Weckson Vinicius
O Breque dos Apps aponta um caminho claro: só a luta dos trabalhadores pode combater a precarização crescente e desafiar o projeto dos capitalistas e seus governos que querem que os seus lucros sejam pagos com a nossa vida. É preciso generalizar essa luta para todas as categorias para erguer um movimento forte contra a precarização do trabalho em todos os seus aspectos, a uberização, a escala 6x1, a manutenção das reformas trabalhista e previdenciárias, a terceirização, entre outras, o que só é possível a partir de uma posição de oposição de esquerda ao governo de conciliação de classes Lula-Alckmin.
O capitalismo do século XXI se gaba de suas inovações tecnológicas, de suas promessas de liberdade individual e flexibilidade no trabalho, mas por trás do verniz reluzente da “modernização”, a chamada economia de plataformas esconde a mais brutal reconfiguração da exploração da força de trabalho desde a crise internacional desencadeada em 2008. No Brasil, país da superexploração e do racismo estrutural, essa reconfiguração assume traços ainda mais brutais. O entregador de aplicativo é hoje o símbolo mais nítido da nova face do proletariado: precarizado, informal, invisibilizado e, ao mesmo tempo, essencial.
Entretanto, como já diria aquele velhinho genial, a luta de classes é o motor da história, e ela insiste em dar as caras. Os entregadores fizeram, no último 31 de março e 1º de abril, um movimento que parou o país em mais de 59 cidades, incluindo 19 capitais.
Pelo que lutam? A exigência de uma taxa mínima de R$10 por entrega, aumento no valor por quilômetro rodado de R$1,50 para R$2,50, limitação do raio de atuação para bicicletas até 3 km e pagamento integral das rotas. Além de enfrentar o caráter predatório e ditatorial da lógica algorítmica das plataformas, que “controlam, comandam e impõem ritmos, tempos e movimentos do trabalho, de modo a tornar tudo nada claro e muito turvo” (Ricardo Antunes), os entregadores também enfrentam a ultraexploração das empresas como Rappi, Loggi, Uber e Ifood que desde 2022 não reajusta os valores mínimos, já bastante irrisórios.
Dos riders espanhóis aos motoristas do Uber e Ola na Índia, passando pelos entregadores da DoorDash e Lyft nos EUA, há um fio condutor que une os mais explorados: a recusa em aceitar o futuro da “nova servidão” que o capitalismo quer nos impor. O Breque dos Apps se localiza na esteira dos acontecimentos internacionais que vêm causando abalos na estrutura do capitalismo e que reatualizam as características principais da época imperialista: as crises, guerras e revoluções.
O Breque também aponta um caminho claro: só a luta dos trabalhadores pode combater a precarização crescente e desafiar o projeto dos capitalistas e seus governos que querem que os seus lucros sejam pagos com a nossa vida. É preciso generalizar essa luta para todas as categorias para erguer um movimento forte contra a precarização do trabalho em todos os seus aspectos, a uberização, a escala 6×1, a manutenção das reformas trabalhista e previdenciárias, a terceirização, entre outras, o que só é possível a partir de uma posição de oposição de esquerda ao governo de conciliação de classes Lula-Alckmin.
Capitalismo de plataforma e superesxploração 4.0
Com a crise internacional de 2008, o capital começou a vender a narrativa de uma “nova economia” mais livre, mais horizontal e mais igualitária, uma “economia compartilhada”. Como afirma Ricardo Antunes, em O privilégio da servidão, a tão propagada “autonomia” do trabalhador de aplicativo é, na realidade, uma nova forma de despotismo do capital, que intensifica a exploração sob o verniz da liberdade individual.
A realidade que se impõe é a do trabalhador conectado e dependente do aplicativo, assim como o operário é dependente das máquinas e meios de produção. Porém, com uma aparência mais velada: o trabalhador de aplicativo é um assalariado sem assalariamento, um explorado sem contrato de trabalho, e é vigiado e punido sem chefia visível.
Essa é a alma do capitalismo de plataforma: extrair valor através da pulverização dos direitos, da terceirização do risco e da digitalização do controle. Não se trata de uma transição acidental, mas sim de uma ofensiva consciente do capital para rebaixar o custo da força de trabalho e destruir os marcos históricos da organização dos trabalhadores. É uma forma de superexploração adaptada à era dos algoritmos.
A precarização do trabalho, uma marca do governo Lula
Enquanto resultado e, ao mesmo tempo, uma reação a esse cenário de crise, o Breque mais recente emergiu nacionalmente articulado em 59 cidades e 19 capitais com uma pauta econômica clara e que transmite o grau de exploração das empresas de plataforma. Mas, mais do que isso, o Breque expressou uma consciência embrionária de classe: os entregadores muitas vezes repetia frases como “escravidão moderna”, “somos ultraexplorados”, “sem a gente não tem i-food”, “sem entregador não existe aplicativo”, “não somos nosso próprio patrão”.
A farsa do “empreendedor-de-si” levada a frente pelas grandes empresas de plataforma não pode se sustentar por muito mais tempo, dado o nível gritante e cada vez maior da precarização do trabalho. Essa farsa, lembremos, foi completamente legitimada pelo governo Lula com seu PL dos Apps. Mais uma vez recorrendo a Ricardo Antunes, no livro Trabalho em plataformas, regulamentação ou desregulamentação?:
Ao assim proceder, o projeto [Projeto de Lei Complementar 12] aceita e legaliza a exigência essencial das plataformas, qual seja, que o trabalhador, uma vez considerado “autônomo”, se mantenha à margem da totalidade da legislação protetora do trabalho no Brasil. Acolhe e consente que a regulamentação proposta seja para legalizar a desregulamentação, uma vez que forja a desaparição e faz evaporar a condição real de subordinação e de assalariamento, isto é, a efetividade real que molda o trabalho em plataformas, cuja concretude evidencia ao limite o reconhecimento inescapável da subordinação do trabalho.
A insustentabilidade desse discurso patronal gera inevitavelmente uma reação, e a confirmação da ideia de Marx de que o capitalismo cria seus próprios coveiros começa a se reatualizar com muito mais força. E o Breque foi até a sede da IFood em Osasco mostrar que as pás e picaretas estão nas mãos dos entregadores. Contra a vontade da IFood, os trabalhadores bateram o pé e só saíram de lá quando foram ouvidos. E, com a ausência de devolutiva de suas demandas, com a IFood até agora se mantendo no mais profundo silêncio, saíram prometendo a organização de mais paralisações e manifestações.
Além dos entregadores, inúmeras outras categorias vêm se mobilizando contra a piora crescente de suas condições de vida:
- As greves de mais de 100 dias dos técnicos administrativos das universidades federais se enfrentaram diretamente contra o Arcabouço Fiscal do governo Lula-Alckmin, que dá continuidade à política de cortes e ajustes do golpe institucional de 2016 e da extrema-direita. Além é claro da greve dos servidores federais do Ibama, ICMbio e INSS.
- Os metroviários foram protagonistas de três fortes greves que tiveram apoio massivo da população, sendo uma delas unificada com trabalhadores da sabesp e ferroviários, contra o projeto nefasto de privatização e terceirização do governo de extrema direita de Tarcísio em São Paulo;
- Os municipários estão em uma greve exemplar contra Sebastião Melo e sua política de arrocho salarial;
- Professores e indígenas do Pará se unificaram na luta com greve e ocupação contra os ataques de Barbalho e até mesmo se enfrentaram com o Ministério Indígena do governo Lula;
- A luta dos petroleiros que estão mobilizados contra o ataque da Petrobrás ao trabalho híbrido e contra as terceirizações obteve conquistas parciais;
- Os trabalhadores terceirizados da USP tiveram uma conquista excelente na luta contra a precarização e a segregação existente nos ônibus circulares da universidade, a partir de uma forte campanha impulsionada pelo Sintusp junto a intelectuais e entidades;
- E, não podemos esquecer, o forte movimento pelo fim da escala 6×1, um símbolo monstruoso de como os capitalistas nos veem como seres descartáveis e simples máquinas laborais que nem direito ao descanso existe.
Concomitante a essas expressões localizadas de luta Brasil afora, a popularidade de Lula chegou ao menor patamar da história dos seus três governos. Não é preciso ser um gênio para saber o que está por trás disso e até mesmo as grandes mídias estão sendo obrigadas a falar, com termos rebuscados como sempre para maquiar a verdade.
Sejamos então muito claros: esse cenário é resultado direto da política conhecida como conciliação de classes. Para garantir o apoio de quem o elegeu e continuar governando ao lado dos que sempre governaram, Lula não pode — e nem quer — triscar nos ataques que são as bases fundamentais do regime do Golpe Institucional de 2016.
O que isso significa? Lula, que teve a confiança das massas para tirar a odiosa extrema direita bolsonarista do governo, não apenas manteve todos os principais ataques dessa mesma extrema direita, como vem aprofundando-os ainda mais. A sua queda de popularidade também se relaciona com a intensificação da precarização do trabalho e com o aumento dos custos de vida.
A aparente diminuição do desemprego é acompanhada de um aumento brutal dos trabalhadores uberizados, terceirizados e informais, sendo esta última categoria preenchendo o quadro de quase 40% de todos os trabalhadores do país e passando dos 50% em vários estados. Além disso, o rendimento dos trabalhadores informais se aproxima dos trabalhadores formais, não pelo aumento dos rendimentos daqueles, muito pelo contrário, mas por conta da desvalorização crescente dos salários frente aos custos cada vez maiores de se viver.
O Breque dos apps e as lutas em voga transmitem uma mensagem muito clara: não aguentamos mais a precarização do trabalho.
Precisamos transformar o Breque em uma força nacional da classe trabalhadora
A importância do Breque é colocada nesse momento para além de suas pautas imediatas. Ele representa não apenas a emergência de uma nova fração do proletariado, como também a possibilidade concreta que se coloca de generalizar a luta da classe trabalhadora no Brasil.
O Breque pode incendiar e contagiar outras categorias de trabalhadores. A primeira tarefa é a unificação das lutas. O que falta no Brasil hoje não é disposição de luta – como demonstram os entregadores, professores, petroleiros, metroviários, indígenas e terceirizados. O que falta é um instrumento que centralize, coordene, unifique e potencialize essas lutas de forma independente dos patrões e dos governos.
Uma cena muito potente veio do Breque em Salvador, em que os entregadores se encontraram com os professores em greve nas ruas e unificaram sua luta, cantando juntos “Unificou, unificou, é professor junto com entregador!” em meio aos buzinaços característicos.
As centrais sindicais, como CUT e CTB, que deveriam ser esse instrumento, sendo dirigidas pela burocracia não apenas não se constituem como uma ferramenta dos trabalhadores como diretamente atuam para dividir, isolar e desmobilizar as lutas. E por que não são? Outra imagem pode ser também muito ilustrativa: no mesmo momento em que os entregadores estavam protagonizando essa forte paralisação, a direção da CUT na figura do PT estava afundando e desarticulando a mobilização dos ferroviários que planejavam uma greve contra a privatização das linhas de trem em São Paulo.
Havia ali um potencial latente de um movimento grevista de unificação em SP dos trabalhadores do transporte com os entregadores. Mas as direções das principais organizações dos trabalhadores estão hoje nas mãos da burocracia, que atua como testa de ferro e sustentáculo do governo do PT, permitindo inclusive que a extrema direita aplique e avance os seus projetos de privatização e ataques.
Enquanto cada luta explode em trincheiras separadas, a burocracia sindical da CUT e CTB cumpre o papel nefasto de fragmentar, domesticar e desviar a combatividade operária. E o PSOL, lamentavelmente, segue o mesmo caminho.
É preciso romper com essa política de conciliação, que transforma sindicatos em correias de transmissão do Planalto. Os trabalhadores precisam tomar os sindicatos em suas mãos, construindo comissões de base eleitas nas lutas. Precisamos batalhar por uma coordenação nacional dessas lutas, que parta das experiências reais como o Breque e a luta contra a escala 6×1, e que impulsione assembleias gerais com direito à voz e voto de todos os trabalhadores, formais e informais, efetivos e terceirizados.
De outro lado, os trabalhadores de plataformas, ao avançarem em se reconhecer como parte do conjunto da classe trabalhadora, dão um passo decisivo para superar o isolamento e fragmentação a que são submetidos pelas empresas. Como eles próprios disseram: “sem entregador não existe aplicativo”. Esse grito precisa se unir ao grito do conjunto dos trabalhadores que dizem: “sem nós, nenhuma roda gira, nenhuma economia funciona”.
Um programa de combate à precarização
Para unificar os trabalhadores é preciso um programa claro de combate à precarização, que una todas as frações da classe trabalhadora e todos os setores oprimidos pelo capitalismo.
Se os patrões usam os trabalhadores precarizados para rebaixar as condições de vida de todos os trabalhadores, então que respondamos à altura. Junto aos setores mais organizados e estratégicos do proletariado, como os petroleiros, metroviários, bancários e metalúrgicos, é preciso movimentar essa força a serviço de unificar e convergir com os setores mais precarizados.
Precisamos batalhar por um programa que unifique.
Por plenos direitos trabalhistas a todos os trabalhadores uberizados, terceirizados e informais para combater a precarização. Pelo fim da escala 6×1 para impor uma jornada de 30h semanais sem redução salarial, abrindo caminho para revogar todas todas as reformas nefastas que escravizam os trabalhadores, como a Trabalhista, da Previdência e o Arcabouço Fiscal, que suga nosso dinheiro pra entregar de mão beijada para os banqueiros. Pelo fim do pagamento da dívida pública!
A nossa luta deve mirar a efetivação de todos os trabalhadores terceirizados sem a necessidade de concurso público. Reestatização da Sabesp, da CPTM e de todas as empresas privatizadas e essenciais como a Petrobras, sem direito a indenização dos capitalistas, colocando essas empresas sob controle dos trabalhadores para servirem de fato à população e não aos lucros dos empresários.
Contra a reforma do ensino médio, o arcabouço fiscal e todas as políticas de austeridade implementadas pelo governo Lula-Alckmin em aliança com o STF, agronegócio, bancos e milicos.
Pela auto-organização da classe trabalhadora: comissões de base, coordenações regionais e uma coordenação nacional de luta construída desde as bases.
É esse o caminho que a esquerda deve pavimentar, não o caminho da conciliação. Existe hoje uma necessidade urgente de construir uma força política dos trabalhadores, independente da burguesia e do governo, capaz de apresentar uma saída socialista frente à crise capitalista, à destruição ambiental e à ofensiva imperialista de governos como Trump.
Essa força precisa ser uma oposição de esquerda ao governo de conciliação de classes, que mantenha uma posição intransigente contra os ajustes, os cortes e a repressão que Lula, Haddad e seus aliados impõem, para superar também a experiência de partidos como o PSOL, que vem se mostrando cada vez mais um partido entrelaçado com esse regime podre que sobrevive no Brasil.
O Breque nos mostra que o fogo ainda sobrevive em meio às cinzas. A classe trabalhadora, mesmo fragmentada e dividida, imprime uma força heróica de resistência. Batalhemos pela construção de um partido revolucionário da classe trabalhadora, enraizado nos locais de trabalho e estudo, que combine a luta pelas demandas imediatas com a luta pelo fim do capitalismo e da exploração, dotando essas pequenas centelhas de luta com um programa claro, com organização e estratégia.
O lema dos entregadores que estampou as bags é o nosso lema: a nossa vida vale mais que o lucro deles!