Redação
Mais de 1000 pessoas acompanham debate “Para onde vai a esquerda”, da Casa Marx
Neste sábado (05/04), a Casa Marx se tornou, mais uma vez, um verdadeiro polo de efervescência política, pensamento crítico e militância. O debate “Para onde vai a esquerda?” foi acompanhado por mais de 1000 pessoas, entre os que vieram presencialmente e os que estiveram online em todo o país pelas redes do Esquerda Diário, demonstrando a força viva de um setor que quer discutir os rumos da esquerda brasileira e internacional em tempos de crise capitalista, ascensão da extrema-direita e limites da estratégia de conciliação de classes e do governo de frente ampla, de Lula-Alckmin.
O encontro resgata a tradição histórica da esquerda revolucionária em valorizar o debate de ideias como compromisso para a prática e estratégia para a transformação radical da sociedade. Com a apresentação da professora Grazi Rodrigues, militante do MRT e lutadora da educação, que reforçou o convite à se conhecer a Casa Marx e as publicações “China, onde os extremos se tocam”, de André Barbieri, e “Rosa Luxemburgo, a Águia da Revolução”, de Diana Assunção, o debate contou com a participação de importantes vozes da esquerda radical e revolucionária.
Ricardo Antunes fez um balanço histórico do processo de assimilação da esquerda pela ordem, sobretudo em base ao transformismo dos grandes partidos uma vez oriundos da classe trabalhadora na Europa. Enquanto a derrota da Revolução Russa veio pelas mãos do estalinismo, na Europa a social-democracia se integrou ao neoliberalismo, e o que se viu foi uma sucessiva captura institucional que afastou a esquerda de seu projeto transformador. No caso do Brasil, destacou como o novo sindicalismo — se alçando sobre e ao mesmo tempo imobilizando o que vinha do melhor do ascenso operário, e da classe operária organizada com base na indústria, no funcionalismo público e mesmo em setores da classe média — gerou uma direção que, ao entrar na institucionalidade burguesa e fundar um partido da ordem, acabou se fazendo fagocitada por ela. Um processo de fagocitose institucional que minou qualquer possibilidade de assumir um papel de transformação radical.
Antunes alertou que um processo similar ocorre hoje dentro do PSOL, onde a atuação dominante também segue os marcos da institucionalidade parlamentar, com crescentes acomodações à lógica do regime burguês. Diante da ofensiva da precarização do trabalho, através do chamado “capitalismo de plataforma” e do aprofundamento da destruição ambiental, ele apontou a necessidade de medidas de luta anticapitalista, que rompam com o trabalho precário, com a propriedade privada e que reorganizem a vida a partir de outra lógica metabólica, com protagonismo quilombola, indígena e dos movimentos sociais anticapitalistas.
Glauber Braga, deputado federal pelo PSOL, começou por dizer que é possível não saber para onde vai a esquerda, mas saber para onde não se deve ir. Denunciou o “abraço institucional” entre a esquerda moderada, a direita tradicional e o STF como uma armadilha de paralisia estratégica. Segundo Glauber, a esquerda precisa disputar os corações e mentes dos desalentados pelo sistema, não buscar conciliação com seus algozes.
Para Glauber, o grande risco é quando a tática vira estratégia, ou seja, quando a adaptação institucional se torna um projeto em si — abrindo caminho para que setores ditos “democráticos” acabem socorrendo a extrema direita em nome da preservação da ordem. Nesse sentido, trouxe o exemplo da Argentina, onde o governo Macri buscou compatibilizar interesses antagônicos entre o capital e o trabalho. O resultado foi a ascensão de alguém que se apresenta como “anti-sistema”, mas que é, na verdade, a face mais brutal da ordem: Javier Milei.
Um exemplo dessa política, segundo Glauber, está na tentativa de cassação de seu mandato por parte da cúpula da Câmara dos Deputados. Denuncia que, mesmo parlamentares que defendem as liberdades democráticas, muitas vezes se calam frente a essas perseguições — reforçando a lógica de que para garantir a “governabilidade”, é necessário reprimir qualquer voz dissidente à esquerda.
Ele defendeu que a tarefa prioritária da esquerda é dialogar com a classe trabalhadora desiludida com as promessas não cumpridas e construir uma plataforma de ação permanente entre as organizações revolucionárias, socialistas e comunistas. O desafio é organizar os descontentes, os que são empurrados à margem do sistema.
Plínio de Arruda Sampaio Jr. retomou a centralidade do marxismo para compreender os impasses da esquerda hoje. Lembrou que Marx dedicou toda sua vida a entender o capitalismo do seu tempo — não apenas como um sistema econômico, mas como uma totalidade histórica de dominação, exploração e destruição.
Plínio descreveu esse cenário como capitalismo da catástrofe: marcado por guerras, colapsos ambientais, regressão social e dissolução de qualquer horizonte democrático. No centro do sistema, a crise do imperialismo estadunidense leva a um desmantelamento da ordem econômica internacional e à escalada das rivalidades entre potências, com os tambores de guerra já soando na Europa.
Na periferia, como o Brasil, essa barbárie assume a forma de uma reversão neocolonial. Um mercado sem Estado e sem nenhum direito democrático. Aqui se implementa o neoliberalismo em sua forma mais crua, mais despótica, mais destrutiva. Assim como destacou que a explosão da crise humanitária migratória, a degradação das condições de vida e a precarização das relações de trabalho são partes de um mesmo processo de crise capitalista. A única saída realista é a ruptura com o capitalismo, construída com os trabalhadores e setores oprimidos, a partir de uma estratégia socialista com independência de classe.
Diana Assunção, dirigente nacional do MRT, começou sua fala agradecendo o convite e transmitindo solidariedade a Glauber Braga, vítima de um ataque autoritário com o pedido de cassação de seu mandato. Saudou também duas importantes lutas da classe trabalhadora: o “breque dos apps” e a reintegração dos metroviários demitidos da greve de 2023 em São Paulo.
Diana contextualizou sua intervenção a partir da constatação de que vivemos um novo momento com Trump, marcado por convulsões internacionais e guerras. A guerra da Ucrânia, o genocídio em curso na Palestina e a escalada das tensões globais revelam a face brutal do capitalismo. Mas ressaltou que também surgem focos de resistência internacionalistas, como os acampamentos pró-Palestina que se espalham pelos EUA. Esses protestos revelam uma nova geração que se levanta contra o imperialismo.
Voltando ao Brasil, analisou que estamos diante de sinais de um esgotamento do ciclo do lulismo. As últimas pesquisas de opinião mostram uma rejeição histórica ao Lula, algo que não pode ser ignorado. Isso se soma a um conjunto de fatores que apontam para o fim de ciclo do PT. O PT, lembrou, esteve coligado com o PL de Bolsonaro em mais de 80 cidades, abraça recorrentemente Tarcísio de Freitas e mantém alianças com o agronegócio. Diana defendeu que a frente ampla não enfrentou a extrema direita, ao contrário: vem fortalecendo sua base social e eleitoral. O governo Lula governa com o centrão, com o STF e com a mesma institucionalidade e a polícia que assassina a juventude negra e os trabalhadores. Lembrou que o PT utilizou o discurso do antifascismo para justificar alianças com os mesmo algozes do golpe institucional de 2016, e que não há governo em disputa.
Destacou que estamos diante de uma situação na qual a extrema direita sobrevive e se alimenta da conciliação de classes, e por isso é essencial fazer um balanço das mediações que a permitem: o STF, a burocracia sindical e os partidos da ordem. Não será o STF nem as instituições podres do regime burguês que vão derrotar o bolsonarismo, mas sim a classe trabalhadora, organizada com seus métodos de luta. Diana defendeu a construção de uma trincheira de oposição de esquerda ao governo Lula, e enfatizou que só a classe trabalhadora pode derrotar a extrema direita, e não o STF, o centrão ou a conciliação com a burguesia.
Em diálogo com a pergunta de Glauber Braga sobre se a experiência do PSOL havia se esgotado, Diana defendeu que ela se esgotou faz tempo, à luz de um processo acelerado do PSOL se convertendo em um partido da ordem até com ajustes neoliberais, como o BPC. Diana mencionou que, mesmo considerando que o PSOL das origens não apontava uma estratégia socialista, quando o PSOL tinha uma posição mais independente anos atrás e aglutinava vários setores da vanguarda que se reinvidicavam revolucionários, o MRT propôs sua entrada no partido, com suas próprias bandeiras, para batalhar aí por uma perspectiva socialista e revolucionária. A negativa do PSOL foi um sintoma ilustrativo de sua trajetória de subordinação completa ao PT.
A oposição de esquerda ao governo precisaria se apoiar nos sintomas moleculares da nossa classe que apontam um caminho. Nesse sentido, o primeiro embrião de oposição de esquerda ao governo Lula foram os trabalhadores das universidades e institutos federais que desafiaram o arcabouço fiscal. Mas também o breque dos apps, os indígenas e professores do Pará, que tiveram que enfrentar até mesmo o ministério indígena do PSOL. Isso diz respeito a pensar qual é o “sujeito” que vai levar adiante o enfrentamento à extrema-direita, que deve ser a classe organizada, e não o STF ou o governo de Frente Ampla com a direita. “Não queremos salvar o que já existe. Somos comunistas. Queremos construir uma nova sociedade.”
Trouxe ainda o exemplo da Argentina. Lá, a Frente de Esquerda e dos Trabalhadores (FIT), encabeçada pelo PTS (Partidos dos Trabalhadores Socialistas, organização irmã do MRT) se construiu com independência do peronismo e dos governos de turno. Mesmo diante da crise brutal e da chegada de Milei, segue sendo referência para os setores mais combativos. É uma oposição combativa e de esquerda, enraizada nas lutas, que aumentou sua influência e impacto nacional estando na linha de frente da luta contra os ajustes de Milei e enfrentando a repressão de Patricia Bullrich nas ruas em defesa dos aposentados.
Diante da constatação de que o PSOL se ajoelhou em um movimento de integração a ser um partido da ordem, concluiu colocando que nesse momento se coloca a reflexão de quem serão as novas referências capazes de articular a experiência histórica acumulada e a auto-organização da classe como únicas forças capazes de derrotar a extrema direita e abrir caminho para um futuro comunista.
Vladimir Safatle iniciou sua intervenção afirmando que para compreendermos o momento atual, é necessário fazer um balanço profundo. Criticando o uso da categoria “extrema direita”, Safatle defendeu que o nome do que estamos enfrentando é fascismo. Segundo ele, o Brasil teve o maior partido fascista fora da Europa. O integralismo foi parte de uma articulação orgânica com o Estado brasileiro. E a estrutura colonial e imperialista que sustenta o país até hoje é o terreno fértil de uma experiência fascista de longa duração. A escravidão, mesmo após seu fim formal, continuou como célula fundamental da construção de um Estado baseado na exclusão e na violência.
Safatle apontou que o capitalismo não regula nem se freia sozinho, e que a única força real de contenção são as lutas operárias. Argumentou que o fascismo hoje opera como uma solução preventiva da ordem capitalista diante das insatisfações populares. O século XXI pode ser descrito como o século das insurreições populares. Vimos isso em 2013, no Brasil, mas também no Chile, na Colômbia, na França. E no entanto, a esquerda institucional falhou em escutar e canalizar essas vozes. Exemplificou dizendo que intelectuais ligados ao PT diziam que ninguém entendia o que estava acontecendo em Junho de 2013. Mas as pessoas exigiam escola, transporte, dignidade. Como poderiam não entender isso?
Ele afirmou que o fascismo fala uma verdade dentro do horizonte capitalista: Não há espaço para todos. Não há como salvar todo mundo. Teremos que sacrificar uma parte. E a pergunta que ele faz é: de que lado você quer estar? A esquerda, ao negar essa disputa e continuar prometendo gestões do possível, abre mão de apresentar um outro pólo político radical. Gaza nos mostra isso de forma nua e crua. O que se pode fazer ali pode ser repetido aqui. Essa é a lógica colonial do capitalismo que continua operando e a inação dos pós-coloniais é gritante – como se diversidade em comitês corporativos substituíssem a luta de classes.
Safatle concluiu com um alerta e um chamado: É hora de retomar uma esquerda que compreenda o problema histórico que enfrentamos e se comprometa em impedir que a insubordinação das massas seja novamente capturada pelo fascismo.
Após as falas dos convidados, o debate seguiu com a abertura para intervenções do público. Diversas pessoas se manifestaram, trazendo opiniões, perguntas, reflexões e relatos de experiências de luta. O engajamento e amplitude das falas evidenciaram o interesse genuíno em aprofundar o debate sobre os rumos da esquerda. A participação ativa mostrou que há uma geração disposta a se organizar, aprender coletivamente e buscar respostas radicais frente à crise do capitalismo.
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Os convidados colocaram, portanto, sua visão sobre os acontecimentos, em uma conversa fraterna, e em um debate franco entre distintas tendências de pensamento que certamente deve seguir.
Uma trincheira em construção
A Casa Marx se afirma como espaço de organização, debate e luta. Assim como no evento em homenagem às vítimas da violência do Estado com as mães e vítimas da violência racista da Polícia e Eduardo Taddeo, ou no debate sobre o genocídio na Palestina, este encontro foi mais que uma mesa de falas: foi um chamado à reflexão, organização e ação. Frente a um sistema que condena milhões à miséria, à exclusão e à morte, não podemos cair na armadilha da miséria do possível.
Ao final do evento, ficou evidente que encontros como esse não apenas alimentam o debate político, mas também reafirmam a necessidade de espaços que sirvam como referência para a organização da esquerda revolucionária no Brasil. Nesse sentido, a campanha financeira da Casa Marx representa uma iniciativa essencial para manter e expandir esse espaço de cultura e política revolucionária.
A Casa Marx é um projeto independente, sem financiamento de empresas ou do Estado, e depende do apoio de trabalhadores, jovens e todos aqueles que acreditam na importância de um espaço dedicado à difusão das ideias marxistas. A campanha tem como objetivo arrecadar fundos para manter e ampliar as Casas Marx em várias localidades do Brasil, como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, fortalecendo um centro de organização, estudo e preparação para as lutas contra o capitalismo.
Mais do que um local de reuniões e encontros, a Casa Marx é também um espaço de cultura e formação política, com debates, cursos, cinema, atividades culturais, grupos de estudo, além de uma livraria com vasta seleção de obras marxistas e revolucionárias, que vão de clássicos do pensamento socialista a análises contemporâneas.
A campanha financeira é fundamental para reformar e revitalizar os espaços, tornando-os ainda mais funcionais e acolhedores para todos os que desejam participar de um projeto comprometido com a transformação revolucionária da sociedade. Para contribuir com a campanha e ajudar a expandir as Casas Marx pelo país, contribua com esse projeto aqui!
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