Virgínia Guitzel
Travesti, poeta, coordenadora do Centro Acadêmico do BCH e militante do grupo feminista e socialista, Pão e Rosas. Estudante de Bacharel em Ciências e Humanidades e Relações Internacionais na UFABC e trabalha como Auxiliar Técnica de Educação (ATE) em São Paulo.
No dia 17 de Outubro, ocorreu a 3º Atividade Programada da Pós Graduação do Serviço Social na PUC-SP chamada “Trabalho e a Questão LGBTQIAPN+ no Brasil” como parte do ciclo de atividades “QUESTÃO LGBTQIAPN+ A luta pela diversidade sexual e de gênero diante do Estado Capitalista. Essa terceira mesa contou com a participação de Guilherme Gomes, Doutor em Serviço Social pela PUCRS e Virgínia Guitzel, coordenadora do CABCH na UFABC onde estuda Relações Internacionais e militante feminista socialista pelo grupo internacional de mulheres e LGBTs Pão e Rosas. No Mês de Novembro, Virgínia participou do ciclo internacional de debates Por um Futuro Comunista promovido pela Assembleia de Intelectuais Socialistas da Argentina, a Fração Trotskista Quarta Internacional e pelo Instituto Casa Marx no Brasil. Reproduzimos abaixo a primeira parte do artigo que foi adaptado da base do estudo e pesquisa realizado pela palestrante e cedido pela participante ao Ideias de Esquerda nesse Especial 8 de Março.
A relação entre trabalho e a população LGBTQIAPN+ não é usual, ainda aparece como um tema bem pouco pesquisado e desenvolvido, tendo poucas referências bibliográficas e em grande parte dos casos, estando presa a um recorte que denuncia a enorme marginalização do trabalho formal vivido pelas pessoas LGBTQIAPN+, em particular as pessoas trans, mas sem oferecer uma explicação profunda que vá além do papel do “preconceito” para esta cruel realidade.
Esse artigo se propõe a buscar essas explicações, retomando as lentes do marxismo revolucionário, para por um lado compreender a relação entre capital(ismo), sexualidade, gênero e trabalho, assim como apresentar um ponto crítico as novas teorias “críticas”, decoloniais e pós-modernas que se esforçam permanentemente para afastar esse encadeamento da discussão, que nos parece a essência do debate, e uma das tarefas de primeira ordem que temos nos dias de hoje. Isto é, lutar contra a separação da luta contra a opressão da luta contra a exploração, uma das principais armadilhas produzidas pelo neoliberalismo, que com a sua decadência histórica, devemos fazer que essa separação também desapareça. Não à toa o esforço para transformar cada vez mais as identidades LGBTs em consumidores, e não em parte da classe trabalhadora.
Esse artigo se propõem então a debater três ideias centrais: 1) Acumulação do capital e a sexualidade 2) A relação entre as LGBTs e a luta de classes contra o Estado capitalista 3) A contradição entre a mercantilização do sexo sem precedentes e a insuportável insistência reacionária de controle sobre os nossos corpos
Mas para dar início, é evidente a necessidade de conceituar o que é trabalho, o que obviamente pra comunidade LGBTQIAP+ tem uma importância enorme, especialmente pela realidade notável de precarização e até mesmo de exclusão do mercado de trabalho formal. O que muitas vezes é inclusive precursor de lutas importantes, como o caso da primeira universidade do sudeste a ter cotas trans, a UFABC, que apesar da Reitoria e da propaganda oficial ser de uma universidade de excelência e inclusão, essa luta só foi possível por uma ampla mobilização estudantil que teve como ponto de partida a denúncia de uma trabalhadora trans terceirizada da limpeza proibida de limpar os banheiros femininos e de ter seu nome social em seu crachá. A relação entre opressão (transfobia) e exploração (terceirização) não foi acidental, mas parte do funcionamento do capitalismo, e não a toa a resposta unificada de denúncia da Reitoria, que buscava lavar suas mãos, e da empresa terceirizada foi fundamental para liberar uma luta independente que pudesse ter condições de arrancar direitos trans.
Poderíamos falar de trabalho desde dois pontos de vista. O que é o trabalho em si, a ação de transformação da Natureza, e o que é trabalho no sistema capitalista.
A saber, para Marx:
O trabalho, em primeiro lugar, é um processo entre o homem e a natureza. Um processo em que o homem media, regula e controla seu metabolismo com a natureza. O homem se enfrenta com a matéria natural com um poder natural. Põem em movimento as forças naturais que pertencem ao seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apoderar se das matérias da natureza sob uma forma útil a sua própria vida. Ao operar por meio desse movimento sobre a natureza exterior a ele e transformá-la, transforma por sua vez sua própria natureza.
Diferente de outros teóricos do seu tempo, que dizia que o trabalho é a fonte de toda a riqueza, Marx justamente pelo seu pensamento materialista histórico e dialético, vai apontar que “O trabalho não é a fonte de toda riqueza. A natureza é a fonte dos valores de uso (e é em tais valores que consiste propriamente a riqueza material), tanto quanto o é o trabalho, que é apenas a exteriorização de uma força natural, da força de trabalho humana” 1. E isso é interessante, hoje pensando em toda a situação do país com as queimadas fruto do Agronegócio e mesmo o Aquecimento Global, a enorme contribuição do pensamento marxista para o tema ambiental, do qual sempre partiu de ver o homem e a natureza como uma unidade diferenciada, cujo processo de separação do trabalhador da natureza, ou seja, o seu sequestro forçado às cidades e a alienação do seu trabalho (separando o produtor do seu produto final), constituía uma fratura no metabolismo entre o ser humano e a natureza. Mas para o nosso debate aqui, é interessante pensar como essas condições moldaram até os dias de hoje, a nossa visão sobre a natureza e também sobre nossa humanidade.
A ideia de metabolismo se baseia na noção de que este constitui a base sobre o que sustenta uma complexa rede de interações necessária para a vida, e sobre o que se faz possível seu desenvolvimento. Esse estranhamento material dos seres humanos, dentro da sociedade capitalista em relação às condições naturais que constituem a base da nossa existência, é essa “fratura metabólica” chamada por Marx, que podemos usar como uma referência para entender suas consequências no âmbito da sexualidade e gênero humano.
Uma vez que a concepção de trabalho, que para Marx é um conceito especificamente humano, já que apenas os seres humanos têm a condição de pré-figurar em suas mentes as transformações que almeja realizar antes de transformar em si mesma a realidade, é preciso verificar as distintas transformações que o trabalho sofre a depender da estrutura social determinada que o acompanha.
Como sabemos, Engels explica muito bem na Origem da Família, da Propriedade Privada e o do Estado, de como esse trabalho definido por Marx com o avanço da domesticação dos animais, a criação de gado, dos rebanhos, do processamento do metal e a agricultura permitiu às gens que a alimentação antes, precisava ser obtida dia a dia, pudessem adquirir uma propriedade que necessitava apenas de vigilância e cuidados básicos para se reproduzir em número cada vez maior, podendo fornecer alimentação abundante. É quando a caça, antes uma necessidade, se torna um artigo de luxo. E se começa a produção de um excedente na produção, isto é, um excedente capaz de ser apropriado, e portanto, se criam as condições objetivas para a exploração do homem pelo homem. Ou seja, para que esse trabalho seja apropriado e não esteja diretamente ligado a sua satisfação. Essa virada histórica, que após uma acumulação de processos quantitativos tem uma mudança qualitativa, nos interessa muito.
E não atoa, logo em seguida, Engels irá definir que a derrubada do direito materno representou a derrota histórica do sexo feminino no plano da história mundial, algo que vendo nos dias de hoje, poder-se-ia afirmar como uma “derrota histórica da sexualidade livre”. Uma vez que a sexualidade, em particular àquela relacionada aos órgãos gestores da vida estão aprisionadas a hereditariedade, assim como toda expressão feminina é generalizada a submissão masculina, como uma evidência do patriarcado marcado à ferro. É nesta obra ainda, que se recupera a ideia de que família, não significava um sentimento ou um relacionamento entre os cônjuges e os filhos, mas sim “o conjunto de escravos que pertencem a um homem” (pag 82), isto é, uma expressão fria, econômica, racional da hereditariedade, do testamento. Uma evidência da subordinação da família aos frutos do trabalho, ao seu excedente, à propriedade que decorre deste.
Essa forma de família evidencia a transição do casamento do par para a monogamia. A fim de assegurar a fidelidade da mulher, e portanto, a paternidade dos filhos e filhas, a mulher é submetida incondicionalmente ao poder do homem: quando ele a mata, está apenas exercendo seu direito. (…) A monogamia foi a primeira forma de família que não se fundou em condições naturais, mas em condições econômicas, a saber, sobre a vitória da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva, de origem natural 2.
E depois ele retoma que em 1846, ele encontrou num antigo manuscrito dele com Marx que dizia “A primeira divisão do trabalho foi a que ocorreu entre homem e mulher visando a geração de filhos”. (pag 91) E depois, ele continua “E hoje posso acrescentar: o primeiro antagonismo de classe que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher no casamento monogâmico, e a primeira opressão de classe coincide com a do sexo feminino pelo sexo masculino” 3.
O casamento monogâmico foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, inaugura, ao lado da escravidão e da riqueza privada, a época que perdura até hoje, em que cada progresso constitui simultaneamente um retrocesso relativo, em que o bem-estar e o desenvolvimento de uns se impõem pela dor e pela opressão de outros. É a forma celular da sociedade civilizada, na qual já podemos estudar a natureza dos antagonismos e das contradições que nela se desdobrarão plenamente 4..
É nesse processo em que vemos a transformação do trabalho junto ao surgimento das relações de opressão atrelados ao surgimento da propriedade. No sistema feudal, esse trabalho, gerando excedente, já produzia classes sociais, e a terra possuía uma grande fonte econômica que atrelava os indivíduos à família como forma elementar de sobrevivência.
Ainda assim, pesquisadores demonstram uma relação de gênero mais aberta, como o caso exposto por Pierre Clastres em seu livro “A sociedade contra o Estado” (1974) onde conta sobre uma comunidade indígena, no Paraguai, na qual as tarefas eram divididas rigidamente por gênero: os homens iam à caça e pesca; enquanto as mulheres ficavam na aldeia fazendo cestos. Entretanto, se um indivíduo tido até então como pertencente ao sexo masculino optasse por viver como mulher e ficar na aldeia fazendo cestos, podia fazê-lo. As mesmas realidades foram observadas por Darcy Ribeiro (1970) e Ehrenheich (1985), entre algumas etnias brasileiras e equatorianas, respectivamente. O que evidencia como as diferenciações de gênero por genitálias ou por roupas e padrões sociais são uma construção social, não abrangente a todas as formas de vida humana.
John D’Emilio, um historiador dos Estados Unidos, tendo como principal interesse de pesquisa a história dos gays e das lésbicas nesse país em seu famoso texto Capitalismo e Identidade Gay vai buscar analisar a transição do feudalismo para o capitalismo, como um processo que possibilitou o surgimento das identidades LGBTQIAP+, mais próximas do que conhecemos hoje, isto é, identidades que são baseadas na atração e preferências sexuais ou identidade de gênero dissidentes.
Em sua reflexão, ele desenvolve a ideia de que a família era verdadeiramente uma unidade interdependente de produção: a sobrevivência de cada membro dependia da cooperação de todos.
O lar era o local de trabalho onde as mulheres processavam os produtos primários da granja e os transformavam em alimentos para consumo diário, onde elas faziam a roupa, o sabão, as velas, e onde as esposas, os maridos e as crianças trabalhavam juntos para garantir os bens que consumiam.
Essa transição de uma economia doméstica, baseada na família, para uma economia capitalista de trabalho livre completamente desenvolvido aconteceu muito lentamente, em um intervalo de tempo de quase dois séculos. (…) Quando o trabalho assalariado e a produção passaram a ser socializados, foi possível liberar a sexualidade do “imperativo” da procriação. Ideologicamente, a expressão heterossexual chegou a ser o meio de estabelecer a intimidade, promover a felicidade e experimentar o prazer. Ao despir-se de sua independência econômica e reforçar a separação entre sexualidade e procriação, o capitalismo criou as condições que induziram alguns homens e algumas mulheres a organizar sua vida pessoal em torno de sua atração erótico-afetiva por pessoas do seu próprio sexo. 5
Essa relação entre a mudança da estrutura social determinada do feudalismo para o capitalismo, que pressupõem a mudança também das relações de trabalho, da relação do ser humano com a terra e a natureza, e todo o processo de alienação e exploração capitalista que Marx desenvolve em O Capital produz também na sexualidade importantes transformações. E se por um lado, o desenvolvimento decorrente dessas transformações sociais permitiu um lugar antes inimaginável à sexualidade, como a própria automização da individualidade e dos desejos, por outro, acorrentou de uma vez por todas todo o desejo e a possibilidade de prazer as leis intoleráveis do Capital. Novamente cabe aqui a força da ideia de Engels de que “a época que perdura até hoje, em que cada progresso constitui simultaneamente um retrocesso relativo, em que o bem-estar e o desenvolvimento de uns se impõem pela dor e pela opressão de outros”.
E como todo movimento histórico, essas contradições e retrocessos não ocorrem sem uma reação, portanto cabe destacar que houve ao longo da história, uma série de batalhas que, inclusive, continuam a ocorrer, pela liberação da sexualidade e das identidades de gênero das amarras do capital e do trabalho alienado. Na contramão dos mecanismos de opressão estatal e do metabolismo do capital que sustentam essa repressão à sexualidade livre. Movimentos como Stonewall nesse sentido são emblemáticos para compreendermos o papel da luta de classes nesse processo, e devemos seguir estudando esses embates nos últimos dois séculos por parte des LGBTs e da classe trabalhadora, como abordaremos com maior dedicação na segunda parte desse artigo.
Kinsey: “a única relação sexual antinatural é aquela impossível de realizar”.
Mas é um fato que com a chegada do capitalismo, o sexo reprodutivo ganhou outros contornos. Se para a família do século XVII o sexo reprodutivo era uma questão de vida ou morte para a produção de grãos, e disso decorria a comemoração dos puritanos em relação ao casamento e também a condenação por todas as formas de se alcançar prazer sexual que estivessem desassociadas da reprodução. Com os homens sendo arrancados de suas famílias para o “trabalho livre”, e posteriormente as crianças e as mulheres também o foram graças às exigências da Revolução Industrial, o sexo reprodutivo que seguiria tendo um papel fundamental não era mais a base da sobrevivência da família. Nem da produção dos bens de consumo fundamentais para a sobrevivência de seus membros, uma vez que o trabalho se tornou socializado, ainda que não imediatamente por completo. Mas agora estava a serviço da ganância do capital. Ou seja, a “fabricação” de novas crianças não era uma necessidade da sobrevivência dos entes familiares, mas sim, uma necessidade exclusiva da acumulação do capital.
Marx em sua obra clássica O Capital evidência esse processo histórico com diversos relatórios de fábrica, onde demonstra como o capital invadiu a vida de milhões de seres humanos e buscou organizar e definir o mundo, a natureza, os seres humanos à serviço do seu único interesse, o processo de valorização e coisificação de tudo. Na terceira parte do seu primeiro livro, “A produção de Mais-valia absoluta”, quando aborda a luta pela jornada de 8 horas, Marx vai recuperando historicamente o desenvolvimento do Direito e da própria jornada de trabalho não como um fato divino ou “natural”, mas como um embate da luta de classes, entre os interesses do capital e da classe trabalhadora por ele roubada. O caso da Mary Anne Walkey que morreu por excesso de trabalho não era isolado.
O impulso imanente da produção capitalista é apropriar-se do trabalho durante todas as 24 horas do dia. Sendo fisicamente impossível, entretanto, explorar, dia e noite sem parar, a mesma força de trabalho, é necessário, para superar esse obstáculo físico, revezar as forças de trabalho a serem empregadas no período diurno e no noturno”, mais a frente continua “[O capital] rouba o tempo necessário para se respirar ar puro e absorver a luz do sol. Comprime o tempo destinado às refeições para incorporá-lo, sempre que possível, ao próprio processo de produção, fazendo o trabalhador ingerir os alimentos como a caldeira consome carvão, e a maquinaria, graxa e óleo, enfim como se fosse mero meio de produção. O sono normal necessário para restaurar, renovar e refazer as forças físicas reduz o capitalista a tantas horas de torpor estritamente necessárias para reanimar um organismo absolutamente esgotado. Não é a conservação normal da força de trabalho que determina o limite da jornada de trabalho; ao contrário, é o maior dispêndio possível diário da força de trabalho, por mais prejudicial, violento e doloroso que seja, que determina o limite do tempo de descanso do trabalhador. O capital não se preocupa com a duração da vida da força de trabalho. Interessa-lhe exclusivamente o máximo de força de trabalho que pode ser posta em atividade. Atinge esse objetivo encurtando a duração da força de trabalho, como um agricultor voraz que consegue uma grande produção exaurindo a terra de sua fertilidade.
A produção capitalista, que essencialmente é produção de mais-valia, absorção de trabalho excedente, ao prolongar o dia de trabalho, não causa apenas a atrofia da força humana de trabalho, à qual rouba suas condições normais, morais e físicas de atividade e de desenvolvimento. Ela ocasiona o esgotamento prematuro e a morte da própria força de trabalho. Aumenta o tempo de produção do trabalhador num período determinado, encurtando a duração da sua vida 6.
E é sob essa ótica brutal e aterrorizante que o capital invade a vida por completo de milhões de seres humanos, que passa a determinar o que é infância 7 – a serviço de definir com que idade se pode garantir o máximo de horas de trabalho por dia – e chega ao absurdo de definir juridicamente o que é dia e o que é noite 8, tudo, absolutamente tudo, a serviço de garantir o seu processo de valorização.
O estabelecimento de uma jornada normal de trabalho é resultado de uma luta multissecular entre o capitalista e o trabalhador. Foi preciso que decorrem-se séculos para o trabalhador “livre”, em consequência do desenvolvimento do modo de produção capitalista consentir voluntariamente, isto é, ser socialmente compelido a vender todo o tempo ativo da sua vida, sua própria capacidade de trabalho, pelo preço de seus meios de subsistência habituais; seu direito de primogenitura por um prato de lentilhas”. 9
Essa citações brutais de Marx não podem estar desassociadas da reflexão sobre a relação entre o capital e a sexualidade humana, que como ficou evidente, pouco importa ao capitalista o que não for convertido em mais “força de trabalho”. Em outras palavras, não convém ao Capital permitir tempo livre para o desenvolvimento consciente das nossas identidades e da nossa sexualidade. Não convém que nossos corpos tenham prazer, e menos ainda que se gaste tempo que deveria estar convertido em exploração, para a nossa liberdade sexual.
Para que esse mecanismo de dominação funcione, o capital precisa que a força de trabalho seja considerada como mais uma mercadoria, como um insumo como são as matérias-primas, os edifícios, as máquinas. O trabalhador, então, seria “capital variável” (humano)”. Isto é, tornar-se necessário regular a nossa sexualidade, de acordo com o imperioso interesse do capital de sistematicamente nos reduzir à mera mercadoria, que sempre custe mais barato, que seja cada vez mais precarizando todos os âmbitos da nossa vida, inclusive a liberdade de gozar.
Mas a força de trabalho não é uma mercadoria qualquer, é a única capaz de gerar novo valor. É a única capaz de “vivificar”, de colocar em movimento todo o “trabalho morto”, ou seja, o trabalho passado acumulado contido nas máquinas e no sistema técnico-científico. Ao mesmo tempo, a força de trabalho não é apenas produtora de coisas, mas também de relações sociais, o que sob o capital se resume em reproduzir essa ordem de opressão e exploração, mas com a sua libertação, pode-se produzir relações sociais novas, baseadas em novos valores, mais coletivos e pautados pelas necessidades e interesses humanos coletivos e não a extração de mais-valor. Essa concepção da sociedade como um conjunto de indivíduos isolados em competição uns com os outros que remonta às origens da burguesia, é interessada ao capital, mas não é sequer verdadeira. Contra esse senso comum altamente arraigado em nossas sociedades que diz que os empresários são os que criam trabalho. Marx comprovou o contrário, que os capitalistas não são os que “criam trabalho”, mas sim que o que fazem é expropriá-lo “legalmente”. O capitalista compra a força de trabalho, a capacidade de produzir de um trabalhador ou trabalhadora por um determinado tempo, que dura a jornada de trabalho. No entanto, o valor que essa força de trabalho produz é superior ao seu valor expresso no salário. Na apropriação desse trabalho não pago que Marx chamava de “mais-valia” está o segredo do lucro capitalista. Não é o capital que cria trabalho, mas a força de trabalho que permite ao capital se reproduzir em uma escala ampliada.
Por tudo isso, a partir de uma perspectiva marxista, definimos que vivemos sob um modo de produção que é o capitalismo e em uma sociedade dividida em classes sociais. Esse modo de produção capitalista e essa divisão em classes sociais só existe através da exploração que é a dominação de uma pequena classe (a classe dominante) sobre outra classe se apropriando do seu trabalho excedente através da mais valia simplesmente por esta classe dominante deter os meios de produção. Ou seja, o mundo funciona hoje através da exploração ou a chamada “escravidão assalariada” que significa que a grande maioria das pessoas necessita vender sua força de trabalho para subsistir. A opressão que é a utilização das diferenças de gênero, sexuais, raciais, de nacionalidade para subordinar um grupo social é utilizada para explorar ainda mais esses setores sociais subordinados. Por isso sempre ressaltamos que a opressão de gênero é anterior ao capitalismo, mas adquiriu novos contornos sob esse sistema de exploração.
John D’Emilio afirmava que:
Por isso, somente quando os indivíduos começaram a viver sob o trabalho assalariado, e não como parte de uma unidade familiar independente – da qual dependiam todos os seus membros -, foi possível com que o desejo sexual se fundisse em uma identidade pessoal, uma identidade que a priori estava baseada na possibilidade de se viver fora da família patriarcal e de construir uma vida pessoal desatrelada do sexo unicamente como função reprodutora. Assim homens e mulheres puderam organizar uma vida pessoal entorno de sua atração física e ou emocional por pessoas do mesmo sexo. O que possibilitou a formação de comunidades urbanas de gays e lésbicas e posteriormente a conformação de uma política baseada em uma identidade atrelada à sexualidade e a identidade de gênero. Nesse sentido, a construção da heterossexualidade, como uma identidade e posteriormente como uma ideia de “normal” contrapondo a diversidade sexual, também é um produto histórico.
Ao mesmo tempo, é muito profundo pensar que as diferenças entre trabalho escravo e trabalho livre também significaram que o trabalhador livre passasse a “auto gerenciar” a sua vida, sendo ele “auto-responsável” pela sua sobrevivência, sua moradia, sua alimentação, etc. Isso, que mereceria um estudo aprofundado a parte, também implica no trabalho doméstico que significa duplas e triplas jornadas de trabalho.
Por isso que a batalha do capital para reduzir o trabalhador a uma mera força de trabalho e nada mais (!), é parte do choque que as LGBTs que orgulhosamente se levantam exigindo o seu direito ao prazer e a liberdade de construir seus corpos e suas identidades ao não aceitar a submissão a reduzir-se a uma mera fonte de exploração.
Portanto, a compreensão das relações sexuais como produto das relações sociais, determinadas pelas condições materiais de cada época, que combinam estruturas subjetivas com os modos de produção de cada época, é uma maneira materialista de olhar a construção social do desejo e também das identidades que os consolidam. Quando se retira a sexualidade humana das condições materiais que a permitem existir e as pressionam a uma determinada direção, se perde toda a capacidade de enxergar de forma lúcida o que está por trás do que aparece como espontâneo, mas não o é. Foram necessários séculos para impor aos seres humanos a sua condição de trabalhador “livre”, assim como parte impor e desenvolver uma sexualidade castrada à serviço do capital.
Ou seja, o surgimento do trabalho livre no capitalismo – e não se deu sem resistência e luta de classes – está acompanhado de todas essas transformações objetivas que dizem a respeito a familia e a sexualidade. Isso significa que a sociedade está organizada onde a terra, as fábricas, os instrumentos de produção, etc, pertencem a um pequeno número de latifundiários e capitalistas, enquanto a massa do povo não possui nenhuma ou quase nenhuma propriedade e deve, por isso, alugar sua força de trabalho. Livre pra vender sua força de trabalho, e livre de qualquer propriedade. Para compreender essa “aceitação” desse modelo social, é interessante recuperar a seguinte ideia de Néstor Perlongher em Sexo y revolución:
A genitalização está destinada a remover do corpo sua função de reprodutor do prazer para convertê-lo em instrumento de produção alienada, deixando à sexualidade apenas o indispensável para a reprodução. É por isso que o sistema condena com especial severidade todas as formas de atividade sexual que não sejam a introdução do pênis na vagina, chamando de “perversões”, desvios patológicos, etc. Para aprisionar o ser humano ao trabalho alienado é necessário mutilá-lo reduzindo sua sexualidade aos genitais.
É sem dúvidas, chamativo que esse panfleto da Frente de Liberación Homosexual da década de 70 seja tão contundente em relacionar a mutilação geral de uma sexualidade livre, que está generalizada na sociedade, ao aprisionamento do ser humano ao trabalho alienado, ainda que os contornos desse aprisionamento seja com maior virulência contra aqueles e aquelas que ousam exibir de forma orgulhosa a si mesmos, o que representa para o capital, um enfrentamento intolerável a esta ordem castradora.
Esta compreensão da domesticação da sexualidade como forma de moldar sujeitos alienados, não orgulhosos e incapazes de questionar de conjunto a opressão e a exploração, se explica também pela forma com que o local de trabalho, o centro da exploração, se impõem para além dos limites daquela fábrica, escola, hospital, seja onde for. A necessidade de estender a dominação e a reprodução desse modelo de acumulação para além do trabalho se apresenta desde um “modelo de vida” adequado aos interesses do capital, como é o modelo tradicional da familia heterossexual – que se reproduz também em relacionamentos não-heterossexuais, como tem se denominado de homonormatização.
É interessante que Gramsci, revolucionário italiano, em Americanismo e Fordismo tenha trazido isso a tona:
Deve-se observar como os industriais (especialmente Ford) se interessaram pelas relações sexuais de seus empregados e, em geral, pela organização de suas famílias; a aparência de “puritanismo” assumida por este interesse (como no caso do proibicionismo) não deve levar a avaliações erradas; a verdade é que não se pode desenvolver o novo tipo de homem exigido pela racionalização da produção e do trabalho enquanto o instinto sexual não for adequadamente regulamentado, não for também ele racionalizado.
Essa dupla relação, do controle do local de trabalho, e da coerção do modo de vida que se adeque às exigências desse sistema, das quais diferentes instituições se encarregam de estimular, restringir, adequar como é a indústria cultural, a imprensa, os meios de comunicação, a igreja, a família, escola, etc, esses dois âmbitos se entrelaçam na produção e reprodução da vida de forma totalizante desde a perspectiva do capital. Ou seja, os capitalistas no seu sistema de exploração não são indiferentes sobre o modo de vida, e ainda que buscam aumentar constantemente as jornadas de trabalho e também a sofisticação tecnológica para ampliar seus lucros, não podem se abster de impor sua hegemonia, seu projeto de sociedade (exploratória) e suas exigências para fora da fábrica.
Com essas reflexões desenvolvidas, fica evidente que não passa de uma grande mentira o conto liberal de que “há uma esfera da vida pública e outra privada”, porque o capital não se contenta a controlar a vida apenas “dentro do local de trabalho”. Invade e contamina tudo, se você poderá usar o seu cabelo Black, se você pode assumir sua identidade trans, pintar as unhas, ou mesmo se assumir homoafetivo. Os dados recentes mostram que 61% das LGBTs do país se escondem sua orientação sexual 10, 65% já sofreu discriminação 11, 28% já sofreram assédio. E 4 em cada 10 já sofreram discriminação no trabalho 12. Sendo que apenas 0,38% dos postos de trabalho do país são ocupados por trans 13. Esses mecanismos de acumulação, que estão implícitos nesses níveis de super-exploração ou marginalização das LGBTs, são fundamentais não apenas para a extração de mais-valia, mas também para impor uma subjetividade domesticada e obediente a esta estrutura de dominação. As formas que adquirem, como o americanismo e fordismos, são parte dos mecanismos ligados ao Estado ampliado (indústria cultural, igrejas, etc), mas também a repressão policial, o que está na base da reprodução dessas opressões.
Essa realidade não se baseia em um preconceito inerente aos seres humanos ou como parte de um momento específico do “desenvolvimento intelectual” da humanidade que pouco a pouco estaria avançando para um pensamento “inclusivo”, como inclusive escancara a extrema direita mundial que vocifera ódio contra as LGBTs, mas desse sistema capitalista, e em particular, no Estado capitalista que estrutura a sociedade dando o poder econômico, jurídico e armado com suas forças de repressão para estruturar a dominação da burguesia sob as demais classes sociais, de um sistema social que é intrinsecamente anti-humano, que é anti-sustentável por essência, que está determinada pela sede imparável de lucro e das ganâncias de bilionários que com suas poucas famílias dominam o mundo. Dentro desse sistema de exploração do trabalho humano, que se utiliza, se apropriando e aperfeiçoando as opressões à diferentes grupos sociais, se insere diversos aparelhos ideológicos e instituições que buscam sustentar esse sistema de salários para perpetuar a divisão de classes, isto é, a dominação capitalista sob aqueles que só tem a sua força de trabalho como forma de subsistência.
Por isso a genialidade da frase de Leon Trotsky, dirigente da Revolução Russa, de que a “A vitória, de nenhum modo, é o fruto maduro da “maturidade” do proletariado. A vitória é uma tarefa estratégica”. Em outras palavras, não se trata de uma espera passiva do desenvolvimento linear da consciência das pessoas para colocar um fim na LGBTfobia, mas de tomar partido da luta secular da classe trabalhadora contra o capital. Buscando em cada experiência histórica da luta de classes, tirar lições estratégicas que permitam nos preparar melhor para os futuros embates entre revolução e contra-revolução.
Para esse empreendimento, de enviar o racismo, o machismo, o capacitismo e toda a LGBTfobia para museu de antiguidades junto do capitalismo, é preciso encarar a luta contra cada uma das opressões desde uma perspectiva anti-capitalista e revolucionária, a única perspectiva realista para liberar a nossa sexualidade dessa prisão suja que é o capitalismo e neste sentido, batalha por unificar a classe trabalhadora em toda sua pluralidade e diversidade para uma luta conjunta, onde a bandeira da libertação sexual, seja compreendida como parte da luta histórica contra a dominação do capital sob as nossas vidas, onde as LGBTs certamente terão um papel destacado na primeira fileira da derrubada desse velho mundo e da construção de uma sociedade verdadeiramente livre, onde a vida seja muito mais feliz.
1. Crítica ao Programa de Gotha, Karl Marx, pág 23, Boitempo.
2. A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado – Engels, pág 83 E-book Boitempo.
3. Idem, pág 91.
4. Idem, pág 92.
5. https://www.esquerdadiario.com.br/Capitalismo-e-identidade-gay-41039
6. Capital – Karl Marx, pag 307, livro I, Civilização Brasileira.
7. “A verdade é que, antes da lei de 1833, crianças e adolescentes tinham de trabalhar a noite inteira ou o dia inteiro, pu de fazer ambas as coisas ao bel-prazer do patrão. Rep. of Insp. of Fact. 30th April 1860, p. 50” (…) Foi limitado a 8 horas por dia o trabalho de meninos entre 9 a 13 anos). (Capital pag 321) (…) De modo algum apaziguado, o capital deu início a uma ruidosa agitação que durou vários anos. Ela girava principalmente em torno da idade em que os meninos teriam o trabalho limitado a 8 horas e estaria sujeitos à frequência escolar. De acordo com a antropologia capitalista, a infância acaba aos 10 anos, e no máximo, aos 11. (pag 323); (…) mas isso não os impediu de, durante toda uma década, fabricar fios de seda, 10 horas por dia, com o sangue de crianças pequenas, que, para poderem trabalhar, tinham de ser colocadas em pé em cima de cadeiras. (pag 336)
8. “Todas as fronteiras estabelecidas pela moral e pela natureza, pela idade e pelo sexo, pelo dia e pela noite foram destruídas. As próprias ideias de dia e noite, rusticamente simples nos velhos estatutos, desvaneceram-se tanto que um juiz inglês, em 1860, teve de empregar uma argúcia verdadeiramente tamúdica para definir juridicamente o que era dia e o que era noite. Eram as orgias do Capital”. (Vide Jugement of Mr. J. H. Otway, Belfast, Hilary Sessions, Country Antrim 1860) – Capital pag 320 Marx.
9. O Capital – Karl Marx, pag 313, livro I, Civilização Brasileira.
10. https://exame.com/brasil/61-dos-lgbt-brasileiros-escondem-sua-orientacao-no-trabalho/
11. https://www.sinprodf.org.br/lgbts-ainda-sao-invisibilizados-nas-direcoes-sindicais/
12. https://members.linkedin.com/content/dam/me/members/pt-br/pdf/LinkedIn_Pesquisa_Orgulho_No_Trabalho.pdf
13. https://g1.globo.com/globonews/jornal-das-dez/noticia/2024/05/15/estudo-revela-que-038percent-dos-postos-de-trabalho-no-pais-sao-ocupados-por-pessoas-trans.ghtml