prematuramente, impedindo seu desenvolvimento revolucionário.
No entanto, todos esses elementos que mencionamos também não representam a novidade de hoje. Aquelas tendências da luta de classes global estão longe de terem sido suprimidas. Hoje podemos dizer que estamos diante de um terceiro ciclo de luta de classes. Seu centro de gravidade se transferiu para o sul e sudeste da Ásia, desde o levante em Mianmar contra o golpe militar em 2021, passando pelo do Sri Lanka em 2022 que terminou com a dinastia dos Rajapaksa, até chegar este ano a Bangladesh, onde ocorreu a queda de Sheikh Hasina. Um quadro ao qual se devem acrescentar as recentes revoltas como a do Quênia – que incluiu a tomada do parlamento e confrontos violentos que derrubaram o plano do FMI – assim como os processos na Nigéria e Uganda. Como alerta a revista britânica The Economist, por trás da maioria desses processos estão as políticas impostas pelo FMI e a crescente rejeição que elas geram. Esses processos apresentam características inovadoras. A violência dos confrontos e a decisão do movimento de massas, que tende a se radicalizar diante do endurecimento das classes dominantes, são muito superiores a tudo o que vimos desde a Primavera Árabe.
Outro elemento inovador é o maior protagonismo dos setores do movimento operário nos processos mais recentes, de Mianmar em diante. O fato mais marcante nesse sentido foi a luta contra a reforma previdenciária de Macron na França em 2023, que se transformou em um verdadeiro movimento de massas de amplas camadas da classe trabalhadora, estendido em escala nacional e que incluiu ações duras com bloqueios de estabelecimentos em setores estratégicos do movimento operário. Nesse caso, estava colocada na prática a possibilidade de uma greve geral política. O fator determinante para que isso não acontecesse foi menos a crise de subjetividade – como demonstraram as tendências à ação direta e os elementos de auto-organização implantados por uma ampla vanguarda – do que a crise de direção da classe trabalhadora, encarnada não apenas nas burocracias mais conciliadoras, como a CFDT, mas também nas “combativas” da CGT. Junto com esses processos, a atividade grevista e reivindicativa da classe operária na Europa começou a ressurgir nos últimos anos. Também nos EUA, com um fenômeno disseminado de organização de novos sindicatos e greves históricas, como a dos estivadores que, nestes dias, paralisaram os portos da Costa Leste e do Golfo.
Outra novidade é o desenvolvimento do movimento de solidariedade com o povo palestino, com epicentro nas universidades de elite dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. Esse movimento tem sido frequentemente comparado àquele contra a guerra do Vietnã, nas décadas de 1960 e 1970. Para entender a magnitude do deslocamento tectônico que isso representa, é importante lembrar que, em seu livro de 2019, Capital e Ideologia, Thomas Piketty aponta as universidades dos países centrais como o reduto de uma ideologia elitista desconectada dos sofrimentos das maiorias e base social do que ele chama de “esquerda brâmane”, em alusão à casta superior dos sacerdotes no antigo sistema hindu. A juventude desses mesmos centros universitários, de Columbia à Sorbonne, começa a levantar bandeiras anti-imperialistas, acampando nos campi, enfrentando as autoridades universitárias, os governos, a repressão policial e a perseguição midiática que busca silenciar os protestos.
As novidades deste terceiro ciclo de luta de classes estão alinhadas ao novo cenário internacional, que traz uma situação muito mais convulsiva do que aquela que serviu de contexto para os dois primeiros ciclos de revoltas. Sua fisionomia começou a se delinear mais claramente a partir da guerra na Ucrânia e do retorno da guerra interestatal, com grandes potências envolvidas em ambos os lados, nada menos que na periferia da Europa. Hoje estamos diante da escalada de uma guerra regional no Oriente Médio com implicações globais. O genocídio a céu aberto do Estado de Israel em Gaza está se transformando em uma guerra que envolve não apenas o Líbano e os huthis do Iêmen, mas cada vez mais uma potência regional como o Irã, com estreitos vínculos com o eixo russo-chinês. Em ambos os cenários, as perspectivas para os interesses do imperialismo norte-americano são sombrias, como vêm insistindo teóricos das relações internacionais da corrente principal, como John Mearsheimer [9]. Independentemente de alcançar seus objetivos ou não, como sabemos, o imperialismo não se renderá; apenas movimentos revolucionários podem ser capazes de detê-lo.
O cenário internacional como um todo vai na contramão das reflexões de Jacobin; torna-se cada vez mais urgente uma perspectiva revolucionária. Daí também o fim de ciclo que sofre a esquerda que abandonou o programa anticapitalista para se assimilar ao neorreformismo ou populismo de esquerda. A persistência das revoltas, seu caráter mais profundo e violento, a reversão de uma longa tendência que expressa o maior protagonismo do movimento operário, o desenvolvimento de movimentos com traços anti-imperialistas como o que emergiu em torno do genocídio na Palestina, colocam um problema semelhante ao que Lenin descreveu em seu panfleto O que Fazer?, no início do século XX. O “elemento espontâneo”, ele dizia, é a forma embrionária do consciente, mas quanto mais poderoso é o surto espontâneo das massas, mais necessário se torna o desenvolvimento dos elementos conscientes. Ao contrário do que sustenta Jacobin, hoje a política revolucionária está atrasada em relação à subjetividade já demonstrada pelo movimento de massas, apesar de todas as suas limitações. A questão é como desenvolver uma esquerda anticapitalista e socialista que esteja à altura e possa contribuir para o seu desenvolvimento em termos revolucionários. A vitória, como corretamente disse Trotsky, não é o fruto maduro da “maturidade” do proletariado, mas uma tarefa estratégica. E, gostemos ou não, não há como fugir disso.
Notas de Rodapé