Revista Casa Marx

Friedrich Nietzsche: perspectivismo e dialética

André Barbieri

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O que tratamos sobre a problemática do indivíduo em sua cisão fisiopsíquica com o coletivo, e acerca da temática da razão na filosofia moderna, dão pistas para adentrarmos no perspectivismo de Nietzsche. Nesse tópico, podemos rastrear a divergência, ou melhor dito, a rejeição nietzscheana da dialética como método de percepção da totalidade.

 

O perspectivismo nietzscheano

Nietzsche problematizou conceitos e percepções de maneira penetrante, tão mais talentosa quanto mais se conectavam com o modo de vida cotidiano. Não há abordagens únicas em seu pensamento, que delibera, toma decisões e não raro antagoniza conclusões anteriores. Nietzsche, por exemplo, é conhecido por exortar impiedade no tratamento dos demais – fruto do núcleo individualista de sua filosofia – o que não o impede de aconselhar um comportamento cordial como dever. Dentro de uma mesma reflexão pode indicar caminhos opostos: o sentido histórico é necessário, e ao mesmo tempo arauto perigoso de degeneração, nas Considerações Extemporâneas (1873) sobre o uso e abuso da história. Apesar das críticas flagrantes a Hegel, Nietzsche o considera um acontecimento europeu (junto a Goethe e Schopenhauer), e sua atividade de revalorização dos valores pode ser construída positivamente em termos hegelianos: a negação da negação – Nietzsche rejeita o cristianismo, que por sua vez é uma rejeição dos valores da Antiguidade clássica.

Essa visão multifacetada – por vezes animada pelo capricho, outras pela meditação – confere um caráter perspectivista ao seu método de pensamento. Os fragmentos e retalhos do pensamento, as concepções e pontos de vista, não são universalizáveis em Nietzsche: nem para a permanência no sujeito, nem para o compartilhamento dos demais. A revalorização dos valores luta contra si mesmo e contra tudo. Como aponta em Ecce Homo (1888), “depois de ter resolvido a parte do dizer-sim da minha tarefa, chegou a parte do dizer-não e do não-fazer: a reavaliação dos nossos valores até agora, a grande guerra – convocando um dia de decisão”. A estabilidade nem sempre é a virtude do concreto, ou ao menos assim o esperava Nietzsche.

O perspectivismo nietzscheano goza de um ponto que recebe os favores da crítica: não busca proteger convicções, mas atacá-las, inclusive as que diz respeito a si mesmo. Nietzsche aparentemente fez esforços para não ser considerado como inquestionável – confessa ser sarcástico demais para acreditar no que diz, e repudia a qualquer ideia de auto-santificação em suas últimas obras. Nos termos do biógrafo germano-americano Walter Kaufmann, mesmo em Zaratustra, onde Nietzsche escolhe o fundador de uma grande religião como protagonista, e mesmo em Ecce Homo, onde as suas afirmações sobre a sua própria grandeza atingem um clímax, “Nietzsche-Sócrates supera Nietzsche-Wagner”. O espírito inquisidor supera o profeta. O discernimento para compreender a necessidade de superar as próprias convicções está presente na crítica desferida por Nietzsche à ciência, quando a acusa de glorificar a verdade como mais importante que qualquer outra coisa: “A disciplina do espírito científico não começa com o não mais se permitir convicções? Assim é, provavelmente: só resta perguntar se, para essa disciplina poder começar, já não tem de haver uma convicção, e aliás tão imperiosa e incondicional que sacrifica a si mesma todas as outras convicções?” (A Gaia Ciência, Livro V, § 344).

O discernimento para questionar todas as convicções é um fator de autodefesa contra tudo aquilo que busca congregar a consciência do indivíduo a lógicas de compreensão universais da sociedade, fazê-lo funcionar sob normas comunitárias de entendimento e ação no mundo. A ciência é um desses veículos de destituição da independência cognitiva individual pela coletiva – ainda que Nietzsche não desfaça completamente de seus usos, alerta contra seus efeitos de degeneração de rebanho. Mas acima da ciência, os saberes e a moral coletivas são vistos por Nietzsche como sintomas da decadência, ou seja, de subordinação da individualidade às prescrições cognitivas do rebanho.

O aspecto central do perspectivismo nietzcheano é a confiança ilimitada no discernimento atávico dos instintos individuais, únicos, inconfundíveis, em oposição à moralidade, às ideias e aos ídolos do coletivo. Para Nietzsche, isso implica atacar a prepotência de todas as instituições tradicionais do pensamento comunitário (a ciência, a razão, a moral) de agirem como consolidadores de um entendimento universal acessível a todos, que nivela a ação do coletivo dentro de uma mesma baixa tensão criadora. Por isso, seu perspectivismo está acima da lógica, da razão, da moralidade. Logo no primeiro aforismo de A Gaia Ciência, Nietzsche prescreve essa visão perspectivista: “O homem mais prejudicial pode ser ainda, no final das contas, o mais útil à conservação da espécie, pois sustenta em si mesmo, ou nos outros, pela sua influência, instintos sem os quais a humanidade estaria há muito tempo definhada e corrompida. O ódio, o prazer com o qual o mal alheio, a sede de tomar e de dominar e, de uma forma geral, tudo aquilo a que se dá o nome de mau, não passam de um dos elementos da assombrosa economia da conservação da espécie; economia dispendiosa, certamente, pródiga e, no geral, altamente insensata, mas que, de modo comprovado, conservou nossa raça até agora […] Siga as tuas melhores ou piores inclinações e, antes de mais nada, encaminha-te para a tua perdição; em ambos os casos favorecerás, provavelmente, de uma maneira ou de outra, o progresso da humanidade, serás sempre em qualquer ponto o teu benfeitor e terás direito aos seus apologistas… como também aos teus detratores!” (A Gaia Ciência, Livro I, § 1).

O indivíduo como benefactor condiciona e subordina o alheio aos impulsos próprios, e faz progredir assim a espécie, ainda que pague sua liberdade com a extinção – porque se choca com a moral de rebanho, coletiva, que é poderosa, e aspira sempre a absorvê-la em seu nada. “Que acontecerá quando a máxima: ‘a espécie é tudo, o indivíduo é nada’ tiver se incorporado à humanidade e todos tiverem acesso a esta suprema libertação, a esta suprema irresponsabilidade?” (A Gaia Ciência, Livro I, § 1). O pior contra a espécie é colocá-la acima do discernimento individual, com toda a sua sufocante conjunção de valores socialmente comungados.

O perspectivismo nietzscheano, portanto, possui a dimensão do conflito permanente: cada indivíduo recebe de si impulsos próprios, e esses impulsos, inequívocos e contrários entre si, inevitavelmente sustentarão valorações diferentes, conflitantes. Ademais, em Nietzsche, o discernimento do indivíduo nunca poderia levar ao universal: não é possível universalizar a experiência pessoal e torná-la absoluta – uma atitude assim é o que falsifica o discernimento individual. Daí surge sua crítica mordaz às tentativas de Kant de construir os “majestáticos edifícios éticos” do imperativo categórico. É impossível chegar à concepção do absoluto ou do universal através do intelecto, e portanto, do motor da ação. Em oposição ao idealismo moralista de Kant, escreve:

Admiras o imperativo categórico em ti? Essa “firmeza” do teu assim chamado juízo moral? […] Pois é egoísmo sentir seu juízo como lei universal: e um cego, mesquinho e despretensioso egoísmo, ainda por cima, porque denuncia que ainda não descobriste a ti mesmo, que ainda não criaste para ti nenhum ideal próprio, bem próprio: – pois este não poderia ser nunca o de um outro, quanto mais então o de todos, o de todos! – Quem ainda julga: “Assim teria de agir cada um neste caso”, ainda não avançou cinco passos no autoconhecimento: senão saberia que não há nem pode haver ações iguais – que cada ação que foi feita, foi feita de um modo totalmente único e irrecuperável, e que assim será com todas as ações futuras (A Gaia Ciência, Livro V, § 335)

O perspectivismo de Nietzsche é, portanto, um instrumento de defesa dos impulsos particulares do ser diante de todos os demais. Seria um crime atribuir ao juízo pessoal o poder de lei universal, de guia dos demais; entretanto, no mesmo fôlego é possível dizer que, para Nietzsche, é inadmissível diluir aquilo que somos no universal. A crença em princípios compartilhados é perigosa, porque converge na diluição impessoal do indivíduo no todo que o asfixia. A própria forma de entender o mundo e a si mesmo é um atributo particular não compartilhável: é impossível que um ente vivo possa adquirir a mesma pulsão vital, a mesma resposta instintiva, do que outro. A confiança naquilo que é dado pelos sentidos é uma das bases axiomáticas do perspectivismo de Nietzsche.

O filósofo alemão vai ao ponto de estimular a desconfiança e rejeição diante daquilo mesmo que professa, em nome da libertação do indivíduo para criar ideais próprios, para encontrar-se a si mesmo e os impulsos atávicos de seu instinto. Essa forma de edulcorar o instinto pré-racional (ou da irrazão) é levada às últimas consequências após a ruptura de Nietzsche com o romantismo de Richard Wagner e Arthur Schopenhauer, no início da década de 1880, e encontra uma forma “clássica” na advertência de Zaratustra a seus seguidores:

Que o vosso espírito e a vossa virtude sirvam ao sentido da terra, irmãos: e que o valor de todas as coisas seja novamente colocado por vós! Por isso deveis ser combatentes! Para isso deveis ser criadores! Sabendo purifica-se o corpo; tentando com saber ele se eleva; para o homem do conhecimento, todos os instintos se tornam sagrados; para o elevado, a alma se torna alegre […] Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que importa Zaratustra? Sois os meus crentes: mas que importam todos os crentes? Ainda não havíeis procurado a vós mesmos: então me encontrastes. Assim fazem todos os crentes; por isso valem tão pouco todas as crenças. Agora vos digo para me perder e vos achar; e somente quando todos vós me tiverdes negado eu retornarei a vós (Assim Falou Zaratustra, Da virtude dadivosa, § 3).

Assim, no perspectivismo de Nietzsche, a repulsa à aproximação com o outro é eterna, e associada ao conflito. Tensão e conflito seriam expressão da potência que deseja viver: do individual contra o espírito gregário de rebanho. Nessa aproximação teórica nietzscheana, é incorreto buscar a visão ascética da totalidade, que enfraquece o combate pela libertação do eu. Estamos em combate permanente, de negação das ideias morais da sociedade em nome dos impulsos pré-racionais conferidos inconfundivelmente pelos sentidos do indivíduo que age. Em função disso, é necessário coragem para deixar-se conduzir pelo corpo e seus impulsos, um móbil muito particular, que não pode ser compartilhado por outro ser vivo, na medida em que todas as ações são únicas e irrecuperáveis. Através desse modo de agir e viver, poderíamos encontrar a base para a criação de valores próprios, inimitáveis. “Limitemo-nos, pois, à depuração de nossas opiniões e estimativas, e à criação de novas e próprias tábuas de valores: – sobre o valor moral de nossas ações, porém, não queiramos mais cismar! […] Nós queremos tornar-nos aqueles que somos – os novos, os únicos, os incomparáveis, os legisladores de si mesmos, os criadores de si mesmos!” (A Gaia Ciência, Livro V, § 335)

“A consciência não é propriamente parte da existência individual”

Assim, “o meu valor não pode ser nunca o de outro, a minha ação não pode ser nunca igual à outra”, “Wir aber wollen die werden, die wir sind”, “Queremos nos tornar aqueles que somos”: o resguardo dos valores individuais não compartilháveis é a preocupação central do método perspectivista nietzscheano.

Estudiosos da obra de Nietzsche anotaram aspectos dessa vontade de proteção das fontes de valores monadológicos do indivíduo contra a influência do que vem de fora. Henri Lefebvre, em Hegel, Marx, Nietzsche aponta aquela que seria a incoerência nietzscheana na atribuição das capacidades de criação, a ponto de encontrar aproximações com o próprio marxismo.

Às vezes [Nietzsche] diz que as pessoas inventam significados, criam valores. O filósofo e o poeta se mantêm distantes das multidões, mas emergem dos povos, mesmo e especialmente quando se opõem ao seu povo. São os povos que inventam, e não estados, nações ou classes, que não dão mais significado e valor a nada do que o conhecimento ou a política. Essa tese postula, em princípio, um relativismo completo, um “perspectivismo” que, no entanto, é convergente com as posições marxistas, pois atribui aos povos e, consequentemente, às “massas”, a capacidade criativa de gerar uma perspectiva com base em uma avaliação. Às vezes, Nietzsche responde, ao contrário, que somente o indivíduo (de gênio) tem essa capacidade – uma posição “elitista”: “Nós, que indissoluvelmente percebemos e pensamos, incessantemente fazemos nascer o que ainda não existe”, declara orgulhosamente em Die fröhliche Wissenschaft [A Gaia Ciência, NdT]. O pensamento de Nietzsche, em outras palavras, na medida em que é um pensamento, não se intimida com contradições e incoerências (Lefebvre, “Hegel, Marx, Nietzsche”).

A despeito de certo exagero – evidente na aproximação entre Nietzsche e a concepção materialista histórica de Marx, que trataremos em lugar apropriado – LeFebvre tem razão em indicar que o perspectivismo nietzscheano engloba a dimensão não apenas da criação de valores, mas do autoquestionamento. Esse não intimidar-se com questionar as convicções e ceder à mudança dos impulsos de criação pertence, de maneira parecida, à análise de Walter Kaufmann. O filósofo germano-estadunidense informa que o combate às próprias opiniões cristalizadas (as “convicções são prisões”, diz Zaratustra) é sua maneira de construir uma filosofia antidogmática. Essa qualidade filosófica em Nietzsche tem origem na desconfiança diante de todos os pensamentos enclausurados em sistemas, que se proíbem a si mesmos inquirir seus pressupostos. Como vimos, para Nietzsche tudo deve ser questionado, e especialmente aqueles problemas concretos, experimentados e vivenciados profundamente, que ameaçam o modo presente da existência. Kaufmann encontra aí o método experimentalista de Nietzsche, que tem relação com seu perspectivismo:

O “estilo da decadência” é metodicamente empregado a serviço do “experimentalismo” de Nietzsche. Os termos-chave que Nietzsche usa repetidamente são: ora experimento, ora “Versuch”; mas é bom ter em mente que “Versuch” também não precisa significar meramente “tentativa”, mas pode ter o sentido científico característico de “experimento”. Podemos lembrar aqui o comentário de Kierkegaard sobre Hegel: “Se Hegel tivesse escrito toda a sua Lógica e depois dissesse (…) que era meramente um experimento de pensamento (…) então ele certamente teria sido o maior pensador que já existiu. Do jeito que está, ele é meramente cômico”. Nietzsche insiste que o filósofo deve estar disposto a fazer experimentos sempre novos; ele deve manter a mente aberta e estar preparado, se necessário, “corajosamente, a qualquer momento, para se declarar contra sua opinião anterior” (Kaufmann, “Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist”)

Segundo essa apreciação, o experimentalismo nietzscheano está imbuído de existencialismo, do questionamento conceitual constante dos problemas vitais da vida cotidiana – “De fato, a vida reside em todo o pensamento e na escrita de Nietzsche, e há uma unidade que é obscurecida, mas não obliterada, pela aparente descontinuidade em seu experimentalismo” (idem). Para Kaufmann, tudo isso culmina em um “perspectivismo necessário, em virtude do qual todo centro de força – e não apenas o homem – constroi todo o resto do mundo a partir de seu próprio ponto de vista” (Kaufmann, “Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist”).

Tais interpretações enfatizam a disposição de questionar todos os sistemas filosóficos e as próprias convicções, uma atitude antidogmática que estabelece paralelo direto com a crítica ao pensamento metafísico. Certamente, não há problema em fazer a opinião das experiências vividas acompanhar a realidade mutável. Mas a abordagem de Nietzsche não é simplesmente a do “antidogma”: é a do indivíduo que desconfia do outro como obstáculo à realização dos seus impulsos. Efetivamente, vimos que, para Nietzsche, o pensamento consciente é a mínima parte do pensamento em geral, e o mais superficial deles, porque diz respeito àquilo que nos liga à comunidade. A capacidade de comunicação consciente é o indício da tragédia, pois simboliza a necessidade do outro: “Que nossas ações, pensamentos, sentimentos, e mesmo movimentos, nos cheguem à consciência – pelo menos uma parte deles – é a consequência de um terrível, de um longo ‘é preciso’, reinando sobre o homem: ele precisava, como o animal mais ameaçado, de auxílio, de proteção, ele precisava de seu semelhante, ele tinha de exprimir sua indigência, de saber tornar-se inteligível – e, para tudo isso, ele necessitava, em primeiro lugar, de ‘consciência’, portanto, de ‘saber’ ele mesmo o que lhe falta, de ‘saber’ como se sente, de ‘saber’ o que pensa” (A Gaia Ciência, Livro V, § 354).

Nietzsche faz a crítica do pensamento consciente como a pior parte do nosso aparelho cognitivo, pois ocorre em palavras, em signos de comunicação, que nos aproximam com o entendimento dos demais e nos afastam do impulso instintivo. O homem que toma conhecimento de si mesmo o faz através da consciência comunitária, e esse é o problema máximo. É nesse momento que Nietzsche explica sua própria visão, nomeadamente perspectivista.

Meu pensamento é, como se vê: que a consciência não faz parte propriamente da existência individual do homem, mas antes daquilo que nele é da natureza de comunidade e de rebanho; que também, como se segue disso, somente em referência à utilidade de comunidade e rebanho ela se desenvolveu e refinou e que, consequentemente, cada um de nós, com a melhor vontade de entender a si mesmo tão individualmente quanto possível, de “conhecer a si mesmo”, sempre trará a consciência, apenas o não individual em si, seu corte transversal […] Nossas ações são, no fundo, todas elas, pessoais de uma maneira incomparável, únicas, ilimitadamente individuais, sem dúvida nenhuma; mas, tão logo nós as traduzimos na consciência, elas não parecem mais sê-lo… Isso é propriamente o fenomenalismo e o perspectivismo, assim como eu o entendo: a natureza da consciência animal acarreta que o mundo, de que podemos tomar consciência, é apenas um mundo de superfícies e de signos, um mundo generalizado, vulgarizado – que tudo o que se torna consciente justamente com isso se torna raso, ralo, relativamente estúpido, geral, signo, marca de rebanho, que, com todo o tornar consciente, está associada a uma grande e radical corrupção, falsificação, superficialização e generalização (A Gaia Ciência, Livro V, § 354).

Dificilmente poderíamos comungar com a opinião, por mais antidogmática que seja, de que a consciência, sendo um universal, deturpa o discernimento individual. O humano é um ser social, e desenvolve sua personalidade no marco de uma determinada etapa das transformações na sociabilização geral. Não assim para o filósofo alemão. A unicidade irrevogável das ações estaria salva apenas na medida em que não a interpretemos racionalmente no campo do comum, naquele âmbito em que, justamente, “a espécie se coloca acima do discernimento individual”. Com isso podemos chegar a uma visão mais clara do perspectivismo nietzscheano. A ação consciente nega o que existe de mais precioso no individual, que é o não compartilhável dos impulsos. Tão logo buscamos entendê-las, enquadrá-las em uma totalidade, tão logo as medimos com régua do corpo social, perdemo-nos a nós mesmos. A ação coletiva se torna, no perspectivismo nietzscheano, a corrupção de si mesmo e sua diluição no todo, no rebanho, no gregário. Essa falsificação do indivíduo, sendo moralmente negativa para Nietzsche, traz à tona uma conclusão adicional: a totalidade é inimiga do perspectivismo.

Mais uma vez, Nietzsche levanta a bandeira filosófica contra qualquer possibilidade de intervenção coletiva na realidade, ou de cooperação positiva entre seres humanos. Em Crepúsculo dos Ídolos (1887), Nietzsche discute que:

Nossa moral da simpatia, contra a qual fui o primeiro a advertir, aquilo que se poderia denominar l’impressionisme morale, é uma expressão a mais da hiperexcitabilidade fisiológica que é própria a tudo o que é décadent. Aquele movimento que Schopenhauer, com a moral da compaixão, tentou levar avante cientificamente – uma tentativa muito infeliz! – é propriamente o movimento de décadence na moral, e como tal profundamente aparentado com a moral cristã. Os tempos fortes, as civilizações nobres, veem na compaixão, no “amor ao próximo”, na ausência de um si-mesmo e de um sentimento de si-mesmo, algo de desprezível. Os tempos se medem pelas forças positivas – e com isso se verifica que aquele tempo tão perdulário e rico de fatalidade do Renascimento é o último grande tempo, e nós, nós modernos, com nosso angustiado cuidado por nós mesmos e nosso amor ao próximo, com nossas virtudes do trabalho, da despretensão, da legitimidade, da cientificidade, somos um tempo fraco…A “igualdade”, uma certa assimilação de fato, que na teoria dos “direitos iguais” apenas chega à expressão, pertence essencialmente ao declínio: o abismo entre homem e homem, entre classe e classe, a pluralidade de tipos, a vontade de ser si mesmo, de se destacar, – aquilo que eu denomino páthos da distância é próprio de todo tempo forte (Crepúsculo dos Ídolos, Incursões de um Extemporâneo, § 37)

A armadilha nesse pensamento é a de estatuir, como condição do relevo das personalidades (aristocráticas, para Nietzsche), a crítica agônica aos valores da cooperação e da ação comum. Naturalmente, a atividade criadora das massas nos processos de luta de classes, nas greves, nas batalhas de autodefesa, nas insurreições e revoluções – na atividade mais consciente dos seres humanos em um regime de opressão social – encontramos o opróbrio. Não admira que tal visão perspectivista inspire distintas correntes filosóficas que são críticas dos grandes projetos de emancipação, como o foucaultianismo (ver análise de Iuri Tonelo). Tais tendências de pensamento foram além, e associaram o perspectivismo a uma espécie de relativismo da realidade objetiva, algo que não configurava a intenção de Nietzsche. Com o relativismo, a negação da realidade objetiva, da ordem social dividida em classes, das transições na história, da própria história como ciência, surgem como regras epistemológicas.

A dialética como antagonista do perspectivismo

Com isso, podemos entender a animosidade de Nietzsche com a dialética. Trata-se do instrumento mais perigoso para a estabilidade de uma determinada ordem, pois inverte, segundo Nietzsche, as hierarquias sociais. É o método lógico da subversão, já na Antiguidade clássica grega, cristalizada na figura de Sócrates, oponente direito da filosofia nietzscheana – e alvo de sua irrequieta admiração. No século XIX havia se convertido, através do sistema idealista de Hegel, na filosofia da totalidade do desenvolvimento histórico por meio do choque dos contrários contidos em todos e cada um dos elementos do mundo. Em Hegel, o método dialético apresentaria a lógica do movimento progressivo da Ideia à liberdade, etapas sucessivas de acúmulo de consciência dirigidos pelo progresso do Espírito Absoluto no reencontro de si mesmo. A metafísica hegeliana era criticada por Nietzsche tanto por sua concepção de progresso, quanto pelo aperfeiçoamento da vida consciente – consciência que para Nietzsche era anátema ao indivíduo, como vimos. Em sua inversão materialista realizada por Marx e Engels, a dialética saiu das brumas da abstração e passou a enraizar-se na transformação e no movimento da matéria, na totalidade da relação entre o objeto e o sujeito, o método da revolução social.

Nietzsche ataca a dialética desde os seus primeiros trabalhos, como O Nascimento da Tragédia (1872), até seus últimos escritos, como em Crepúsculo dos Ídolos (1887-88). É útil retomar conceitualmente a percepção de Nietzsche nesses trabalhos, em que Sócrates encarna a antinomia nietzscheana contra o método dialético. Embora em Sócrates não represente tout court a noção da totalidade da relação entre sujeito-objeto, prefigura essa noção com a antipatia aos limites da subjetividade mítica, ao elemento instintivo pré-racional como termo suficiente para a ação. Em O Nascimento da Tragédia, o filósofo alemão realiza um ataque violento contra Sócrates, acusado de ter deturpado em conhecimento conceitual o espírito grego, que havia sido capaz antes dele de elaborar um modo de vida fantasticamente fundado no instinto. Nietzsche analisa como o grego antigo conhecia e sentia os pavores e os sustos da existência como forças trágicas, incontroláveis e impassíveis de modificação: simplesmente para poder viver, tinham de estender à frente a resplandecente miragem dos deuses do Olimpo como autoridades máximas do Destino, da fortuna ou da desgraça em toda a sua fatalidade imutável e pré-ordenada. Nesse pensamento, era o elemento dionisíaco que dava o tom: a diluição da individuação, os impulsos báquicos que presidiam a arte – em comunhão com o elemento apolíneo da individuação consciente, das fronteiras da razão, mas que o sobrepuja em essência – cuja verdade toma para si todo o reino do mito como simbolismo do seu conhecimento [1]. Sócrates apresenta a inversão da predominância do dionisíaco na arte e na vida. Sócrates é a deprecação do instinto: o mito já não podia explicar (ou apascentar) nada nem ninguém. A razão era pré-requisito para a ação, uma transformação de proporções homéricas, dada a tradicional antipatia da elite patrícia ateniense em justificar seu modo de vida. Por onde dirige seu olhar inquisidor, Sócrates condena a falta de entendimento e a força da ilusão como princípios ativos da vida em sociedade. Dessa falta de entendimento concluía que tudo aquilo que estava fundado no exercício instintivo era intrinsecamente pervertido e repudiável – apesar de não ter abjurado do Olimpo, Sócrates fora condenado por impiedade, ou descrença nos deuses gregos.

Para Nietzsche, o impulso socrático destruía tanto a arte quanto a ética gregas, porque atacava o instinto, o elemento dionisíaco que sustentava a modelação trágica do mundo.”A partir desse único ponto, acreditava Sócrates ter de corrigir a existência […] Essa é a monstruosa perplexidade que toda vez, em face de Sócrates, nos assalta, e que sempre e sempre nos incita de novo a conhecer o sentido e o propósito desse fenômeno, o mais problemático da Antiguidade” (O Nascimento da Tragédia, § 13). Enquanto na visão de mundo dionisíaca que presidia a existência trágica dos gregos era o instinto que atuava como força criativa, em Sócrates a criação passa ao comando da consciência – anátema para Nietzsche. O dionisíaco dissolvia o indivíduo nos impulsos primordiais da irrazão; Sócrates era a dissolução dos instintos em nome da razão. Nesse específico não-místico vemos os ataques de Nietzsche contra a dialética:

Sócrates, o heroi dialético do drama platônico, lembra-nos, por afinidade de natureza, o heroi euripidiano, que tem de defender suas ações com argumentos e contra-argumentos e, por isso, tantas vezes corre o perigo de perder nossa compaixão trágica: pois quem seria capaz de desconhecer o elemento otimista na essência da dialética, que em cada conclusão comemora seu jubileu e somente em fria clareza e consciência pode respirar: o elemento otimista que, uma vez inoculado na tragédia, há de infeccionar pouco a pouco suas regiões dionisíacas e levá-la necessariamente à autodestruição – até o salto mortal no espetáculo burguês (O Nascimento da Tragédia, § 14).

Esse elemento otimista da dialética é o ponto de fissura de Nietzsche com o socratismo. No modo trágico da vida, não há possibilidade de que a ação seja portadora de transformação da ordem ou do Destino. Como vimos no mito de Édipo, a ação “consciente” só acelera o desenlace trágico pré-determinado. A dialética socrática, em sua “fria clareza e consciência”, determina a possibilidade de transformação das circunstâncias pela ação racional. A compreensão consciente ganha preponderância – e sabemos que a consciência é a desindividuação para Nietzsche. É preciso dizer que, apesar do impulso socrático conduzir a uma desagregação da tragédia dionisíaca, para Nietzsche ainda não o negava por inteiro, ou ao menos parecia ter dúvidas sobre se entre o socratismo e a arte havia necessariamente apenas uma relação de antípodas (ou se um “Sócrates artista” era necessariamente uma contradição”). Trata-se da primeira de muitas ambivalências na valoração nietzscheana de Sócrates [2] – a ponto de Walter Kaufmann o considerar como uma espécie de ídolo de Nietzsche, e mesmo como inspirador do método de inquisição experimentalista dos problemas candentes da realidade vivida [3]. Mas a perplexidade contra a dialética socrática estava de pé, e continuaria a se desenvolver por toda a obra, cada vez mais em contraste com os efeitos da dialética sobre a universalização das percepções e uma compreensão do movimento da totalidade que implicasse mudanças sociais de calibre histórico.

Em Crepúsculo dos Ídolos, sua advertência contra a dialética é direta, dedicando o Problema de Sócrates a essa reflexão. Nietzsche reconhece, ecoando a apreciação d’O Nascimento da Tragédia, que Sócrates e Platão são sintomas de um declínio anti-grego, instrumentos de desintegração de fenômeno helênico. Centrando sua artilharia no “mestre dos esgrimistas”, Nietzsche faz uma interessante associação entre a dialética e a condição de Sócrates: um plebeu que pertencia “aos mais baixos escalões da vilania” social. O acontecimento anti-trágico do “demônio socrático” era ao mesmo tempo um fenômeno anti-aristocrático, uma ameaça à ordem patrícia que se via ridicularizada – e condenada – em sua própria ignorância sobre os ofícios da arte, da economia, da política, da guerra. Uma mudança na preferência intelectual toma lugar:

Com Sócrates, o gosto grego gira em direção à dialética: o que ocorre de fato? Em primeiro lugar, um gosto nobre é aniquilado: com a dialética, a plebe chega ao topo. Antes de Sócrates, os modos da dialética eram evitados na alta sociedade: eram vistos como maus modos, eram comprometedores. Acautelar-se a juventude contra eles. Qualquer explanação sobre as razões de alguém era vista com suspeita. Coisas e homens honestos não carregam na manga suas razões dessa maneira. Não é de bom aviso fazer um espetáculo de todas as coisas. Aquilo que precisa ser provado não deve, por isso, possuir muito valor. Onde quer que a autoridade ainda goze de boa saúde, onde quer que os homens comandem e não percam tempo em provar as coisas, o dialético é visto como uma espécie de palhaço” (Crepúsculo dos Ídolos, Problema de Sócrates, § 5).

Em outras palavras, onde quer que reine a ordem, e onde quer que inexista “uma casta bárbara de escravos que aprendeu a considerar sua existência como uma injustiça e que prepara a vingança” (O Nascimento da Tragédia, § 18), a dialética é mal vista. Em seguida, diz que “Um homem recorre à dialética apenas quando não encontra qualquer outro meio à mão […] Pode apenas ser a última defesa daqueles que não tem nenhuma outra arma […] É a ironia de Sócrates uma expressão de revolta? De ressentimento plebeu? Frui ele, como oprimido, de sua própria ferocidade nas facadas do silogismo?” (Crepúsculo dos Ídolos, Problema de Sócrates, § 6 e 7). A vingança contra a nobreza por meio da dialética, seria para Nietzsche um de seus detestáveis elementos otimistas? A ligação entre a lógica dialética e o perigo da subversão, ainda que obscurecida pelo fascínio nietzscheano por Sócrates, é pertinentemente detectável. A dialética é o “impiedoso instrumento” com o qual a plebe chega ao topo, desagregando a autoridade. Se o elemento anti-grego do socratismo está aí, a dialética serve de elemento subversivo. A forma de vingança dialética de Sócrates contra o nobre que ele fascina prefigura, em Nietzsche, aquela decadência grega operada endogenamente, causada por si mesma em meio ao seu apogeu.

O terremoto da dialética instituído por Sócrates – a conquista da verdade universal pelo pensamento racional, a possibilidade de transformação da realidade pela ação – é o grande perigo ao perspectivismo. O perspectivismo nietzscheano é anti-socrático porque aristocrático. A razão não deve estar na condição de árbitro: deve ocupar um lugar subordinado aos impulsos do instinto, não como mestre deles. Não deve explicar a ação, porque a ação não tem nada a ver com a consciência, um requinte do rebanho que extirpa a originalidade do indivíduo que tem poder, que goza de sua autoridade para conservar o que há (e produzir cultura). A dialética – como nos diálogos de Sócrates com seus discípulos e adversários, revelado por Platão – não poderia nos fazer chegar mais próximo da verdade que está na nossa própria ação experimental, sensível, primaz, indiscutivelmente única e indeterminável pelo outro.

A dialética animada pela era das revoluções

Não é nova a distinção entre as naturezas do método dialético de Hegel e Marx. O próprio Marx faz a definição mais clara da maneira como incorpora a dialética hegeliana, transformando-a completamente. Há, entretanto, bases sociais comuns que dão a característica de movimento para o método dialético tal como concebida, idealisticamente, por Hegel, e sustentado na materialidade do mundo, por Marx. As revoluções modernas, entre 1789 e 1871, tiveram grande impacto na lógica dialética, e a afastaram decisivamente de sua manifestação socrática. A Revolução Francesa deixou marcas indeléveis no pensamento hegeliano, pela gravitação da transformação histórica empenhada. Representou a abolição do feudalismo na França e um movimento expansivo de choques por toda a Europa durante as campanhas napoleônicas. A meados do século XIX, as circunstâncias objetivas da economia colocaram a burguesia em relação de oposição a novas transformações, de modo que já na Primavera dos Povos de 1848 representava uma classe reacionária socialmente. Esse ciclo que vai de 1848 até a Comuna de Paris, que pôs termo às revoluções burguesas e abriu caminho ao surgimento da classe operária como sujeito historicamente revolucionário, constitui o núcleo da natureza materialista da dialética em Marx.

O método dialético hegeliano é muito distinto do método socrático, porque não funciona essencialmente para negar ou destruir um pensamento, reduzindo-o a puras contradições. Para Hegel, a dialética não é mera retórica, é um dispositivo de conteúdo da filosofia como expressão do real, das contradições da realidade.

Em seu estudo, Henri Lefebvre admite que o ataque de Nietzsche a Sócrates é também uma agressão contra Hegel, na medida em que também representa aquele “homem teórico” socrático, equipado com os instrumentos da razão e da ciência para compreender as transformações da história. E agora, com a plena consciência da totalidade. “Se Sócrates já contém Hegel e a modernidade, é porque o tempo não deve ser concebido à maneira de Hegel e dos historiadores. Para Nietzsche há filiações, genealogias, e não gêneses; não há história no sentido de um desenvolvimento quantitativo e qualitativo” (Hegel, Marx, Nietzsche). Quanto ao motor da história, Hegel pressupunha o conhecimento e a razão, abrindo caminho através da natureza, da vida, do corpo e dos povos. Se o trabalho contraditório ou negativo do conceito continuasse indefinidamente, poderíamos eventualmente atingir a verdade absoluta na consciência humana. “Não, responderia Nietzsche cada vez mais fortemente. O motor, na medida em que podemos falar de um, não é nem a razão nem o conhecimento, nem mesmo os interesses práticos e os objetivos políticos bem definidos (mesmo que estes interesses e objetivos desempenhem sempre um papel). O motor é a vontade de potência: a busca do poder de autoridade pelo seu próprio interesse” (idem).

Hegel era condenado por Nietzsche como o protelador par excellence da vitória do ateísmo filosófico na Europa; sua filosofia do progresso do conceito não se enquadra com a abolição nietzscheana da noção do progresso histórico (a cultura grega na Antiguidade era superior à cultura alemã de seu tempo), e as concepções mútuas sobre o Estado não poderiam ser mais distintas: Hegel o tomava como condição para os superiores empreendimentos supra-sociais da cultura e da arte; para Nietzsche, o Estado era o arqui-inimigo dessas conquistas. Não obstante, mesmo em suas inúmeras divergências com Hegel, Nietzsche não escapa ao reconhecimento da potência de um adversário, ainda que ironicamente. Refletindo naquilo que explicaria “o que é o alemão”, assinala a assombrosa destreza de Hegel, a habilidade com que remanejou todos os hábitos e comodidades lógicas ao ousar ensinar que os conceitos se desenvolvem uns dos outros. A dialética hegeliana é a do movimento dos conceitos, da busca pela identidade entre a Ideia e o objeto. Trata-se do idealismo metafísico que desagradava Nietzsche, mas que sintetizava o espírito europeu da época: “Nós alemães somos hegelianos, mesmo que nunca tivesse havido um Hegel, na medida em que nós atribuímos ao vir-a-ser, ao desenvolvimento, instintivamente um sentido mais profundo e um valor mais rico do que àquilo que ‘é’ – mal acreditamos na legitimidade do conceito ‘ser’” (A Gaia Ciência, Livro V, § 357). De te fabula narratur: Nietzsche não pode esconder a afeição que possui com a mesma concepção do vir-a-ser, tão aclamada em Heráclito em O Nascimento da Tragédia! Mas a divergência com a dialética é ríspida, na medida em que Hegel conecta, ainda de maneira idealista, o movimento dos conceitos com o movimento da totalidade das relações do mundo, com o movimento da história que desengaja da noção da imobilidade de formas sociais arcaicas.

Para Hegel, o conhecimento do real pode ser atingido com a busca da unidade do sujeito que pensa e da substância que existe, ou a crescente adequação do conceito com o objeto sensível. E essa unidade do pensar e do ser seria possível para todos os seres humanos, não apenas para uma classe aristocrática de pensadores. Hegel está preocupado em encontrar a identidade entre o sujeito que pensa e a substância que existe, entre o pensamento e o ser. Uma vez encontrada essa identidade, ou essa unidade, teríamos a verdade do saber absoluto. Na relação conceito-objeto existe a expectativa de adequação simples entre os termos da equação, mas algo no objeto resiste à sua apreensão conceitual, e exatamente por resistir à apreensão conceitual o objeto modifica o conceito, que tenta em seu movimento adaptar-se gradativamente ao objeto. Esse movimento das categorias conceituais para se aproximar da verdade de algo, para chegar ao conhecimento real de um objeto, é o movimento dialético para Hegel. Ou seja, esse movimento de constante negação das inadequações dos nossos conceitos, melhorando nossa percepção na medida em que nos nega, vai ser a base do método dialético hegeliano. Na Fenomenologia do Espírito, Hegel denomina de conceito esse movimento de chegar mais próximo da verdade do objeto, de determinar o objeto em suas particularidades para chegar ao conhecimento do que é verdadeiro, negando as generalidades que associam esse objeto com os demais e, através disso, encontrando em suas determinações particulares a relação que ele estabelece com a totalidade.

Naturalmente, a teoria nietzscheana do eterno retorno se opõe à dialética hegeliana do progresso do conceito. Mas as contradições, no contexto hegeliano, não são mera idolatria do factual para justificar aquilo que existe: são o próprio movimento do devir, de transição da história em seu caminho rumo à liberdade. Em sua Lógica, Hegel diz que “É um dos preconceitos fundamentais da lógica até aqui e da representação habitual fazer como se a contradição não fosse uma determinação tão essencial quanto a identidade; sim, mesmo que se tratasse aqui de hierarquia e de fixar as duas determinações como separadas, seria preciso tomar a contradição como o mais profundo e o mais essencial. Pois, diante dela, a identidade é apenas a determinação do imediato simples, do ser morto; a contradição, no entanto, é a raiz de todo movimento e de toda vitalidade; só na medida em que algo tem em si próprio contradição é que se move, tem impulso e atividade”. Nessa mesma passagem o Hegel vai dizer que “a identidade abstrata de algo consigo mesmo não é nenhuma vitalidade; dessa maneira, algo é vivo apenas na medida em que contém em si a contradição”.

Mas é em Marx que a dialética se converte em método de análise materialista da história que fundamenta a ação transformadora, em uma dimensão que se antagoniza categoricamente com o perspectivismo nietzscheano. A dialética como método lógico toma um giro mais que copernicano nas mãos do Marx, que coloca a pérola do método hegeliano de cabeça para cima, e a enraiza sobre a matéria mutável. Já não estamos falando de um movimento dialético como movimento dos conceitos da nossa consciência, que por sua própria autorreflexão moveria e criaria a realidade. Para Marx, isso era enquadrar o vivo método dialético dentro das brumas da abstração, tirando-o da realidade histórica. “A dialética de Hegel é a forma fundamental de toda dialética, mas apenas depois de despida sua forma mística, e é exatamente isso que distingue o meu método”. No posfácio da segunda edição d’O Capital de 1872 o Marx fala abertamente sobre essa divergência com Hegel. Nas suas próprias palavras, ele diz o seguinte: “Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente do método hegeliano, mas exatamente seu oposto. Para Hegel, o processo de pensamento que ele, sob o nome de Ideia, chega a transformar num sujeito autônomo, é o demiurgo do mundo real, e o mundo real constitui apenas a manifestação externa da ideia. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material, traduzido e transposto na cabeça do homem”.

Nos Grundrisse, os manuscritos econômicos de 1857-58, Marx tomou o tempo de escrever literalmente, de maneira mais extensa e livre do que faria n’O Capital, a abordagem concreta do método na economia política. No terceiro item da Introdução, chamado justamente de “método da economia política”, Marx trata da comunidade política não como uma “interação entre os conceitos de necessidade e liberdade”, como fazia Hegel, mas com dados materiais e reais da divisão entre as classes na sociedade. Diz então:

Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressuposto efetivo e, portanto, no caso da economia, por exemplo, começarmos pela população, que é o fundamento e o sujeito do ato social de produção como um todo. Considerado de maneira mais rigorosa, entretanto, isso se mostra falso. A população é uma abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é constituída. Essas classes, por sua vez, são uma palavra vazia se desconheço os elementos nos quais se baseiam. Por exemplo, trabalho assalariado, capital, etc. Estes supõem troca, divisão do trabalho, preço, etc. O capital, por exemplo, não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço, etc. Por isso, se eu começasse pela população, esta seria uma representação caótica do todo e, por meio de uma determinação mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples; do concreto representado chegaria a conceitos mais abstratos cada vez mais finos, até que tivesse chegado às determinações mais simples. Daí teria de dar início à viagem de retorno até que finalmente chegasse de novo à população, mas desta vez não como representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de múltiplas determinações”.

Essa é a concreção material da totalidade, alheia a toda fragmentação do pensamento. Isso tem consequências na atuação. Acumulando de forma gradual seu conhecimento sobre a matéria, o homem adquire poder sobre ela, e pode aventurar, também em função do grau em que o faz, previsões mais ou menos precisas, comprováveis pelos fatos, e a partir disso não se encontra um limite para seu conhecimento e domínio sobre a matéria. Marx aplica esse princípio da matéria para o campo da sociedade e da história humanas: o conhecimento da matéria e de suas transformações nos dota da capacidade de prever mudanças possíveis na realidade, e com isso nos dá o poder necessário para interferir conscientemente nessas mudanças e direcioná-las a serviço da humanidade.

Trata-se de uma abordagem anti-trágica, no sentido de negar a noção da incapacidade dos seres humanos transformarem ativamente sua realidade. Pelo contrário, estimula essa concepção da ação revolucionária para a superação das próprias condições de exploração do capital.

Nesse universo, não podemos creditar razão ao esforço de Lefebvre em encontrar sintonias na concepção cognitiva entre Marx e Nietzsche. A crítica à filosofia, à intelectualidade, ao jugo da produção artística às superestruturas modernas, em Marx, está vinculada à luta de classes e à capacidade da ação coletiva de transformar a realidade da matéria, coligindo forças subalternas para acabar com a divisão do trabalho manual e intelectual. Em Nietzsche, a crítica aos sistemas filosóficos, à intelectualidade e ao Estado se dá em termos de manutenção da divisão do trabalho, de conservação de uma sociedade fundada no trabalho como imposição, em uma sociedade aristocrática que possibilita a elevação do ser humano através das gradações hierárquicas e da necessária escravidão do labor (Para Além do Bem e do Mal, Capítulo IX, § 257). A própria concepção do indivíduo é muito distinta na perspectiva do materialismo dialético marxista, e do perspectivismo nietzscheano. Para Marx, o indivíduo é um ser eminentemente social, constroi relações materiais de produção e reprodução da própria vida, encontra-se desagregado como espécie pela divisão social em classes antagônicas. A exploração do homem pelo homem é um signo da pré-história humana, que pode ser superado pela ação organizada da classe subalterna que, emancipando-se a si mesma, elimina o estatuto da divisão entre as classes e, por isso, emancipa a humanidade. Se em Marx uma civilização superior seria capaz de abolir o sacrifício de outros seres humanos a fim de reencontrar-se a si mesmo como espécie colaboradora, para Nietzsche o sacrifício de outros seres humanos é parte do próprio conceito de liberdade: Pois, o que é liberdade? Ter a vontade de responsabilidade própria, Manter firme a distância que nos separa. Tornar-se indiferente a cansaço, dureza, privação, e mesmo à vida. Estar pronto a sacrificar à sua causa seres humanos, sem excluir a si mesmo. Liberdade significa que os instintos viris, que se alegram com a guerra e a vitória, têm domínio sobre outros instintos, por exemplo, o da ‘felicidade’” (Crepúsculo dos Ídolos, Incursões de um Extemporâneo, § 38). Para Marx, o indivíduo deve ser refundado nos marcos da coletividade. Para Nietzsche, só há sociedade na medida em que se subordine aos desígnios e caprichos do indivíduo que desenvolve sua vontade de potência.

História e método

A dialética é a ciência do limite, segundo Lênin, o método que acompanha a transformação da matéria em seu contrário. Apreende a lógica da luta de classes e das revoluções. Isso explica a superioridade da visão multifacetada do mundo oferecida pela dialética, em seu núcleo material: o materialismo dialético. Sem relativizar a realidade, ou subordiná-la aos caprichos da subjetividade, descobre em todos os fenômenos as raízes de sua origem, de seu desenvolvimento, de seu amadurecimento e decadência, e de sua extinção. Objeto e sujeito se interpenetram, modificando-se mutuamente. A história humana não está regida pelas leis da naturalidade biológica, quer em sua versão evolucionista vulgar, quer em sua versão pragmática experimentalista. Sendo a matéria mutável, e não inerte, há margem para a atuação consciente do ser humano. Na sociedade moderna, essa atuação consciente tem seu nível mais elevado na atuação das classes sociais, por meio de cujos choques vislumbramos os movimentos contraditórios entre as relações de produção existentes e as forças produtivas.

A intervenção na realidade para a modificação radical das circunstâncias – para além da contemplação meditativa ou da fatalidade mecanicista – contém a divergência taxativa com o perspectivismo nietzscheano. Em nome do combate ao idealismo do Espírito Absoluto ao idealismo das leis morais no imperativo categórico – em ambas as quais reside a figura despótica da divindade extramundana – Nietzsche elaborou um idealismo próprio, que busca aniquilar as relações de desenvolvimento da totalidade e suprime o movimento do universo histórico social. A filosofia do Eu absoluto, extirpado da materialidade social e das formas de consciência antagônicas que dela se derivam, representa uma maneira de pôr fim à história e elevar à condição de múltiplas realidades os impulsos dos múltiplos indivíduos que “criam valores”. Como afirmava o filólogo italiano Sebastiano Timpanaro [4], as classes exploradoras sempre tiveram necessidade de falar dos “valores do Espírito”, e a filosofia de Nietzsche não deixou de reservar a si esse papel.

Nietzsche não pode ser responsabilizado por aquilo que viria a ser o pós-modernismo. Mas o individualismo exacerbado que anima seu particular idealismo anti-metafísico dos valores deixa mais de uma porta aberta para o relativismo subjetivo e a mera contingência da realidade. Um exemplo é Michel Foucault. Este foi influenciado pelo “desafio de Nietzsche” a manter o “ceticismo sistemático a respeito de todos os universais antropológicos” (Foucault, Ditos e escritos). Foucault desenvolveu sua concepção da genealogia e arquitetura dos saberes, que na prática estimula sua própria variante perspectivista. A demolição das certezas (auto-inquisição) se converte em relativização do real e da história, um combate franco à dialética. Ainda que acolha em seu interior fragmentos de ação coletiva (em que a única saída é “resistir” de maneira segmentada), trata-se de uma versão particularmente dogmática do perspectivismo conservador de Nietzsche.

A história como processo aberto recomenda determinada totalidade, os “universais” que causam certo arrepio nos instintos da conservação. A combinação entre a especificidade do particular e a totalidade do universal é uma das principais conquistas do pensamento humano, e na era das revoluções goza de boa saúde.

 

NOTAS

 

1. Como afirma Henri Lefebvre, “O reino de Apolo tem a bela aparência, surpreendente mas pacificadora, de um sonho em que os sofrimentos se tornam um jogo de luzes e sombras. O reino de Dionísio tem a embriaguez, na qual os indivíduos perdem os seus limites, rompendo o frágil “principium individuationis”, com o resultado de que a subjetividade desaparece na dança, na orgia, na crueldade, na volúpia. Sonho e embriaguez (Apolo e Dionísio) são opostos como os sexos: conflito e desejo”. Cf. “Hegel, Marx, Nietzsche”.

2.Se tudo for bem, virá o tempo em que, a fim de avançar no caminho da razão moral, os homens tomarão como inspiração a Memorabilia de Sócrates ao invés da Bíblia, e Montaigne e Horácio serão usados como pioneiros e guias para a compreensão de Sócrates […] Sócrates supera em muito o fundador do cristianismo em virtude de seu estilo de seriedade jocosa e a sabedoria de suas brincadeiras, que constituem o melhor estado da alma humana. Ademais, ele tinha maior inteligência” (Para Além do Bem e do Mal)

3.Nietzsche era mais consistentemente ‘dialético’ – ou, para evitar qualquer mal-entendido, era, tal como Sócrates, um questionador muito mais rigoroso […] Com frequência, Nietzsche sente que está imitando Sócrates. A investigação deve ter como ponto de partida um problema concreto e não artificial ou meramente “‘académico’”. Cf. Walter Kaufmann, “Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist”.

4. Sebastiano Timpanaro, “Sobre el Materialismo: Ensayos polémicos en torno a la teoría, la práxis y la naturaleza”. Buenos Aires: Ediciones IPS, 2022.

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