André Barbieri
Marco Antônio Martins da Rocha é professor de Economia pela Unicamp. Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2006), é mestre e doutor em Teoria Econômica pela Universidade Estadual de Campinas. Concentra seus estudo na área de Economia Industrial, Política Industrial e Desenvolvimento Econômico. Foi coordenador entre 2016 e 2018 e atualmente atua como pesquisador do Núcleo de Economia Industrial e Tecnologia (NEIT - IE/Unicamp) e professor do Instituto de Economia da Unicamp. Foi diretor da Sociedade Brasileira de Economia Política entre 2020 e 2024.
- Como você enxerga os movimentos tarifários de Donald Trump para o comércio global?
Eu acho que o pacote recente de tarifas que o Trump anunciou coloca novos contornos sobre o que foi a política comercial dos últimos anos dos Estados Unidos, voltando lá no Trump 1 e mesmo aquilo que o Trump anunciou muito durante a campanha também. Se a gente pensar no governo Trump 1 e tentar traçar uma certa continuidade da política comercial com o Biden, eu acho que a coisa estava muito ligada à ideia da formação de certas cadeias, que os Estados Unidos chamou de cadeias resilientes, que se refletia muito numa tentativa de aproximar certos países a partir da criação de cadeias de valor mais próximas aos Estados Unidos, tanto localmente, mas também em termos de alinhamento político. Quer dizer, reformular, de certa forma, o comércio bilateral americano para se proteger da concorrência asiática e para também dinamizar o comércio em torno dos Estados Unidos, aproveitando isso para, justamente, criar capacitações e se colocar de forma mais competitiva em certos insumos e bens estratégicos que os Estados Unidos tinham mapeado.
O governo Biden, isso se reflete para além da política comercial, no desenho de certos instrumentos de política industrial, até com uma política industrial até velha guarda em relação ao que se pratica hoje em dia, que foram incorporados em alguns Acts do governo norte-americano e forneceram subsídios, créditos tributários para as empresas norte-americanas, de alguns setores industriais, mas que teve efeito em relação à capacidade dos Estados Unidos de reagir, de certa forma, à competição asiática. Mas você tinha, de certa forma, um viés estratégico em termos de que setores que os Estados Unidos escolhia, a forma como ele construía, utilizava certos instrumentos e, de certa forma, como ele via como ponto principal a questão da rivalidade com a China. Não que alguns elementos disso tenham se perdido, mas o anúncio recente do aumento de tarifas do Trump, ele segue uma outra lógica. Se você reparar como o governo informou que calculou as tarifas e chegou àqueles números que ele colocou em relação a cada país aquilo traz uma ideia que no limite é de fechar o déficit comercial dos Estados Unidos com todos os países. O que é uma coisa meio esquisita, principalmente se a gente pensar em um mundo em que grande parte das empresas, sobretudo as empresas americanas, foram se expandindo na base do outsourcing, criando cadeias globais de valor e essa política comercial que o Trump anunciou agora, ela busca basicamente tornar todas as economias deficitárias com os Estados Unidos.
O que normalmente, além de estranho por conta de como é o padrão de funcionamento da indústria global hoje, é estranho porque, bem, os Estados Unidos não é competitivo em tudo, tem certas coisas que os Estados Unidos nem sequer produzem. E eles vão sobretaxar de outro país. Então, esse pacote de tarifas incorpora, talvez, muito mais uma ideologia ligada ao MAGA, ao Make America Great Again. Quer dizer, uma ideia de que você vai usar o poder econômico dos Estados Unidos para fazer todas as nações concordarem com seus desígnios ou, de certa forma, subjugar todos os países a partir da política comercial. Não que não tenha ali questões relativas, por exemplo, ao enfrentamento com a competição asiática. Mas a coisa é tão horizontal e mira parceiros estratégicos e não estratégicos de forma quase que sem grandes divergências. Isso tudo faz com que esse pacote de tarifas remeta muito mais a uma conduta unilateral dos Estados Unidos em relação à forma como ele quer redesenhar o comércio mundial tornando os Estados Unidos meio que o centro disso. Não é simples, dificilmente isso vai dar em algum lugar em relação ao que os Estados Unidos podem colher desse processo.
As outras economias irão também reagir a isso e tem muito pouca chance de dar certo em relação a qualquer tipo de estratégia de desenvolvimento de setores estratégicos, coisas desse tipo, porque, novamente, em termos do que se pensa em termos de manual, vamos dizer assim, de política comercial o pacote remete pouco a isso. Ele está muito mais pensando, ele não está pensando em termos de setores, mas tá pensando em termos de como você pode onerar cada país de acordo com o superávit comercial que cada país tem com os Estados Unidos. Então é uma coisa que ainda a gente vai ver para onde isso vai, quais serão os futuros desdobramentos disso. Mas é uma coisa que em termos geopolíticos me remete a outro posicionamento, a outra linha do que a gente tinha, por exemplo, tanto no Trump 1 quanto no governo Biden.
- Analistas econômicos falam hoje de um mundo em que o “de-risking” e o “friendly-shoring” se tornaram a preocupação central das potências. Podemos dizer que a segurança nacional passou a ser um componente chave para a determinação das cadeias globais de valor?
Essas formas de reorganização das cadeias produtivas estão para além das questões mais propriamente econômicas, de eficiência econômica, e elas vão ganhando força, ou seja, começam a ganhar força após a crise de 2008, com uma tentativa de redinamizar as economias centrais. E depois da Covid ganham mais força ainda as questões de soberania tecnológica e nacional, na mobilização de instrumentos de política comercial e industrial. Isso pode ser exemplificado em uma série de documentos do governo norte-americano, mas, novamente, se há uma certa continuidade entre o governo Trump e o governo Biden, muito disso está na forma como se encara a rivalidade com a China, como uma questão balizadora da forma como os Estados Unidos pensam sua política industrial e sua política comercial.
E aí ganhou força, principalmente pós-Covid, essa ideia do friendly shore, do reshoring das cadeias produtivas, você reintegrar certas etapas estratégicas ou a produção de certos insumos estratégicos dentro das suas cadeias nacionais ou regionalizar isso a partir de fatores como a proximidade geopolítica entre países. Só que eu acho que o anúncio do pacote de tarifas do Trump não remete a isso, é um outro desdobramento do que vem acontecendo. E nesse sentido, quando a gente pensa que o pacote de tarifas, por exemplo, não é direcionado a setores econômicos, mas sim a países, isso incluindo todos os setores possíveis dentro dos países afetados, ele não tem esse viés estratégico de reorganizar as cadeias no sentido de pensar os elos estratégicos, os insumos estratégicos dessas cadeias. É até meio difícil, porque parece uma coisa meio anacrônica se a gente já pensa num mundo de montagem fragmentada, sequenciada em relação aos sistemas produtivos, a forma como existe uma divisão de tarefas em nível mundial, pelo menos entre as cadeias regionais.
O pacote do Trump não é isso, ele tenta, no fundo, trazer toda a produção possível para dentro dos Estados Unidos e basicamente, no limite, zerar o déficit comercial americano com todos os países que comercializam com os Estados Unidos. O que beira a impossibilidade, não dá para ser superavitário comercialmente com o mundo inteiro. Tem produtos que o país não produz, tem produtos que o país tem baixíssima competitividade internacional, portanto não interessa, tem produtos que não são estratégicos, não tem por que você garantir subsídios de instrumentos de política industrial se não são nem sequer estratégicos ou se não geram muitos empregos, coisas desse tipo.
Então assim, esse pacote de tarifas do Trump parece muito mais casar como uma demonstração de força do grande lema do governo que é o Make America Great Again, quer dizer, curvar o mundo à uma reorganização produtiva global, a partir daquilo que os Estados Unidos estão pensando do ponto de vista do fortalecimento da sua economia, mesmo que para isso se tenha que desorganizar todo o comércio mundial sem saber muito bem para onde isso vai apontar.
- Como essa desordem na economia impacta as relações produtivas nos Estados Unidos, marcados pelo fordismo e o taylorismo no início do século XX, e agora atravessados pela reordenação nas cadeias de valor?
Bem, justamente a gente não sabe muito bem como é que isso vai impactar a economia norte-americana. As primeiras análises chamam a atenção justamente das pressões inflacionárias que isso vai criar, em como isso prejudica as grandes empresas norte-americanas. Mas, assim, as grandes empresas globais têm alguns graus de liberdade em reorganizar a sua cadeia de fornecedores. Então, tudo bem, isso pode significar que no curto prazo você vai ter impacto no custo de produção dessas grandes empresas, mas depois elas vão começar a realocar a produção em outros países. E isso pode desestruturar, primeiro, o processo de industrialização de certas economias asiáticas, a organização das cadeias regionais na Ásia e uma reorganização global que a gente não sabe muito bem como pode afetar a economia norte-americana, mas isso pode significar que por exemplo essas cadeias talvez se movam para países em que os Estados Unidos têm mais capacidade de ingerência, por exemplo. Ou, na verdade, o dólar pode sofrer uma apreciação e isso reorganizar também os preços relativos e produzir outros efeitos sobre as cadeias produtivas.
As economias asiáticas podem desvalorizar, por exemplo, suas moedas frente ao dólar e tornar esse pacote tarifário um tanto inócuo em relação à capacidade dos Estados Unidos de internalizar essas cadeias. Então o que eu estou querendo dizer é que existe uma série de fatores que podem ocorrer a partir da eclosão de uma guerra comercial generalizada, que provavelmente é o que o governo Trump vai provocar. E aí não dá para saber muito bem como o próprio governo Trump vai reagir a uma guerra comercial deflagrada. Então tudo isso vai impactar muito em como a economia norte-americana vai evoluir, quais serão os próximos passos em que também as outras economias já afetadas pelas tarifas americanas vão reagir nesse processo.
- Os Estados Unidos passaram a utilizar restrições comerciais para atrasar o desenvolvimento da China. Você considera que essa estratégia, compartilhada entre Republicanos e Democratas, fica questionada com o “momento DeepSeek”?
Como eu comentei anteriormente, eu acho que se existe uma continuidade entre o governo Trump e o governo Biden, é o enfrentamento com a China. Entender isso como uma política de Estado, entender uma certa ideia de que, já que você tem que enfrentar um bicho, é melhor enfrentar logo antes dele ficar grande demais, no caso da China, antes dele crescer ainda mais. E isso é uma permanência do governo Trump 1 para o governo Biden. Movimentando instrumentos diferentes, no governo Biden, a gente viu muito mais uma movimentação de instrumentos típicos de política industrial para fortalecer a produção interna, internalizar a produção de certos bens e insumos industriais, sobretudo relacionados a essas novas tecnologias. E alguns instrumentos desses, alguns Acts que o governo Biden fez, foram até bem sucedidos do ponto de vista da elevação do investimento industrial nos Estados Unidos. Isso tudo marca uma continuidade da forma como os Estados Unidos vem tentando enfrentar a China.
Mas no governo Trump 2 parece que esse foco foi ampliado. Não que a China não vá ser penalizada por conta da política comercial americana, mas parece que essa política comercial abriu seu foco para todas as cadeias regionais da Ásia, entendendo que talvez o grande inimigo não seja a China, mas seja a fábrica asiática como um todo, e essa divisão regional de trabalho que acontece na Ásia. Então, você tem uma continuidade, embora mude o foco, mude a utilização de instrumentos, e os efeitos que isso pode provocar e a forma como a China vai reagir a isso, provavelmente vai mudar também, principalmente porque nesse governo Trump 2 o enfrentamento parece movimentar instrumentos de calibre muito maior, de envergadura muito maior do que os que foram mobilizados até agora.
- A desaceleração do crescimento na economia global poderia levar a maiores possibilidades de conflitos militares entre as potências?
Olha, se a gente pensa na possibilidade de conflitos mundiais a partir da desaceleração econômica, eu acho que esse não seria um dos fatores principais, embora seja um fator indireto. Por quê? Porque o posicionamento dos Estados Unidos, inicialmente, frente à guerra da Ucrânia, mas de forma mais geral, como de certa forma a política externa do governo Trump 2 anuncia um retorno a um certo isolacionismo do governo norte-americano que a gente não via desde o pré-Segunda Guerra, aponta para um abandono de fóruns maiores como por exemplo a OTAN. E isso já começa a movimentar a opinião pública, as estruturas políticas de certos países, apontando para uma necessidade de ampliar o gasto militar, principalmente na Europa. Então, provavelmente o que a gente vai ver é o aumento do gasto militar e o rearmamento de muitos países, ou a intensificação do rearmamento de muitos países.
Só que num momento de desaceleração econômica, de guerra comercial e de rearmamento em escala global, de aumento em escala global dos gastos militares – que aliás, já vem aumentando faz alguns anos – isso se torna também um vetor de aumento da demanda agregada dentro das economias nacionais e aumento da capacidade de exportar certos bens. Então, num momento de desaceleração econômica, o setor bélico – a indústria de defesa – ganha uma possibilidade a mais de aumento de investimento, porque ela passa a ser um setor econômico dinâmico, com grande capacidade de penetração no mercado internacional. Então, isso tende a intensificar a tentativa dos países de construir políticas industriais para o setor de defesa, e tentarem ganhar mercados e exportarem esses bens produzidos.
Então, a desaceleração econômica incentiva o fomento da indústria bélica, como um setor econômico dinâmico, com grande capacidade de penetração no mercado internacional, que possui transbordamentos tecnológicos muito importantes, sendo um setor de alta tecnologia. Esse cenário internacional, quer dizer, de baixo crescimento do comércio internacional, com uma postura de isolacionismo norte-americano e uma destruição do que sobrou do multilateralismo, tudo isso aponta para o maior esforço de rearmamento das economias nacionais e, a partir daí, uma maior possibilidade também de conflitos armados.