Flávia Telles
Entrevista realizada pela Flávia Telles, professora categoria O, militante do Nossa Classe Educação e conselheira estadual da APEOESP pela oposição, ao Prof.Dr Evaldo Piolli, professor livre-docente do Departamento de Políticas, Administração e Sistemas Educacionais (DEPASE) da Faculdade de Educação da UNICAMP, sobre os recentes ataques do governo do Estado de SP e o quadro geral da educação pública no país.
FT: Prof. Evaldo, estamos já há alguns anos vivendo um grave ataque no currículo escolar em todo o país com o novo Ensino Médio, que mesmo com reformulações segue vigente. Nele, já tínhamos percebido uma ofensiva contra as Ciências Humanas e em particular em São Paulo há um ataque ainda mais acentuado com a nova matriz curricular imposta por Tarcísio, que inclusive está implicando em desemprego de professores contratados. Pode nos falar um pouco de quais são os efeitos dessa nova matriz curricular? Podemos afirmar que ela aprofunda a reforma do novo Ensino Médio?
Desde a promulgação da MP 746, de 2016, e da Lei 13.415, de 2017, que instituíram a reforma do Ensino Médio seguimos alertando para as mudanças curriculares no Ensino Médio e seus efeitos deletérios aos professores que ministram os componentes curriculares tradicionais do Ensino Médio, sobretudo, os das Ciências Humanas – da possibilidade que alguns desses professores poderiam ficar sem aulas atribuídas.
A Resolução nº 3 do Conselho Nacional de Educação 3, de 2018, das diretrizes curriculares, norteou as matrizes curriculares promulgadas pelos Estados que confirmaram essa hipótese. Em SP, a Resolução SEDUC nº 186/2020; a promulgação do Currículo Paulista em 2021; a Resolução SEDUC nº 69/2022 e a Resolução SEDUC nº 74/2022, ainda no Governo Dória e Rossielli, foram emblemáticas. Alguns componentes curriculares como Filosofia, Sociologia, Física, Artes, Biologia, Geografia, para citar alguns, simplesmente desapareceram no último ano. Outros componentes desapareceram de algum dos outros anos. Muitos professores tiveram que assumir componentes dos itinerários formativos para permanecerem empregados e garantir o salário, inclusive ministrando conteúdos distantes da formação inicial, ou seja, para as quais não foram preparados. Havia aqueles componentes dos Itinerários Formativos do MAPPA que eram pura invencionice, além das eletivas, do projeto de vida e aulas de tecnologias. Esse problema começou em 2019, mas o resultado é que os professores de todos os componentes, e não apenas das Ciências Humanas, foram os mais prejudicados.
A área de Ciências Humanas reúne componentes curriculares fundamentais para formar o pensamento e a percepção crítica da realidade e estão sendo substituídos por componentes de formatação da juventude no Ensino Médio, totalmente alinhados aos valores do neoliberalismo e do excludente e precarizado mundo do trabalho. É bom lembrar que o empreendedorismo é um dos eixos estruturantes do currículo do ensino médio.
Em cinco anos, em todo Brasil, os cortes nas áreas de Ciências Humanas foram severos e variaram de Estado para Estado. A nota técnica elaborada pelos colegas da REPU aponta 57% de perdas no período. Os maiores prejuízos ficaram para as disciplinas de Filosofia e Sociologia. Mas como eu disse, todos os componentes tiveram perdas.
Além da matriz curricular alinhada com a reforma do Ensino Médio e a BNCC, também temos o problema dos itinerários formativos, em especial o Itinerário de Formação Técnica e Profissional, que competem com a carga horária de aulas na formação geral básica, ou seja, com os componentes curriculares comuns do Ensino Médio.
Em 2020, iniciamos uma pesquisa para o acompanhamento da implementação do V Itinerário de Formação Técnica e Profissional para os alunos da rede estadual. Desde a gestão Doria, o governo do Estado vem reservando muitos recursos para essa ação, envolvendo parcerias com instituições públicas como o Centro Paula Sousa, a Fiec e as empresas Privadas Essa/Proz S.A e Associação Sequencial S.A. Vejam: são cursos oferecidos e ministrados por professores contratados por outras instituições. Ou seja, um curso técnico de 800 a 1200 horas fica ao cargo de uma empresa ou instituição “parceira”. Isso retira os empregos dos professores da rede estadual. Isso ficou bem explícito na Resolução SEDUC nº 74/2022.
O Governo atual tem metas claras de ampliação das matrículas neste Itinerário para mais de 170 mil
estudantes da rede estadual, mantendo as parcerias com as empresas acima, incluindo o SENAI, bem como, um modelo próprio de oferta.
No Governo do Tarcísio e do Secretário Feder essas matrizes continuaram em vigor e já temos turmas concluindo o Ensino Médio regidos por elas, ou seja, no esquema previsto pela lei 13.415/2017 (1800 de BNCC + 1200 de Itinerários Formativos). Algumas mudanças da grade curricular foram introduzidas com a Resolução SEDUC nº 52/2023, com efeitos diretos de redução da carga horária dos componentes das Ciências Humanas.
Em novembro de 2024 a SEDUC-SP promulgou as adequações da matriz curricular do Ensino Médio (Resolução SEDUC nº 84) alinhada aos critérios da Lei 14.945/2024, de julho de 2024, reorganizando a carga horária de 2.400 horas de Formação Geral Básica com os itinerários formativos de 600 horas. As mudanças relativas à educação profissional articulada ao Ensino Médio foram apresentadas em outubro pela Resolução CEE nº 82 que, nesse caso, contempla 2100 de FGB com 900 horas deste itinerário. Entretanto, das 2.100 horas de Formação Geral Básica, 300 horas podem ser utilizadas para a Formação Técnica, o que na prática pode significar o mesmo esquema da Lei 13.415/2017, mantendo a Formação Geral Básica com apenas 1.800 horas.
Essas novas matrizes do Governo Estadual promulgadas com a referida Resolução SEDUC nº 84, apresenta vários problemas que afetam o trabalho dos professores e os empregos. Aqui destaco alguns:
● Mudança no tempo de aula do diurno e integral de 45 para 50 minutos;
● Novos componentes curriculares na Formação Geral Básica, entre eles: Redação e leitura, Educação Financeira (nova moda nos currículos);
● Atribuição de aulas para os professores não mais de acordo com suas habilitações, mas pelo rol de disciplinas que são autorizados a lecionar. A licenciatura passa a ser prioritária, admitindo-se a licenciatura alternativa, autorização prioritária e alternativa;
● Introduz o ensino mediado por tecnologias, ou melhor, por plataformas digitais como forma de expandir a carga horária do ensino noturno e, alinhado a isso, a figura do professor mediador e, nesse caso, aparece como alguém que atuará no apoio ao uso das plataformas educacionais nas aulas de expansão e nas atividades “mediadas por tecnologias”;
Por fim, vale destacar aqui que mesmo com as orientações advindas da Lei 14.945/2024 e das Diretrizes Federais para recomposição das Ciências Humanas, a SEDUC-SP deu um drible nesse acordo, inserindo novos componentes curriculares como Leitura e Redação e Educação Financeira, subtraindo cerca de 300 horas, ou mais, dos demais componentes da Formação Geral Básica.
Esse processo já vem mostrando efeitos nos processos de atribuição de aulas, que se soma a toda a falta de esclarecimento e transparência do processo.
Conversei com professores e diretores de escola, e as críticas ao processo foram generalizadas, decorrentes da Resolução 95. Apontaram que as listas de classificação não foram divulgadas com antecedência em muitas unidades escolares e que o nome dos professores não apareciam no sistema e que a “manifestação de interesses” ficou prejudicada entre outros problemas. Apontaram que foram fixados critérios abusivos de parte da SEDUC-SP para o processo de atribuição e que deixaram muitos professores sem aulas suplementares, afetando a composição do salário. Foi instaurado um ambiente de insegurança para os professores, sobretudo os das escolas do Programa de Ensino Integral (PEI), que estavam sem saber se iriam permanecer na mesma escola em razão das mudanças de critérios.
A SEDUC-SP homologou uma lista cortando o número de salas de aula, o que reduziu as opções dos professores efetivos e muitos ficaram adidos. Outros tiveram que assumir disciplinas fora da formação em licenciatura, para assumir aulas em disciplinas de aderência, criando um ambiente fratricida de disputa entre os professores. Inclusive a nova grade curricular afetou a atribuição das aulas para os professores efetivos de Ciências Humanas que tiveram que recorrer a outros componentes ou ficar adidos. Muitos professores efetivos tiveram que escolher entre as poucas aulas que sobraram nas Diretorias de Ensino.
Neste mês de janeiro, foram homologadas novas salas de aula, porém os professores efetivos não tiveram opção de escolha. Somente os professores categoria O puderam escolher, mas muitos professores com esse tipo contrato precário ficaram desempregados, sendo que os maiores (mas não únicos!) prejudicados foram os professores de Ciências Humanas.
Nos parece que a SEDUC- SP, com esse modus operandi na relação com os professores, adota a instabilidade, a insegurança no emprego e o medo como estratégias de gestão. A finalidade é garantir a submissão e a maior adesão desses profissionais ao seu projeto pedagógico e seus mecanismos de controle.
Em um artigo intitulado “Reforma do Ensino Médio e a Formação Técnica e Profissional”, de 2020, que você assina com o Mauro Sala, vocês refletem como o novo Ensino Médio aprofunda o que vocês chamam de dualidade estrutural do ensino. Segundo dados da recente nota técnica da REPU, em São Paulo há uma diminuição de 35% das disciplinas de Ciências Humanas nos últimos 5 anos nos currículos escolares. Quais os impactos da redução das disciplinas de Ciências Humanas para essa dualidade estrutural na educação?
É que quando a Formação Geral Básica for articulada com a Educação Profissional, essa subtração dos componentes das Ciências Humanas será ainda maior. Basta ver a Resolução SEDUC nº 82/2024. De fato, com nossa pesquisa buscamos confirmar essa hipótese do Dualismo Estrutural e da Dualidade da Dualidade na oferta do Itinerário de Formação Técnica e Profissional. A Lei 13.415/2017, que implementa a contrarreforma do Ensino Médio apontava para divisão do Ensino Médio em duas partes composta por BNCC e Itinerários Formativos.
Dos cinco itinerários, quatro coincidem com a BNCC e os direitos de aprendizagem – já o de Formação Técnica e Profissional não. Essa divisão impunha dois caminhos: um que oferece maiores chances de acesso ao Ensino Superior e de continuidade e aprofundamento dos estudos; e outro dirigido à profissionalização dos estudantes, o que reproduz a dualidade estrutural. Os estudantes optantes pelo Itinerário de Formação Técnica e Profissional teriam apenas as 1.800 horas da BNCC, frente aos optantes pelos outros itinerários que seguiram se aprofundando em pelo menos uma área. E nos processos de ingresso no Ensino Superior vão se considerar os conhecimentos da BNCC. Essa divisão retrocede, em alguns aspectos, à Reforma do Ministro Capanema de 1942 e da Lei 5692/1971, ambas promulgadas em períodos autoritários no Brasil e que tinham, como finalidade, direcionar o destino dos filhos e filhas da classe trabalhadora para a profissionalização compulsória. Portanto, entendemos que havia um sentido de terminalidade engendrada na reforma
Nós cunhamos a hipótese de uma dualidade dentro da dualidade, porque a reforma do ensino Médio prevê formas flexíveis de cumprimento da formação profissional, admitindo cursos aligeirados de qualificação profissional de 160 a 200 horas no Itinerário. Isso foi o que ocorreu no Programa NOVOTEC do Governo Doria entre os anos de 2021 e 2024. Havia o NOVOTEC-Expresso que combinava um Itinerário Formativo com um curso de qualificação e o NOVOTEC-Integrado com cursos técnicos de 800 a 1200 horas. Inclusive identificamos muitos problemas na oferta quanto à qualidade desses cursos de formação profissional, sobretudo, de parceiros privados.
O programa foi executado em parceria com Centro Paulo Souza e Fundação Indaiatubana de Educação e Cultura (FIEC), ambas públicas, e a Associação Sequencial de Ensino Superior S.A., Essa Educação S.A (Proz) e o SENAC, que são instituições privadas. Esses contratos estavam sob o controle da Secretaria de Desenvolvimento Econômico. O SENAI foi contratado na gestão Tarcísio de Freitas em 2023. O Governo atual encerrou o NOVOTEC e criou o Ensino Médio Paulista, devolvendo o controle para a SEDUC-SP, mas esses parceiros seguem atuando. Trata-se de uma formação aligeirada, barateada e focada no setor de serviços dada a predominância dos eixos tecnológicos de “Gestão e Negócios” e “Informação e Comunicação” perfazendo mais de 75% dos cursos, com destaque para o curso técnico em administração. São cursos teóricos que não exigem estrutura complexa: com apostilas digitais, contando, muitas vezes, com um único professor para ministrar todos os componentes do curso e que, no mais das vezes, são contratados de forma precária. Ou seja, uma qualificação simples e precária voltada para o trabalho simples.
Enfim, a atuação de empresas de capital especulativo tem relação direta com o esquema de barateamento e precarização da oferta da Formação Técnica e Profissional articulada ao Ensino Médio no Estado de São Paulo. Ou seja, tem relação com a precarização da formação dos estudantes e as formas de precarização do trabalho docente. Essa é uma questão importante para se pensar a questão do dualismo. Na pesquisa identificamos formas precárias de contratação de professores e professoras, em plena consonância com a atual reforma trabalhista, tais como a contratação como Pessoa Jurídica – MEI (pejotização), contrato intermitente (evento), contrato temporário como CLT ou autônomo, inclusive com salários menores do que o dos professores do sistema público estadual de ensino.
Obviamente que essa privatização de uma parte da carga horária do Ensino Médio, como a que acontece com a oferta da Formação Profissional, reduz ainda mais as horas aulas que poderiam ser atribuídas aos professores dos componentes curriculares clássicos do Ensino Médio, entre os quais os das áreas de Ciências Humanas.
Também em artigo com Mauro Sala, de 2024, “O novo PNE e o arcabouço fiscal: mínimo constitucional e meta de financiamento da educação em risco”, vocês refletem sobre os impactos da política fiscal do governo Lula-Alckmin para a educação. Vocês concluem que o arcabouço fiscal inviabiliza a expansão do financiamento público para a educação pública no próximo decênio. Qual a relação dessa conclusão com a expansão dos programas de privatização da educação?
No artigo que trata do arcabouço fiscal do governo federal procuramos demonstrar, com alguns dados, que ele frustra a expansão das despesas primárias do governo, entre elas, as despesas com a educação. A regra fiscal é draconiana e, na verdade, não flexibiliza em quase nada a EC 95, o teto dos gastos de Michel Temer. Ela estabelece mecanismos que limitam o crescimento das despesas primárias alinhadas ao cumprimento das metas fiscais. Estabelece uma proporção de 70% a 50% da variação do crescimento real da receita, a depender do cumprimento da meta fiscal, ao mesmo tempo em que fixa um limite ao crescimento real das despesas que varia de 0,6% a 2,5% ao ano. “Ao fim e ao cabo”, mostramos dados de projeção do próprio Tesouro Nacional que nos permitem concluir que, com essas regras, a meta de investimento de 10% do PIB em educação, proposta para o próximo PNE, não será cumprida, tal como ocorreu no plano em vigor (2014-2024), que teve sua vigência estendida até o fim de 2025.
Essas políticas de ajuste fiscal severas, tensionam para que ocorram ainda mais privatizações em todas as áreas do serviço público. Entendo que a privatização da educação é parte de um processo amplo que vincula a ideologia da eficiência empresarial à política de controle dos gastos e do arcabouço fiscal.
O setor privado vende a ideia de que com a privatização os serviços públicos, que antes eram prestados de forma exclusiva pelo Estado à população, agora custam menos. Mas o lado obscuro disso é que a degradação da qualidade dos serviços prestados pelas empresas vincula-se à lógica da criação do valor e da acumulação do capital, o que significa gerir os serviços públicos sempre abaixo do valor contratado para extrair lucro privado.
Marx havia observado que para o capitalista, investir o seu capital numa “fábrica de ensinar” ou numa “fábrica de salsichas”, não altera a relação a partir da qual ele pode extrair mais-valia e amplificar seus lucros. A perspectiva de maximização dos lucros ou de recuperação das taxas de lucro, sobretudo num contexto de crise, na lógica da financeirização, se expressa nas medidas de ajuste fiscal, nos processos de privatização de estatais e dos serviços públicos.
Uma empresa parceira do Estado pode ser administrada por uma holding de investimentos que tanto pode aplicar seu capital na educação, como numa rede de fast food ou numa rede de lojas franqueadas. Inclusive, aqui no Estado de São Paulo, tem uma empresa que ganhou um pregão do governo para gerir escolas e que também atua nos cemitérios privatizados da capital. Um horror!
Esse governo de extrema-direita no Estado elaborou um grande plano de desestatização, envolvendo um pacote de escolas públicas. Do plano consta a construção e “modernização” de 33 unidades escolares, atendendo 35 mil estudantes dos ensinos fundamental e médio. No dia 29 de outubro de 2024, o Consórcio Novas Escolas Oeste SP venceu o lote oeste do leilão da Parceira Pública Privada de Novas Escolas (PPP) na B3, bolsa de valores de São Paulo. O valor oferecido foi R$ R$11.989.753,71 da contraprestação prevista de R$15,2 milhões, o que resultou em um deságio de 21,43%. Vejam que esse consórcio tem como empresa líder a Engeform que é uma das empresas da concessionária Consolare, que assumiu um dos blocos da maior concessão para gestão e operação de sete cemitérios e serviços funerários na cidade de São Paulo. Exploram salas de velório e salas de aula. É um “Cemitério Maldito” com poderes sinistros do capital especulativo que veio para precarizar a oferta da educação, ou melhor, enterrar a educação.
Como já apontei, a maximização dos lucros está diretamente vinculada à redução dos custos de operação. Portanto, tal como acontece com tudo que é privatizado, haverá cortes de gastos em todas as atividades previstas na gestão das escolas, baixa qualidade dos materiais, precarização da infraestrutura, redução dos salários e formas precárias de contratação do pessoal. A privatização com a participação do capital fictício e especulativo é ampla. Ele está presente nas parcerias, nas plataformas educacionais, nas consultorias privadas do pessoal das escolas de negócios, na oferta do Itinerário de Formação Técnica e Profissional no Ensino Médio, entre outros, basta pegar o nome das empresas e lançar na internet.
Estamos vendo professores no Pará se mobilizando junto ao movimento indígena contra os ataques do governo de Helder Barbalho (MDB) e do secretário de educação Rossieli, famoso em São Paulo por sua gestão de precarização, assédios e privatização. Em São Paulo, toda política de redução de aulas e de disciplinas das Ciências Humanas está acompanhada também do desemprego de milhares de professores contratados. Como você avalia as possibilidades de mobilização dos professores para responder aos ataques de Tarcísio?
De fato, Rossieli vem deixando sua marca por onde passa. Ele é um estafeta dos reformadores empresariais e defensor ferrenho das teses neoliberais para a Educação. Foi ministro do governo Temer, em 2018, e conduziu toda a agenda da implementação da contrarreforma do Ensino Médio. Em sua passagem na SEDUC-SP, no governo Doria, instituiu a Lei 1.361/2020, que extinguiu as faltas abonadas e fixou limites para as faltas médicas, bem como estabeleceu a equivalência entre falta-aula e falta-dia.
Esses pontos foram um ataque direto aos direitos dos professores, inclusive permitiu a contratação de temporários em caso de greve e restringiu severamente os abonos de falta para as atividades sindicais. Ele implementou o novo plano de carreira que institui as 14 trilhas para a evolução na carreira baseada em critérios meritocráticos de desempenho, com interstícios de 2 anos para a evolução funcional e o tal subsídio. E o pior é que esse novo plano desconstrói o conjunto dos direitos dos professores, entre os quais o do acúmulo de cargos, decreta o fim da sexta parte, da licença prêmio e a evolução funcional por tempo de serviço entre outros direitos. Outros governos estaduais e municípios foram na mesma direção.
No Pará, ele também quer deixar sua marca com um pacote das maldades contra os professores e demais profissionais da educação. A Lei 10.820/2024 que instituiu o novo plano de carreira do magistério trouxe mudanças significativas para todo magistério regular do Pará. O sindicato dos professores aponta que haverá perdas expressivas nos salários e benefícios. Tal como ocorreu com a nova carreira aqui em São Paulo, o novo plano de carreira do Pará vai cortar e limitar gratificações ou subtraí-las dos cálculos para fins de aposentadoria. Dentre outras coisas, limita o sistema de progressões, introduzindo um novo sistema de avaliações e de titulações. Com a medida, o governo vetou de uma vez só as progressões automáticas na carreira, cortou as gratificações e revogou muitos direitos estabelecidos em lei. A lei substituiu as progressões e evolução na carreira, por tempo de serviço e formação, por critérios meritocráticos baseados em metas e avaliações contínuas. Muito parecido com as 14 trilhas da nova carreira que foi implementada aqui em São Paulo.
Por fim, a remuneração foi reestruturada com perdas significativas para todos os professores, sobretudo para os que atuam nas comunidades afastadas pelo Sistema de Organização Modular de Ensino (SOME).
A lei extinguiu o Sistema Modular de Ensino Indígena (SOMEI), que compõe o Sistema Modular de Ensino (Some), e viabiliza a oferta de educação indígena presencial. O sistema seria substituído por ensino a distância. Isso provocou a ocupação da SEDUC-PA por lideranças indígenas que exigiam a revogação da lei e o direito a uma educação presencial.
Enfim, o que está acontecendo no Pará é muito importante e um indicativo para mobilizações, resistência e formas de luta contra esses ataques sofridos pelos professores em todo país. O Sindicato das Trabalhadoras e Trabalhadores em Educação Pública do Estado do Pará (SINTEPP) propôs a unificação das reivindicações da categoria, do movimento indígena e dos quilombolas em torno de aspectos inerentes ao magistério. Isso vai ampliar e fortalecer a luta por lá.
Essa reforma da carreira no Pará, já foi implementada por aqui como resultante de uma série de reformas feitas ao longo dos 28 anos dos governos do PSDB (1995-2018) em São Paulo, entre as quais destaco a LC 1.093/2009 e da Lei 1.010/2007, para citar algumas medidas que dividiram a categoria e aprofundaram a precarização do trabalho. Soma-se a isso as medidas gerenciais baseadas em metas e de responsabilização individual que estão muito bem alinhadas ao atual plano de carreira e a reforma administrativa que foram legados do Dória e Rossieli.
Esse gerencialismo autoritário ganhou novos temperos com o avanço indiscriminado das plataformas digitais do secretário Feder. São ferramentas de controle que fixam um sistema de vigilância e punição sobre os professores e estudantes. São novas “máquinas de ensinar” que afetam a autonomia dos professores em seu trabalho educativo. Aliás, essas ferramentas estão sendo empregadas em vários estados e municípios, sejam naqueles governados pela direita e extrema-direita, como também pela esquerda liberal.
Mas tudo isso que estamos vendo hoje na educação é resultado de um processo de emprego de políticas neoliberais para a educação que foram sucateando as escolas, precarizando o trabalho dos professores, submetendo-os a mecanismos autoritários de gestão. Talvez o ponto culminante desse processo seja o da implementação da disciplina militar nas escolas, como o que ocorre com o programa de escolas cívico-militares gestado no governo neofascista do Bolsonaro. Esse programa ganhou sobrevida aqui no Estado de São Paulo e em outros estados governados pela extrema-direita. Hoje esse programa segue sendo empregado em 14 unidades da federação.
Estamos diante de um cenário bastante adverso para os professores e a educação pública e seus trabalhadores no país e que precisamos encontrar força construindo uma resistência coletiva contra essa avalanche de medidas.
As mobilizações que hoje ocorrem no Pará apontam caminhos para nossa luta. Pois, somente a luta unificada e radicalizada, com mobilizações nas ruas, pode fazer frente a esse projeto autoritário, conservador, privatista e empresarial para educação em andamento aqui em São Paulo. O grande desafio para a organização sindical poder fazer frente a esse projeto é o de criar meios e formas para unificar a luta de uma categoria precarizada, fragmentada e dividida. Um dos caminhos para construção de resistência é valorizar formas mais horizontais e solidárias de organização e de representação sindical a partir da base, em contraposição à burocratização e ao peleguismo.
Vejam que a mobilização e a luta no Pará têm vários componentes indicativos para a ação e o enfrentamento. A luta vem sendo toda ela norteada por um discurso anti-neoliberal alinhado a uma forma radicalizada de resistência, com métodos de ação direta e de organização popular, que partiu das lideranças da luta indígena, dos quilombolas e das populações ribeirinhas do Estado. Desde a ocupação da SEDUC-PA, foi se construindo um ambiente de colaboração, solidariedade e unidade de ação entre os movimentos sociais, os professores em greve e o sindicato. Compreendo que essa mobilização deve ser tomada como um forte exemplo para orientar as mobilizações e lutas daqui para frente, sobretudo para aquelas a serem travadas no campo da educação.
Entendo que as ações conduzidas pelas professoras e professores no Estado do Pará, diante o nefasto plano de carreira do governo do Pará e do secretário Rossieli, foram extremamente exitosas, justamente em decorrência da unidade que foi construída e da forma de luta adotada. Após mais de 20 dias de greve, os professores do Pará, em luta unificada com as lideranças indígenas, quilombolas e dos povos ribeirinhos conseguiram uma importante vitória que resultou numa negociação que levou à suspensão e revogação da Lei 10.820/2024, no último dia 5 de fevereiro. No entanto, os professores seguem mobilizados e dispostos a continuar na luta. Seguimos acompanhando.
Aproveito a oportunidade para convidar todas as pessoas interessadas na temática do trabalho docente a virem compor conosco o “Observatório do Trabalho Docente” que criamos aqui na Faculdade de Educação da UNICAMP. As atividades devem começar em março e as inscrições para participação estarão disponíveis em breve.
Prof; Dr. Evaldo Piolli
Livre-docente da Faculdade de Educação da UNICAMP
Departamento de Políticas, Administração e Sistemas Educacionais – DEPASE
Coordenador do Projeto do Observatório do Trabalho Docente da FE-UNICAMP