Fernando Scolnik
Em pleno verão e em meio a uma onda de calor, uma multidão nas ruas chacoalhou o governo, com múltiplas facetas. Depois de meses tentando se mostrar bem-sucedido e avassalador, o discurso mais reacionário de Milei ficou na defensiva. Também não conseguiu aplicar o "Protocolo Antipiquetes". O governo vinha ocupando o centro da cena política, mas neste sábado ficou visível a existência de uma oposição muito ampla que, por sua vez, está atravessada por debates estratégicos. Junto à diversidade sexual e às mulheres à frente, participaram trabalhadores em luta e dezenas de milhares de pessoas que queriam se manifestar contra Milei por múltiplas causas. Restam grandes desafios, mas a mobilização massiva mostrou que é possível enfrentar o governo e seguir até derrotar seu plano.
Desde cedo, era evidente que a marcha seria muito importante. Os lenços verdes, os laranjas e as cores da diversidade já haviam tomado os ônibus, os metrôs e os trens. Pouco depois, chegariam às ruas: uma multidão ocupou as ruas do centro de Buenos Aires e das principais cidades do país, ao mesmo tempo em que houve concentrações solidárias em diferentes países do mundo. Também participaram setores de trabalhadores que estão lutando contra fechamentos e demissões, além de um amplo espectro político e social.
Milei havia exagerado. Encorajado por seu melhor momento geopolítico, com a ascensão de seus amigos Donald Trump e Elon Musk, que viralizaram em todo o mundo com suas saudações nazistas e seus discursos reacionários, o presidente argentino lançou, a partir do Fórum de Davos, um de seus ataques mais reacionários, destilando ódio contra a diversidade sexual e contra as mulheres. No dia anterior, ele também havia tuitado contra os “esquerdistas filhos da puta”.
No cenário local, o terreno também havia sido criado para ele. Depois que os facilitadores de governabilidade do macrismo, do radicalismo e de setores do peronismo facilitaram a aprovação da Lei de Bases e dos vetos contra os aposentados e as universidades públicas, o capital financeiro estava exultante com o “sucesso” do ajuste que permitia sua festa e a de poucos, enquanto a maioria empobrecia, sem perder o controle da situação. As burocracias sindicais e universitárias colaboravam com o quadro geral, retirando-se das ruas com uma cumplicidade absoluta e tentando criar um clima de que “não se pode enfrentar o governo”. A CGT está de férias há muitos meses.
Nesse quadro “exitista”, o governo lançou seus ataques obscurantistas. No entanto, a conjuntura reacionária que se vivia e que os jornalistas e tuiteiros de peruca amplificavam ao infinito escondia diversos pontos de fragilidade. Um deles era o esquema econômico, que está apoiado em múltiplos elementos de precariedade que abrem interrogações sobre seu futuro, um “futuro” que o governo tenta “adiar” até as eleições legislativas, sem desvalorizar a moeda para que a inflação não se agrave: o acordo com o FMI ainda pendente de assinatura, reservas do BCRA que continuam em terreno negativo, uma balança de conta corrente que acumula sete meses consecutivos no vermelho, um “dólar barato” difícil de sustentar no contexto nacional e internacional, atritos não apenas com as grandes massas, mas também com os patrões do campo (aos quais reduziram as retenções no marco de uma disputa) e com setores mercadointernistas que também sofrem com a abertura comercial.
Junto a isso, a multidão que se mobilizou neste sábado mostrou a existência de uma grande polarização política e social. O governo vinha quase monopolizando o centro da cena política, diante de uma oposição dos partidos do regime que estava em crise e desorientada, mas esse fato escondia a existência de uma grande oposição social que aparecia dispersa e atomizada. Mas neste sábado, mais uma vez, demonstrou-se que, quando existem canais de expressão e convocações claras, as pessoas vão às ruas com força, como foi na luta pelo financiamento universitário, nas greves nacionais, no 8 de março ou no 24 do ano passado, entre outras ocasiões. Os partidos do regime e as burocracias, como a CGT, eram responsáveis por isso não se expressar, o que também faz parte da explicação do grande descontentamento que existe com o papel do peronismo na oposição. Neste caso, a assembleia do Parque Lezama teve o mérito de organizar uma primeira resposta aos ataques furiosos de Milei, que agiu, com a diversidade sexual e as mulheres à frente, como um ponto aglutinador para que também se somassem setores de trabalhadores em luta e, de forma mais geral, dezenas de milhares de pessoas que querem lutar contra o governo. Isso também pôde ser visto nos próprios móveis dos diversos canais de televisão, que tiveram que refletir depoimentos de muitas pessoas que, ao explicar seus motivos para se mobilizar, manifestavam sua repulsa aos ataques de Milei às mulheres e às pessoas LGBTQ, assim como também ao ajuste, ao ataque à saúde e à educação públicas, ao fato de governar para os mais ricos, e até se ouviu mais de uma vez a exigência de “greve, greve, greve, greve geral”. A esquerda, especialmente atacada por Javier Milei, também foi impulsionadora das convocações e apresentou denúncias contra Milei por incitação à violência e por querer impor a discriminação como política de Estado.
Ao mesmo tempo, esses dias também demonstraram que mesmo uma parte da base eleitoral que votou em Milei no segundo turno não compartilha esses valores reacionários que querem impor a discriminação como política de Estado. Em muitos casos, apoiam de forma reacionária a agenda econômica de ajuste, mas não os ataques à diversidade sexual, às mulheres ou à esquerda. Isso se expressou até mesmo em declarações e participações de alguns setores do PRO ou da UCR que quiseram aproveitar o tropeço de Milei para tentar recuperar parte do terreno perdido diante de um La Libertad Avanza que vinha tentando hegemonizar todo o espaço de direita. Todos os debates políticos estão atravessados pelo ano eleitoral e pelos possíveis fechamentos (ou não) de coalizões políticas.
Em outras faixas que apoiaram a marcha, há setores como Juan Grabois que querem aproveitar as circunstâncias para propor uma frente eleitoral de “todos contra Milei”. Sob o argumento de “enfrentar o fascismo”, propõem incorporar até mesmo setores que vêm dando apoios chave ao governo de ultradireita e antes ao macrismo, como Martín Lousteau (chave para aprovar a Lei de Bases) ou Elisa Carrió (histórica referência da direita gorila). É uma política de tentar reeditar – mas em uma versão ainda mais à direita – a política fracassada de fazer frentes amplas “para enfrentar a direita”, que depois terminam ajustando e descumprindo todas as suas promessas, como aconteceu com o Frente de Todos, que acabou abrindo caminho para a ultradireita de Milei e frustrando sua própria base política. Um tempo atrás, outra experiência havia sido a Aliança de Fernando de la Rúa-“Chacho Álvarez”.
Por parte do governo, quando perceberam seu erro não forçado, que estava provocando a organização de uma marcha massiva, quiseram tarde e mal atacar a mobilização, tentando desprestigiá-la, associando-a apenas ao peronismo e opondo os interesses das supostas “minorias” aos da suposta “gente comum” que sofre com a economia e a chamada insegurança. Também tentaram instalar que o presidente havia sido tirado de contexto ou que retirariam o projeto de eliminar o feminicídio como figura penal, mostrando uma atitude errática, que evidenciou um passo em falso do oficialismo. O fracasso total dessa tentativa de enfrentar a marcha ficou evidente na derrota de Patricia Bullrich, que não conseguiu aplicar seu “Protocolo Antipiquetes” contra a mobilização.
Muito pelo contrário, o que importa é, mais do que nunca e como propõe a esquerda, aproveitar esse revés do clima reacionário que o governo vinha impondo para seguir com força nas ruas, unificar as lutas democráticas contra os ataques às mulheres, à diversidade sexual e à esquerda, às lutas contra o ajuste. Por isso, foi muito auspiciosa a participação de setores em luta, como o Hospital Bonaparte, Shell, Pinkington, estatais e locais de memória. É preciso apoiar e coordenar todas essas lutas até que triunfem e preparar desde já mobilizações massivas para o 8 e o 24 de março.
A principal conclusão do dia é que é possível enfrentar e derrotar o plano de Milei. Nem bandeiras progressistas com ajuste (como foi um setor do Frente de Todos), nem discursos ultrareacionários “em nome da gente comum” (a quem ajustam selvagemente), como o governo de Javier Milei. Unidos e adiante, juntxs por todas as nossas causas de luta.