Revista Casa Marx

Quando os extremos se convergem no governo Lula

Renato Shakur

Iremos analisar as relações raciais no Brasil dando ênfase à análise da política do governo Lula-Alckmin através de ministérios que elaboram políticas para a questão negra como forma institucional de combater o racismo no marco do recrudescimento da violência policial em alguns Estados brasileiros. Nesse sentido, nosso objetivo é mostrar que no governo Lula convergem duas formas de dirigir a questão negra diametralmente opostas. De um lado, os elementos de choque à direita nas relações raciais que seguem da situação política anterior, do outro lado a política de Estado da frente ampla que através da representatividade negra provê algumas políticas públicas. Convergem extremos opostos no governo Lula-Alckmin, justamente porque esta fórmula busca impedir que a identidade negra emerja como uma fortaleza do movimento operário contra os ataques e as reformas, garantindo assim a governabilidade da Frente Ampla a partir da estabilização do regime, bem como fornece um terreno favorável para o governo Lula-Alckmin dar continuidade à obra econômica do golpe institucional, como expressa o Arcabouço Fiscal.

Introdução

O governo Lula-Alckmin comporta duas formas de tratar a questão negra diametralmente opostas, mas são parte orgânica de uma mesma política de Estado acerca das relações raciais no Brasil. Há um recrudescimento da violência policial em alguns Estados brasileiros onde os elementos de choque à direita nas relações raciais aparecem de forma mais aguda, como em São Paulo do bolsonarista Tarcísio, na Bahia de Jerônimo Rodrigues do PT e no Rio de Janeiro de Cláudio Castro que depois de “flertar” com a Frente Ampla, volta a se aproximar de Bolsonaro. Há outros casos que esses elementos se desenvolveram de outra forma não menos grave, como o caso absurdo de um entregador negro no Rio Grande do Sul que foi preso pela polícia de Eduardo Leite depois que um homem branco tentou esfaqueá-lo, além das inúmeras denúncias de violência e covardia da polícia militar de Romeu Zema contra trabalhadores e a juventude negra em Minas Gerais. Evidentemente, valeria uma análise mais aprofundada como cada governador utiliza a repressão policial para impor seus programas de governo, se apoiando na opinião pública e na base social bolsonarista para dar legitimidade aos elementos sociais do choque à direita nas relações raciais que persistem em cada Estado.

Mas o que queremos chamar a atenção aqui é que os três governadores se aproximam daquilo que denominamos ser um choque à direita nas relações raciais, isto é, um ataque brutal à identidade negra operada por um presidente racista e reacionário, Bolsonaro, e tomada a cabo por seus asseclas. Ainda que este choque tenha encontrado certo limite na luta de classes internacional, o Black Lives Matter, alguns elementos da situação política anterior seguem vigentes, sobretudo, nesses Estados citados acima. As chacinas no Rio de Janeiro, a sanguinária operação Escudo na Baixada Santista a mando de Tarcísio e a Bahia alcançando o topo do ranking em assassinatos de pessoas negras pelas mãos da polícia de Jerônimo Rodrigues são provas de que a brutalidade policial e o racismo são parte do projeto político do regime.

De todo modo, a questão que queremos compreender é como num país governado por uma Frente Ampla onde a política de Estado referente à questão negra é oposta ao choque à direita nas relações raciais, convive com o recrudescimento da violência policial e casos de chacinas brutais com a da Baixada Santista.

O choque à direita nas relações raciais

Quando Bolsonaro se elegeu se operou na sociedade brasileira um choque à direita nas relações raciais, isto é, haveria uma forte alteração nas relações raciais no Brasil proveniente do aprofundamento do racismo. Em outras palavras, como ocorre nos movimentos de placas tectônicas, um abalo sísmico se desenvolveu a partir do enfrentamento do Estado e suas forças de repressão contra a população negra no país. O resultado disso foi que em 2021 83% das pessoas assassinadas pela polícia no Brasil eram negras, houve aumento de chacinas cometidas pelas forças de repressão, de operações policiais em favelas, aumento de crimes de injúria racial e ataques a terreiros de candomblé e umbanda. Isso ocorreu porque Bolsonaro tinha um discurso bastante racista e foi o aríete de um setor reacionário junto a militares e seus correligionários de operar esse choque à direita nas relações raciais, ou seja, atacou violentamente a cultura negra e a identidade negra em nome de impor uma agenda ultraneoliberal atrelada aos ditos “valores da família tradicional brasileira”. O assassinato do Mestre Moa na Bahia foi uma primeira imagem de como seria o Brasil do choque à direita nas relações raciais.

Invariavelmente, o que esteve em jogo naquele momento era que a ideologia da democracia racial foi colocada em xeque por Bolsonaro, o Brasil passaria a mostrar sua face racista por fora de qualquer maquiagem social onde o negro não teria espaço para ter orgulho de sua cor e cultura na medida que por meio das forças de repressão passaria a se enquadrar paulatinamente na figura do “cidadão de bem”. Em última análise, isso significaria adequar o negro ao programa econômico e dos “costumes” da extrema-direita:

“O discurso de Bolsonaro se aproxima de Freyre ao afirmar que não existe racismo no Brasil, que este país seria composto por “brasileiros”. Porém, rompe com Freyre ao atacar as expressões que fortalecem e ressaltam a identidade negra. O negro não tem nenhuma contribuição a fazer, ao contrário, a figura do “cidadão de bem” se aparta e se afasta o mais categoricamente possível das expressões identitárias “explícitas”, como cabelo, vestimenta, religiões de matriz africana, comunidades quilombolas, entre outras; é a partir daí que esse discurso se dirige a um Brasil supostamente homogêneo.” 1

No Brasil de Bolsonaro, o negro não poderia se ligar as suas raízes históricas sejam elas culturais ou políticas, pois se conectar a elas através da reivindicação do cabelo black power ou da defesa dos territórios quilombolas, seria lembrar da luta dos trabalhadores livres e escravizados por sua emancipação e posteriormente no pós-abolição contra a opressão racista. O negro deveria se enquadrar à formula do “cidadão de bem” que na prática significava esquecer de todo seu passado de luta nas greves, revoltas, paralisações, ou através da arte e cultura, para aceitar de cabeça baixa um plano de ajustes draconiano que vinha sendo implementado desde o golpe institucional e que Bolsonaro daria continuidade e que recairia ainda mais sobre negros e negras.

Em resumo, podemos dizer que o choque à direita nas relações raciais tinha como um de seus objetivos estratégicos pavimentar o caminho de ataques da burguesia brasileira onde a identidade negra não pudesse emergir como uma fortaleza do movimento operário.

Retomando a metáfora geológica, estamos diante de uma primeira acomodação social de “placas tectônicas” após esse choque à direita, sete anos depois da eleição de Bolsonaro. Ela se dá em meio a uma nova correlação de forças do ponto de vista das relações raciais aberta por Bolsonaro onde desde o período anterior em vários estados brasileiros houve um aumento da violência policial contra o negro, no qual as chacinas e as operações policiais passaram a fazer parte substancial do programa de “segurança pública” de alguns governadores. Entretanto, essas placas se acomodam regidas pela Frente Ampla do governo Lula-Alckmin e estão em consonância com os objetivos econômicos e políticos de estabilização do regime e da manutenção da obra econômica do golpe institucional.

Frente Ampla e questão negra

Como George Breitman definiu em “Quando surgiu o preconceito contra o negro”, a burguesia não descarta suas armas em vão. A Frente Ampla que hoje governa o país na figura de Lula não poderia prescindir de uma arma tão eficaz como o choque à direita nas relações para ajudar, como foi outrora, a impor um programa de ataques a direitos históricos e cortes no serviço público. O governo Lula-Alckmin precisa combinar ao menos três coisas: a pavimentação social deixada pelo choque à direita nas relações raciais com novos ataques econômicos como o arcabouço fiscal e a estabilização do regime político.

O governo Lula-Alckmin não consegue impor essa agenda econômica como foi imposta anteriormente se chocando com a identidade negra, justamente porque isso aprofundaria contradições na própria base social petista, sobretudo na juventude, que deposita esperanças de que o governo atual seja totalmente diferente do anterior nas questões democráticas. Essa base se levantou nas últimas semanas contra a PL da gravidez infantil que quer transformar mulheres, crianças e pessoas que gestam em criminosas com pena maior do que as pessoas que cometem estupro. O próprio PT concordou que a votação fosse secreta e liberou o voto de base na Câmara para votar a favor deste PL reacionário junto a setores reacionários do Congresso representados na figura de Lira.

Entretanto, em nome da “governabilidade”, o governo Lula-Alckmin impõe seu programa de ajustes abrindo espaço para a extrema-direita na pauta de “costumes”, assim como foi com a questão do PL da gravidez infantil, mas também na pauta de “segurança pública”, tão cara aos setores reacionários do regime.

Ainda que haja um limite em sua própria base social e no momento político que vive o país com uma fortíssima luta de professores e técnicos pelo reajuste salarial, o que impede um giro mais à direita do governo Lula-Alckmin em torno da questão negra, em outros momentos isso foi superado pelo PT. Basta lembrar a ocupação do Complexo do Alemão pelo exército no governo Dilma em 2014, o apoio às UPPs no Rio de Janeiro e as tropas no Haiti. A necessidade de estabilizar o regime abre a possibilidade ao PT de conciliar com a direita e a extrema-direita na medida em que faz vista grossa para seus programas de “segurança pública” ou diretamente implementa um programa bastante repressivo em determinados lugares como na Bahia. Mas a Frente Ampla busca resolver esse aparente impasse para impor sua agenda econômica sem que a identidade negra emerja como um obstáculo.

Em um artigo da Folha intitulado A Oposição domina a pauta de segurança pública e deixa governo Lula sem bandeira, os colunistas se “queixam” que o governo Lula cede às políticas do PL na Comissão de Segurança Pública da Câmara e na Comissão de Constituição e Justiça, como foi o caso da sanção da Lei Orgânica das PM e BM, da lei de restrição de saída temporárias de presos e a privatização dos presídios. Para os colunistas, o problema reside no fato do PT de certa maneira abrir mão de uma política voltada para a “segurança pública” que imponha um programa não menos reacionário, mas que tire das mãos do bolsonarismo o protagonismo neste tema, especialmente em ano eleitoral.

Na realidade, o que a Folha teme como falta de “programa para a violência social”, corresponde à maneira pela qual o governo Lula-Alckmin escolheu estabilizar o regime, cedendo ao bolsonarismo na agenda da “segurança pública” às políticas da extrema direita. Com outras palavras, poderíamos dizer que o PT cede no terreno onde há uma forte base bolsonarista, em nome da “governabilidade” burguesa, ou seja, a Lei Orgânica das PM e BM que aumenta a impunidade policial sancionada por Lula está a serviço de garantir que o regime político se mantenha sem a polarização entre as forças que compõe a Frente Ampla e a extrema direita. Esse relativo “equilíbrio” onde não se chocam abertamente as forças bonapartistas do regime e os partidos de oposição com o governo, servem para aprofundar com mais êxito a agenda neoliberal, por conta disso o governo Lula-Alckmin incorpora elementos do choque à direita em sua política de Estado.

Há, portanto, uma combinação operada desde o governo Lula-Alckmin entre estabilizar o regime político através da incorporação de elementos do choque à direita nas relações raciais e a implementação da agenda neoliberal. Isso ficou evidente, por exemplo, quando observamos os investimentos do governo federal nas forças de repressão. O Ministério da Justiça e Segurança Pública aportou desde o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) e o Fundo Penitenciário (Funpen) em 2023, repasses 27% superiores aos executados em 2022, como o valor total investido nos estados e no Distrito Federal através do FNSP ultrapassando a marca de R$ 1,2 bilhão. Já o Funpen recebeu mais de R$ 311 milhões. Soma-se a isso o reajuste salarial dado por Lula a PR e PRF enquanto segue negando reajuste para técnicos administrativos e professores dos institutos federais e universidades federais.

São Paulo foi o estado que mais recebeu verbas do governo federal, totalizando R$ 47,5 milhões, seguidos de Minas Gerais, Bahia, Pará e Rio de Janeiro. Aliás, é nesse Estado em que se expressa de forma mais cabal a combinação entre choque à direita e o aprofundamento da agenda ultra neoliberal da extrema-direita.

Há uma reorganização das frações burguesas em São Paulo a partir de uma unidade programática ultraneoliberal encapada pelo bolsonarista Tarcísio, resultado do “processo de perda relativa de posições na economia nacional” frente ao fortalecimento econômico do interior e do agronegócio. Como parte desse processo também há um retorno ao malufismo no que toca a política de “segurança pública”, com a repressão como algo central em nome de “garantir” os interesses da “população” contra o “crime organizado”, diferente dos anos 1990 onde a repressão era tida como um “dano colateral”.

“Agora a tendência é oposta, combina a repressão policial nas periferias com um profundo ataque aos setores mais organizados da classe trabalhadora e podemos esperar um papel cada vez maior da Rota, da PM e da extrema direita militar em São Paulo”. 2

O que está em jogo é esse retorno ao malufismo combinado com os elementos de choque à direita nas relações raciais, isto é, a repressão policial passa a ser no governo de Tarcísio um elemento fundamental para conseguir impor sua agenda de privatista. Não é um acaso que justamente em São Paulo onde ocorre uma das chacinas mais brutais da história do Estado desde o Carandiru, a Operação Escudo se desenvolve concomitante ao plano de privatizações de Tarcísio da Sabesp, CPTM e Metrô. Menos acidental ainda são os investimentos que Lula fez através do BNDES e do próprio governo federal para acelerar o processo de privatização. O que está em jogo é um “pacto pela ordem” entre Lula e Tarcísio, ainda que sejam adversários no campo eleitoral, nada o impede de pactuar com o bolsonarismo em São Paulo em nome da “estabilidade do regime”.

O choque à direita nas relações raciais possibilitou que a identidade negra fosse de certa forma atomizada, e não pudesse servir à classe trabalhadora como uma fortaleza para as lutas que seguiram contra a reforma trabalhista, a terceirização irrestrita e o arcabouço fiscal, bem como contra o avanço da violência policial. Para a Frente Ampla o choque à direita ainda serve àquele objetivo estratégico, no entanto, passa ser a forma que garante a estabilização do regime abrindo espaço para extrema-direita ao mesmo tempo que abre o espaço para mais ataques, mas faz isso de uma maneira totalmente diferente do que vinha sendo feito no governo Bolsonaro, admitindo em sua política de Estado duas formas de dirigir a questão negra que são em essência extremos opostos.

Identidade negra e a política ministerial para a questão negra

Com a eleição do governo Lula-Alckmin a política de ataque frontal à identidade e cultura negra levada à frente por Bolsonaro deu um giro de 180°, não se trata mais de um confronto à identidade negra apoiada no recrudescimento da violência policial como política de Estado. Na realidade o que se desenvolve é o contrário disso. A defesa de direitos sociais da população negra encampada desde ministérios de uma coalizão burguesa que tem ministros negros à frente como Aniele Franco no Ministério da Igualdade Racial (MIR) e Silvio Almeida no Ministério dos Direitos Humanos (MCDH) onde a representatividade dá legitimidade para atuarem no combate ao racismo institucional.

Poderíamos resumir essa política ministerial para a questão negra na fórmula “representatividade negra + políticas públicas”, isto é, na ideia equivocada de que os negros representados em uma coalização burguesa pode se tornar uma “saída” eficaz ao problema da desigualdade social através de conquistas parciais de direitos. Esta política de Estado, certamente se aproxima da tradição do movimento negro e da intelectualidade negra no que corresponde à denúncia do mito da democracia racial, na medida em que reconhece que o Brasil é um país racista e a identidade negra deve ser “preservada” e não atacada. Por outro lado, a nomeação de Silvio Almeida e Anielle Franco para os ministérios não é apenas parte da política de institucionalização do movimento negro, como também é uma resposta da própria burguesia brasileira aos anseios e questionamentos de amplos setores de juventude que tem o desejo de viver um mundo sem racismo. Ela serve para canalizar a insatisfação social com o racismo e o capitalismo no Brasil com o objetivo de limitar preventivamente que esses questionamentos se transformem em luta negra, no sentido de tirar as possibilidades de transformação social do terreno da luta de classes e transferi-las para o Estado, e a Frente Ampla passou a optar por essa política de estatização da questão negra.

Foi nesse sentido que a Frente Ampla escolheu dois negros representantes da luta antirracista no Brasil, um intelectual que debatia no campo do marxismo as questões referentes à raça e classe e uma legítima representante da luta por justiça à Marielle. Com o objetivo de dar continuidade a um suposto “legado” de conquistas dos negros nos últimos anos do governo do PT como as cotas raciais, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Estatuto da Igualdade Racial e a Lei 10639. Entretanto, o governo Lula-Alckmin se coloca como garantidor da continuidade das conquistas do movimento negro, aprofundando o processo de institucionalização do próprio movimento de forma inteiramente nova. Se antes nos governo do PT existia apenas a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) vinculada à presidência da República com o apoio do Ministério da Justiça, atualmente a Frente Ampla possui dois ministérios responsáveis por “combater” o racismo que se constitui como um pilar herdado historicamente nas instituições brasileiras, seja ela na educação, no judiciário, etc.

A atuação dos ministérios voltados para a questão negra articula a promoção de políticas públicas voltadas à população negra e quilombola com o combate ao racismo nas instituições do Estado que pode compreender desde a mudança da direção na Fundação Palmares que tinha o racista e bolsonarista Sergio Camargo à assinatura de protocolos de combate ao racismo. No ano passado foi assinado entre o MIR, MDHC e o Ministério dos Esportes, dirigido pelo bolsonarista Fufuca junto a CBF, uma campanha chamada “com racismo não tem jogo”, estabelecendo uma série de ações que precisam ser tomadas contra o racismo nos estádios de futebol. Se aliar ao bolsonarismo para “supostamente” combater o racismo, já mostra os limites deste combate ao racismo institucional. De todo modo, a atuação desses ministérios não se resumiu a isso, também no ano passado, o MIR lançou um Pacote de Promoção da Igualdade Racial com foco na titulação de terras quilombolas e indígenas, mas na medida em que o governo Lula-Alckmin fez investimentos recordes no agronegócio através do Banco Safra, as terras dos povos originários e das comunidades quilombolas seguem sendo ameaçadas.

Em termos gerais, a política adotada pela Frente Ampla, por ser uma política de um Estado burguês com o objetivo de fortalecer sua hegemonia, serve para diferenciar do bolsonarismo nas questões democráticas na medida em que o governo Lula-Alckmin fica “livre” para fazer seus acordos com Tarcísio, com o agronegócio e passar ataques como o arcabouço fiscal. Da mesma maneira, poderíamos dizer que a Frente Ampla reconhece que o Brasil é um país racista, pois suas instituições reproduzem uma lógica racista, muitos remanescentes quilombolas não têm suas terras demarcadas pelo Estado e os presídios convivem com superlotação. Esses problemas referentes à questão negra são reconhecidos pelo MIR e MDHC como problemas de Estado e nesse sentido, a Frente Ampla os “combate” oferecendo direitos parciais.

O governo Lula-Alckmin reconhece o mito da democracia racial, isto é, de que o país de fato está imerso nas contradições próprias do racismo que atravessam a fome, as desigualdades sociais, violência policial, etc, mas desde uma perspectiva de que com a garantia de programas sociais pode-se enfrentar o racismo. Por conta disso, o governo Lula-Alckmin se distancia do choque à direita nas relações raciais que encontra o problema do desenvolvimento no Brasil seja do ponto de vista moral ou econômico na identidade negra e cultura negra. Entretanto, ao criar a falsa ideia de que o Estado burguês pode oferecer saídas ao problema do racismo, acaba colocando o Estado como o sujeito da transformação social e não a classe trabalhadora. Há uma dupla operação de reificação das relações raciais, na primeira o negro aliena sua capacidade de transformação e sua autoatividade política no Estado através do MIR e MDHC, na segunda e como consequência direta desta primeira, o negro acaba alienando em um sentido sua própria identidade, na medida em que se distancia da tradição da luta de classes das revoltas, quilombos, greves e paralisações.

A identidade negra que poderia emergir como uma fortaleza nas lutas por direitos sociais e contra o racismo, passa também por um processo de atomização, não pelo choque nas relações raciais através do enfrentamento com os aparatos repressivos do Estado, mas pela incorporação e alienação de seus elementos combativos no próprio Estado. Isto é, o negro para Frente Ampla não é sujeito da política ou de seu próprio destino, criando um paradigma da identidade negra sem autoatividade, ao mesmo tempo deixando o campo da representatividade como a única forma do negro viver, sentir e “lutar” no que toca à questão negra no Brasil.

É nesse sentido que os extremos se convergem no governo Lula, tanto a política de choque à direita nas relações raciais quanto na política ministerial da questão negra, por mais que partam de ideologias e estratégias distintas, acabam servindo a hegemonia burguesa. A primeira prevê o ataque à identidade e à cultura negra desde o recrudescimento da violência estatal como forma de implementação da agenda ultraneoliberal da extrema-direita, a outra define como política de Estado a preservação da cultura e identidade negra a partir de políticas públicas, onde a autoatividade política do negro passa a pertencer ao Estado enquanto o governo Lula-Alckmin aplica ataques econômicos. Ambas convergem no ponto de tentar impedir que a identidade negra emerja como uma fortaleza do movimento operário na luta contra os ataques econômicos, a precarização do trabalho e a violência policial, isto é, são extremos opostos na maneira de dirigir os ataques contra a classe trabalhadora, mas que competem ao objetivo de estabilizar o regime e implementar até o final a obra econômica do golpe institucional e por isso fazem parte da agenda econômica da Frente Ampla.

Lulismo senil em um regime degradado e democracia racial

Quando caracterizamos que a hegemonia burguesa na Frente Ampla é a expressão de um lulismo senil no regime degradado, queríamos dizer que, diferente de como foi nos primeiros anos do governo Lula onde o lulismo se caracterizava por sua capacidade fazer concessões econômicas em base ao boom na venda de comodities pro mercado chinês, nesse momento há limites estruturais para que haja concessões sociais. Isso define a hegemonia do lulismo em sua fase senil, isto é, uma hegemonia débil que, por mais que a conjuntura econômica permita algum nível de concessão, ela não irá se dar da mesma forma que foi nos primeiros anos do governo Lula. Essa hegemonia se desenvolve em um regime político degradado, ou seja, entre as disputas de bonapartismos, de instituições sem votos (judiciário e militares) que paulatinamente aprofundou traços autoritários no regime e vem destruindo o que restou do pacto de 88.

Ao contrário do que acontecia outrora, estamos diante de uma hegemonia débil que tem uma agenda de ataques e aprofundam as contradições de classes, esse aspecto do lulismo senil tem implicações importantes para à questão negra. Enquanto a Frente Ampla aumenta a precarização do trabalho, corta verbas públicas, estabelece o arcabouço fiscal, mantém a desigualdade salarial entre negros e brancos, ela precisa estabelecer o consenso, especialmente, entre as massas negras para que as desigualdades sociais e as contradições raciais não apareçam como um problema social ao menos para um setor da população.

A Frente Ampla, portanto, necessita estabelecer o consenso desde uma ideologia que fosse capaz de acomodar o “choque à direita nas relações raciais” e a política ministerial, sem que a estabilidade do regime ou agenda de ataques fosse colocada em questionamento. Aí aparece a contradição da unidade desses dois extremos, porque para garantir esses dois objetivos a democracia racial surge como uma ideologia capaz de hegemonizar amplas massas na medida em que mascara as contradições do capitalismo brasileiro e estabelece que as contribuições do negro na sociedade brasileira se deram apenas através da cultura e não da luta de classes.

É chamativo que Lula, quando tratou da questão negra no Brasil no último período, tenha usado afirmações que reforçam a ideologia da democracia racial. Na visita que fez à fábrica da Volkswagen em São Bernardo no início deste ano, falou para uma mulher negra que estava em cima do palco do evento: “Vai cantar, batucar? É namorada de alguém? […] Porque uma afrodescendente assim gosta do batuque de um tambor.” Além de ter sido bem machista em supor que uma mulher em um espaço político só poderia estar “acompanhando” seu “namorado”, concluir por outro lado que estaria ali para tocar algum instrumento de origem africana revela como Lula vê as coisas a partir da democracia racial. Assim como quando esteve no Rio Grande do Sul por conta do desastre capitalista, comentou que não sabia que tinha “tanta gente negra” no Estado, se espantando de encontrar negros na região sul do país, como se fosse possível que eles não estivessem nas regiões mais afetadas e atingidas pelas enchentes. Durante uma viagem a Cabo Verde em julho de 2023, em sua fala sobre as “contribuições” da África para o Brasil, esses elementos ficaram ainda mais evidentes:

“Nós, brasileiros, somos formados pelo povo africano. A nossa cultura, a nossa cor, o nosso tamanho é resultado da miscigenação de índios, negros e europeus […] Temos profunda gratidão ao continente africano por tudo que foi produzido durante 350 anos de escravidão no nosso país.”

As afirmações corroboram com a ideologia da democracia racial, com a ideia de que os negros contribuíram para a formação social brasileira através da cultura e que a miscigenação é o resultado do desenvolvimento histórico do Brasil, como resultado da fusão desigual entre o elemento português, indígena e africano, teria surgido o “brasileiro”, o “miscigenado”. A ideia da tese era afastar da sociedade brasileira tanto seu passado escravista para afirmar que “não existe racismo no Brasil”, porque não existe o negro ou indígena, mas sim o “mestiço”, ao mesmo tempo que apartava também as contribuições políticas do negro à classe trabalhadora como seu passado de luta em revoltas, greves, quilombos, etc.

Ainda que Lula se afaste da ideia de “não há racismo no Brasil”, o espanto em ver que justamente na região onde teve um importante peso da imigração europeia ainda existam tantos negros e não “miscigenados” e a associação do negro à cultura e musicalidade, mostram elementos da ideologia da democracia racial.

Essas palavras proferidas por Lula revelam como a Frente Ampla não pode prescindir da ideologia da democracia racial no momento de lulismo senil, ou seja, num momento em que não há possibilidade de avançar qualitativamente em política públicas em relação a população negra e precisam passar e garantir a manutenção de medidas neoliberais como o arcabouço fiscal. Talvez a nova lei de cotas sancionada por Lula seja o exemplo mais evidente disso, porque ainda que tenha incluído quilombolas ao direito de acesso à universidade por meio das cotas, diminuiu a renda familiar restrigindo ainda mais o acesso a esse direito, não incluiu as cotas trans e o vestibular continua sendo um filtro social e racista que impede que negros e negras acessem o ensino superior.

Como eu havia dito, a Frente Ampla reconhece que existe racismo na sociedade, mas não revela que ele está presente, especialmente nos problemas que envolvem a população negra no que tange a falta de direitos sociais – como o acesso à saúde, educação, saneamento básico, etc – , na precarização do trabalho e na própria violência policial, ou seja, a questão negra está presente em problemas estruturais do capitalismo brasileiro. Nesse sentido, o que surgia como uma contradição, a ideologia da democracia racial, se converte em seu contrário, pois a ideologia da democracia racial ajuda a reificar as relações raciais na medida em que não revela o verdadeiro conteúdo delas: a precarização do trabalho e a falta de direitos sociais.

A democracia racial que, historicamente, serviu para dizer que o Brasil é um “paraíso racial”, está a serviço de mascarar que a precarização do trabalho e a terceirização é atravessada pelo racismo. Para a Frente Ampla, se a classe trabalhadora negra recebe menos que um trabalhador branco ou se um jovem negro precisa ficar 14 horas em cima de uma bicicleta para receber um salário mínimo, é porque o negro falhou invidualmente, basta trabalhar mais para ser bem sucedido ou se esforçar para ter uma emprego melhor, e isso não tem nada a ver com o racismo. A mesma coisa podemos perceber com o arcabouço que ataca diretamente a educação e saúde que sempre fizeram parte da luta histórica do movimento negro, o teto de gastos que precariza os serviços públicos atingem diretamente a população negra, mas a democracia racial impede de ver que esta medida é atravessada pela opressão racista. Em resumo, podemos dizer que até os elementos do choque à direita nas relações raciais acabam se valendo desta ideologia quando Tarcísio e Claudio Castro “justificam” chacinas e operações policiais como “combate ao crime organizado” ou “quem morreu era bandido”, justifica o massacre nas favelas, bem como a brutalidade e covardia da repressão policial, como se não estivesse atrelada ao racismo.

A democracia racial ideologicamente se combina com o lulismo senil, pois reifica a relação dos ataques com o racismo no Brasil. É chamativo que Lula se cale frente às chacinas da polícia de Tarcísio ao mesmo tempo em que propõe a PL da Uberização que retira os poucos direitos que restaram para os trabalhadores por aplicativos.

Estado integral e a questão negra

estatização da questão negra tomada a cabo pela Frente Ampla estabeleceu que o “antirracismo político” fica a cargo do MIR e do MCDH que tem o objetivo de elaborar políticas públicas e defender a identidade negra. O que restaria ao negro seria uma espécie de “antirracismo cultural”, onde o negro tem todo o “direito” de reivindicar a representatividade em espaços de poder, empresas, nas escolas de samba, nas nações de maracatu, etc. Poderíamos dizer que a institucionalização do movimento negro alcançou o objetivo de apartar a luta de classes da identidade negra, não negando ela historicamente, como a ideologia da democracia racial faz, mas tornando nossos heróis não como fontes de inspiração das luta do dias de hoje, mas apenas símbolos do passado. Nesse sentido, não param de emergir desde o estado integral, especialmente nas direções do movimento negro, mídias negras e centros de estudos antirracista no país como Geledés, Ceert, Alma Preta, etc, teorias pós-modernas que corroboram com esta visão de mundo.

A decolonialidade é uma delas, nela defende-se que a luta contra o racismo é uma batalha epistemológica pelo monopólio do conhecimento contra-hegemônico através dos “saberes subalternos” e da “ecologia dos saberes”, ou seja, o avanço no acúmulo de conhecimento e experiências para superar a “linha abissal” que traça o limite do que é válido para as sociedades ocidentais ou não, se consuma nos objetivos estratégicos dos decoloniais 3. Bastaria, portanto, um grande avanço no acúmulo acadêmico, por exemplo, para que o mundo girasse sua chave epistêmica e olhasse os subalternos de outra maneira, sem racismo, preconceito ou xenofobia. O genocídio do povo palestino pelo Estado sionista israelense mostrou que a unidade internacional entre trabalhadores judeus e palestinos, bem como entre todos os trabalhadores do Oriente médio e da Europa é que pode parar esse apartheid racial. As demonstrações de luta operária que acontecem nos portos da Europa, Estados Unidos e no mundo árabe onde portuários impedem o transporte de armas para Israel são exemplos disso.

Para os estudos críticos da branquitude a luta antirracista é contra a hegemonia branca e o preconceito racial do branco, como se o mundo estivesse divido entre “negros x brancos” e não tivessem nenhuma determinação social de exploração e opressão de uma classe sobre a outra. Se para o marxismo a essência do Estado é a opressão de uma classe sobre a outra e a garantia dos interesses econômicos da classe dominante, para os estudos críticos da branquitude a contradição da sociedade capitalista está na intenção do “grupo social branco” preservar sua auto imagem repleta de privilégios numa sociedade atravessada por hierarquias raciais 4. Seria uma espécie de “biopolítica racializada”, onde o indivíduo branco exerce através do racismo as funções de repressão racista do Estado ora promovendo o racismo ora apenas “existindo”, na medida em que sua auto imagem está sendo preservada em detrimento da identidade negra. Se a contradição está no “grupo racial” e não no Estado e se a opressão racista se desenvolve socialmente pelo “biopoder racializado”, logo o Estado pode ser disputado. A conclusão reformista dos estudos críticos da branquitude é a luta institucional contra o racismo, já que é impossível num país tão desigual e racista como o nosso combater o grupo racial branco como um todo. A branquitude auxilia na teorização da institucionalização do movimento negro, não à toa o Ceert que tem Cida Bento como fundadora e uma das principais teóricas sobre branquitude e psicologia social do racismo, integrou o governo de transição de Lula-Alckmin.

Se pudéssemos resumir essas duas teorias em seus conteúdos estratégicos, definiremos que a decolonialidade objetiva a mudança epistêmica e, portanto, cultural e a branquitude objetiva a transformação moral e, por isso também cultural. O que essas teorias têm em comum é que deixam intacto o Estado burguês como alvo da luta antirracista, opondo economia e cultura, essas teorias que parecem ser “as mais radicais” para combater o racismo, na realidade ajudam a “blindar” o Estado burguês de críticas. Em última análise, o estado integral necessita das direções do movimento negro que se apoiam nessas teorias, pois elas alimentam a ilusão no nessa política ministerial para a questão negra da Frente Ampla, não apenas a partir de ver a representatividade negra numa coalização burguesa como um suposto avanço antirracista, como também ver o Estado como um espaço de disputa da classe trabalhadora. Em resumo, a hegemonia do lulismo senil ganha um pouco mais de fôlego, sem poder dar concessões que de fato toquem na raiz do problema racial brasileiro: a precarização e violência policial. Os negros só podem sentir avanços sociais no campo da cultura.

Clóvis Moura deu bases para definirmos sociologicamente a cultura negra no capitalismo brasileiro como uma cultura de resistência, isto é, os elementos étnicos e culturais são sociais, correspondem a uma forma de interação humana em determinado estágio do desenvolvimento das forças produtivas 5. Para ele, a cultura negra se desenvolveu em confronto com a dominação de classe, portanto, a linguagem, ritos, hábitos e costumes dos negros acabaram se tornando uma fortaleza na luta contra a classe dominante. Diferentemente das teorias decolonial e da branquitude que concebem a cultura não no enfrentamento de uma classe contra outra, mas sim desde uma acomodação pacífica dentro das possibilidades que o capitalismo oferece, como no momento atual, a burguesia brasileira oferece a representação negra no Estado burguês através de ministérios.

A maneira de conceber a identidade negra indicada por Clóvis Moura, na realidade, serve para refletirmos a questão da hegemonia operária, indicando a força que a própria identidade negra pode ter para a classe trabalhadora em sua luta independente contra a burguesia e seus ataques, pois ao reconhecer a identidade negra como uma fortaleza na luta contra a exploração e opressão, a questão negra pode se tornar uma elo de unidade da luta de todos os explorados e oprimidos. Do ponto de vista marxista a identidade negra e a cultura negra como parte da luta da classe trabalhadora de conjunto, também se torna uma arma contra a própria fragmentação do proletariado.

“…para se constituir como sujeito político independente da burguesia, a classe trabalhadora deve aprender a reconhecer e afirmar a identidade negra que carrega em sua história e em sua composição social no sentido de não só reconhecer a luta negra desde a escravidão como parte de sua própria tradição de luta, mas também compreender, dentro de um programa e uma estratégia revolucionária, a importância que a questão negra cumpre na luta pela unidade das fileiras operárias e pela hegemonia proletária sobre as demais classes sociais oprimidas pela sociedade” 6

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A operação do governo Lula-Alckmin de convergir na mesma política de Estado elementos de choque à direita nas relações raciais e a política ministerial da questão negra, com as teorias pós-modernas onde o negro não é sujeito político, muito menos da transformação racidical da sociedade. No lulismo senil, portanto, podem conviver “harmonicamente” políticas reacionárias e de cooptação estatal no que tange a questão negra. A política da Frente Ampla busca relegitimar o Estado burguês a partir de criar uma falsa sensação de “inclusão” e representatividade através das figuras de Silvio Almeida e Aniele Franco ao mesmo tempo que faz acordos de governabilidade com reacionários que promovem chacinas.

Por não combater o racismo em suas variadas determinações sociais, a política do governo Lula-Alckmin, com ajuda das burocracias sindicais que separam a luta negra da luta dos sindicatos, acaba abrindo espaço para que o racismo sirva para fragmentar as fileiras da classe trabalhadora, dividindo nossa classe entre trabalhadores com direitos e informais, precarizados, terceirizados, etc, mas também enquanto ideologia que impede que trabalhadores negros, brancos e imigrantes de lutarem em conjunto contra a violência policial e os ataques econômicos.

Notas de Rodapé

1. Daniel Alfonso, “Um choque à direita nas relações raciais”.
2. Thiago Flamé, “A posição de São Paulo no Brasil da Frente Ampla”.
3. Boaventura de Sousa Santos, “Epistemologias do Sul Global”.
4. Cida Bendo, “O pacto da branquitude”.
5. Clovis Moura, “O Negro: de bom escravo a mau cidadão”.
6. Daniel Alfonso e Daniel Matos, “Marxismo, questão negra e classe operária”, p. 84.
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