André Barbieri
As coordenadas da corrida tecnológica entre Estados Unidos e China parecem ter mudado por força de uma pequena startup chinesa.
A concorrência tecnológica de cabeça para baixo
Há quase uma década, o sistema bipartidário estadunidense convalidou aquilo que lhe parecia a melhor forma de coibir saltos de inovação tecnológica na China: restringir-lhe o acesso aos insumos de alto valor agregado produzido nos Estados Unidos (e em alguns de seus aliados, como a Inglaterra e a Holanda). Acoberta-se com a mortalha da luta comercial uma corrida que tinha como objetivo asfixiar definitivamente as tentativas de superar a longa primazia tecnológica norte-americana. Trump o havia feito em 2018 através de tarifas comerciais, taxando em 25% o montante de US$ 50 bilhões em exportações chinesas. Biden direcionou as restrições a controles claros de exportação de semicondutores e tecnologia avançada de inteligência artificial, proibindo, por exemplo, o acesso chinês a microchips da Nvidia que alimentam sistemas de inteligência artificial e a máquinas de litografia ultravioleta da holandesa ASML, essenciais para a manufatura de semicondutores.
O lançamento do mais recente modelo de inteligência artificial (IA) da DeepSeek, uma obscura startup chinesa, iluminou o fracasso dessa política estadunidense, destinada a conter a inovação chinesa por meio de manobras comerciais. Fundada pelo administrador de fundos de cobertura Liang Wenfeng, a DeepSeek treinou um modelo avançado de inteligência artificial usando semicondutores menos potentes, de gerações anteriores – o modelo H800 produzido pela estadunidense Nvidia – contornando a falta de acesso aos microchips de alta performance bloqueados pela administração Biden. O resultado foi a apresentação de instrumentos de rendimento comparável a empresas estadunidenses como a OpenAI, a Google DeepMind e a Anthropic, com enorme poupança de recursos. Enquanto as empresas norte-americanas fizeram campanha para provar que a corrida pelos melhores instrumentos de IA exigia bilhões de dólares de investimento, a startup chinesa o fez com poucos milhões.
A abordagem focada da DeepSeek permitiu que se desenvolvesse um modelo de linguagem ampliada (programa de inteligência artificial capaz de reconhecer e gerar textos) sem a necessidade de um poder de computação extraordinário e, aparentemente, sem a utilização de semicondutores mais modernos. Ainda que o sucesso da DeepSeek não invalide a preocupação da China em adquirir capacidade endógena de produção de semicondutores de ponta, o gigante asiático demonstrou na prática ser capaz de permanecer na fronteira da arte técnica de IA com o trabalho próprio em inovação.
Outras empresas vem seguindo o modelo kaizen, um processo industrial de “melhorias incrementais contínuas”, elaborado pela indústria japonesa nas décadas de 1970 e 1980 – e que agora se tornou o instrumento da China para desafiar a supremacia técnica norte-americana. A Alibaba, a Tencent, Bytedance, Moonshot e 01.AI também reduziram significativamente a distância que possuíam seus pares nos EUA experimentando transformações constantes no processo de pesquisa e desenvolvimento de IA. A mídia estatal chinesa foi rápida em defender o DeepSeek como um ativo nacional que deveria inspirar o setor privado.
Como escreve o economista Michael Roberts: “O que deve enfurecer os oligarcas da tecnologia que apoiam Trump é o fato de que as sanções impostas pelos EUA às empresas chinesas e as proibições às exportações de chips não impediram que a China fizesse ainda mais avanços na guerra tecnológica e de chips com os EUA. A China está conseguindo dar saltos tecnológicos em IA, apesar dos controles de exportação introduzidos pelo governo Biden com o objetivo de privá-la tanto dos chips mais poderosos quanto das ferramentas avançadas necessárias para fabricá-los.” As empresas privadas da China, é importante sublinhar, são favorecidas por políticas estatais de privilégios de uma maneira não tão distinta ao que ocorre nos Estados Unidos, embora não ofereça os mesmos contornos desbragados observados no Ocidente. O próprio Liang Wenfeng foi convidado pelo governo Xi Jinping a se reunir com Li Qiang, primeiro-ministro da China, para ser agraciado junto a outros empresários com as sinecuras e benesses do Partido Comunista Chinês.
Empresas privadas de múltiplos setores tecnológicos – como a gigante de baterias e veículos elétricos BYD, e a fabricante de painéis solares Longi Green Energy Technology, prosperam através de incentivos governamentais, que atingem particularmente a área de semicondutores e inteligência artificial. Em base a isso, a ChangXin Memory Technologies (CXMT), uma das principais empresas chinesas fabricantes de semicondutores de memória, conseguiu ultrapassar os limites impostos pelos controles estadunidenses e desenvolveu um chip de memória de acesso aleatório dinâmico (DRAM, por sua sigla em inglês) de 16 nanômetros, diminuindo inesperadamente a brecha com as gigantes Samsung, SK Hynix e Micron Technology, mesmo padecendo restrições comerciais. Analogamente, a Semiconductor Manufacturing International Corp. (SMIC) já alcançou o controle do procedimento técnico necessário para a produção de processadores de 7 nanômetros, em aliança com a Huawei, cujos smartphones Mate 60 Pro Line ameaçam na China as vantagens do iPhone da Apple.
A China vem galgando posições em diversas áreas da corrida tecnológica que ora a opõe com as grandes potências. Em 2023, o Instituto Australiano de Pesquisas Estratégicas (ASPI) divulgou que a China lidera o mundo em 37 das 44 tecnologias essenciais. Segundo o relatório, o Ocidente está “perdendo na competição tecnológica global, incluindo a corrida por avanços científicos e de pesquisa”. Tais avanços são utilizados para cobrir as deficiências tecnológicas chinesas. Como relata o South China Morning Post, pesquisadores da Shenzhen MSU-BIT University desenvolveram um algoritmo de alto desempenho capaz de resolver complicados problemas de design de materiais em GPUs, alcançando uma velocidade 800 vezes maior do que os métodos tradicionais. O novo algoritmo aumenta a eficiência computacional da peridinâmica – teoria da mecânica contínua clássica que resolve problemas físicos como rachaduras, danos e fraturas – e abre novas possibilidades para a solução de problemas mecânicos complexos em vários setores, incluindo aplicações aeroespaciais e militares. Da mesma maneira, pesquisadores chineses alcançaram premiação da Royal Astronomical Society por seus papeis de liderança nos esforços para detectar ondas gravitacionais de nanohertz – ou ondulações de frequência ultrabaixa no espaço-tempo. A equipe de Liu Kuo e Chen Siyuan, do Observatório Astronômico de Xangai, identificou com sucesso um sinal com uma significância estatística de cerca de três sigmas. As ondas gravitacionais, previstas pela primeira vez pela teoria geral da relatividade de Albert Einstein, descrevem distúrbios no espaço-tempo que se propagam como ondas.
Estes saltos de inovação e pesquisa tem como objetivo retratar a China no espelho de seus adversários como uma superpotência industrial e militar fundada na mais moderna tecnologia. O gigante asiático sentiu a rebelião das forças produtivas contra os estreitos limites de seu Estado nacional, e as formas capitalistas de propriedade que dominam o país. A saída, a partir da queda do Lehman Brothers e o colapso financeiro de 2008, foi reorientar seu padrão de crescimento de forma drástica. De um país limitado a disponibilizar amplas fontes de mais-valor absoluto para o capital internacional, garantindo uma alta taxa de lucro interna e externa, tornou-se progressivamente um concorrente por espaços de extração mais-valor e investimento global, além de disputar liderança em tecnologia de ponta, com uma produção cada vez mais competitiva em relação à dos Estados Unidos.
A partir do momento em que o capitalismo da China entrou abertamente no caminho da competição por novos mercados mundiais – muito em função das décadas de convivência simbiótica com os Estados Unidos, aprofundada com a entrada de Pequim na OMC em 2001 – Washington passou a oferecer resistência. Trump desfez a arquitetura de colaboração pacífica que se manteve ainda na administração Obama – que passava a reorientar a atenção do imperialismo norte-americano do Oriente Médio, com o inconcluso “Pivô para a Ásia” – e aplicou tarifas à China como meio de frear a evolução de novas tecnologias e o reposicionamento privilegiado do capital chinês na esfera da competição pelo mais-valor global. Biden tomou a página de pequena estratégia de Trump e exacerbou todos os tipos de controles de exportação, que envolviam inclusive empresas estrangeiras que utilizavam tecnologia estadunidense, agora proibidas de comercializar seus insumos com a China.
O plano fez água. Segundo a revista britânica The Economist, o gigante asiático se tornou uma superpotência científica. Em 2003 os Estados Unidos produziram 20 vezes mais artigos científicos de alto impacto do que a China. Em 2013, essa proporção se reduziu para quatro vezes o número dos principais artigos e, na versão mais recente dos dados, que examina os artigos de 2022, a China ultrapassou os Estados Unidos e toda a União Europeia. A China lidera o mundo em pesquisas acerca das ciências físicas, químicas e da natureza, assim como em engenharia e ciência de materiais. Químicos chineses desenvolveram uma nova maneira de extrair hidrogênio da água do mar usando uma membrana especializada para separar a água pura, que pode então ser dividida por eletrólise; dominam publicações sobre painéis solares de perovskita, que oferecem a possibilidade de serem muito mais eficientes do que as células de silício convencionais na conversão da luz solar em eletricidade. Existem agora seis universidades ou instituições chinesas entre as dez melhores do mundo, e sete de acordo com a revista Nature, tais como as Universidades de Xangai Jiao Tong, Zhejiang e Pequim (Beida), no mesmo patamar que as instituições de Cambridge, Harvard e ETH Zurich. Os desenvolvimentos científicos no país são contundentes. Ainda de acordo com a revista, a China agora “abriga o detector de raios cósmicos de energia ultra-alta mais sensível do mundo (que recentemente foi usado para testar aspectos da teoria da relatividade especial de Einstein), o campo magnético em estado estacionário mais forte do mundo (que pode sondar as propriedades dos materiais) e avança para conseguir um dos detectores de neutrinos mais sensíveis do mundo (que será usado para descobrir qual tipo dessas partículas subatômicas fundamentais tem a maior massa)”.
Estrategicamente, ao demonstrar possibilidade de inovação de softwares com tecnologia limitada, a DeepSeek levantou dúvidas sobre se o acesso a pilhas de semicondutores de ponta e equipamentos relacionados é tão importante quanto se pensava anteriormente, quando se trata de treinar modelos de IA. Com isso, a estratégia compartilhada entre Republicanos e Democratas passou a ser questionada pelos próprios promotores das restrições comerciais. Respostas distintas começam a aparecer para superar os limites da tarifação e restrição de compra. Trump anunciou recentemente o projeto batizado de “Stargate”, uma colaboração entre a OpenAI, a SoftBank e a Oracle, com o objetivo de construir centros de dados de inteligência artificial nos EUA. O investimento inicial seria de US$ 100 bilhões, com planos de chegar a US$ 500 bilhões nos próximos anos.
Trump 2.0 começa a abalar o“softmode” com a China
Até o momento, o novo presidente dos EUA havia evitado agir de acordo com sua ameaça de impor pesadas tarifas à China. Disse em Davos que os dois países poderiam ter um “relacionamento muito bom” e, segundo informações, expressou interesse em visitar a capital chinesa nos próximos meses. Marco Rubio assegurou defender a “One China Policy” sobre Taiwan. Trump até mesmo concedeu um adiamento de 75 dias ao aplicativo chinês TikTok, e sinalizou que procuraria diluir uma lei que exige que a empresa desfaça seus negócios nos Estados Unidos ou seja banida. Xi Jinping, por sua parte, preconizou um “novo ponto de partida” na relação entre EUA e China durante uma ligação com Trump, e enviou o vice-presidente Han Zheng para participar da cerimônia de posse, a mais alta autoridade chinesa a participar de um evento desse tipo.
Entretanto, como de hábito na política com vetores díspares de Trump, o novo governo anunciou a imposição de tarifas de 10% sobre os produtos da China (junto a 25% de taxação aplicada sobre o Canadá e o México). É a maneira clássica de negociação de Trump, através da pressão e da chantagem. Mas a questão vai além de meramente estabelecer novos parâmetros de negociação. A Casa Branca conhece detalhadamente a difícil situação econômica em que se encontra o gigante asiático. Quer aproveitar o momento para dar um sinal político a Xi Jinping: o imperialismo norte-americano vai explorar as brechas da debilidade chinesa.
A preocupação de Pequim ilumina a situação para além do feito da DeepSeek. A economia chinesa continua desacelerando aos patamares mais baixos em 40 anos, com resultados anuais do PIB que com dificuldade alcançam 5% – ainda que comparados aos resultados globais sejam significativos, para o padrão chinês podem levar a problemas internos. Na China, décadas de crescimento desequilibrado levaram a um enorme excesso de capacidade estrutural, que a envolvem em tendências deflacionárias, manifestação de sua crise de superprodução. A taxa de desemprego da juventude urbana é alta, atingindo quase 20% da população entre 16 e 24 anos. A China, ademais, enfrenta uma crise demográfica de proporções. A população chinesa encolheu pelo terceiro ano consecutivo em 2024, o que reflete o aumento do custo de vida, incremento do desemprego e receio sobre o futuro. Diante do primeiro declínio populacional desde a instauração da República Popular em 1949, o Partido Comunista Chinês aplicou uma dura reforma da previdência, elevando com essa medida (aplicada por muitos governos neoliberais) a idade de aposentadoria entre homens de 60 para 63 anos, e entre mulheres de 50 para 55 anos, política que foi largamente repudiada pela juventude nas redes sociais.
A demografia cambiante interfere na poderosa crise imobiliária da China. O quadro da demanda por imóveis urbanos mudou completamente desde a época em que Deng Xiaoping impulsionou as reformas pró-capitalistas nos inícios da década de 1980, responsáveis pelo maior boom imobiliário da história da humanidade. Depois de 30 anos em que milhões de trabalhadores deixaram suas aldeias rurais para as cidades, a maior migração da história humana agora diminuiu substancialmente. O mesmo desenvolvimento de polos econômicos em cidades do interior do país, anteriormente relegadas ao trabalho exclusivamente rural, transforma os padrões migratórios, e consequentemente o tamanho das cidades tradicionalmente industrializadas. Cidades interioranas como Chengdu, Chongqing, Wuhan, Hefei, Xi’an, Changsha, e Guiyang passam a ser atrativas para jovens das províncias que elegem evitar tech-hubs como Shenzhen ou Xangai.
O principal problema de Xi Jinping está na juventude, que demonstra sinais de desesperança diante de um país prometido que não chegou. A alta taxa de desemprego modifica a opinião pública na nova geração. Uma pesquisa da China Quarterly, intitulada “Getting Ahead in Today’s China: From Optimism to Pessimism”, realizada pelos pesquisadores Scott Rozelle e Matin King Whyte, mostra como as atitudes na China mudaram em relação à desigualdade e às oportunidades econômicas, principalmente entre os grupos de baixa renda. Pesquisas anteriores semelhantes, realizadas em 2004, 2009 e 2014, mostraram que a maioria das pessoas comuns não estava muito preocupada com a crescente desigualdade, e a maioria estava otimista de que suas famílias melhorariam seus padrões de vida no futuro, em uma concepção da mobilidade ascendente relacionada ao mérito individual. A pesquisa de 2023 mostrou uma mudança acentuada: os entrevistados agora viam “oportunidades desiguais, discriminação e dependência de conexões como determinantes” para a ascensão social. O estudo sugere que “a legitimidade do desempenho acumulada pela liderança ao longo de décadas de crescimento econômico sustentado e melhores padrões de vida parece estar começando a ser prejudicada”.
Em meio a seus êxitos, cumpre dizer que a expansão voraz do selvagem capitalismo chinês o colocou mais rapidamente na situação de impasse econômico das potências mais avançadas. Os problemas sociais daí derivados deixam uma lacuna de incerteza pela intervenção da luta de classes como fator decisivo.
Trump aprofundará estrategicamente o abismo com a China. Manteve as restrições de Biden, assim como Xi Jinping manteve a restrição à exportação de minerais críticos para as ditas “tecnologias verdes”, como o gálio e o germânio. A disputa tecnológica rasgou definitivamente o véu mal inscrito da “guerra comercial”. As coisas ficaram às claras. Mais que isso, a concorrência pela primazia tecnológica se traduz naquilo que possui de mais profundo, a tentativa de reordenação da ordem global unipolar saída da Guerra Fria que, comandada pelos Estados Unidos, se encontra em marcada decadência. Donald Trump é a expressão mais agressiva do acordo bipartidário norte-americano em incrementar a pressão do imperialismo sobre a expansividade do capitalismo chinês. Este que, agora, conta com a participação na Casa Branca de múltiplos bilionários das big techs, sedentos pelas oportunidades de negócios que lhes oferece o trumpismo.
Tecnofeudalismo?
Em seu artigo publicado na New Left Review, intitulado Fragile Leviathan?, Cédric Durand sublinha justamente a comunhão sagrada entre a nova administração Trump e os magnatas do Vale do Silício, entre os quais Mark Zuckerberg, da Meta, Jeff Bezos, da Amazon, Sundar Pichai, do Google, e Elon Musk, da Tesla, que junto a Tim Cook, da Apple, Sam Altman, da Open AI, e Shou Zi Chew, da Tik Tok, estiveram presentes em condição de gala na posse do Republicano. O autor critica corretamente a avidez das big techs em controlar cada aspecto da vida social através do comando sobre o general intellect, pois à medida que “as grandes corporações monopolizam o conhecimento e os dados, elas centralizam os meios algorítmicos de coordenar as atividades humanas, desde as práticas de trabalho até o uso da mídia social e os hábitos de compra. A esfera pública é, portanto, dissolvida em redes online, o poder monetário é deslocado para criptomoedas e a Inteligência Artificial coloniza o que Marx chamou de ‘general intellect’, anunciando a apropriação constante do poder político por interesses privados”.
Durand levanta a questão dos desafios que surgem para a esquerda no enfrentamento ao “tecnofeudalismo”, nomenclatura um tanto rara, que foi popularizada pelo livro do economista grego Yanis Varoufakis (Technofeudalism: What Killed Capitalism). A saída mais a contento para esse objetivo, segundo Durand, seria uma “frente anti-tecnofeudal”, que “vá além da esquerda, abrangendo várias forças democráticas e frações do capital em desacordo com as big techs”. A inspiração para essa política viria diretamente das reflexões de ninguém menos que Mao Tsé-tung, que em 1937 havia elaborado sua própria visão sobre a hierarquia das contradições sociais em tempos turbulentos, como aqueles da terrível invasão japonesa à China.
Muitas questões faíscam seus olhos rutilantes. Aqui tomaremos algumas a título de reflexão. Tecnofeudalismo? Trata-se, naturalmente, de um conceito contestável em estado puro. Varoufakis considera que Jeff Bezos, o “senhor tecnofeudal” da Amazon, não produz capital, e sim cobra renda, o que nos levaria ao feudalismo e não ao capitalismo. Deixemos momentaneamente de lado o fato de que a civilização humana se debate no ciclo infernal de catástrofes ecológicas, econômicas e militares da época imperialista. Ainda sem esse dado, é preciso de uma dose adicional de fantasia para não identificar que a superexploração de milhares de trabalhadores nos galpões de logística da Amazon – muitos deles imigrantes, os quais Trump ameaça de deportação – gera mais-valor e, portanto, a forma moderna especificamente capitalista de exploração do trabalho humano. Muitas das tarefas que aparecem como produto dos algoritmos são, de fato, tarefas elaboradas mediante trabalho braçal humano (as chamadas “microtarefas”). Isso diz respeito, com a mesma força, para os motoristas de entrega da Amazon e da UPS, para os trabalhadores das plataformas digitais (não apenas dos Estados Unidos, mas também da China, como Meituan, Ele.me, HungryPanda, etc.), todos aqueles que vivenciam a expropriação cotidiana de sua força de trabalho pelo capital através das mais modernas aplicações das big techs.
O que dizer dos trabalhadores da mineração, na América Latina, na África e na Ásia, sem cujo trabalho seria impossível a confecção de smartphones ou softwares utilizados para realizar as compras que enriquecem Bezos? Empresas norte-americanas e chinesas são parte da exploração de minérios como lítio, cobre, zinco, ouro, cobalto de países como Zimbábue, República Democrática do Congo, Zâmbia, África do Sul, Bolívia, Chile e Argentina. Como argumenta Ricardo Antunes, esse novo conglomerado de aplicativos, verdadeiro suporte maquínico para a era da servidão digital, impôs os horrores da mais moderna exploração capitalista.
Varoufakis deveria saber disso. Ao menos, foi parte do governo do Syriza na Grécia, que passou de maneira express de um discurso político “antineoliberal” (não havia descoberto ainda o tecnofeudalismo) à violação explícita da vontade popular aceitando rigorosamente todos os pontos mais duros dos ajustes fiscais da Alemanha sobre o país. Uma experiência catártica, que explica o retorno da direita ao poder na Grécia.
Desafortunadamente, não goza de melhor saúde a noção de uma “frente anti-tecnofeudal” entre a esquerda e “setores democráticos do capital”. Efetivamente, a concepção reformista das frentes populares levou a desagradáveis resultados em toda a história do século XX – à derrota catastrófica de potentes revoluções na Espanha e na França – e em não menor medida na China. A teoria da contradição principal de Mao o levou muito além de uma simples frente militar de ação contra a invasão imperialista japonesa – necessária nas circunstâncias particulares da guerra, e que exigia com tanto maior contundência a mais completa independência política da classe trabalhadora frente à burguesia nacional. O dirigente do Partido Comunista travou com Chiang Kai-shek e o Kuomintang uma aliança política, fundada no abandono da luta de classes contra o capital e na renúncia de um programa socialista revolucionário para expropriar a burguesia chinesa, burguesia essa absolutamente dependente do imperialismo britânico e japonês. Com efeito, em 1935, Mao Tsé-tung detalhou as instruções dessa frente popular com o Kuomintang em seu trabalho Sobre a tática da luta contra o imperialismo japonês:
No período da revolução democrático-burguesa, a república popular não abolirá a propriedade privada que não seja imperialista ou feudal e, em vez de confiscar as empresas industriais e comerciais da burguesia nacional, estimulará seu desenvolvimento. Protegermos todo capitalista nacional que não apoie os imperialistas nem os chineses traidores da pátria. Na etapa da revolução democrática, a luta entre trabalhadores e capitalistas deve ter seus limites.
Para Mao, o papel do Partido Comunista era proteger os capitalistas nacionais da atividade política das massas e, assim, estabelecer limites na luta entre trabalhadores e capitalistas se tornou condição estratégica para a frente anti-imperialista com a burguesia. Trata-se dos fundamentos anti-estratégicos que estariam presente em Sobre a contradição, em que Mao afirma que “quando o imperialismo declara uma guerra de agressão contra um país, a contradição entre o imperialismo e o país em que questão passa a ser a principal, enquanto todas as contradições entre as diferentes classes dentro do país ficam relegadas a uma posição secundária”. Em sua teorização Sobre a guerra prolongada, de 1938, alertou contra todos aqueles que se preparavam para intensificar os atritos entre o Kuomintang e o Partido Comunista. Os trotskistas chineses, que defendiam a independência política dos trabalhadores e a continuidade do combate imposto pelas circunstâncias contra os nacionalistas, eram alvos da ira maoísta em defesa da “paz civil”. Enquanto Chiang Kai-shek promovia campanhas de cerco e aniquilamento dos comunistas, Mao sustentava o bloqueio da luta de classes e os métodos da revolução, única maneira de combater decisivamente a invasão imperialista e seus colaboradores nacionalistas.
O fracasso da frente antijaponesa com o Kuomintang ficou evidente a meados da Segunda Guerra Mundial, em que Chiang Kai-shek buscava acordos possíveis com os japoneses para seguir o extermínio de trabalhadores e camponeses comunistas. Apenas quando Mao se viu obrigado pelas circunstâncias (a pressão da luta de massas, que se opunha à trégua com os donos de terra) a abandonar a política de colaboração de classes, inerente à estratégia militar de guerra popular prolongada, é que a China pôde vencer o inimigo externo. Em outras palavras, apenas quando começou a ser superada a limitação programática imposta pela frente popular com a burguesia chinesa – nada particularmente “democrática” – e as travas à luta de classes liberadas pelas próprias massas que passaram a expropriar militares e latifundiários protegidos por Mao, é que se tornou possível a derrota definitiva do imperialismo, que veio junto com a derrota do Kuomintang.
Essa não é uma narrativa sem consequências. Traz lições muito importantes diante das ilusões em frentes de colaboração política – porque é isso que versa a frente “anti-tecnofeudal” – com setores da burguesia. Para além de determinados interesses de competição comercial, não há nenhum segmento da burguesia estadunidense essencialmente contrário ao desenvolvimento das riquezas de Musk, Zuckerberg, Bezos e bilionários quejandos. Os próprios campeões da reverência triunfal a Trump eram, há não muito, apoiadores do Partido Democrata, que inverteu bilhões de dólares do financiamento das big techs, algumas das quais – a Google, a Microsoft – colaboraram diretamente no genocídio do povo palestino em Gaza perpetrado pelo Estado de Israel, sustentado por Joe Biden e Kamala Harris.
A aliança vital para combater a sanha dos bilionários das big techs é a da classe trabalhadora mundial, os milhões de seres humanos que são explorados cotidianamente por estas empresas e que buscam livrar-se das condições de sujeição por meio das greves, mobilizações e campanhas de sindicalização, como é o caso da Geração U nos EUA que enfrentou bravamente a Amazon, a Starbucks, a Tesla e outros mega empresários.
Isso é verdade também para o caso da China. Durand menciona a DeepSeek como um agente que mina a aparência de invencibilidade do Vale do Silício. Não deixa de acrescentar que, na China, as big techs são geralmente forçadas a se adaptarem às metas de desenvolvimento do Estado. A adequação das grandes empresas chinesas aos propósitos do “grande rejuvenescimento” de Xi Jinping não as torna menos capitalistas, nem em sua alta lucratividade privada nem em seus objetivos de exploração e expansão. Quanto ao acesso irrestrito de dados, basta notar que o DeepSeek já foi acusado de ocultar informações sobre o Massacre da Praça Tiananmen, em 1989, e incluir Taiwan como parte da China continental, em exemplos de censura que atendem aos interesses do poder em Pequim.
A China está claramente buscando a liderança em 5G, inteligência artificial e em semicondutores para que possa capturar uma fatia cada vez maior do mercado global. Como afirmam Eli Friedman, Kevin Lin, Rosa Liu e Ashley Smith, em China in Global Capitalism: building international solidarity against imperial rivalry: “As gigantes chinesas da tecnologia, como Tencent, Alibaba, Baidu e ByteDance são diferentes das empresas do Vale do Silício em alguns aspectos importantes, mas estão unidas em seus esforços para produzir tecnologia orientada, acima de tudo, para a mercantilização da informação. Precisamos deixar bem claro que a oposição do Estado chinês à ordem liderada pelos EUA tem a ver com a afirmação de seus interesses no capitalismo global, e não com o avanço de uma política socialmente emancipatória contra esse sistema”. Em outras palavras, o conflito interestatal está sendo significativamente impulsionado pela classe dominante chinesa, assim como a imperialista norte-americana, a fim de garantir a lucratividade de suas respectivas corporações.
Trata-se de um dado muito importante para que o combate aos monopólios tecnológicos não seja absorvido pela ilusão do multilateralismo capitalista, nomeadamente, de que a exploração do trabalho na versão tecnológica chinesa apareça como alternativa à barbárie imperialista dos Musk e Bezos. A derrota do capitalismo é uma tarefa internacional, e envolve a construção de uma força internacionalista de independência de classes para o enfrentamento com as ambições de Cila e Caríbdis das big techs, tanto as de Washington assim como aquelas oriundas de Pequim.