Juan Dal Maso
No marxismo, o tema da lógica tem sido amplamente discutido, com uma variedade de posições que vão desde a postulação da dialética como uma “lógica superior à lógica formal” até aquelas que propõem descartar a dialética por completo, passando por todo tipo de reflexões, incluindo as que buscam vincular a abordagem dialética a certos aspectos da lógica formal (particularmente à lógica de relações). Essa variedade se deve à multiplicidade de tradições (sem esquecer o impacto da burocratização liderada por Stálin nos debates científicos e filosóficos na URSS e no movimento comunista do século XX). Aqui, não pretendemos discutir todas essas questões, mas sim nos concentrar no estudo de um caso particular, cujas características podem valer para boa parte do corpo teórico marxista, ao mesmo tempo que mostram a variedade de recursos lógicos utilizados nessa tradição. Analisaremos os principais argumentos e procedimentos lógicos empregados por Leon Trotsky. Quando dizemos “lógicos”, usamos o termo em um sentido amplo, não limitado à lógica simbólica clássica (focada no raciocínio dedutivo). Esta é uma disciplina altamente formalizada, que não poderia abarcar exatamente o conjunto de argumentações, análises e hipóteses desenvolvidas por Trotsky. Por isso, recorreremos a outras variantes, contempladas pela lógica informal, pela filosofia e pela epistemologia, embora vejamos em que medida esses procedimentos se combinam com raciocínios dedutivos. Antes de analisarmos esses diferentes procedimentos, faremos algumas considerações mais gerais sobre o modo como o marxismo constrói conhecimento e sua relação com a ciência, a filosofia e a lógica 1. Uma “ciência histórico-social sui generis” e seus modos de raciocinar e argumentar A expressão entre aspas no subtítulo pertence a Manuel Sacristán, em sua conferência de 1978 intitulada O trabalho científico de Marx e sua noção de ciência. Nessa exposição, Sacristán apontava que, em Marx, havia três vertentes que moldavam sua noção de ciência, assim como sua própria prática científica: a “ciência normal” (expressão com a qual ele usava livremente a definição de Kuhn sobre uma ciência que trabalha com base em um paradigma já estabelecido, mas que Sacristán associava à ciência que opera com o método hipotético-dedutivo e a comprovação empírica ou demonstração algorítmica), a crítica jovem-hegeliana (fundamentalmente crítica a pontos de vista expressos em textos teóricos) e a “ciência alemã”, ou seja, a dialética, que se propõe a reconstruir o “movimento da coisa” e oferecer uma composição totalizadora do objeto analisado. Para os propósitos deste artigo, o que nos interessa ressaltar é que essa multiplicidade de fontes tem como consequência a coexistência de diversos modos de raciocínio, argumentação e construção teórica — alguns mais próprios das ciências (formulação de hipóteses), outros da filosofia. Há também esquemas de raciocínio não contemplados na lógica formal (analogias, generalização por enumeração e experimentos mentais), além daqueles pertencentes à lógica formal (raciocínios dedutivos) e os procedimentos intelectuais característicos da dialética (identificação de contradições ou oposições, reconstrução do devir, totalização por meio da combinação de análise e composição). Balanços e Perspectivas: formulação de hipóteses, experimentos mentais e argumentos dedutivos Entre os procedimentos empregados por Trotsky, o mais significativo em termos teóricos é a formulação de hipóteses, que segue os parâmetros estabelecidos por Peirce em seu artigo clássico e consiste na inferência de uma regra a partir de um caso. Em Dedução, indução e hipótese, Charles S. Peirce apontou que a formulação de uma hipótese busca compreender um caso, inferindo a regra que o explica e, assim, construindo a melhor explicação possível. Esse processo difere da dedução porque não parte de uma regra para dela derivar a explicação do caso (não conhecemos a regra no momento em que tentamos formulá-la) e difere da indução porque não busca estabelecer uma regra com base em uma generalização construída a partir de muitos casos com características comuns. Posteriormente, Peirce retomou essa questão, utilizando o termo “abdução” para descrever o raciocínio correspondente à formulação de hipóteses. Esse modo de raciocinar é frequentemente definido como um “salto para a melhor explicação”. É exatamente assim que Trotsky procede em Balanços e Perspectivas, ao elaborar uma hipótese sobre as características da Revolução Russa. A regra geral que pressupõe e cria as condições para a hipótese da transformação da revolução democrático-burguesa em socialista é que a integração de um país “atrasado” à economia mundial inibe seu desenvolvimento “normal”, cujo modelo econômico poderia ser a Inglaterra e, politicamente, a França. A mesma questão foi abordada em termos de uma maior generalização por meio da conceituação do desenvolvimento desigual e combinado (referida por Trotsky em 1928 em sua crítica ao programa da IC e formulada de modo mais explícito entre 1930-31, em sua História da Revolução Russa), nesse caso como uma regra geral que caracteriza o processo histórico, especialmente na época capitalista. A combinação de capitalismo e autocracia implicava que a burguesia era um fator do status quo e não uma classe revolucionária, deixando esse papel para o proletariado, que acessaria o poder como líder da nação oprimida com uma política democrática geral. No entanto, para se sustentar, teria que adotar uma política cada vez mais de classe, transformando assim a revolução democrática em socialista. Quando formulou essa hipótese, Trotsky não desenvolveu uma teoria geral, mas sim uma teoria centrada na Revolução Russa, embora tenha delineado certas questões gerais, como se pode ver no parágrafo a seguir: É possível que o proletariado de um país economicamente atrasado chegue ao poder antes do que em um país capitalista desenvolvido. Em 1871, assumiu conscientemente a direção dos assuntos públicos na Paris pequeno-burguesa, ainda que apenas por um período de dois meses; mas nem por uma única hora tomou o poder nos grandes centros capitalistas da Inglaterra ou dos Estados Unidos. A ideia de que a ditadura do proletariado depende automaticamente das forças e dos meios técnicos de um país é um preconceito de um materialismo “econômico” simplificado ao extremo. Tal conceito não tem nada em comum com o marxismo. Em nossa opinião, a revolução russa criará as condições sob as quais o poder pode passar para as mãos do proletariado (e, no caso de uma vitória da revolução, assim deve ser) antes que os políticos do…
No marxismo, o tema da lógica tem sido amplamente discutido, com uma variedade de posições que vão desde a postulação da dialética como uma “lógica superior à lógica formal” até aquelas que propõem descartar a dialética por completo, passando por todo tipo de reflexões, incluindo as que buscam vincular a abordagem dialética a certos aspectos da lógica formal (particularmente à lógica de relações). Essa variedade se deve à multiplicidade de tradições (sem esquecer o impacto da burocratização liderada por Stálin nos debates científicos e filosóficos na URSS e no movimento comunista do século XX). Aqui, não pretendemos discutir todas essas questões, mas sim nos concentrar no estudo de um caso particular, cujas características podem valer para boa parte do corpo teórico marxista, ao mesmo tempo que mostram a variedade de recursos lógicos utilizados nessa tradição. Analisaremos os principais argumentos e procedimentos lógicos empregados por Leon Trotsky. Quando dizemos “lógicos”, usamos o termo em um sentido amplo, não limitado à lógica simbólica clássica (focada no raciocínio dedutivo). Esta é uma disciplina altamente formalizada, que não poderia abarcar exatamente o conjunto de argumentações, análises e hipóteses desenvolvidas por Trotsky. Por isso, recorreremos a outras variantes, contempladas pela lógica informal, pela filosofia e pela epistemologia, embora vejamos em que medida esses procedimentos se combinam com raciocínios dedutivos. Antes de analisarmos esses diferentes procedimentos, faremos algumas considerações mais gerais sobre o modo como o marxismo constrói conhecimento e sua relação com a ciência, a filosofia e a lógica 1.
Uma “ciência histórico-social sui generis” e seus modos de raciocinar e argumentar
A expressão entre aspas no subtítulo pertence a Manuel Sacristán, em sua conferência de 1978 intitulada O trabalho científico de Marx e sua noção de ciência. Nessa exposição, Sacristán apontava que, em Marx, havia três vertentes que moldavam sua noção de ciência, assim como sua própria prática científica: a “ciência normal” (expressão com a qual ele usava livremente a definição de Kuhn sobre uma ciência que trabalha com base em um paradigma já estabelecido, mas que Sacristán associava à ciência que opera com o método hipotético-dedutivo e a comprovação empírica ou demonstração algorítmica), a crítica jovem-hegeliana (fundamentalmente crítica a pontos de vista expressos em textos teóricos) e a “ciência alemã”, ou seja, a dialética, que se propõe a reconstruir o “movimento da coisa” e oferecer uma composição totalizadora do objeto analisado. Para os propósitos deste artigo, o que nos interessa ressaltar é que essa multiplicidade de fontes tem como consequência a coexistência de diversos modos de raciocínio, argumentação e construção teórica — alguns mais próprios das ciências (formulação de hipóteses), outros da filosofia. Há também esquemas de raciocínio não contemplados na lógica formal (analogias, generalização por enumeração e experimentos mentais), além daqueles pertencentes à lógica formal (raciocínios dedutivos) e os procedimentos intelectuais característicos da dialética (identificação de contradições ou oposições, reconstrução do devir, totalização por meio da combinação de análise e composição).
Balanços e Perspectivas: formulação de hipóteses, experimentos mentais e argumentos dedutivos
Entre os procedimentos empregados por Trotsky, o mais significativo em termos teóricos é a formulação de hipóteses, que segue os parâmetros estabelecidos por Peirce em seu artigo clássico e consiste na inferência de uma regra a partir de um caso.
Em Dedução, indução e hipótese, Charles S. Peirce apontou que a formulação de uma hipótese busca compreender um caso, inferindo a regra que o explica e, assim, construindo a melhor explicação possível. Esse processo difere da dedução porque não parte de uma regra para dela derivar a explicação do caso (não conhecemos a regra no momento em que tentamos formulá-la) e difere da indução porque não busca estabelecer uma regra com base em uma generalização construída a partir de muitos casos com características comuns. Posteriormente, Peirce retomou essa questão, utilizando o termo “abdução” para descrever o raciocínio correspondente à formulação de hipóteses. Esse modo de raciocinar é frequentemente definido como um “salto para a melhor explicação”.
É exatamente assim que Trotsky procede em Balanços e Perspectivas, ao elaborar uma hipótese sobre as características da Revolução Russa. A regra geral que pressupõe e cria as condições para a hipótese da transformação da revolução democrático-burguesa em socialista é que a integração de um país “atrasado” à economia mundial inibe seu desenvolvimento “normal”, cujo modelo econômico poderia ser a Inglaterra e, politicamente, a França. A mesma questão foi abordada em termos de uma maior generalização por meio da conceituação do desenvolvimento desigual e combinado (referida por Trotsky em 1928 em sua crítica ao programa da IC e formulada de modo mais explícito entre 1930-31, em sua História da Revolução Russa), nesse caso como uma regra geral que caracteriza o processo histórico, especialmente na época capitalista.
A combinação de capitalismo e autocracia implicava que a burguesia era um fator do status quo e não uma classe revolucionária, deixando esse papel para o proletariado, que acessaria o poder como líder da nação oprimida com uma política democrática geral. No entanto, para se sustentar, teria que adotar uma política cada vez mais de classe, transformando assim a revolução democrática em socialista. Quando formulou essa hipótese, Trotsky não desenvolveu uma teoria geral, mas sim uma teoria centrada na Revolução Russa, embora tenha delineado certas questões gerais, como se pode ver no parágrafo a seguir:
É possível que o proletariado de um país economicamente atrasado chegue ao poder antes do que em um país capitalista desenvolvido. Em 1871, assumiu conscientemente a direção dos assuntos públicos na Paris pequeno-burguesa, ainda que apenas por um período de dois meses; mas nem por uma única hora tomou o poder nos grandes centros capitalistas da Inglaterra ou dos Estados Unidos. A ideia de que a ditadura do proletariado depende automaticamente das forças e dos meios técnicos de um país é um preconceito de um materialismo “econômico” simplificado ao extremo. Tal conceito não tem nada em comum com o marxismo. Em nossa opinião, a revolução russa criará as condições sob as quais o poder pode passar para as mãos do proletariado (e, no caso de uma vitória da revolução, assim deve ser) antes que os políticos do liberalismo burguês tenham a oportunidade de demonstrar todo o seu talento político.
Trotsky também utiliza um recurso muito comum na argumentação filosófica, os experimentos mentais 2, nos quais se apresenta uma situação imaginária para testar uma posição ou argumento. No caso de Balanços e Perspectivas, esse recurso é usado para argumentar sobre a impossibilidade de uma revolução que se detenha na realização de tarefas democrático-burguesas:
Mas uma vez que o poder se encontre nas mãos de um governo revolucionário com maioria socialista, a diferença entre o programa mínimo e o máximo perde praticamente toda a importância, tanto “de princípio” como na prática. Um governo proletário não pode, de forma alguma, atuar dentro de um quadro tão limitado. Tomemos a reivindicação da jornada de trabalho de oito horas. Como se sabe, ela não contradiz em nada as condições capitalistas de produção e, portanto, faz parte do programa mínimo da social-democracia. Mas imaginemos sua implementação real durante um período revolucionário em que todas as paixões sociais estão à flor da pele. A nova lei encontraria, sem dúvida, a resistência organizada e obstinada dos capitalistas, por exemplo, na forma de lockout e fechamento de fábricas e empresas. Centenas de milhares de trabalhadores seriam demitidos. O que o governo deveria fazer? Um governo burguês, por mais radical que fosse, não permitiria que se chegasse a esse ponto, pois se veria impotente diante do fechamento das fábricas e empresas. Teria que fazer concessões, a jornada de oito horas não seria introduzida, a indignação do proletariado seria reprimida…
Sob a dominação política do proletariado, a introdução da jornada de oito horas levaria a consequências muito diferentes. O fechamento de fábricas e empresas pelos capitalistas, naturalmente, não pode ser um motivo para prolongar a jornada de trabalho por parte de um governo que pretende se apoiar no proletariado e não no capital – como faz o liberalismo – e que não quer desempenhar o papel de intermediário “imparcial” da democracia burguesa. Para um governo operário, só há uma saída: a expropriação das fábricas e empresas fechadas e a organização de sua produção com base na gestão coletiva.
Esse recurso se combina com o uso de raciocínios dedutivos (ou seja, aqueles estruturados de forma que a conclusão deriva necessariamente das premissas), como no seguinte parágrafo:
A dominação política do proletariado é incompatível com sua escravização econômica. Pouco importa a bandeira política sob a qual o proletariado tenha chegado ao poder: ele será obrigado a seguir uma política socialista. É a maior utopia imaginar que o proletariado – depois de ter se elevado, por meio da dinâmica interna da revolução burguesa, ao domínio do Estado – possa, mesmo que quisesse, limitar sua missão à criação de condições republicano-democráticas para a dominação social da burguesia. Mesmo uma dominação política passageira do proletariado enfraquecerá a resistência do capital, que sempre necessita do apoio do poder político, e ampliará enormemente a luta econômica dos trabalhadores. Os operários não podem deixar de exigir do governo revolucionário apoio às greves; e o governo, apoiando-se nos trabalhadores, não pode negar essa ajuda. Mas isso já significa paralisar a influência do exército de reserva de mão de obra e equivale ao domínio dos trabalhadores, não apenas no terreno político, mas também no econômico, transformando a propriedade privada dos meios de produção em uma ficção. Essas inevitáveis consequências socioeconômicas da ditadura do proletariado surgirão rapidamente, muito antes que a democratização da ordem política esteja concluída. A barreira entre o programa “mínimo” e o “máximo” desaparece assim que o proletariado obtém o poder.
Trata-se de um argumento dedutivo 3 que pode ser reconstruído da seguinte forma:
Se se estabelece a ditadura do proletariado, então o governo não poderá se limitar a medidas democráticas e terá que apoiar os operários contra a dominação econômica da burguesia.
Se o governo não se limita às tarefas democráticas e apoia os operários contra a dominação econômica da burguesia, então ele terá que afetar a propriedade privada. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Se se estabelece a ditadura do proletariado, então esta terá que afetar a propriedade privada.
No linguajar da lógica de enunciados, isso poderia ser simbolizado da seguinte maneira:
Dicionário:
p: estabelece-se a ditadura do proletariado;
q: o governo se limita a medidas democráticas;
r: o governo apoia os operários contra a dominação econômica da burguesia;
s: o governo afeta a propriedade privada.
Expressão lógica:
p→(-q ∧ r), (-q ∧ r)→s ├ p→s
A demonstração de validade por meio do cálculo de dedução natural é bastante simples. Lembremos que, para a derivação por cálculo de dedução natural, devemos primeiro listar as premissas com um hífen e um número e, em seguida, numerar as fórmulas obtidas pela aplicação das regras de transformação até chegar à conclusão, anotando à direita a regra utilizada e os números das linhas aplicadas. Neste caso, utilizamos a regra do silogismo hipotético, cuja forma é:
A→B
B→C
A→C
Aplicando essa estrutura ao nosso argumento, temos que p corresponde a A, (-q ∧ r) a B e s a C.
A derivação fica assim:
p→(-q ∧ r), (-q ∧ r)→s ├ p→s
-1. p→ (-q ∧ r)
-2. (-q ∧ r)→s
3. p→sil 1,2
Trata-se, portanto, de um raciocínio dedutivo válido.
Em resumo, com os trechos citados, podemos ver como Trotsky utilizou o raciocínio abdutivo, os experimentos mentais e a dedução, construindo sua argumentação por meio da combinação dessas ferramentas. A seguir, veremos, com base em outras elaborações posteriores a Balanços e Perspectivas, que – mantendo a centralidade dos raciocínios abdutivos – Trotsky também emprega outros recursos.
Revolução permanente e dualidade de poderes: o uso complementar da generalização por enumeração
Outro procedimento utilizado por Trotsky é a generalização a partir da enumeração de casos. Embora, no plano epistemológico, as limitações de um “indutivismo ingênuo” tenham sido frequentemente apontadas — pois a observação depende da teoria, e a generalização não surge meramente da extensão dos casos analisados, mas de um processo mais complexo que envolve certas premissas teóricas (explícitas ou implícitas) —, no caso de Trotsky, o recurso à generalização por enumeração 4 costuma ser combinado com a formulação de hipóteses ou raciocínio abdutivo dentro de um arcabouço teórico previamente estabelecido.
Esse é o caso da formulação da versão “madura” da teoria da revolução permanente (1929-30), que recupera o já apontado em Balanços e Perspectivas sobre a transformação da revolução “democrático-burguesa” em socialista, mas o generaliza para todos os países coloniais, semicoloniais e de desenvolvimento burguês atrasado, ao mesmo tempo em que estipula outras questões teóricas gerais que dizem respeito à revolução socialista contemporânea como tal (incluindo explicitamente as revoluções em países metropolitanos). Por um lado, as conclusões das Revoluções Russa (1905 e 1917) e Chinesa (1925-27) permitem generalizar a hipótese de transformação da revolução democrática em socialista já formulada para a Rússia em 1905. Por outro, essa generalização é acompanhada de hipóteses teóricas ligadas a outros problemas do debate do período, como o caráter internacional da revolução e seus problemas na sociedade de transição, assim como as diferenças de tempo entre países periféricos e metropolitanos, entre outras questões. A propósito, várias das teses com as quais Trotsky conclui A Revolução Permanente têm a estrutura de raciocínios dedutivos, o que reforça a ideia apresentada na seção anterior sobre a combinação de procedimentos.
Outro caso que combina a formulação de hipóteses com a generalização indutiva é o da conceituação da dualidade de poderes como uma situação característica de toda revolução (e não apenas como uma exceção russa). Se analisarmos a argumentação de Trotsky, veremos que, em primeiro lugar, ele postula como característico de toda revolução o desenvolvimento de uma situação de poder dual:
“A mecânica política da revolução consiste na passagem do poder de uma classe para outra. A transformação violenta geralmente ocorre em um período de tempo muito curto. Mas não há nenhuma classe histórica que passe da situação de subordinada para a de dominadora de repente, da noite para o dia, mesmo que essa noite seja a da revolução. É necessário que, já na véspera, ela ocupe uma situação de extraordinária independência em relação à classe oficialmente dominante; mais ainda, é preciso que nela se concentrem as esperanças das classes e camadas intermediárias, descontentes com o existente, mas incapazes de desempenhar um papel próprio. A preparação histórica da revolução leva, no período pré-revolucionário, a uma situação na qual a classe chamada a implantar o novo sistema social, embora ainda não seja dona do país, reúne de fato em suas mãos uma parte considerável do poder do Estado, enquanto o aparato oficial deste último continua nas mãos de seus antigos detentores. Daí surge a dualidade de poderes em toda revolução.”
Posteriormente, ele apresenta um conjunto de exemplos históricos de diversas revoluções (a inglesa no século XVII, a francesa no século XVIII e a própria Revolução Russa) como apoio à sua afirmação, cuja reprodução completa omitimos aqui por razões de espaço, remetendo ao texto de Trotsky para mais detalhes. Citaremos apenas um pequeno trecho para ilustrar um pouco o desenvolvimento da argumentação:
“A Revolução Inglesa do século XVII, precisamente porque foi uma grande revolução que abalou o país até suas entranhas, representa uma sucessão evidente de regimes de poder dual com transições abruptas de um para outro na forma de guerras civis […] Assim, pelos degraus da dualidade de poderes, a Revolução Francesa ascende ao longo de quatro anos até sua culminação. E a partir do 9 Termidor, a revolução começa a descer novamente pelos degraus da dualidade de poderes. E novamente a guerra civil precede cada descida, assim como antes havia acompanhado cada nova ascensão. A nova sociedade busca, dessa forma, um novo equilíbrio de forças.”
A análise detalhada de ambos os processos, aos quais se soma a questão da dualidade de poderes após a revolução de fevereiro de 1917 na Rússia, sugere que Trotsky estudou o tema com certa minúcia. No entanto, com base nas características de seu trabalho teórico, pode-se afirmar – sem medo de estabelecer uma conclusão precipitada – que a generalização da dualidade de poderes surge de uma hipótese formada a partir da experiência russa e que os exemplos de revoluções anteriores desempenham o papel de apoiar essa hipótese e, portanto, não têm antecedência cronológica em relação a ela, conferindo à generalização por enumeração um caráter complementar à formulação de hipóteses.
O Termidor Soviético e o Poder da Analogia
O argumento por analogia faz parte dos raciocínios indutivos, nos quais se busca que a conclusão seja fundamentada com certo grau de probabilidade (e não com necessidade, como é o caso dos raciocínios dedutivos). Em um argumento analógico, com base na semelhança entre duas entidades em dois aspectos, e a partir do fato de que uma dessas entidades possui uma terceira propriedade, infere-se que a outra entidade também possui essa propriedade (vale esclarecer que o raciocínio pode se referir a mais de duas entidades e a mais de dois aspectos semelhantes). Geralmente, utilizam-se seis critérios para a avaliação de raciocínios analógicos: a) relevância dos aspectos comparados; b) variedade dos exemplos mencionados nas premissas; c) quantidade de dessemelhanças entre os exemplos mencionados nas premissas e o exemplo mencionado na conclusão; d) quantidade de entidades; e) força da conclusão em relação às premissas (por exemplo, se algo aconteceu em um prazo de 5 meses, prever que seu análogo durará 5 meses e não cinco anos); f) quantidade de aspectos (entre os quais se estabelece a analogia) 5.
Esse raciocínio foi utilizado por Trotsky para a análise do “Termidor Soviético”, sobre o qual ele retornou em diferentes ocasiões, modificando a definição do fenômeno e tentando precisar a analogia histórica. Em 1929, em seu artigo Para Onde Vai a República Soviética?, ele afirmava:
Os onze anos da revolução soviética podem ser divididos, por sua vez, em uma série de etapas, duas das quais mais importantes que as demais. Em linhas gerais, pode-se considerar que a doença de Lenin e o início da campanha contra o “trotskismo” marcam a linha divisória entre ambas. O segundo período, que provocou uma mudança radical na direção, caracterizou-se por uma indiscutível redução da intervenção direta das massas. O riacho voltou ao seu leito. Acima das massas, o aparato administrativo centralizado elevou-se cada vez mais. O estado soviético e o exército se burocratizaram. Aumentou a distância entre o estrato governante e as massas. O aparato tornou-se cada vez mais autossuficiente. O funcionário do governo convenceu-se cada vez mais de que a Revolução de Outubro foi feita precisamente para colocar o poder em suas mãos e garantir-lhe uma posição privilegiada. […] A maioria desses funcionários que se elevaram acima das massas é profundamente conservadora. Tendem a pensar que tudo o que é necessário para o bem-estar humano já foi feito e a considerar como inimigo quem não reconheça isso. Esses elementos sentem um ódio orgânico pela Oposição; acusam-na de semear, com suas críticas, a insatisfação entre as massas, de minar a estabilidade do regime e de ameaçar as conquistas de Outubro com o espectro da “revolução permanente”. Essa camada conservadora, o apoio mais importante que Stalin tem em sua luta contra a Oposição, tende a ir muito mais para a direita – em direção aos novos elementos proprietários – do que o próprio núcleo principal de sua facção. […] Quando um protagonista de uma revolução começa a renegar a mesma sem romper com a base social de apoio da revolução, vê-se obrigado a qualificar sua queda como ascensão e a confundir sua mão direita com a esquerda. É precisamente por isso que os stalinistas acusam a Oposição de “contrarrevolucionária” e fazem esforços desesperados para colocar no mesmo saco seus adversários de direita e de esquerda. Daqui em diante, a palavra “emigrado” servirá ao mesmo propósito. Na realidade, hoje existem dois tipos de emigrados: um foi expulso do país pela ascensão das massas da revolução, o outro serve como indicador do sucesso obtido pelas forças hostis à revolução. Quando a Oposição fala de Termidor, como analogia com a clássica revolução do final do século XVIII, refere-se ao perigo de que, diante dos fenômenos e tendências mencionados, a luta dos stalinistas contra a esquerda seja o ponto de partida de uma mudança oculta na natureza social do poder soviético.
Em seguida, expõe a analogia:
A primeira etapa no caminho da reação foi o Termidor. Os novos funcionários e proprietários queriam desfrutar em paz dos frutos da revolução. Os velhos jacobinos intransigentes constituíam um obstáculo em seu caminho; mas os novos estratos proprietários não ousavam aparecer com sua própria bandeira. Precisavam esconder-se atrás dos jacobinos. Durante um breve período, utilizaram alguns jacobinos de segunda ou terceira ordem. Ao nadar a favor da corrente, esses jacobinos abriram caminho para Bonaparte; este, com suas baionetas e seu código legal, consolidou o novo sistema de propriedade. Também na terra dos sovietes podem ser encontrados elementos de um processo termidoriano, embora, é claro, com características próprias. Eles se destacaram de maneira muito evidente nos últimos anos. Aqueles que hoje detêm o poder desempenharam um papel absolutamente secundário nos acontecimentos críticos do primeiro período da revolução, ou foram francos adversários dela e só se uniram a ela depois que triunfou. Agora servem para encobrir os estratos e grupos que, embora hostis ao socialismo, são demasiado fracos para provocar uma virada contrarrevolucionária e, por isso, buscam alcançar a transição pacífica e termidoriana de volta à sociedade burguesa; buscam, para usar as palavras de um de seus ideólogos, “descer a ladeira com os freios acionados”.
Em um artigo posterior, de 1933, Trotsky retomou esse tema e definiu o Termidor como a “contrarrevolução pequeno-burguesa, que realmente se acredita revolucionária, que não quer o domínio do capital, mas que inevitavelmente o prepara”. Mas depois modificou a definição e a periodização do fenômeno do Termidor soviético, tentando precisar a analogia com o Termidor clássico da Revolução Francesa. Em 1935, em um texto fundamental no processo de suas reflexões sobre a burocratização da URSS, propôs “precisar e corrigir” a analogia histórica:
… hoje temos que admitir que a analogia do Termidor obscureceu mais do que esclareceu o problema. O Termidor de 1794 produziu a transferência do poder de alguns grupos da Convenção para outros, de um para outro setor do “povo” vitorioso. Foi contrarrevolucionário? A resposta depende da extensão que damos, em cada caso concreto, ao conceito de “contrarrevolução”. A mudança social que ocorreu entre 1789 e 1793 foi de caráter burguês. Em essência, reduziu-se à substituição da propriedade feudal fixa pela propriedade burguesa “livre”. A contrarrevolução “correspondente” a essa revolução teria que ter significado o restabelecimento da propriedade feudal. Mas o Termidor nem sequer tentou seguir essa direção. Robespierre buscou apoio entre os artesãos, o Diretório entre a burguesia média. Bonaparte aliou-se aos banqueiros. Todas essas mudanças, que, é claro, não tinham apenas um sentido político, mas também um sentido social, ocorreram, no entanto, sobre a base da nova sociedade e do novo estado burguês. O Termidor foi a reação agindo sobre os fundamentos sociais da Revolução.
Em seguida, retoma a analogia, afirmando que é necessário corrigi-la e precisá-la:
A virada do 9 de Termidor não liquidou as conquistas básicas da revolução burguesa, mas transferiu o poder para as mãos dos jacobinos mais moderados e conservadores, os elementos mais abastados da sociedade burguesa. Hoje é impossível não ver que na revolução soviética também ocorreu, há muito tempo, uma virada à direita, totalmente análoga ao Termidor, embora em um ritmo muito mais lento e formalmente mais disfarçado. A conspiração da burocracia soviética contra a ala esquerda pôde manter, nas etapas iniciais, seu caráter relativamente “sobrio” porque foi executada de maneira muito mais sistemática e profunda do que a improvisação do 9 de Termidor.
Também acrescenta uma diferença entre a burguesia e a classe operária como classes dirigentes, buscando precisar o momento em que começa o Termidor soviético:
Socialmente, o proletariado é mais homogêneo do que a burguesia, mas contém em seu seio uma série de setores que se manifestam com excepcional clareza após a tomada do poder, durante o período em que começam a se formar a burocracia e a aristocracia operária ligada a ela. A derrota da Oposição de Esquerda implicou, no sentido mais direto e imediato, a transferência do poder das mãos da vanguarda revolucionária para os elementos mais conservadores da burocracia e do estrato superior da classe operária. 1924: eis o início do Termidor soviético.
Uma vez feitas as precisões anteriores, analisemos a analogia realizada por Trotsky, de acordo com os requisitos mencionados: a) relevância dos aspectos comparados: busca-se a semelhança nas causas principais de dois processos de retrocesso na revolução, de modo que o caso francês sirva para entender o caso soviético, que é o que se está tentando explicar; b) variedade dos exemplos mencionados nas premissas: a variedade não é tanta, pois se trata de duas revoluções, mas das mais importantes até o momento em que a analogia é feita, de modo que o requisito de variedade pode ser considerado atendido pela relevância dos casos considerados; c) quantidade de dessemelhanças entre os exemplos mencionados nas premissas e o exemplo mencionado na conclusão: aqui talvez não seja tanto a quantidade, mas a qualidade das dessemelhanças, pois são revoluções com caráter de classe diferente e a situação geral do capitalismo é muito distinta, o que reforça, por sua vez, as semelhanças entre os processos de deriva conservadora, por terem características semelhantes apesar da diferença abissal de contexto; d) quantidade de entidades: idem ao item b; e) força da conclusão em relação às premissas: a conclusão retoma os principais aspectos apresentados nas premissas e é apresentada como altamente provável, sem exagerar na previsão (de fato, em outras passagens não citadas, ele afirma que não necessariamente se consumará); f) quantidade de aspectos (entre os quais se estabelece a analogia): a quantidade de aspectos é satisfatória: em ambos os casos, são considerados diversos elementos que compõem o processo, como a existência de um partido formalmente revolucionário no poder, o papel dos funcionários conservadores que hoje desempenham um papel proeminente, mas ocuparam papéis secundários na revolução, as tendências conservadoras na sociedade que pressionam pela restauração da velha ordem, após um período de ascensão da luta de classes e subsequente refluxo, etc.
É importante lembrar também que, ao buscar fundamentar a possibilidade de falar em um “Termidor soviético”, a analogia utilizada por Trotsky se restringe à comparação com o caso francês, que seria o Termidor original. Talvez incluir outros casos de processos de deriva conservadora (por exemplo, na Revolução Inglesa do século XVII, já mencionada a propósito da dualidade de poderes, ou nas revoluções de 1848) pudesse reforçar as conclusões, se o objetivo fosse uma reflexão sobre a alternância de revoluções e reações e/ou contrarrevoluções. No entanto, como Trotsky busca algo muito mais específico, a analogia só pode se apoiar no caso francês, daí que cumpra os requisitos de um raciocínio analógico, mas de um modo particular, como explicamos.
A dialética: contradição, transição, singularidade e totalização
Nas obras de Trotsky, não há muitos comentários especificamente “metodológicos” sobre a dialética, com exceção de seus Escritos sobre Lenin, dialética e evolucionismo – que poderiam ser considerados mais filosóficos (no sentido de uma defesa do “materialismo dialético” como filosofia substantiva) do que propriamente metodológicos –, alguns trechos de Em Defesa do Marxismo e alguns escritos inacabados. Dentre esses trabalhos, os mais ricos em termos de alcance, profundidade das reflexões e questões levantadas são os primeiros, embora sejam compostos de anotações e rascunhos. Sobre eles, pode-se consultar a introdução de Ariane Díaz à edição em espanhol do livro e esta nota de divulgação de minha autoria.
Nesse contexto, poder-se-ia pensar que Trotsky – e não é o único marxista a agir assim – utilizou muito mais a dialética do que a expôs em termos de doutrina. Isso ocorre porque o interesse de Trotsky pela dialética tinha menos a ver com a formulação de um pensamento filosófico geral e mais com a possibilidade de compreender a dinâmica e a singularidade dos processos históricos, acompanhando essa compreensão da singularidade com a formulação de hipóteses ou leis gerais. Algo disso ele menciona ao recordar, em sua autobiografia, suas leituras de Antonio Labriola na prisão de Odessa, leituras que o levaram a aderir ao marxismo:
Labriola manuseava como poucos escritores latinos a dialética materialista no campo da filosofia da história […] Embora tenham se passado trinta anos desde que li seus ensaios, ainda me lembro perfeitamente de seu pensamento como um refrão: “as ideias não caem do céu”. Depois disso, os teóricos russos da multiplicidade e da diversidade de fatores, como Lavrov, Mikhailovsky, Kareiev e outros, me pareceram pouco consistentes […] Mais tarde, encontrei em Marx, Engels, Plekhanov, Mehring, a confirmação do que na prisão me parecia uma simples conjectura ainda sujeita à verificação e que precisava ser fundamentada. Desde o início, assimilei o materialismo histórico de uma forma não dogmática. A dialética se apresentou diante de mim, para começar, não em suas definições abstratas, mas como uma energia viva que eu descobria no processo histórico em si, na medida em que buscava compreendê-lo.
Sua leitura da dialética destaca, por um lado, a capacidade de apresentar as “forças vivas” do movimento histórico (no que pareceria uma reformulação especial, não panlogista, do “movimento da coisa” hegeliano), assim como a questão da mudança qualitativa (emergência de novas propriedades ou estruturas) como chave para compreender as catástrofes, rupturas e revoluções.
Este parágrafo de seus Escritos sobre Lenin, dialéctica e evolucionismo parece ser uma boa síntese de seu pensamento a respeito:
Alguns objetos (fenômenos) são facilmente confinados dentro de fronteiras de acordo com a classificação lógica, outros [nos] apresentam [com] dificuldades: podem ser colocados aqui ou ali, mas em uma relação mais estrita, em lugar nenhum. Enquanto provocam a indignação dos sistematizadores, tais formas transitórias são excepcionalmente interessantes para os dialéticos, pois rompem as limitadas fronteiras da classificação, revelando as conexões reais e a sequência de um processo vivo.
Indo para um plano mais concreto e dentro de seus usos da dialética para a elaboração de suas ideias teóricas, podemos citar o que ele faz em A revolução traída. Nessa obra, Trotsky define a economia soviética como uma economia de transição entre o capitalismo “atrasado” russo e o socialismo futuro, definindo que o Estado soviético tem um “caráter dual” ou um “duplo caráter”: “socialista” na medida em que “defende a propriedade coletiva dos meios de produção” e “burguês” na medida em que “a distribuição dos bens é realizada por meio de medidas capitalistas de valor”.
Para realizar essa definição, Trotsky parte da localização da URSS na economia mundial, o que permite realizar um procedimento de totalização, que é duplo: situar a URSS como parte de um quadro mais amplo, mas ao mesmo tempo compreender sua singularidade, como veremos adiante:
A URSS atual não supera o nível da economia mundial; não faz mais do que alcançar os países capitalistas. Se a sociedade que deveria se formar com base na socialização das forças produtivas dos países mais avançados do capitalismo representava para Marx a “etapa inferior do comunismo”, essa definição certamente não se aplica à URSS, que continua sendo, a esse respeito, muito mais pobre em termos de técnica, bens e cultura do que os países capitalistas. É mais preciso, portanto, chamar o regime soviético atual, com todas as suas contradições, de transitório entre o capitalismo e o socialismo, ou preparatório ao socialismo, e não socialista.
É importante destacar que esta definição busca expor uma luta entre diversas tendências inerentes à realidade da URSS, ou seja, não de uma contradição definida abstratamente que depois é projetada sobre o movimento da realidade, mas uma conceituação que busca captar – como já dissemos – a singularidade da realidade sob estudo. O próprio Trotsky destaca essa questão e aponta os problemas que uma definição assim pode apresentar para um pensamento de tipo dogmático:
O Estado que se impõe como tarefa a transformação socialista da sociedade, como se vê obrigado a defender a desigualdade, ou seja, os privilégios da minoria, continua sendo, em certa medida, um Estado “burguês”, ainda que sem burguesia. Essas palavras não implicam elogio nem censura; simplesmente chamam as coisas pelos seus nomes. As normas burguesas de distribuição, ao acelerar o crescimento do poder material, devem servir a fins socialistas. Mas o Estado adquire imediatamente um caráter duplo: socialista na medida em que defende a propriedade coletiva dos meios de produção; burguês na medida em que a distribuição dos bens é realizada por meio de medidas capitalistas de valor, com todas as consequências que derivam desse fato. Uma definição tão contraditória provavelmente assustará os escolásticos e os dogmáticos; não podemos fazer outra coisa senão lamentar isso.
A fisionomia definitiva do Estado operário deve ser definida pela relação cambiante entre suas tendências burguesas e socialistas. A vitória das últimas deve significar a supressão irrevogável do gendarme ou, em outras palavras, a reabsorção do Estado em uma sociedade que se autoadministra. Isso basta para destacar a imensa importância do problema da burocracia soviética, fato e síntoma.
E, mais adiante, ele acrescenta:
Classificar o regime soviético como transitório ou intermediário é descartar as categorias sociais acabadas, como o capitalismo (incluindo o “capitalismo de Estado”) e o socialismo. Mas essa definição é, por si só, insuficiente e suscetível de sugerir a ideia falsa de que a única transição possível do regime soviético conduz ao socialismo. No entanto, um retrocesso ao capitalismo continua perfeitamente possível. Uma definição mais completa seria, necessariamente, mais longa e mais pesada. A URSS é uma sociedade intermediária entre o capitalismo e o socialismo, na qual: a) As forças produtivas ainda são insuficientes para dar à propriedade do Estado um caráter socialista; b) A tendência à acumulação primitiva, nascida da sociedade, manifesta-se através de todos os poros da economia planejada; c) As normas de distribuição, de natureza burguesa, estão na base da diferenciação social; d) O desenvolvimento econômico, ao mesmo tempo que melhora lentamente a condição dos trabalhadores, contribui para a rápida formação de uma camada de privilegiados; e) A burocracia, ao explorar os antagonismos sociais, tornou-se uma casta incontrolável, estranha ao socialismo; f) A revolução social, traída pelo partido governante, ainda vive nas relações de propriedade e na consciência dos trabalhadores; g) A evolução das contradições acumuladas pode conduzir ao socialismo ou lançar a sociedade de volta ao capitalismo; h) A contrarrevolução em marcha rumo ao capitalismo terá que quebrar a resistência dos trabalhadores; i) Os trabalhadores, ao marchar rumo ao socialismo, terão que derrubar a burocracia. O problema será resolvido definitivamente pela luta de duas forças vivas no terreno nacional e internacional. Naturalmente, os doutrinários não ficarão satisfeitos com uma definição tão hipotética. Eles querem fórmulas categóricas; sim e sim, não e não. Os fenômenos sociológicos seriam muito mais simples se os fenômenos sociais tivessem sempre contornos precisos. Mas nada é mais perigoso do que eliminar, para alcançar a precisão lógica, os elementos que desde já contradizem nossos esquemas e que amanhã podem refutá-los. Em nossa análise, tememos, acima de tudo, violentar o dinamismo de uma formação social sem precedentes e que não tem analogia. O fim científico e político que perseguimos não é dar uma definição acabada de um processo inacabado, mas observar todas as fases do fenômeno e extrair delas as tendências progressistas e as reacionárias, revelar sua interação, prever as diversas variantes do desenvolvimento ulterior e encontrar nessa previsão um ponto de apoio para a ação.
Aqui, Trotsky introduz a referência a uma dimensão fundamental em seu trabalho teórico, que é a combinação entre descrição e prescrição: seu interesse em explicar uma realidade determinada está estreitamente ligado à elaboração de cursos de ação para modificá-la, o que não tem necessariamente a ver com uma abordagem dialética, mas, neste caso, ambas as dimensões se relacionam como forma de reforçar o caráter provisório das definições.
A modo de conclusão
Nas linhas anteriores, vimos que Trotsky utiliza diversos procedimentos lógicos, entendendo essa expressão em um sentido amplo, tanto no que diz respeito às formas de raciocínio quanto à argumentação e construção conceitual. A dialética desempenha um papel fundamental, mas não substitui nem pretende substituir outros modos de raciocinar e argumentar, como os que mencionamos, vinculados ao raciocínio dedutivo estudado pela lógica formal clássica, assim como ao indutivo. Identificar esses diferentes métodos faz sentido, na medida em que nos permite compreender mais profundamente o modo de pensar de um importante referente marxista e reabrir a questão sobre os procedimentos lógicos do marxismo de forma mais geral, já que a análise da multiplicidade e combinação de recursos postos em prática por Trotsky pode servir como estímulo para estudar da mesma maneira outros expoentes da tradição. Por fim, uma questão central que devemos considerar é que também se aprende a pensar. E, para pensar, precisamos de uma pluralidade de ferramentas, como as que analisamos neste artigo.
Notas de rodapé
1. Agradeço à professora Verónica Viñao pelos seus comentários ao rascunho deste artigo, que trouxeram precisão e clareza em diversas questões conceituais. Qualquer fragilidade que persista nestas linhas é de responsabilidade do autor.
2. Ver sobre, Comesaña, J., Lógica informal, falacias y argumentos filosóficos, Bs. As., Eudeba, 2001, pp. 130/140.
3. Sobre os argumentos dedutivos válidos, ver Garrido, M., Lógica simbólica, Madrid, Tecnos, 2007, pp. 61/71 y pp. 75/159 sobre lógica de enunciados.
4. Ver Comesaña, J., op. cit., pp. 33/34.
5. Ver Copi, I. y Cohen C., Introducción a la lógica, México DF, Limusa, pp. 443/467.