Revista Casa Marx

“Cidade; Campo” mostra a realidade dos aplicativos de limpeza e uma janela de solidariedade

Diana Assunção

Em seu novo longa “Cidade; Campo” a premiada diretora Juliana Rojas escancara o trabalho feminino no Brasil entre histórias de migrações femininas.

Em seu filme mais pessoal, Juliana Rojas nos apresenta a um universo completamente feminino, precarizado e cheio de “fantasmas” tanto das ausências da vida de cada uma quanto dos toques de fantasia característicos de seu cinema. É sintomático que tudo comece com o rompimento da barragem em Brumadinho, Minas Gerais. Este é o pano de fundo para explicar a expulsão de Joana para a Cidade e o rompimento não só da barragem mas também de inúmeros elos da vida de Joana no Campo. Na Cidade cheia de luzes e sons estranhos, Joana sem nenhuma indenização e com seu cachimbo, coloca o pé na terra e faz do jardim da casa a sua pequena roça sob o luar. Jaime, seu sobrinho neto que achou Joana estranha no começo, retratou essa cena em um desenho de criança.

Mas na Cidade a pequena roça não tem vez, e Joana se vê dentro do mundo dos aplicativos, tão “modernos” e tão precários. “Diarex” é o nome da plataforma uberizada que oferece serviços de faxina, leve ou pesada ou o que se queira. É surpreendente o nível de realismo com o qual o filme retrata o mundo precário feminino mostrando o dia a dia das trabalhadoras da limpeza submetidas à plataformização de seu trabalho e as tentativas destas empresas em convencê-las de que são “empreendedoras”. Qualquer semelhança com a atualidade não é mera coincidência. Para a foto do aplicativo, Joana pergunta: alguém sorri limpando uma janela?

Aqui temos a oportunidade e o deleite de ver brilhar a atriz Fernanda Vianna, que ganhou o Kikito de Ouro no Festival de Gramado por sua Joana. Nunca havia ninguém nas casas a não ser outras diaristas e também não se sabia quem era o patrão por trás da plataforma para além da encarregada. Mas “Cidade; Campo” vai além e mostra os pequenos gestos de solidariedade de classe entre as trabalhadoras da limpeza que, atomizadas cada uma em uma casa limpando solitárias os quartos, banheiros e janelas de outras pessoas, por vezes não se enxergam enquanto classe.

Mas um aceno de cumplicidade da janela se mostra como o princípio ativo de um elo que pode se tornar socialmente subversivo quando evolui para a união consciente em uma só classe. Foi este gesto que arrancou um sorriso ainda tímido de Joana limpando a janela, não pela superexploração, mas pela união em acenos desse batalhão segregado. A trabalhadora da janela, sem falar nada, disse no filme muito mais do que se possa parecer. Essa solidariedade vemos materializada na defesa da trabalhadora agredida, no levantar dos celulares em uma espécie de paralisação das trabalhadoras que já depois no ônibus começam a sonhar com uma “greve geral”, afinal, elas são milhares. Como diz Preta Ferreira, excelente no papel de uma das trabalhadoras, “afinal, é trabalhar só pra existir?”.

É dessa solidariedade, que vira até diversão no karaokê, que Joana tenta reencontrar “sua roça” na Cidade. Mas ainda no seu olhar, no horizonte, ela está sempre avistando o Campo, e nesse momento o filme nos leva a outra história que conecta mais mulheres com ausências e fantasmas agora indo da Cidade ao Campo, mas sem expulsão, pela busca idílica de uma vida menos conectada na cidade. Mara e Flávia se mudam para o Campo e deixam o apartamento com algumas doações para limpeza da Diarex, sendo essa uma possível cena de ligação entre uma história e outra.

Nesta segunda parte, Juliana consegue transmitir as inseguranças de um casal de mulheres na busca pelo passado, no luto e na vontade de uma vida sem as conexões alucinantes da Cidade, mas com as frustrações que a idealização romantizada deste projeto apresenta reduzindo também a própria noção de Campo. Com muita delicadeza somos inseridos no universo de Flávia em sua busca pelo pai, pela mãe, e por ela mesma. Ao mesmo tempo temos o privilégio de assistir a uma das mais belas cenas de sexo entre mulheres já filmadas com Mirella Façanha e Bruna Linzmeyer sublimes. Sob o som do conservador “Temporal de Amor” de Leandro e Leonardo, vemos em contraste corpos livres que se amam.

“Cidade; Campo” é mais um belíssimo filme de Juliana Rojas, já consagrada pelo excelente “As Boas Maneiras”, pelo ácido “Sinfonia da Necrópole” e pelo seu clássico “Trabalhar Cansa”. Para todos aqueles que enfrentam a precarização do trabalho no cotidiano, “Cidade; Campo” é também uma visão otimista sobre as relações de solidariedade de classe no combate à precarização e superexploração, e um olhar feminista quase que integralmente feito por mulheres queers sobre os universos de distintas mulheres que são arrancadas de suas vidas ou sofrem as opressões desse sistema e buscam outros lugares.

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