Thiago Flamé
A fundação da CUT em 1983, no I Conclat, foi um marco histórico da organização da classe trabalhadora, onde se expressaram as tendência mais radicalizadas do novo sindicalismo que se enfrentava com a ditadura, os governadores do MDB e com a patronal multinacional. Quatro décadas depois, pouco resta daquele sindicalismo que ousou desafiar a estrutura varguista de atrelamento dos sindicatos.
Nos primeiros anos do PT, a sua liderança em torno de Lula e dos sindicalistas autênticos fundaram em 1983 a Articulação que seria dali em diante a corrente majoritária no partido e a Articulação Sindical, a corrente majoritária da CUT desde então e a mais importante do conjunto do movimento sindical. Se naqueles anos Lula se apresentava como um sindicalismo combativo, os chamados autênticos, em enfrentamento com a estrutura sindical herdada de Vargas e fortalecida pelos militares, depois que assumiu a presidência passou a se identificar com Vargas e a promover um nível de estatização dos sindicatos “nunca antes visto nesse país”.
Como já discutimos um pouco em artigos anteriores, a corrente de Lula apresentava o PT como uma grande novidade histórica. Marcava um corte, sem solução de continuidade, com as ricas tradições da classe trabalhadora brasileira que havia sido derrotada em 1964, mas que permanecia viva na resistência no interior das fábricas, canteiros e plantações. A classe trabalhadora teve a experiência de construir um grande partido de massas antes do PT, o PCB, velho “Partidão”, como era chamado. Viu esse grande partido se tornar um entrave inútil e ser derrotado de forma humilhante, sem sequer apresentar batalha no momento decisivo em 1964, para nos anos seguintes se aliar mais profundamente com a velha burocracia trabalhista e varguista e não raras vezes colaboradora com a ditadura militar/patronal.
Então, esse corte histórico da fundação do PT tinha um conteúdo ambíguo. De um lado expressava o enfrentamento contra esse setor burocratizado e conservador – expresso na aliança do sindicalismo do Partidão e parte das suas rupturas com a velha burocracia que dirigia a maioria dos sindicatos. De outro, a negação dos grandes embates de uma classe operária que via no PCB uma ferramenta na luta pelo comunismo. Para colocar apenas um exemplo dessa grande tradição classista e de massas do comunismo no Brasil, para além da cúpula do Partidão, podemos lembrar que Santos já foi chamada de “cidade vermelha”, pelo papel dos trabalhadores comunistas no sindicato do maior porto do país, que chegou a funcionar durante anos num sistema de controle operário, onde o sindicato e os estivadores eram quem decidiam as jornadas e o número de operários necessários para desembarcar ou embarcar as mercadorias em um navio. Não era somente o peleguismo dos velhos burocratas que a Articulação rejeitava, mas também e sobretudo, como veremos, esses grandes exemplos de luta e organização. Não era à toa que junto com a água suja jogavam também todo o resto fora…
Os sindicalistas autênticos e as oposições sindicais nas origens da CUT
Um erro comum cometido pela intelectualidade marxista e pelas organizações da esquerda petista, incluídas as três correntes trotskistas que foram também as mais importantes da chamada “esquerda petista” (Democracia Socialista, Trabalho e Convergência Socialista), foi tomar Lula como um líder operário nato, legítimo, expressão do nível de consciência mais avançado da classe que protagonizou as greves e se engajou na construção do PT e da CUT. A expressão “sindicalismo autêntico” foi tomando inclusive uma outra conotação que nada tinha a ver com a sua origem. Pois autênticos vêm de que era o sindicalismo ligado aos chamados políticos autênticos do MDB, que haviam sido oposição desde o início da ditadura. Boa parte deles, desses autênticos, como FHC ou José Serra, iriam depois se juntar na criação do PSDB.
No caso de Lula, ele havia assumido um cargo na direção do sindicato dos metalúrgicos ainda em 1972 na gestão do pelego colaboracionista Paulo Vidal, contra o qual lutavam as oposições sindicais no interior das fábricas, assim como faziam em São Paulo contra o pelego Joaquinzão. Quando ele assume a presidência do sindicato em 1975 não é em enfrentamento contra Paulo Vidal, mas como uma solução de continuidade gatopardista (uma expressão tomada do romance Il Gatopardo, que agora virou série na Netflix, que mostra o processo do transformismo italiano analisado por Gramsci) para a burocracia de Paulo Vidal: que tudo mude para tudo seguir como está. O novo sindicalismo autêntico que assumiria a direção das greves que ele não havia organizado ou convocado significou exatamente isso: a continuidade da estrutura varguista sob as novas condições políticas criadas pela rebelião operária do ABC.
Ao colocarem a Articulação como uma completa novidade, a esquerda petista também negava outras experiências internacionais da classe trabalhadora como, a do partido trabalhista inglês que nasceu ligado e subordinado aos sindicatos, que poderia ter dado importantes ensinamentos sobre os rumos do partido.
Na CUT, se expressavam com muito mais força do que no interior do PT as tendências à radicalização política da base operária e tinham mais força na CUT outras tendências mais radicais do movimento operário além da Articulação.
Dois grandes setores sociais se destacaram e tiveram também uma grande força no início da CUT, para além do sindicalismo autêntico do ABC. O município de São Paulo, que não era mais o pólo dinâmico da indústria, tinha no entanto uma categoria metalúrgica numericamente superior à do ABC e muito tradicional, com muito peso do conjunto da esquerda nas fábricas e um sindicato com grande peso no movimento sindical. Nesse centro político do movimento operário da época a Ditadura não arriscou nenhuma mudança e manteve o seu Joanquizão no comando do então poderoso sindicato dos metalúrgicos de São Paulo, enquanto nas fábricas era massivo o movimento da oposição metalúrgica que desde os anos mais sombrios da ditadura manteve viva a organização por local de trabalho nas fábricas paulistanas. No auge do movimento de greve em 1980 se multiplicaram as chamadas “multifabris”, reuniões das comissões de fábricas por região com especial peso na Zona Sul, na região de Santo Amaro. Nessa mesma região, quando a vanguarda operária se dispôs a enfrentar a traição do sindicato e os militares reprimiam com armas de chumbo os piquetes, que levou a morte do operário Santos Dias, alguns piquetes começaram a se armar, para fazer frente à pressão aberta do estado.
Outro grande setor foi o do sindicalismo do funcionalismo público, impedido pela ditadura de organizar sindicatos, mas que se organizou nas suas associações não reconhecidas pelo estado como sindicatos. Esse setor do movimento de massas da classe trabalhadora se colocou no primeiro plano na luta contra os ajustes frente a profunda recessão de 1980/84 e os ajustes econômicos, num momento em que o movimento dos metalúrgicos estava ainda em refluxo pela combinação da derrota de 1980 e pela onda de fechamentos de fábricas e demissões que se seguiu, sem que a direção lulista levantasse uma resistência organizada.
Nosso objetivo neste tópico era o de remarcar como o Lula e o sindicalismo autêntico nunca foram de fato uma ruptura com o sindicalismo de Estado, uma das ferramentas fundamentais de hegemonia da burguesia sobre a classe trabalhadora organizada por Getulio Vargas a partir da ditadura do Estado Novo. Se Lula e os autênticos não foram uma alternativa, é preciso também demarcar os limites das experiências das oposições e das associações, que nunca tomaram o combate político no interior do PT contra a burocracia sindical da Articulação.
Ao fim, a antes poderosa CUT pela Base, que aglutinava parte do ativismo sindical mais radicalizado do início dos anos oitenta e que se enfrentava com a Articulação nos congressos da CUT dos 80, acabou se diluindo nos seus acordos com a Articulação e na militância da esquerda petista até deixar de existir como corrente organizada do sindicalismo brasileiro. Não foram uma oposição ao processo acelerado de aprofundamento da estatização dos sindicatos que Lula promoveu nos seus primeiros governos, mesmo no caso daqueles setores que romperam e passaram para a oposição de esquerda ao governo Lula junto com os deputados que fundaram o PSOL e as Intersindicais.
Varguismo e classismo em tempos de frente ampla
O sindicalismo de Estado varguista não é um fenômeno nacional, mas a expressão brasileira de uma tendência internacional e mundial de estatização dos sindicatos. Na passagem do capitalismo em ascensão do século XIX para a sua fase de decadência imperialista no século XX, a relação entre os sindicatos, o Estado burguês e a classe trabalhadora passou por mudanças estruturais. Junto com o surgimento de uma aristocracia operária que a exploração colonial permitiu à burguesia das metrópoles desenvolver, também surgiu a burocracia sindical, uma fração do movimento operário sustentada em enormes privilégios e interessada pessoalmente como grupo social na manutenção da ordem burguesa. Não à toa chamamos a burocracia de polícia dentro do movimento operário. Quem já viu uma burocracia desmontando uma greve sabe bem como as suas ideias abstratas e vazias se sustentam numa coerção física bem concreta.
Foi na década de 30 que a estatização se impôs pela via dos convênios coletivos que tomariam a partir daí a força de lei. Esses convênios passariam a valer para todos os trabalhadores de uma categoria e somente seriam firmados por sindicatos reconhecidos pelo Ministério do Trabalho. Essa concessão econômica do governo Vargas à classe trabalhadora vinha acompanhada de um ataque sem precedentes à autonomia dos sindicatos perante o Estado. O velho sindicalismo de tendência anarquista e comunista se dividiu. Os que se recusaram a lutar pelo reconhecimento do Estado e ter o poder de lutar pelos benefícios concedidos em forma de lei pelos convênios coletivos sumiram do mapa e foram substituídos por novos sindicatos criados pelo Ministério do Trabalho. Nesse contexto o sindicato dos gráficos de São Paulo e do Rio de Janeiro, dirigido pelos trotskistas da LCI e que foi a linha de frente da organização da frente única antifacista que bloqueou o desenvolvimento da corrente integralista nos anos 30, foi um exemplo de classicismo, uma alternativa entre a adaptação à estrutura varguista que surgia, ao paralelismo sindical desenvolvido pelo anarquismo em decadência e a frente nacionalista erratica do Partidão no movimento sindical. Ao organizar a luta antifacista sem abandonar a luta pelo direito de representar a categoria perante o estado varguista, os trotskistas da LCI mostraram que a autonomia e independência do movimento sindical perante o Estado não é uma questão jurídica formal, mas um combate vivo da luta de classes.
Esse exemplo do início do varguismo da gênese do atrelamento dos sindicatos ao Estado brasileiro que atravessou o século XX e chega aos dias de hoje, tem toda a atualidade para pensar o combate ao novo peleguismo desenvolvido pela CUT e pelo sindicalismo petista. O aprofundamento da estatização envolve uma participação inédita dos líderes sindicais nas decisões governamentais e através de cúpulas e comissões comuns com a patronal, e também um salto nos benefícios materiais da burocracia sindical, que além do imposto sindical, multiplicaram sua presença na administração dos fundos de pensão que figuram entre os maiores proprietários de ações na Bovespa. Num contexto em que mesmo os sindicatos que romperam com a CUT junto com o PSTU e formaram a Conlutas no início dos governos petistas não conseguiram superar seu próprio atrelamento ao Estado, à lógica das campanhas salariais e de uma lei de greve que até hoje é extremamente restringida e autoritária, recolocar esses debates é fundamental.
A crise dos governos petistas foi a crise desse processo de maior integração dos sindicatos ao estado e também do surgimento do que podemos chamar de neopeleguismo da CUT. Tudo isso colocou a crise de legitimidade das cúpulas sindicais do centro da crise de legitimidade do conjunto do regime político que se revelou em junho de 2013, um movimento que passou completamente por fora das estruturas tradicionais e seu impacto sobre o movimento operário no ano seguinte, com as greves emblemáticas dos garis do Rio de Janeiro e dos rodoviários de Porto Alegre, que se enfrentaram contra as direções dos sindicatos pelegos.
O golpe institucional e o governo Bolsonaro, que foram uma resposta reacionária à crise do regime de 1988, no plano sindical declaram guerra contra a estrutura sindical varguista. Nos anos de ofensiva reacionária o lavajatismo e depois o próprio governo Bolsonaro se sentiram fortes o suficientes para tentar se desfazer da estrutura sindical varguista, incrustada não só no regime de 1988 mas na própria organização estatal brasileira. Essa estrutura que atravessou o século XX e foi reforçada pela ditadura e depois pela transição pactuada para a democracia, no entanto, mostraria sua resiliência. Ao fim, a mesma reforma trabalhista que terminou de desmontar a CLT e abrir caminho para a uberização e novas formas de precarização, preservou o papel da burocracia sindical ao determinar que o negociado tem valor superior ao da legislado mesmo na redução de direitos.
O ataque em regra contra a estrutura sindical varguista teve um resultado contraditório. Destruiu as conquistas sociais em que se assentou sempre a legitimidade da burocracia sindical, ainda que preservou a lei de greve, a data-base e o convênio coletivo. E fortaleceu os instrumentos pelo qual a cúpula sindical é correia de transmissão dos ataques do estado às conquistas sociais e à organização de base da classe trabalhadora.
Agora, no terceiro governo Lula, quando a cúpula das burocracias sindicais são chamadas novamente à mesa do governo e que, na tentativa de estabilizar as conquistas econômicas dos tempos de ofensiva golpista a burguesia mais uma vez sente a necessidade de apoiar na velha burocracia sindical legada à ordem burguesa pelo ditador Vargas, a crise de legitimidade dessas direções sindicais segue se aprofundando, ao lado da crescente estatização dos sindicatos sobre a qual golpe teve efeitos contraditórios. Vemos na luta contra a escala 6×1, como as demandas da juventude operária e dos setores mais precários que são hoje a maioria da classe trabalhadora passam for fora das direções tradicionais e vemos também nas greves dos professores do Ceará, da aliança dos povos originários com os professores no Pará e numa série de outras lutas que se enfrentam também contra as diretorias dos sindicatos. Nesses conflitos e processos ainda de vanguarda vai se forjando a superação dos velhos e novos pelegos, que ainda dominam atualmente a maioria dos sindicatos.