Revista Casa Marx

Irã-Israel: o militarismo no Oriente Médio e a radicalização palestina

André Barbieri

Mais de dois anos após o início da Guerra da Ucrânia, o Oriente Médio vive novamente em pele própria a reatualização das características da etapa, em que a carta militar passa a estar mais presente como método de disputas interestatais. O enclave norte-americano, o Estado sionista de Israel, é o pivô das catástrofes militares na região, depois de quase um ano do início do genocídio em Gaza.

Em aspectos relevantes, a evolução do genocídio em Gaza para a invasão terrestre no Líbano, as trocas de mísseis com os Houthis no Iêmen e a escalada contra o Irã configura um estado de guerra regional. Nessa semana, o Irã lançou quase duas centenas de mísseis balísticos em direção a Israel, em ondas sucessivas de disparos. Foi uma retaliação ao assassinato do líder do Hamás, Ismail Haniyeh, em Teerã, e especialmente ao bombardeio israelense que matou o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, em Beirute, capital do Líbano. Foi uma resposta consideravelmente mais contundente que a de abril, quando o Irã lançou, com amplo aviso prévio, 300 drones facilmente interceptáveis contra Israel, após as explosões no Consulado do Irã em Damasco, na Síria, que mataram oito comandantes do Exército iraniano. O Hezbollah é uma milícia xiíta aliada do Irã, principal elo de ligação de Teerã com o mundo árabe e o grupo militar mais importante que possui Teerã no chamado “eixo da resistência”. Sua virtual decapitação, com o aniquilamento de todo o alto comando, obrigou o Irã a reagir para limitar os danos em seu prestígio regional.

O lançamento dos mísseis iranianos deu a Israel a motivação para expandir a invasão terrestre contra o Líbano, exigindo a evacuação de várias cidades do Sul do país. Tais medidas aparentam ser o prenúncio da retaliação direta de Israel contra o Irã, prometida pelo governo criminoso de Benjamin Netanyahu, e apoiada pela Casa Branca, que através do assessor de segurança Jake Sullivan afirmou que com o ataque Teerã sofrerá “severas consequências”. Agora, o Pentágono discute se o envio de porta-aviões ao Mediterrâneo é uma medida que desescala a situação, ou uma política que inflama ainda mais o gabinete fundamentalista israelense. Efetivamente, Israel considera que não tem qualquer obrigação em negociar com os Estados Unidos medidas contra aquilo que enxerga como perigos existenciais. A presença de destróieres estadunidenses na costa mediterrânea vem atuando como um salvo conduto à agressividade de Netanyahu. Em um símbolo da perigosa irracionalidade militarista do capital, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, sugeriu em público a plausibilidade de um ataque israelense contra a infraestrutura petrolífera do Irã, com aval de Washington.

Biden recuou da atabalhoada declaração, mas o estrago estava feito. Embaralha-se que o local da represália israelense seria o terminal petrolífero de Kharg, que processa a exportação de 90% do petróleo refinado nacional, cujo destino mais importante é a China. Outra infraestrutura possível é a refinaria de Abadan, na fronteira com o Iraque, que atende às necessidades domésticas iranianas. Embora menos plausível, dentro do vórtice de entropia em que se dirige a região, não se pode descartar tentativas de frustrar o programa nuclear iraniano. Atacar qualquer uma dessas instalações de enriquecimento de urânio – como em Natanz e em Fordow, que ficam debaixo da terra – exigiria participação direta dos EUA. Como escrevem os pesquisadores Darya Dolzikova e Matthew Savill apenas armamentos avançados norte-americanos – como o projétil GBU 57A/B, que só pode ser carregado por bombardeiros B-2 Spirit – que não estão sob controle de Israel poderiam ser capazes de atingir tais localidades.

Trata-se do cenário militar mais grave no Oriente Médio desde as invasões de George W. Bush ao Afeganistão e ao Iraque, no início dos anos 2000. O genocídio perpetrado por Israel contra a população palestina na Faixa de Gaza, que já alcança um número de vítimas superior a 45 mil pessoas, majoritariamente crianças e mulheres, havia já mudado o panorama regional. Agora, com a invasão terrestre no Líbano e a possibilidade de uma dinâmica retaliatória que conduza Teerã e Tel Aviv a uma conflagração aberta, o Oriente Médio se converte novamente no epicentro das tendências guerreristas no mundo, já abalado pela Guerra da Ucrânia. O que torna mais ridícula a tese estadunidense-sionista de “escalar para desescalar”.

A escalada parece uma realidade inevitável porque se inscreve na dinâmica agressiva de Israel, que entrou em modo de “guerra total” para remodelar a relação de forças no Oriente Médio. Com efeito, Netanyahu de alguma forma achou de bom aviso falar “ao povo iraniano” sobre “quando o Irã finalmente será livre, e esse momento chegará muito mais cedo do que as pessoas pensam”. Aparentemente, Netanyahu está agora se aventurando como impulsionador de processos de regime change no Oriente Médio, um assunto em que a doutrina de segurança da Casa Branca se esmerou no início do século XXI, com resultados catastróficos. Um lembrete instrutivo é que os EUA garantiram ao resto do mundo, no final de 2002, que uma invasão no Iraque “democratizaria” o país, e repercutiria na região promovendo a derrubada do regime iraniano. Décadas depois, arrastando uma custosa derrota militar, os Estados Unidos via o surgimento do Estado Islâmico no Iraque, e o retorno dos talibãs ao Afeganistão.

 

A política de substituição de regimes pela qual se enamora Israel está acima de suas forças e já provou historicamente fracassada numa região fragmentada e por constantes bombardeios imperialistas. Com efeito, Israel buscou essa mesma política no Líbano, em 1978, encorajado pelo triunfo na Guerra dos Sete Dias, e novamente em 2006. Foi derrotado em ambas as ocasiões por forças menos poderosas que o Irã. A maior invasão do sionismo no Líbano foi orquestrada em 1982, também segundo “propósitos militares limitados”, mas as forças israelenses terminaram sitiando Beirute enquanto perseguia seu adversário, a Organização pela Libertação da Palestina (OLP). Mais uma vez, Israel foi obrigado a sair da zona ocupada fruto da guerra de guerrilhas montada pelo Hezbollah, surgido em função da política colonial sionista.

 

Essa escalada militar não é do interesse dos Estados Unidos. Biden foi obrigado a orquestrar uma humilhante retirada de tropas norte-americanas do Afeganistão em 2021, a fim de concentrar-se no fortalecimento dos Estados Unidos na região da Ásia-Pacífico e na disputa estratégica com a China de Xi Jinping, tanto na questão de Taiwan quanto na do Mar do Sul da China. A dependência de Netanyahu de novas guerras para poder manter-se no cargo está intimamente conectada com a dependência de Israel aos EUA para poder conduzir qualquer conflito de magnitude, especialmente se este incluir o Irã. A perspectiva de um retorno militar ao Oriente Médio é rechaçada por poderosos segmentos do establishment bipartidário imperialista, que vê na aliança sino-russa o centro das ameaças à sua segurança nacional. Como escrevem Helene Cooper e Eric Schmitt, no The New York Times, o Alto Comando estadunidense está preocupado pelas exigências adicionais de tropas que sua política de proteção a Israel exige: “O general Charles Q. Brown Jr., chefe do Estado-Maior Conjunto, levantou a questão em reuniões no Pentágono e na Casa Branca, segundo as autoridades. O general Brown, ex-piloto de caças F-16 que comandou as forças aéreas dos EUA no Oriente Médio, questionou o efeito da presença ampliada norte-americana na região, alegando os efeitos sobre a “prontidão” geral de combate, a capacidade das forças armadas dos EUA de responder rapidamente a conflitos, inclusive com a China e a Rússia”.

 

Outros fatores exercem tensão sobre o regime. As eleições presidenciais nos Estados Unidos tem como um dos principais pontos de debate os exorbitantes gastos militares do país em conflitos mundiais – Donald Trump responsabiliza Biden e a candidata Democrata Kamala Harris pela continuidade de conflitos que supostamente desapareceriam com uma nova administração Republicana. Mais importante, uma nova geração de jovens organizou protestos maciços e ocupações de universidades em todo o país em defesa da causa palestina, e em repúdio ao imperialismo sionista (pela primeira vez na história norte-americana a maior parte da população apresenta simpatia maior pelos palestinos do que pelos israelenses). Tal clima político é francamente contrário a novas aventuras guerreristas dos EUA, que previsivelmente teriam forte oposição nas ruas de todo o país – e do mundo.

 

Entretanto, a cumplicidade direta dos EUA no genocídio do povo palestino e em todas as operações de salvação de Netanyahu encadeiam a Casa Branca aos desígnios remodeladores de Israel. Tel Aviv está em uma situação de relativa recuperação da iniciativa militar. Com a devastação de Gaza acredita ter neutralizado o Hamas, e com os ataques ao Líbano eliminou a direção do Hezbollah e boa parte de seu arsenal. Considera que tal avanço tático deve se expressar em uma conquista estratégica, que pode incluir impactos mais profundos na rivalidade com o Irã. Por ora, a capacidade de resposta do Hezbollah está danificada, mas nos próximos anos terá motivos mais que suficientes para buscar restabelecer a dissuasão contra Israel. Essa alegação é usada pelas alas mais extremistas do fanatismo sionista, como Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, assim como pelo próprio Netanyahu, a fim de conseguir aval de Washington para o que seria um “último ataque devastador” contra o Irã.

 

Entretanto, a húbris reacionária de Israel não deve ocultar que do que se trata é de uma disputa de natureza completamente distinta. Uma coisa é enfrentar milícias em guerras assimétricas, outra é enfrentar Estados nacionais com participação na ordem capitalista mundial. O Irã é uma potência nuclear, aliado da China e da Rússia. A reputação do Irã como potência regional começou a ser questionada, e embora esteja enfraquecido economicamente (pelas sanções ocidentais) e venha de uma série de humilhações militares, tem um arsenal poderoso, como mostraram os disparos com mísseis balísticos. Possuem armamento hipersônico, como o míssil Fattah, entre os mais avançados do mundo, que atinge 15 vezes a velocidade do som. Nem mesmo na hipótese fantasiosa de uma “escalada limitada” Netanyahu poderia enfrentar o regime de Ali Khamenei sem envolvimento direto de Washington.

 

Os próprios meios de comunicação do imperialismo lançam lenha na fogueira, sob o disfarce de evitar crises maiores. O Financial Times declara que sem a entrada de tropas terrestres no Líbano, é muito difícil derrotar as milícias pró-iranianas. O britânico The Economist sugere que os EUA e Israel tomem cuidado no calibre da resposta, a fim de não encorajar, sob um ataque isolado às instalações militares, uma busca mais acirrada pela tecnologia nuclear, com possível auxílio da Rússia. Sua alternativa? Ameaçar o lançamento de sucessivos ataques militares à indústria nuclear iraniana e aplicar sanções econômicas contra o petróleo, agravando a pobreza da população e gerando um clima de regime change em nome de figuras mais reformistas como o atual presidente Pezeshkian. Outros meios imperialistas, como o The Wall Street Journal, são mais cautelosos. Reconhecem que é pouco provável que ataques aéreos e uma invasão terrestre limitada às cidades fronteiriças sejam suficientes para derrotar o Hezbollah, e poderiam dar a este a oportunidade de organizar uma insurgência prolongada e custosa a Tel Aviv. No segundo dia da invasão terrestre, oito soldados israelenses foram mortos, e o exército libanês passou a disparar contra os invasores. “A guerra aérea dos israelenses lhes conferiu êxitos importantes. Se ficarem em terra, darão ao Hezbollah a guerra que este quer”, disse o pesquisador Hussein Ibish, do Arab Gulf States Institute.

 

Todos esses fatores mostram que o conceito de “domínio da escalada” é ilusório, e os perigos de perder-lhe o controle são imensos. O imperialismo norte-americano, que como dissemos não deseja envolver-se em outra guerra regional, da mesma maneira quer extrair o máximo da ofensiva israelense. Não vê com maus olhos a oportunidade de debilitamento estratégico do seu rival, o Irã, que traria o benefício adicional de enfraquecer um aliado da Rússia e da China no Oriente Médio. Moscou, Pequim e Teerã realizaram em março desse ano os primeiros exercícios navais conjuntos, denominados Cinturão de Segurança Marítima 2024, no Golfo de Omã. Foram realizados em meio aos ataques da milícia Houthi contra Israel. A China avançou no Oriente Médio em virtude de seus acordos com o regime dos talibãs no Afeganistão, e da mediação do restabelecimento de relações diplomáticas entre a Arábia Saudita e o Irã. Desfazer esses laços seria complexo para a diplomacia estadunidense, mas diminuir a potência combinada de seus inimigos poderia valer uma escalada? O general prussiano Carl von Clausewitz afirmava que o objetivo político é o móbil inicial das guerras, que atuam como instrumento da política (2010, p. 17), e a política tendente ao acréscimo das rivalidades e atritos pode se estender no tempo, passando por distintas etapas. A política norte-americana estimula as tendências beligerantes na expectativa de conter o avanço de seus adversários (China), ou debilitar aqueles que já estão em guerra (Moscou).

 

Para além das hipóteses, é fato que os Estados Unidos são cúmplices e responsáveis diretos, junto à Alemanha, à França e todo o imperialismo europeu, pela política de Netanyahu, pelo genocídio em Gaza e por todas as barbaridades de Israel. Joe Biden, a candidata Democrata e atual vice-presidente Kamala Harris e o candidato Republicano Donald Trump são todos defensores ferrenhos da aliança estratégica com o Estado sionista. Pra além de qualquer atrito que a Casa Branca possa ter com Netanyahu, Biden considerou o assassinato de Nasrallah como uma “medida de justiça” e tem cumprido rigorosamente o envio de assistência militar e financeira a Israel, além de reforçar sua presença militar na região. Esse apoio incondicional tem um alto custo político para o Genocide Joe e os Democratas, que correm o risco de perder uma parte significativa de seu eleitorado em swing states eleitoralmente decisivos como Michigan, onde o movimento dos “não comprometidos” é forte e se recusa a votar nos Democratas por causa de suas políticas pró-sionistas. Além do mais, a atual administração enfrentou com muita repressão policial o movimento de solidariedade à luta do povo palestino nos campi universitários, movimento que, apesar do disciplinamento das reitorias e a perseguição política, continua alentando organização e radicalização política para os setores de vanguarda. Isso é assim também na Grã-Bretanha, onde continuam as mobilizações contra as políticas pró-israelenses do governo trabalhista de Keir Starmer. Como afirma Tariq Ali, “Uma nova geração entende que Israel lançou um ataque contra a Palestina com o apoio dos Estados Unidos. Eles veem Israel pelo que ele é”. Essa nova geração de jovens em todo o mundo, incluindo judeus espalhados por inúmeros países, enxerga o projeto colonizador de Israel com muito mais repúdio político que as gerações anteriores. Trata-se de um ativo estratégico para a perspectiva anticapitalista e antiimperialista.

 

A situação está em aberto. Apesar do êxito tático na “operação decapitação” do Hezbollah – que vai precisar de tempo até substituir um alto comando aniquilado – estamos muito longe da modelação de uma “nova ordem” no Oriente Médio, como quer o governo terrorista de Israel. Saídas militaristas não podem resolver o problema político em que se encontra Israel depois de um ano do genocídio palestino. À luz da experiência histórica, a vantagem tática desses golpes não acabou se traduzindo em vitórias estratégicas, simplesmente porque o que Israel e seus aliados imperialistas não conseguiram foi liquidar a luta contra a opressão colonial. Pelo contrário, eles alimentaram a radicalização de novas gerações que estão recriando a resistência nos territórios ocupados ou confrontando, nos países centrais, a cumplicidade de seus próprios governos com o genocídio praticado pelo Estado de Israel.

 

Essa radicalização da juventude se expressa na própria população palestina, que enxerga cada vez mais o uso da força contra o sionismo como a via para garantir um Estado independente. Segundo o The Economist, “Em uma pesquisa realizada na Cisjordânia pelo Jerusalem Media and Communication Centre, o apoio à ‘resistência militar’ na população palestina cresceu de 40% em maio deste ano para 51% em setembro, enquanto o apoio à ‘ação política pacífica’ caiu de 44% para 36% no mesmo período. Um pesquisador em Ramallah tem números semelhantes: o apoio à violência na Cisjordânia cresceu de 35% em setembro de 2022, quando Yair Lapid era o primeiro-ministro de Israel, para 56% em setembro deste ano. Os pesquisadores dizem que essa mudança é mais acentuada entre os palestinos que são jovens demais para se lembrar dos custos da segunda intifada (levante) e das guerras palestinas anteriores”. Defensores dessa visão mais radicalizada no coração do imperialismo são organizações como Within Our Lifetime, promovida pela ativista palestino-americana Nerdeen Kiswani, que ao The New York Times disse que “Se formos lutar contra uma máquina de matar, não podemos fazer isso apenas com amor, vibrações e slogans de paz. As pessoas precisam ser capazes de se defender.” Tal organização defende abertamente, dentro dos EUA, a substituição do Estado de Israel por um Estado da Palestina, cobrindo toda a terra desde o Rio Jordão até o Mar Mediterrâneo.

 

Trata-se de um estado de ânimo que alenta a perspectiva de uma luta internacional decidida para acabar com o colonialismo sionista. No dia 8 de outubro o mundo inteiro erguerá as bandeiras do povo palestino e do povo libanês contra o Estado terrorista de Israel. Com total independência de todos os Estados nacionais e de todas as burguesias, incluindo a burguesia árabe, é necessário enfrentar o imperialismo e o colonialismo israelense na luta de classes, para fazer concreta a consigna: Palestina livre do rio ao mar! Basta de genocídio em Gaza e da invasão no Líbano! Abaixo o imperialismo no Oriente Médio! Ruptura imediata de todas as relações entre Brasil e Israel! Por uma Palestina livre, operária e socialista que seja o ponto de apoio para a expansão da revolução em toda a região.

 

Notas bibliográficas

Clausewitz, Carl Von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2010

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