Revista Casa Marx

Guerras, bonapartismos e luta de classes no mundo da crise da hegemonia norte-americana

Revolution Permanente

Publicado originalmente em francês em 05/12/2024 no Révolution Permanente, parte da rede internacional La Izquierda Diario. Publicamos o documento sobre a situação internacional, adotado pelo Comitê Central da Révolution Permanente, que será discutido, debatido e emendado pelos militantes e, posteriormente, submetido à votação no primeiro Congresso da organização nos dias 30 de janeiro, 1º e 2 de fevereiro de 2025.

Introdução

Como temos afirmado desde pelo menos 2022, a situação internacional se acelerou. Seus pontos críticos evidenciam isso: a contínua invasão da Ucrânia pela Rússia, com ventos de guerra entre Moscou e a OTAN no Báltico, no Mar Negro e no Mediterrâneo; a agitação no Oriente Médio, com o massacre humano de Israel em Gaza, o aumento das incursões violentas de colonos na Cisjordânia, os ataques de Jerusalém contra o Hezbollah no Líbano, os ataques dos houthis no Mar Vermelho e as respostas dos imperialismos ocidentais — tudo isso no contexto do confronto entre o Estado sionista e o Irã; o duelo entre os Estados Unidos e a China no Indo-Pacífico, com Taiwan como um possível cenário de uma guerra que também envolveria o Japão e as Coreias. É necessário considerar as influências mútuas entre os diversos palcos geopolíticos e conflitos bélicos. Em especial, a guerra na Ucrânia e a situação no Oriente Médio desestabilizam toda a Eurásia Ocidental, com reverberações globais.

O declínio da hegemonia norte-americana

A proliferação desses focos e as dificuldades dos Estados Unidos em contê-los — e ainda mais em encerrá-los — evidenciam o acentuado declínio da hegemonia econômica, financeira e política do país. A vitória de Trump é uma expressão disso.

O peso econômico dos Estados Unidos na economia mundial vem diminuindo há décadas, recentemente devido à emergência de outras economias, especialmente a da China, o que fez com que a participação dos EUA no PIB mundial caísse drasticamente. A deslocalização, por sua vez, reduziu a importância da produção manufatureira americana no mundo. A ameaça de recorrer massivamente a tarifas, juntamente com a continuidade e o aprofundamento das medidas de restrição tecnológica à China pela administração Biden, mostram um EUA sitiado, em posição defensiva, distante da política de “portas abertas” ou da abertura de mercados que marcou sua ascensão hegemônica no início do século XX ou o salto da globalização nas últimas décadas do mesmo século. Em relação à China, o objetivo dos EUA não é criar condições equitativas, mas garantir, por todos os meios, incluindo intervenções vigorosas nas decisões comerciais e de investimento de empresas privadas, que a China seja contida e que os EUA mantenham sua vantagem decisiva.

Essa situação vem acompanhada de uma mudança drástica na governança do sistema internacional. No auge de seu poder, os EUA exerceram durante décadas uma hegemonia — uma política imperial percebida como garantia de interesses gerais enquanto perseguia seus próprios. Ou, em outras palavras, os EUA não buscavam apenas seus próprios interesses em detrimento de todos os seus rivais, mas asseguravam as condições gerais para a expansão do capitalismo como sistema, algo que também interessava a todos. Sua influência se manifestava nas diversas dimensões do poder: econômico (produção, distribuição e finanças), militar (dissuasão e repressão), e cultural (o chamado soft power), abrangendo ciência, tecnologia, entretenimento, artes e esportes, que juntos moldavam o estilo de vida americano. O American way of life exercia uma atração sobre o resto do mundo. Direção intelectual e moral, diria Gramsci. Em outras palavras, um líder econômico, social e cultural baseado não apenas na força militar, mas na capacidade ideológica de impor aos aliados e até aos adversários as ideias e valores do Estado hegemônico como universais.

O que estamos testemunhando nos últimos anos, pelo menos desde o fim do momento unipolar, é um crescente domínio sem hegemonia. Desde o abuso do privilégio exorbitante do dólar até a extraterritorialidade de seu regime de sanções, além da retirada ou enfraquecimento das instituições multilaterais e o unilateralismo crescente do trumpismo, tudo isso é indicativo. A quantidade de conflitos econômicos, políticos e geopolíticos e guerras tem nessa fonte sua origem primeira e última.

No entanto, os limites do poderio norte-americano são mais visíveis, paradoxalmente, onde ele é mais forte: em seu poderio militar. O papel de liderança mundial dos EUA foi um pilar de segurança desde a Segunda Guerra Mundial. Contudo, apesar da aparente continuidade, o mundo mudou. Nunca antes os Estados Unidos tiveram que lidar com tantos compromissos globais sem os recursos materiais necessários para enfrentar várias crises simultaneamente. Não possuem um exército suficientemente grande ou adequadamente preparado para lutar em duas grandes guerras, especialmente se confrontos com a China e a Rússia estourarem simultaneamente. Ao mesmo tempo, as objeções populares contra guerras intermináveis enfraqueceram a legitimidade do projeto de supremacia mundial impulsionado pelos neoconservadores, dificultando o aumento dos recursos econômicos destinados à política externa. A sobrecarga e o descontentamento popular obrigam os Estados Unidos a reduzir sua projeção global. Como reconheceu recentemente Elbridge Colby, estrategista republicano e fervoroso falcão antichinês, principal autor da Estratégia de Defesa Nacional de 2018 da administração Trump, os dias de “primazia” dos EUA como potência hegemônica mundial chegaram ao fim:

Uma política externa de primazia simplesmente não é viável. Não temos um exército para isso e, mesmo que tivéssemos o orçamento necessário, não poderíamos mobilizá-lo com rapidez suficiente. Enquanto isso, cresce a preocupação com o tamanho dos déficits dos EUA, e muitos alertam sobre o aumento de nossa já elevada carga de dívida. Portanto, a primazia não é uma opção séria.

O crescente recurso à guerra

O declínio da hegemonia norte-americana aumenta o caos mundial e o crescente recurso à guerra. Como temos definido, a guerra da Rússia contra a Ucrânia/OTAN não é do mesmo tipo que as guerras assimétricas dos Estados Unidos e de outras potências, como as do Golfo, a guerra contra o terrorismo ou os conflitos nos Bálcãs no final dos anos 1990 e início dos 2000. Esta é a maior guerra terrestre na Europa desde a Segunda Guerra Mundial e marcou o início de um questionamento aberto, inclusive no campo militar, à ordem mundial liderada pelos Estados Unidos.

Na edição de novembro/dezembro da revista Foreign Affairs, publicada pelo Council on Foreign Relations, think tank de referência nos EUA, a manchete de capa é: “O retorno da guerra total”. E o texto afirma:

Durante a maior parte da segunda metade do século XX, os estrategistas norte-americanos enfrentaram um desafio relativamente estático: uma Guerra Fria em que os conflitos entre superpotências eram congelados pela dissuasão nuclear e apenas esquentavam em combates por procuração, que eram custosos, mas contidos. O colapso da União Soviética encerrou essa era. Nos anos 1990, em Washington, a guerra tornou-se uma questão de formar coalizões para intervir em conflitos pontuais quando “atores malignos” invadiam seus vizinhos, alimentavam violência civil ou étnica ou massacravam civis. Após o choque dos ataques de 11 de setembro de 2001, o foco mudou para organizações terroristas, insurgentes e outros grupos não estatais… A guerra foi uma característica importante do período pós-11 de setembro, mas era um fenômeno muito limitado, frequentemente em pequena escala e travado em locais remotos contra adversários obscuros.

Após a guerra na Ucrânia e a escalada no Oriente Médio, entramos em outra era:

A era da guerra limitada terminou; começou a era do conflito global. De fato, o que o mundo está presenciando hoje se assemelha ao que teóricos do passado chamaram de “guerra total”, na qual os combatentes empregam vastos recursos, mobilizam suas sociedades, priorizam a guerra sobre todas as outras atividades estatais, atacam uma ampla gama de alvos e remodelam suas economias e as de outros países. No entanto, devido às novas tecnologias e aos profundos vínculos da economia globalizada, as guerras de hoje não são uma mera repetição de conflitos antigos.

Desde 2022, todas as grandes potências têm demonstrado disposição para intensificar o militarismo. Sob esse prisma, poderíamos dizer que as consequências globais da guerra na Ucrânia são mais significativas do que a própria guerra. As barreiras políticas à preparação para a guerra, por parte das principais potências e países, começam a se dissolver, apesar dos obstáculos ainda enfrentados a nível dos movimentos de massa.

Ucrânia: o “Verdun” oriental do século XXI

Militarmente, apesar de todos os avanços tecnológicos, a guerra na Ucrânia trouxe de volta as imagens de Verdun: uma guerra de desgaste com centenas de milhares de mortos, semelhante à devastação da Primeira Guerra Mundial.

Não sabemos quantos ucranianos perderam suas vidas até agora, pois esse dado é um segredo de Estado. O site europeu Le Grand Continent estimava, em setembro de 2024: “600.000 russos, 480.000 ucranianos: o saldo humano da guerra na Ucrânia supera 1 milhão de mortos e feridos.” A guerra na Ucrânia é, de longe, a mais mortal para o exército russo desde a Segunda Guerra Mundial. A Rússia perdeu mais combatentes no primeiro ano de guerra na Ucrânia do que em todas as guerras travadas desde 1945. Embora numericamente menores, as perdas ucranianas são proporcionalmente maiores em relação à sua população. Isso representa um grande desafio para o Estado-Maior de Kiev, que enfrenta escassez de homens disponíveis desde o início do conflito. Mais de 6 milhões de ucranianos fugiram do país desde fevereiro de 2022, sendo mais de um terço deles acolhidos por Rússia e Alemanha, segundo a ONU.

Não sabemos nem como nem quando a guerra terminará; o que é certo é que a Ucrânia terminará territorialmente desmembrada, economicamente devastada e humanamente esgotada. Também está claro que a Ucrânia continuará dependendo da ajuda financeira, diplomática e militar do Ocidente para sua reconstrução. O risco de esse enorme país se transformar em um grande estado falido, com o caos se espalhando até as portas da Europa e da própria Rússia, é uma perspectiva sombria do pós-guerra que se prevê. As promessas da União Europeia a Kiev de ser incorporada no bloco provavelmente não se concretizarão, já que os custos da admissão de Kiev são insustentáveis na atual configuração geopolítica e financeira.

É certo que haverá uma futura negociação sobre a Ucrânia. O que não sabemos, nem mesmo Trump, apesar de suas bravatas, é como terminará. Mike Waltz, designado como conselheiro de Segurança Nacional e provável encarregado da questão ucraniana na futura administração, afirmou durante a campanha que era necessário adotar medidas diplomáticas para encerrar a guerra, mas também não descartou intensificar o apoio à Ucrânia caso Putin se mostre pouco cooperativo. Do lado russo, as fortes baixas no front dificultam a aceitação de uma pseudo vitória que levaria apenas a um armistício e não a uma solução duradoura. Além disso, um simples cessar-fogo favorece mais os interesses da Ucrânia, já que, militarmente, está atualmente em desvantagem e preferiria ganhar tempo para resolver seus problemas de pessoal e reabastecer seu arsenal (isso pode mudar se, em dois meses, os avanços da Rússia forem limitados e suas perdas diárias continuarem altas; nesse contexto, um cessar-fogo poderia parecer atraente para Moscou pelos mesmos motivos). O grande ponto de discórdia será o status da Ucrânia territorialmente amputada; Kiev exige de Washington e de seus aliados uma garantia de segurança. Como disse um funcionário ucraniano [1], citado pelo New York Times: “A questão territorial é muito importante, mas continua sendo a segunda questão. A primeira questão são as garantias de segurança.” Se Trump não oferecer a Putin uma vitória clara, será difícil que este aceite um compromisso. O presidente russo corre mais riscos ao encerrar a guerra do que ao continuá-la: ele ainda pode esperar que, em algum momento, a Ucrânia sucumba aos ataques terrestres e aéreos constantes. O que Putin não controla é a reação do futuro presidente dos EUA. Diante de uma recusa, o imprevisível Trump poderia relançar a ajuda militar à Ucrânia. Embora o próximo ocupante da Casa Branca pretenda encerrar esta guerra, todos os cenários continuam abertos.

Do ponto de vista de Moscou, a vitória pode ter um gosto agridoce. Para o Kremlin, a posse direta da Ucrânia (época czarista e União Soviética sob a burocracia stalinista) ou, pelo menos, a forte influência em Kiev (duas primeiras décadas pós-soviéticas) é um certificado de grande potência. Como afirmava ofensivamente Brzezinski em O Grande Tabuleiro: “Sem a Ucrânia, a Rússia deixaria de ser um império euro-asiático.” Mas a crescente subalternidade e dependência da Rússia em relação ao “aliado” chinês, assim como o maior aproveitamento de seus recursos por parte da China, não são boas perspectivas para os desígnios imperiais do Urso russo. Também preocupa a influência crescente de Pequim na antiga Ásia Central soviética, no Ártico ou a competição crescente na África.

Do ponto de vista norte-americano, o balanço — ainda não definitivo — é contrastante. Embora Kiev não tenha caído e a Rússia saia desgastada, a perda de credibilidade dos Estados Unidos perante seus aliados, europeus ou asiáticos, por não vencer a guerra pode ser uma sequela difícil de engolir, ainda mais forte que a retirada caótica do Afeganistão. Além disso, o entendimento funcional, mas crescente, entre Putin e Xi Jinping permite que a Rússia contenha seus custos de guerra e conte com suprimentos pós-guerra, agora essenciais para sua economia de guerra. Por causa da Ucrânia, um subproduto da imprudência estratégica e do triunfalismo pós-Guerra Fria, além da fanfarronice dos neoconservadores contra a Rússia, os EUA enfrentam a parceria sino-russa. Por outro lado, e com fortes implicações estratégicas, Washington pode se orgulhar da ruptura entre Berlim e Moscou, simbolizada pela sabotagem do gasoduto Nord Stream e pelo anunciado envio de mísseis de médio alcance para a Alemanha. Além disso, a ampliação da OTAN para Suécia e Finlândia transforma o mar que borda São Petersburgo e Kaliningrado em uma espécie de “lago Atlântico”, permitindo, com essas incorporações, que, de Escandinávia até a Romênia, se erga um impressionante bloco antirruso, cujos excessos russofóbicos os Estados Unidos tentam conter.

A Nova Nakba e a fuga bélica do estado de Israel

O que estamos presenciando em Gaza é, sem dúvida, uma carnificina humana infernal. No início de novembro, a cifra oficial de mortos palestinos era de 43 mil, mas, segundo várias fontes confiáveis, isso está longe de refletir a catástrofe real. Estimativas da própria ONU, feitas em maio, já indicavam que provavelmente haveria 10 mil pessoas enterradas sob os escombros de Gaza, que não podiam ser contabilizadas. Segundo um artigo publicado no The Guardian, muitas pessoas acreditam que o número real de mortos provavelmente se situe na casa das centenas de milhares. Em julho, a revista médica The Lancet publicou um artigo estimando que cerca de 186 mil mortes no total poderiam ser atribuídas ao conflito em Gaza, ou seja, aproximadamente 7,9% da população. Devi Sridhar, professora de saúde pública global na Universidade de Edimburgo, apontou que, se as mortes continuarem nesse ritmo, o total estimado de mortes até o final do ano poderia alcançar 335.500, ou seja, 15% da população. Sridhar também observou que The Lancet usou uma estimativa conservadora e que os números reais podem ser muito mais altos.

Esses números são assustadores, inclinando cada vez mais estudiosos do Holocausto a falar que o que ocorre em Gaza é, de fato, um genocídio. Uma nova Nakba (catástrofe, em árabe) para os palestinos.

No entanto, apesar da magnitude da destruição humana e material para esvaziar a região de civis por meio da pressão militar e da fome, e da extensão da guerra ao Líbano, com a possível decapitação do Hezbollah, incluindo Hassan Nasrallah, Israel continua sem uma estratégia política que possa converter os sucessos militares em mudanças estratégicas significativas. Por enquanto, Israel se recusa a adotar qualquer medida diplomática destinada a estabilizar o cenário em Gaza, assim como, em nível regional, comprometer-se com a proposta dos EUA, respaldada por Estados árabes pró-Ocidente, de formar uma coalizão regional que reduza a influência do Irã. Sem iniciativas desse tipo, Israel corre o risco de ser arrastado para uma guerra de desgaste perpétua em múltiplos cenários, o que pode ir contra seus interesses e capacidades.

A fuga belicista para frente [2] do Estado sionista responde ao objetivo de ocultar suas fraturas internas, as quais são sem precedentes:

O conflito que opõe o establishment de segurança israelense à extrema-direita ascendente e seus aliados colonos não diz respeito a se Israel deve usar a força em Gaza, cessar a ocupação da Cisjordânia ou fazer concessões para ajudar a encontrar uma solução para o conflito de décadas. Trata-se de um enfrentamento sobre a segurança do Estado israelense, que, para muitos israelenses, é uma batalha sobre sua própria identidade. Israel poderia atender aos alertas dos responsáveis pela segurança… ou poderia continuar seguindo os imperativos da extrema-direita. Esta última opção provocaria mais derramamento de sangue, prejudicaria ainda mais a posição e o apoio de Israel no Ocidente e levaria a um maior isolamento internacional, chegando até ao status de pária.

Atualmente, o declínio da imagem de Israel no mundo inteiro, especialmente nos Estados Unidos, avança significativamente [3]. Como diz Rashid Khalidi, frequentemente descrito como o intelectual palestino mais importante de sua geração e sucessor de Edward Said:

“A opinião pública ocidental voltou-se contra Israel como nunca antes, desde a Declaração Balfour [do Reino Unido, em 1917, a favor de uma pátria judaica na Palestina]. A opinião pública ocidental sempre simpatizou unanimemente com Israel, com pequenas exceções. Em 1982, quando viram muitos edifícios destruídos e muitas crianças mortas [no Líbano], e na primeira Intifada [1987-1992], quando havia muitos tanques enfrentando muitas crianças jogando pedras. Mas, fora isso, o apoio foi abundante. As elites, a opinião pública. Sem exceção, por mais de cem anos. Isso mudou. Pode ser que essa mudança não seja irreversível, mas o tempo corre. Israel criou para si, com seu comportamento desde 7 de outubro, um cenário de pesadelo em nível mundial.” [4]

Regionalmente, os riscos para o Estado sionista são muito altos. No Líbano, por ora, apesar da massiva campanha aérea e da intensificação das incursões terrestres próximas à Linha Azul, o Partido de Deus não parece estar derrotado. Militarmente, graças ao sistema subterrâneo de túneis e bunkers, o exército israelense avança com cautela ao realizar operações terrestres no sul do Líbano. Cientes das derrotas amargas sofridas no verão de 2006, os israelenses estão sondando o terreno pacientemente desta vez. Em parte por isso, o Hezbollah ainda não foi enfraquecido o suficiente militar e politicamente para ser superado por seus rivais internos. Assim, a guerra civil desejada pelos israelenses não parece iminente. Porém, o que está em jogo no sul do Líbano é de vida ou morte para o Hezbollah: o resultado desse combate determinará o destino militar e político do Partido de Deus, não apenas no Líbano, mas em nível regional. Se o Hezbollah demonstrar ser capaz de resistir novamente ao inimigo israelense, poderá manter uma posição dominante nos delicados equilíbrios político-institucionais do país e evitar seu cenário de pesadelo: a criação de uma frente libanesa hostil ao Irã, próxima aos Estados Unidos e a Israel.

Por sua vez, essa profunda modificação do cenário regional afeta como nunca o regime dos aiatolás. O Irã entrou em uma fase de profunda incerteza, caracterizada por inúmeros fatores exógenos e endógenos ao sistema político nacional. Ainda pior, a eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos representa um cenário especialmente preocupante para Teerã. Não devemos esquecer que, durante seu primeiro mandato (2016-2020), as políticas de linha dura de Trump em relação ao Irã significaram a saída dos EUA do acordo nuclear em maio de 2018, a imposição de máxima pressão econômica sobre o Irã e o assassinato de Qasem Soleimani, comandante da Força Quds dos Guardiões da Revolução, em janeiro de 2020. Em Teerã, os líderes estão particularmente preocupados com a intenção da administração entrante de voltar à política de “máxima pressão” destinada a isolar o Irã e enfraquecê-lo financeiramente por meio de sanções severas, incluindo uma aplicação mais rígida das sanções sobre as vendas de petróleo iraniano para a China. O regime teocrático encontra-se em uma encruzilhada crítica. Ao mesmo tempo que deve decidir o momento e a natureza de sua resposta ao ataque de Israel em 26 de outubro, a longo prazo, enfrenta a disjuntiva de buscar apaziguamento e negociações ou intensificar sua confrontação com os Estados Unidos. A primeira opção implicaria moderar suas posições e fazer concessões significativas sobre o programa nuclear iraniano, algo politicamente muito custoso. A segunda opção arrisca o perigo de um conflito mais grave entre Irã e Estados Unidos.A mudança de postura estratégica do Irã, que declara que a fase de “paciência estratégica” e a disposição de não responder às provocações militares de Israel chegou ao fim, como demonstrado pelo ataque com mísseis de 1º de outubro e pela intenção declarada de reagir a qualquer ameaça futura, além da influência dos partidários da linha dura em sua liderança, incluindo a Guarda Revolucionária, inclina-se para a segunda opção. Embora esteja em uma posição de fraqueza, o Irã possui o maior exército do Oriente Médio, uma força blindada substancial e o que parece ser um arsenal significativo de mísseis. Portanto, obrigado a iniciar uma guerra à distância, mirando os campos petrolíferos da Arábia Saudita, não é algo a ser descartado, o que cria uma situação perigosa para Israel e os EUA.

Tomado em conjunto, a sucessão de frentes pode ser a espada de Dâmocles das ambições sionistas. Enquanto o front militar libanês permanece aberto [5] e uma exacerbação da disputa entre Israel e Irã obscurece o horizonte, o conflito mais avançado em Gaza também não está resolvido. As ações de Israel em Gaza apontam para a ocupação da Faixa e a imposição de um governo militar. As consequências práticas dessa política são significativas: Israel assumirá toda a responsabilidade pelos dois milhões de palestinos que vivem em uma zona catastrófica e enfrentará o terrorismo e a guerra de guerrilhas contínuos dos remanescentes do Hamas e de outras facções armadas afiliadas ao “eixo da resistência”. Por sua vez, Netanyahu também está permitindo que a anarquia reine na Cisjordânia, o que poderia levar ao colapso da Autoridade Palestina, percebida como uma ameaça por ser uma base potencial para o estabelecimento de um Estado palestino. A rejeição radical até mesmo à menor sombra desse Estado leva o ministro Bezalel Smotrich, encarregado da “gestão civil” da Cisjordânia, a expressar o programa da extrema direita sionista até o fim: “O ano de 2025 será, com a ajuda de Deus [e de Trump], o ano da soberania na Judeia e Samaria”. A ideia é anexar oficialmente a Cisjordânia (chamada de “Judeia-Samaria” tanto por Smotrich quanto por Myke Huckabee, nomeado embaixador por Trump) a Israel, expulsando sua população palestina.

Junto à guerra à distância com o Irã, apesar de suas impressionantes vitórias táticas, Israel se encontra em um momento delicado. Sua escalada beligerante vai contra a doutrina tradicional de segurança, que enfatiza que deve aspirar a guerras o mais curtas possível devido às suas desvantagens em mão de obra, recursos e profundidade estratégica. Essa extensão excessiva das guerras abre o risco para o Estado sionista de ser arrastado para uma guerra de desgaste perpétua em múltiplos cenários, algo contrário às suas capacidades e interesses ultrarreacionários. Essa fuga beligerante cada vez mais destrutiva poderia abrir uma brecha para a entrada das massas populares da região, em um cenário social, político e militar que, dependendo dos diferentes teatros, poderia mudar a dinâmica do conflito.

Em particular, o martírio sem fim da Palestina e o caos econômico alimentam a raiva contra a ditadura egípcia e outras ditaduras do mundo árabe. El-Sisi destruiu qualquer “amortecedor” entre o Estado e o povo com a eliminação da oposição dos Irmãos Muçulmanos. Isso significa que o regime é brutal e baseado em uma repressão selvagem, mas também é potencialmente vulnerável a movimentos de baixo para cima. Um novo abalo revolucionário como o da Primavera Árabe de 2011, quando ditaduras pró-ocidentais caíram, poderia se transformar na maior ameaça para Israel. Por isso, enquanto nos posicionamos incondicionalmente no campo militar da resistência palestina e lutamos pelo fim dos bombardeios e pela retirada do exército israelense do Líbano sem a menor violação à sua soberania pelo Estado sionista, a questão estratégica fundamental é construir um grande movimento que vincule questões democráticas e sociais, opondo-se a todas as forças imperialistas e seus agentes regionais diretos ou indiretos, enquanto promove a transformação social de baixo para cima por meio da construção de movimentos em que as classes populares sejam os verdadeiros atores de sua emancipação.

Essa não é a estratégia do Hezbollah nem de nenhuma das facções armadas palestinas, que subordinam a luta de libertação nacional aos acordos e compromissos com as burguesias árabes da Arábia Saudita, Catar, Emirados Árabes, ou mesmo da Turquia de Erdogan, que reprime outro grande povo oprimido da região, os curdos, nem ao regime teocrático dos aiatolás do Irã, que mais do que apoiar os palestinos, busca se opor a uma recomposição regional ditada por Israel e os EUA que os marginalizaria. Por isso, concordamos com o que afirma o marxista suíço, especialista no Oriente Médio, Joseph Daher, quando diz:

No entanto, o apoio ao direito de resistência palestina não deve ser confundido com o apoio às perspectivas políticas dos diferentes partidos políticos palestinos. Nenhum desses partidos – Fatah, Hamas, Jihad Islâmica, FPLP, FDLP e outros – oferece uma estratégia política capaz de levar à libertação da Palestina. Os principais partidos políticos palestinos não consideram as massas palestinas, as classes trabalhadoras regionais e os povos oprimidos como as forças capazes de conquistar a libertação da Palestina. Pelo contrário, buscam alianças políticas com as classes dominantes da região e seus regimes para apoiar sua luta política e militar contra Israel. Colaboram com esses regimes e defendem a não intervenção em seus assuntos políticos, mesmo quando esses regimes oprimem suas próprias classes populares e os palestinos dentro de suas fronteiras. [6]

Enquanto avança o cerco contra a China, sua fraqueza interna é central

Embora a China seja a vencedora, por enquanto, da guerra na Ucrânia sem disparar um único tiro e tenha aproveitado a indiferença dos EUA na América Latina, avançando na região [7] e se tornando o principal parceiro comercial da maioria das grandes economias – com exceções como México e Colômbia – sua situação geopolítica e interna se complicou. Se o “Pivô para a Ásia” de Obama foi destinado a melhorar o cerco militar e geoeconômico da China, é fundamentalmente com a presidência de Trump, intensificada e ampliada com Biden, que os EUA tentaram de forma decisiva frear o crescimento do poder chinês por meio de um processo de cerco estratégico, incluindo melhorias em bases militares, alianças e parcerias; restrições em tecnologia; e tentativas de criar acordos comerciais que beneficiassem as potências imperialistas enquanto subvertiam a China.

Em abril de 2024, o exército americano começou a implantar no Indo-Pacífico um novo sistema terrestre de mísseis de alcance intermediário, conhecido como Typhon, que inclui mísseis de cruzeiro Tomahawk, mísseis interceptores polivalentes Supersonic Standard Missile-6 (SM-6) e o sistema de lançamento vertical terrestre Mark 41. É a primeira vez que Washington introduz um sistema ofensivo de mísseis terrestres de alcance médio em qualquer parte do mundo desde que se retirou unilateralmente do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário com a Rússia em 2019, que havia proibido o uso de todos esses mísseis. Por sua vez, a equipe de Biden coordenou alianças globais que incluem a OTAN, AUKUS e o Quad contra a China, como nenhuma administração desde Reagan ou George H.W. Bush. Tanto é que, em um balanço de sua doutrina publicado na Foreign Affairs de setembro/outubro, afirma-se:

“Diferente do presidente anterior, Biden incrustou sua política em relação à China em uma vigorosa matriz de alianças novas e restauradas em toda a Ásia. Pode-se dizer que ele conseguiu o tão desejado ’pivô’ dos EUA para a região, sem usar esse termo. Por mais de duas décadas, os líderes de Washington falaram sobre a centralidade da Ásia no século XXI e a necessidade de uma mudança correspondente na política externa americana. Mas a administração de George W. Bush foi desviada pela sua onipresente ’guerra global contra o terror’. A administração Obama reconheceu a importância de uma presença estratégica mais forte na Ásia, mas não a alcançou. O desdém da administração Trump pelas alianças enfraqueceu as relações em toda a região. A administração Biden concretizou o pivô.” [8]

Este é, embora menos visível do que seus fracassos, um dos mais importantes êxitos de política externa. Podemos dizer que uma condição prévia para a afirmação de Pequim como potência planetária é a disponibilidade de uma esfera de influência asiática. O acesso aos mares da China, a Taiwan e, posteriormente, ao Indo-Pacífico é a primeira linha de penetração. Esse acesso, até agora, está bloqueado pelos Estados Unidos e seus parceiros asiáticos, com o apoio de alguns países da OTAN: Reino Unido, sobretudo; depois França (uma potência residente no Pacífico); Itália (cujo único porta-aviões, o Cavour, esteve nos mares da China, mas sem cruzar o estreito de Taiwan), e até mesmo Alemanha. Coincidentemente, todas essas são antigas potências coloniais que, até os primórdios do século XX, haviam se apropriado dos restos do Império Qing.

Mas essa pressão também se exerce, de forma brutal, no plano tecnológico, como já explicamos em outros artigos. A microeletrônica é fundamental porque é nesse campo, mais do que em qualquer outro, que se manifesta a aspiração básica do poder estatal. Em tecnologia, sobretudo, os Estados Unidos devem continuar sendo não apenas fortes, mas dominantes. Como explicou a secretária do Tesouro, Janet Yellen, em um discurso franco, Washington vê muitas áreas em que a China pode crescer sem desafiar a liderança americana. Mas qualquer avanço em áreas mais sensíveis será respondido com contramedidas por parte dos Estados Unidos. Como vemos, trata-se de uma limitação fundamental de sua soberania, que a China rejeita categoricamente. Hoje, o capitalismo chinês enfrenta um ambiente inegavelmente hostil. O Japão conseguiu superar o protecionismo dos governos ocidentais construindo fábricas nos Estados Unidos, na Europa e em outros locais. Essa opção é extremamente problemática para a China, como consequência das políticas de desvinculação e contenção lideradas pelos Estados Unidos, que continuam a se intensificar. As fábricas chinesas não podem ser instaladas em solo americano por motivos de “segurança nacional”. Em vez disso, precisam recorrer ao sudeste asiático e à América Latina. Mas até mesmo essas fábricas chinesas no exterior estão sendo alvo de sanções comerciais por parte do governo americano. [9]

Embora o contexto externo tenha mudado rapidamente, o flanco interno ameaça se tornar o ponto mais frágil da situação chinesa. Cada vez mais, a sociedade chinesa se vê presa por uma perda de fé no futuro, um temor de que ele não seja melhor para a nova geração em comparação à anterior, especialmente após o trauma dos rigorosos confinamentos da COVID, sobretudo em Xangai, e a frágil recuperação econômica posterior. Por um lado, aqueles que têm recursos decidiram se exilar, acompanhados pela fuga de capital financeiro. Assim, os chineses se tornaram a quarta nacionalidade, depois de três outras latino-americanas, a cruzar a terrível selva do Darién, entre Colômbia e Panamá, tentando emigrar para os Estados Unidos [10]. Muitos ricos se exilam em Tóquio ou Singapura, atentos aos tempos atuais.
Internamente, o panorama começa a se obscurecer. A desaceleração do mercado imobiliário chinês, combinada com a crise financeira dos governos locais, afetou o emprego. Dados oficiais e extraoficiais mostram aumentos em diversos indicadores, desde tensões no mercado de trabalho e execuções hipotecárias até protestos trabalhistas, suicídios, criminalidade e violência aleatória. O alto desemprego juvenil é o principal problema para Xi. Muitos jovens chineses estão desiludidos, sem receber o que o país lhes prometeu na juventude. Embora isso não tenha gerado protestos até o momento, muitos jovens optam por “cruzar os braços” ou se tornam cínicos, referindo-se à tendência de abandonar os estudos para escapar da pressão laboral e familiar. Preocupante para o Partido, as percepções sobre a desigualdade entre ricos e pobres, entre quadros e massas, estão se tornando crenças generalizadas. Uma pesquisa realizada a cada cinco anos mostra uma notável mudança de sentimento na China pela primeira vez em 20 anos, reflexo de uma mudança substancial na economia, nas percepções e nas expectativas da população. Nas três edições anteriores, muitos indicaram acreditar que a mobilidade ascendente dependia do mérito individual. A pesquisa de 2023 mostrou uma mudança marcante: os entrevistados agora veem “características da ordem social não baseadas no mérito, como desigualdade de oportunidades, discriminação e dependência de conexões, como determinantes relativamente mais importantes para que alguém seja pobre ou rico” em comparação com o passado.

O risco é que uma desaceleração prolongada do crescimento econômico comprometa a coesão social, um terreno com poucos precedentes desde que Deng Xiaoping abriu a China ao desenvolvimento capitalista acelerado no final dos anos 1970. Como apontam as conclusões do estudo citado anteriormente: “…a legitimidade acumulada pelos dirigentes ao longo de décadas de crescimento econômico sustentado e melhoria no padrão de vida parece estar começando a ser abalada.” [11] Não por acaso, agora, em seus discursos, Xi se preocupa com o fato de que a vigilância dos funcionários tenha enfraquecido após anos de prosperidade, o que faz temer uma decadência ao estilo soviético.

Do ponto de vista da teoria marxista do desenvolvimento desigual e combinado, esses contratempos eram esperados. Como diz Claude Serfati:

A ascensão da China entre as nações dominantes ocorreu em algumas décadas, ilustrando plenamente essa compreensão do tempo próprio do desenvolvimento desigual e combinado, o que permitiu que ela ’saltasse etapas’ e se instalasse como um rival econômico direto dos Estados Unidos no final do século XX. [12]

Isso, de alguma forma, tem um custo. Como afirma o sociólogo Wang Feng:

A China, agora um país de renda média-alta, enfrenta uma série de obstáculos únicos. Não posso deixar de sentir o peso de quatro décadas de hiper crescimento, que resultaram em uma sociedade muito desigual, com desigualdades econômicas que vão desde a renda até a riqueza. Embora a renda per capita ainda seja um quarto da dos Estados Unidos, a China se tornou o lar de um número comparável de bilionários em apenas algumas décadas, ganhando a reputação de ser uma das sociedades mais desiguais do mundo. Ao contrário dos Estados Unidos, onde a acumulação de riqueza e desigualdade levaram décadas, se não séculos, a China alcançou esse nível de desigualdade em um período relativamente curto. [13]

Nesse mesmo sentido, Romaric Godin afirma que a China

… enfrenta os mesmos becos sem saída que os países ocidentais avançados, como o excesso de capacidade industrial, o esgotamento da financeirização e os limites do crescimento tecnológico. A China conseguiu evitar todas as crises desde sua transição para o capitalismo nos anos 1980. Evitou o destino dos países da antiga URSS e não foi arrastada pelas crises de 2001 e 2008. Mas, há cerca de dez anos, tem sido capturada pela crise do capitalismo global, do qual se tornou um elo essencial. A velocidade de seu desenvolvimento teve, portanto, um inconveniente: chegou ao beco sem saída em que os países avançados se encontram rápido demais para o gosto de seus dirigentes. Na China, como em qualquer lugar, a necessidade contínua de crescimento do capital entra em conflito com as condições para alcançá-lo. Só resta a pressa, que se pratica aqui como em todo lugar.

Europa e, especialmente, a Alemanha, no olho da tempestade

A União Europeia (UE) encontra-se cada vez mais presa entre a rivalidade EUA-China e pode estar entrando em uma era de declínio econômico secular. Em setembro, o ex-presidente do BCE e primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, alguém que personifica profundamente o establishment da UE, alertou que a União enfrenta uma ameaça à sua própria existência, a menos que comece a reconhecer a gravidade do seu declínio econômico. Seu principal motor, a Alemanha, está em uma crise estrutural de grandes proporções. Para agravar este panorama sombrio, a recente vitória de Trump e suas consequências vão afetar gravemente a Europa.

Os principais países europeus não se prepararam para a vitória de Trump, mesmo que ela fosse previsível. A proclamada “autonomia estratégica” de Macron não avançou absolutamente nada. Apesar dos esforços dos líderes europeus em apresentar uma frente unida perante a perplexidade geral, é mais provável que surja uma competição entre os líderes atuais e futuros da UE para se tornarem o aliado europeu preferido de Trump. França e Alemanha, e seus líderes acuados, estão demasiadamente preocupados consigo mesmos para oferecer qualquer tipo de liderança. Ao contrário de Trump, Macron está no crepúsculo de sua presidência e em minoria parlamentar, enquanto a coalizão federal que governou a Alemanha por quase dois anos e onze meses entrou em colapso. Isso não acontecia há mais de quarenta anos, desde 1982, quando o FDP abandonou a coalizão liderada por Helmut Schmidt para se aliar à CDU de Helmut Kohl.

A Europa está despertando para uma realidade em que as tarifas comerciais dos EUA, juntamente com uma possível política destinada a desvalorizar o dólar, irão corroer ainda mais a posição competitiva de suas empresas manufatureiras. Isso pode levar parte do setor manufatureiro alemão à beira do abismo. A UE está mal preparada para este embate, pois tornou-se “viciada” na demanda americana. Os Estados Unidos são, de longe, o maior parceiro exportador da UE. Contrariando a visão de que a UE depende dos EUA para segurança e da China para comércio, a realidade é que a dependência dos EUA cresceu em ambos os terrenos. Em 2023, a UE exportou pouco mais de 500 bilhões de euros para os EUA, segundo dados da Eurostat. O valor total do superávit comercial da UE com os EUA também aumentou. No ano passado, a UE registrou um superávit de 158 bilhões de euros no comércio de bens com os EUA. Esta cifra contrasta com o superávit comercial global da UE, ligeiramente inferior a 38 bilhões de euros no mesmo ano. As exportações para os EUA foram especialmente importantes para compensar a balança comercial negativa com a China, que se deteriorou ainda mais desde a pandemia. Isso tudo deixa a UE vulnerável a figuras como Trump, não apenas na indústria automotiva (Trump tem obsessão com a indústria automobilística alemã desde sua primeira presidência), mas também na farmacêutica, um dos novos setores em que as empresas europeias têm relativo sucesso, mas que depende fortemente da demanda americana.

A novidade, diferente da crise da zona do euro após 2008, é que a Alemanha, o coração da Europa, está no centro do problema. Como mencionado, a crise alemã é estrutural, agravada pela emergência pandêmica e, logo em seguida, pela invasão russa, que pegaram Berlim desprevenida. O efeito mais evidente é a perda de prestígio e influência de Berlim no exterior. O país entrou em um mundo perigoso em que o guarda-chuva militar americano, pilar insubstituível da segurança alemã, é menos confiável do que no passado; a pressão ocidental e o sabotagem do gasoduto báltico Nord Stream sancionaram a ruptura indefinida do vínculo energético com a Rússia, essencial para alimentar a indústria nacional com gás a preços baixos; a conexão comercial com o mercado chinês está instável e o eixo franco-alemão, outrora pilar do sistema europeu, mergulhou em uma crise profunda. Tudo isso ameaça o domínio da esfera de influência geoeconômica informal alemã. A gravidade da situação atual deveria obrigar Berlim a se preparar para um contexto de conflitos sistêmicos persistentes e, principalmente, a desenvolver uma nova visão do mundo. Mas o estado federal, estruturado para operar em uma realidade onde a guerra era obsoleta, encontra-se completamente desorientado.

O espectro da desindustrialização paira sobre a máquina de produção alemã. A Alemanha está se tornando cada vez menos atraente para muitas empresas (o investimento estrangeiro direto na República Federal caiu significativamente nos últimos quatro anos). Gigantes alemães como a BASF estão gastando cada vez mais no exterior e menos internamente. Mas o ponto de inflexão foi a decisão da Volkswagen de fechar três fábricas na Alemanha, algo inédito em seus 87 anos de história. Isso causou um abalo político e econômico, não apenas na indústria automotiva, mas em toda a Europa. A Volkswagen, na Alemanha, é como a GM nos Estados Unidos. Contudo, nos últimos tempos, a indústria automotiva alemã tem se recusado a reconhecer a transformação representada pelos carros elétricos e investir nessa nova tecnologia, insistindo nos motores a diesel. Os gigantes automotivos chineses, subsidiados por Pequim, têm quase uma década de vantagem tecnológica, um atraso muito difícil de ser recuperado.

A crise industrial alemã reflete a crise da UE. Esta adotou um regime de proteção de dados muito restritivo, que não favorece em nada o desenvolvimento da inteligência artificial. Possui um sistema bancário que está mais fragmentado hoje do que há 20 anos. Está ficando para trás nos gastos com pesquisa e desenvolvimento. De forma geral, pode-se dizer que a UE está presa às indústrias do passado, à engenharia mecânica do século XX. As tendências do século XXI, com o forte avanço da digitalização, a crise da globalização e o aumento da imigração, afetam-na fortemente. A ascensão da extrema-direita é uma resposta reacionária a tudo isso. É provável que, diante do impasse, a Alemanha reaja à crise de competitividade de sua indústria automotiva com medidas protecionistas. A França se protege da indústria tecnológica americana. Mas uma saída ofensiva parece cada vez mais difícil: a UE não consegue chegar a um consenso sobre a reforma econômica que permitiria um salto na competição capitalista, como a união dos mercados de capitais respaldada por um eurobônus soberano único. As diferenças e interesses nacionais se opõem a esse passo necessário para criar uma potência econômica continental. A construção burguesa (utópica e reacionária) da UE pode não apenas encontrar seu limite, mas começar a retroceder.

Esta crise estrutural, ligada à forte perda de consenso da classe dirigente, abre uma crise orgânica evidente. Parafraseando livremente Gramsci, poderíamos dizer que a velha Alemanha pós-nazista, economicista, pós-histórica e geopoliticamente inerte está desaparecendo, enquanto a nova luta está por emergir. Hoje, encontra-se no túnel da crise, que ainda não permite vislumbrar seus contornos. Por sua vez, a anexação imperialista da antiga RDA retorna como um bumerangue político. O Anschluss significou, na década de 1990, uma brutal desindustrialização, através da selvagem privatização das empresas do Leste (nos cinco primeiros anos da reunificação, desapareceram 3,4 milhões de empregos em um país de 16 milhões de habitantes, dos quais 9,7 milhões tinham emprego). O ressentimento contra o Oeste resulta no fortalecimento da Alternative für Deutschland (AfD), atualmente o segundo partido mais popular do país, que parece se beneficiar da persistente demonização por parte das instituições de Berlim. A AfD questiona a integração da República Federal ao Ocidente. Pela esquerda, Sahra Wagenknecht rompe com o Die Linke e cria o BSW, um conservadorismo de esquerda, apesar do oxímoro. Embora a líder do partido tenha repetido que uma aliança hipotética com a AfD é uma “linha vermelha” que jamais cruzaria, compartilha com os neonazistas uma cruzada contra a imigração, majoritariamente de origem muçulmana, e a denúncia da OTAN e da guerra da OTAN contra a Rússia. De lados distintos, mas coincidentes, expressam uma dupla ruptura geopolítica: com a antiga Bundesrepublik e com o Ocidente liderado pelos Estados Unidos. Há uma demanda por romper com a asfixia econômica imposta pelos EUA, correndo o risco de gerar no país tensões políticas e sociais perigosas para a estabilidade do imperialismo alemão.

As fragilidades do tecido social alemão não são passageiras e afetam a capacidade do Estado federal de reverter o declínio da Bundeswehr. Os funcionários de Berlim falam abertamente sobre o fim da Pax Americana e começam a aceitar a ideia de que a guerra já não é um cenário impensável. Falar de uma bomba atômica alemã já não é tabu. Boris Pistorius, ministro da Defesa, busca reorganizar o aparato de segurança de cima para baixo, mas enfrenta uma resistência interna considerável. O aspecto mais preocupante é a crise no recrutamento. Os jovens alemães não querem usar uniforme. Os pedidos para ingressar nas Forças Armadas diminuem ano após ano e, por consequência, a idade média dos soldados é cada vez maior (33,5 anos, cinco a mais do que em 2010). Nas palavras do general Markus Kurczyk:

“Trata-se de saber se temos pessoas dispostas a ir à guerra pela Alemanha, dispostas a ir até o fim do mundo para defender suas convicções e nosso sistema de valores. (…) Na Bundeswehr, é necessário um certo percentual de pessoas muito fortes e resistentes, dispostas a matar e, se necessário, a morrer. Precisamos encontrá-las. Nossa sociedade passa há trinta anos se convencendo de que a violência não é necessária, prevenindo-a de todas as formas desde o jardim de infância. Devemos voltar a ensinar os jovens como funciona a violência.”

Em resposta, o gabinete alemão – antes de implodir – aprovou um projeto de lei que permitiria ao exército avaliar a preparação dos jovens de 18 anos do país para servir na Bundeswehr, buscando aumentar o número de tropas para cumprir as obrigações da OTAN. Não é ainda a restauração do serviço militar obrigatório, mas é o primeiro passo que a Alemanha deveria dar para expandir o serviço nacional e, com ele, suas forças armadas.

A combinação de fatores críticos que estamos destacando, junto ao fato de que, aconteça o que acontecer na Ucrânia, serão os europeus a suportar o maior peso, pode acelerar as tendências centrífugas da UE. Por ora, diferentemente do período Trump I e da liderança de Merkel na Alemanha, está claro que não há sequer um piloto. As declarações da presidente do BCE, Christine Lagarde, disposta a “Comprar Americano” para evitar uma guerra comercial com os EUA, mostram o terror de parte da burguesia europeia em relação ao mundo que está por vir. O continente europeu encontra-se possivelmente no epicentro da crise política internacional. É fundamental que o proletariado tome consciência rapidamente da situação e de seus perigos, assim como de uma resposta antes que suas forças se degradem e sua consciência seja mais e mais invadida por diferentes formas de chauvinismo. Nesse cenário, os revolucionários devem multiplicar a propaganda dos Estados Unidos Socialistas da Europa, como uma arma contra a Europa do Capital e contra todo o veneno nacionalista da extrema-direita dentro da UE ou de potências nacionalistas retrógradas como a Rússia.

A periferia capitalista na disputa global

Após o fim da Guerra Fria, com a extinção da noção de Terceiro Mundo, a implosão do segundo (ex-URSS e Europa Oriental, bem como a transformação capitalista da China) levou à imposição do termo “Sul Global” para descrever coletivamente os países em desenvolvimento, geralmente localizados no hemisfério sul, embora não exclusivamente. Inclui regiões como América Latina, África, partes da Ásia e Oceania. Este termo destaca aspectos econômicos, políticos e sociais que diferenciam essas nações dos países desenvolvidos do “Norte Global” (Europa, América do Norte, Japão, etc.). Salvo exceções como a China, com características imperialistas, trata-se, em geral, de países que os marxistas qualificam como dependentes até semicoloniais ou coloniais, em função de sua hierarquia subordinada na ordem mundial dominada pelo imperialismo. Levando em conta as realidades incrivelmente variadas dentro dessa categoria, exemplificaremos três casos – com diferentes graus de autonomia estatal – que mostram a importância do que está em jogo nesses países no contexto da disputa global.

A Índia, porta-bandeira do Sul Global

Embora a Índia ainda esteja longe de se tornar a nova China, muito menos um país desenvolvido, é tratada como uma das protagonistas do século XXI. Autoproclama-se porta-bandeira do Sul Global, com o objetivo de acelerar o fim da ordem mundial (ou do que resta dela) fundada em 1945 pelos EUA, buscando uma ordem multipolar. Uma nova ordem, com Délhi como polo sul-asiático, com uma esfera de influência regional e ramificações em todos os continentes, graças também à diáspora centrada no Golfo (9 milhões) e nos Estados Unidos (5 milhões). Para se alinhar às suas grandes ambições, iniciou a construção de uma marinha capaz de penetrar no “redescoberto” Oceano Índico, projetando portos comerciais de classe mundial como complemento a Bombaim. Seu crescente protagonismo na cena internacional, junto com a afirmação da China e a “asiatização” da Rússia, resultado da aventura ucraniana, está dando origem a um triângulo de potências em competição, mas unidas por uma ideia comum: reconhecem-se mutuamente como Estados de civilização alternativos ao Ocidente. Os três buscam penetrar no Sul Global, explorando seu ressentimento anticolonial para seus próprios fins. A plataforma mais avançada nesse sentido é o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), ampliada a um grupo numeroso de nações com status de “países-parceiros”, que eventualmente poderiam se tornar membros plenos dessa associação em expansão. Mas sua recente cúpula em Kazan, Rússia, não apresentou nenhum desafio à ordem financeira internacional dirigida pelos EUA e pelas principais potências imperialistas: não se anunciou a criação de uma moeda BRICS, nem de um sistema alternativo de registro de pagamentos e transferências entre os membros do bloco em oposição ao vigente no sistema internacional – o Swift –, ou seja, nenhuma medida que desafiasse a hegemonia do dólar.

O que surpreende na Índia são os múltiplos alinhamentos que ela articula em função de suas ambições geopolíticas. Oferece-se aos Estados Unidos quando útil, especialmente na contenção da China, beneficiando-se enormemente. Assim, em 2016, os EUA estabeleceram uma Grande Parceria de Defesa com a Índia para elevar sua capacidade militar e posicioná-la como um “fornecedor líquido de segurança” no Indo-Pacífico. Este acordo fornece à Índia “acesso sem licença” à compra de tecnologias militares supervisionadas pelo Departamento de Comércio. O comércio de defesa militar com a Índia, coordenado pelo Escritório de Assuntos Político-Militares dos EUA, aumentou de quase zero em 2008 para mais de 20 bilhões de dólares em 2020. Por outro lado, mantém-se próxima da Rússia, não só por oportunismo energético e militar, mas também para evitar que a China a esmague com seu peso econômico. Com Moscou, planeja grandiosos corredores pan-asiáticos como alternativa aos chineses. Contudo, não fecha as portas para Pequim, apostando que os americanos e europeus, mais cedo ou mais tarde, chegarão a um compromisso para facilitar uma transição hegemônica pacífica que legitime suas respectivas esferas de influência, uma ilusão que nem Moscou nem Pequim compartilham.

Por ora, essa estratégia concede a ele uma perspectiva que utiliza para alcançar uma coesão interna muito complicada pelas fraturas sociais e étnicas do país, exacerbadas pelo nacionalismo hinduísta de Modi, permitindo-lhe jogar na liga dos grandes, com o risco de parecer mais do que é: seu atraso econômico e militar pode ser uma espada de Dâmocles para suas ambições.

Argentina e o experimento libertário

Milei é o primeiro presidente de um país importante a assumir o governo com uma agenda explicitamente libertária em termos ideológicos e programáticos. Sob seu governo, o país está sob a ditadura do capital financeiro, das grandes corporações extrativistas estrangeiras e da elite da burguesia nacional. Seu plano é destruir o máximo possível do que Gramsci chamava de “estado ampliado”, que, na Argentina, um dos países de maior desenvolvimento da região, foi fundamental para um país do tipo “dependente com traços semicoloniais”. O libertário busca transformá-lo em uma semicolônia plena dos Estados Unidos, como reflete sua proposta de dolarizar a economia, ainda não implementada.

A brutalidade do ajuste dividiu a classe média, com setores mais altos apoiando o governo, enquanto os setores médios e baixos ecoam favoravelmente qualquer oposição ao governo. Além disso, um setor significativo da burguesia que inicialmente o apoiou agora se opõe à abertura indiscriminada da economia. Em menos de um ano de governo, os sindicatos e organizações trabalhistas realizaram uma greve geral de 24 horas, uma greve geral do transporte, exceto ônibus, diversos conflitos setoriais, marchas constantes de aposentados contra a redução de suas já pequenas pensões, entre outros.

Apesar disso, diante do plano de Milei, que promove uma transformação drástica do papel estatal na economia e nos direitos trabalhistas, a burocracia sindical e o peronismo (partido histórico das massas populares na Argentina) evitam convocar uma ação unificada de luta, temendo que, se o movimento operário se unificar, mesmo em ações de pressão, possa sair do controle devido à insatisfação existente. O novo fenômeno é a tendência ao surgimento do movimento estudantil, que foi surpreendente e generalizado, com duas marchas massivas de entre meio milhão e um milhão de pessoas em defesa da Universidade. Após o veto parlamentar a uma lei que aumentava o salário dos professores, os estudantes ocuparam amplamente as faculdades, inclusive, e pela primeira vez, as universidades “novas” na Grande Buenos Aires, majoritariamente compostas por estudantes de famílias trabalhadoras ou trabalhadores-estudantes. Um reflexo do clima de combatividade é o canto “universidade dos trabalhadores, quem não gosta, que se dane”, comum entre os estudantes.

Nesse cenário de crise e polarização, o peronismo, que sempre desempenhou um papel central na contenção das massas – tanto frente ao colapso de 2001, que gerou jornadas revolucionárias e derrubou um governo eleito, quanto contra o ajuste da direita de Macri em 2018 – está muito enfraquecido após a última gestão desastrosa. Se uma dinâmica de mobilização generalizada se abrir, enfrentará muito mais dificuldades do que no passado para conter as massas. Por enquanto, embora a luta de classes tenha tido múltiplas expressões durante este primeiro ano, sem predomínio de avanços nem derrotas generalizadas, ainda é o elemento mais atrasado.

Considerando todos esses fatores, se uma ação de massas espontânea eclodir, poderia abrir uma situação pré-revolucionária. A existência na Argentina de um espaço político e eleitoral, embora minoritário, de extrema-esquerda é um elemento distintivo internacionalmente em termos de organização de vanguarda. A presença do PTS como principal corrente de extrema-esquerda, com figuras de alcance nacional como Myriam Bregman e Nicolás del Caño, além de forte estruturação em setores da classe trabalhadora e do movimento estudantil, e com uma presença ideológica respeitada no debate público, pode ser um elemento significativo.

Se a classe trabalhadora e as massas populares conseguirem, por meio da luta de classes, colocar o governo em xeque, isso terá impacto não apenas na região, mas internacionalmente.

África convulsionada na disputa entre potências

É provável que a África, que esteve na periferia dos assuntos mundiais nas últimas décadas, ganhe drasticamente em importância como zona geopolítica nas próximas décadas.

A contínua presença chinesa em amplas áreas da África Oriental e a crescente influência da Rússia na região do Sahel, assim como a relevância geopolítica da Turquia em ambas as regiões, contrastam com o declínio de influência do Ocidente. Atualmente, a UE está tentando negociar acordos com Estados individuais do Magreb, seguindo o modelo do acordo UE-Turquia, que estipula que esses Estados limitarão a migração de suas costas pelo Mediterrâneo em direção à Europa, em troca de apoio logístico e financeiro dos europeus. No entanto, os imperialismos europeus estão em uma posição vulnerável, suscetíveis à chantagem de governos autoritários da região. As demandas do Egito ao Marrocos aumentarão, e os pagamentos aos governantes do outro lado do Mediterrâneo crescerão constantemente sem que a migração ilegal seja efetivamente detida. No melhor dos casos, ela será desacelerada e reduzida. Mas é difícil que chegue ao fim, especialmente porque isso arruinaria um modelo econômico dos países do Norte da África.

Até recentemente, políticos franceses acreditavam que suas relações pós-coloniais com a África Ocidental seriam suficientes para influenciar os acontecimentos na região. No entanto, o ressentimento anticolonial foi facilmente usado por militares que chegaram ao poder por meio de golpes para expulsar soldados franceses da região do Sahel.

Esses acontecimentos demonstram um sentimento de rejeição contra os antigos colonizadores em amplos setores da população. Tanto no caso do Sahel quanto na abstenção da maioria dos Estados africanos na resolução da ONU condenando a Rússia pela guerra contra a Ucrânia, percebe-se a distância que os Estados africanos mantêm do Ocidente. O sentimento anticolonialista é reacendido frente às políticas neocolonialistas das multinacionais europeias e norte-americanas, que priorizam seus lucros imediatos, deixando espaços devastados e envenenados na África. Isso se soma ao racismo presente em quase todos os países europeus, combinado com a ideia de que a população africana em rápido crescimento é uma ameaça para a Europa. Essas ideias ultra-reacionárias ignoram que a maioria dos migrantes africanos são deslocados internos e que as mudanças climáticas, que afetam principalmente a África, foram causadas principalmente pela industrialização do Norte rico.

Diferentemente das potências ocidentais, Putin e Xi Jinping se beneficiam desse ambiente, pois Rússia e China não figuram na memória colonial da África. Isso coloca os imperialismos europeus diante de um dilema: a desconfiança política impede que capitalizem o fato de serem o principal parceiro comercial da África e de dependerem da cooperação dos Estados africanos para conter movimentos migratórios. Além disso, muitos desses Estados poderiam ser alternativas sustentáveis à Rússia e à China como fornecedores de matérias-primas para a Europa. O declínio europeu se reflete nesse terreno, onde a política de “Europa fortaleza” corre o risco de deixar a UE para trás na nova corrida pela África.

Essa perda de influência das potências ocidentais, especialmente da Europa e, em particular, da França, cujo “quintal” era a África, coloca a nova corrida pelo continente negro como uma vanguarda da chamada “ordem multipolar”, buscada por Rússia e China. No entanto, longe de ser uma alternativa progressista aos antigos imperialismos, este é um bloco capitalista igualmente reacionário que persegue seus próprios interesses imperiais. Enquanto as potências ocidentais escondem seus objetivos imperialistas sob o pretexto de “defender a democracia”, Putin utiliza uma retórica “anticolonial” para expandir sua influência geopolítica em benefício do capitalismo russo. Tanto a Rússia quanto a China buscam se apropriar dos recursos estratégicos da África, sendo que a China, por exemplo, impõe condições severas como principal credor de muitos países africanos. Essas ações estão nos antípodas dos interesses dos trabalhadores, camponeses e povos oprimidos da África e do mundo.

Ainda que os trabalhadores representem uma minoria da força de trabalho na África, após décadas de globalização capitalista, sua presença tem crescido (estima-se que esse grupo corresponda a 15% a 20% da população economicamente ativa em alguns países). Espalhados pela indústria, mineração, serviços públicos, educação, saúde, administração pública, comércio e manufatura em todo o continente, desempenham um papel preponderante, com uma concentração significativa em setores específicos devido à abundância de recursos naturais (por exemplo, mineração na África do Sul ou petróleo na Nigéria). Este novo proletariado africano, ligado ao das antigas metrópoles imperialistas pela migração, está destinado a desempenhar um papel central no despertar africano que se anuncia.

Economia mundial: Da crescente fragmentação do mercado global à crise de supercapacidade da China

A era mais recente da globalização parece ter chegado ao fim. A relação entre as exportações mundiais de bens e serviços e o PIB global atingiu seu pico em 2008 e tem apresentado tendência de queda desde então. Segundo o Banco Mundial, o investimento estrangeiro direto alcançou o máximo em 2007, com 5,3% do PIB global, caindo para 1,3% em 2020. As duas maiores economias do mundo, China e Estados Unidos, tornaram-se cada vez mais hostis, buscando reduzir sua interdependência em bens e serviços. Durante a década de 2010, a globalização se fragmentou ao longo de linhas geopolíticas: em 2023, cerca de 3.000 medidas restritivas ao comércio foram impostas, quase o triplo do registrado em 2019. A desglobalização está em andamento. Kristalina Georgieva, reeleita para um segundo mandato à frente do FMI, está preocupada:

A fragmentação geoeconômica está se aprofundando à medida que os países ajustam os fluxos comerciais e de capital. Os riscos climáticos estão aumentando e já afetam os resultados econômicos, desde a produtividade agrícola até a confiabilidade do transporte e a disponibilidade e o custo dos seguros. Esses riscos podem limitar o desenvolvimento de regiões com maior potencial demográfico, como a África subsaariana.

Com a palavra “fragmentação” do comércio e do investimento globais, Georgieva descreve a realidade de que as principais potências econômicas estão caminhando para o protecionismo, com tarifas, proibições de exportação e restrições comerciais. Isso tudo começou antes mesmo da posse de Trump e seu projeto de intensificação da guerra econômica, não apenas contra a China, mas também contra a UE, como vimos.

As perspectivas para a década são sombrias. A própria Georgieva apresenta uma visão pessimista da economia mundial em 2024 e para o restante desta terceira década do século XXI. O que nos espera é uma “década pouco dinâmica e decepcionante”. De fato, “sem uma correção de curso, estamos… caminhando para uns anos vinte insossos”. Essas previsões correspondem à análise da economia global feita pelo conhecido economista marxista Michael Roberts, que afirma:

…as principais economias capitalistas estão em algo que eu chamo de uma Longa Depressão desde pelo menos 2008-2009. Refiro-me ao fato de que as taxas de crescimento do PIB real vêm desacelerando ao longo do século XXI, junto com o menor crescimento do investimento e do comércio. E, após cada recessão ou depressão (2001, 2008-2009 e 2020), o crescimento subsequente da produção, do investimento e do comércio não retorna aos níveis anteriores, mas se recupera com uma tendência muito mais baixa. Essa Longa Depressão só aconteceu duas vezes antes na história do capitalismo moderno: no final do século XIX (nos Estados Unidos, de 1873 a 1895); na Grande Depressão dos anos 1930 (de 1929 a 1946); e agora (aproximadamente de 2008 até o presente). [14]

É essa perda de dinamismo da economia mundial que está por trás do agravamento das tensões geopolíticas e guerras que descrevemos, bem como das fortes tensões sociais e da instabilidade política que abalam muitos dos governos e regimes dos principais países capitalistas, começando pelo mais forte, os EUA. O grande resgate de Wall Street, da economia norte-americana e dos principais centros imperialistas realizado pelo FED, outros bancos centrais e governos dos principais países evitou um cenário catastrófico e a manifestação das formas mais extremas da crise capitalista, como ocorreu entre 1929 e 1933, mas não conseguiu recuperar o dinamismo da acumulação capitalista, pelo contrário, agravou-a.

O novo e dinâmico é a crescente fragmentação da economia mundial, embora baseada na existência de cadeias de valor internacional profundamente enraizadas, especialmente com a China (“a oficina manufatureira mundial”), já que, diferentemente da Grande Depressão do século passado, não houve uma ruptura total do comércio internacional. Portanto, o “desacoplamento estratégico” da China promovido pelos EUA, uma questão que encontra consenso entre democratas e republicanos, deve operar dentro do contexto de que, apesar das fortes medidas tomadas até agora durante as presidências de Trump I e Biden, partes centrais do capital norte-americano mantêm interesses e negócios na China. Vamos citar dois exemplos emblemáticos. O campeão norte-americano da informática, Nvidia, e o campeão chinês dos carros elétricos, BYD, têm uma parceria estratégica que integra as soluções da Nvidia nas frotas de veículos da BYD. Mais notável ainda, o mercado chinês é o segundo mais importante para a Tesla, depois do norte-americano, representando uma oportunidade histórica de crescimento. A gigafábrica de Xangai, inaugurada em 2019, rapidamente se tornou o maior centro de produção da empresa. A relação com as autoridades de Pequim e os projetos futuros da Tesla serão testados em breve, não apenas pela nova posição que o homem mais rico do mundo desempenhará na próxima administração norte-americana, mas também pela necessidade de Musk de obter a aprovação das autoridades do PCCh para um pleno acesso ao mercado chinês, incluindo a possibilidade de transferir dados para um de seus megaclusters nos EUA, dentro de seus planos de condução autônoma. Isso ocorre no momento em que os EUA fecham seu mercado para softwares chineses de automação e qualquer variante de computadores chineses em automóveis que seja considerada uma “ameaça à segurança nacional”, conforme a medida da administração Biden de 23 de setembro de 2024. De forma mais geral, a China é, de fato, extremamente competitiva em uma ampla gama de produtos, o que torna, por ora, praticamente impossível eliminá-la das cadeias de valor globais a um custo aceitável. Essa realidade pode levar a novos confrontos no contexto da cada vez mais palpável crise de superprodução chinesa.

Na China, décadas de crescimento desequilibrado resultaram em um enorme excesso de capacidade estrutural. O país está em deflação, o que é uma manifestação de uma crise de superprodução. A indústria da construção está semi-paralisada, suas avaliações estão em declínio e os calotes bancários somam bilhões. Mas, como escrevemos na época da crise do gigante imobiliário Evergrande, essa crise evidenciava, mesmo além da construção civil, “as dificuldades de Pequim em avançar para um novo modelo de crescimento mais equilibrado e sustentável”. Os excessos produtivos são gigantescos, como aponta um analista [15]:

Em 2022, a capacidade fotovoltaica solar instalada na China era superior à de qualquer outro país, após o agressivo desenvolvimento das energias renováveis. Mas a rede elétrica chinesa não pode suportar mais capacidade solar. … Espera-se que a capacidade de produção fotovoltaica da China, que já duplica a demanda mundial, cresça mais 50% em 2025. Esse extremo excesso de oferta fez com que a taxa de utilização na indústria chinesa de energia solar acabada despencasse para apenas 23% no início de 2024. No entanto, essas fábricas continuam operando porque precisam arrecadar dinheiro para pagar suas dívidas e cobrir os custos fixos.

Outro exemplo é a robótica industrial, que:

Pequim começou a priorizar em 2015 como parte de sua estratégia Made in China 2025. Na época, havia uma justificativa clara para construir uma indústria robótica nacional mais forte: a China havia superado o Japão para se tornar o maior comprador mundial de robôs industriais, com cerca de 20% das vendas globais. Além disso, o plano parecia atingir resultados impressionantes. Em 2017, havia mais de 800 empresas de robótica e 40 parques industriais focados em robótica operando em pelo menos 20 províncias chinesas. No entanto, esse esforço global mal ajudou a avançar a tecnologia robótica chinesa, embora tenha criado uma enorme base industrial. Para cumprir as metas ambiciosas de produção de Pequim, os funcionários locais tendiam a investir em tecnologias maduras que pudessem ser ampliadas rapidamente. Atualmente, a China possui um grande excesso de capacidade em robótica de baixa tecnologia, mas ainda carece de capacidade suficiente em robótica autônoma de alta tecnologia, que exige propriedade intelectual local.

Esse excesso crônico de capacidade força a China a impulsionar a exportação de capital para países periféricos e a uma guerra comercial com os principais países desenvolvidos. Mas, na prática, criou-se um enorme excesso de investimento na produção em setores onde o mercado interno já está saturado ou onde os mercados externos podem absorver de forma sustentável. Como resultado, a economia chinesa corre o risco de ficar presa em um círculo vicioso de queda de preços, insolvência, fechamento de fábricas e, em última instância, perda de empregos. Ao mesmo tempo, sua superprodução também se tornou uma força desestabilizadora no comércio internacional. Ao criar um excesso de oferta no mercado mundial de muitos produtos, as empresas chinesas estão pressionando os preços para baixo, abaixo do ponto de equilíbrio para os produtores de outros países.

É nesse contexto, da necessidade imperiosa da China de exportar cada vez mais seu excedente produtivo, que surgem as ameaças de Trump. Se ele fizer o que diz que fará, como impor tarifas de 60% às exportações chinesas, poderíamos testemunhar uma terceira onda de reorientação da cadeia de suprimentos para esses países intermediários, como foi o caso do Vietnã, México e Índia frente a medidas anteriores. O novo elemento é que, ao mesmo tempo, pode haver mais coerção sobre países terceiros para que tomem medidas contra os bens chineses que transitam por esses países a caminho dos Estados Unidos. Especialmente o México, que substituiu a China como o principal parceiro comercial dos EUA, é muito vulnerável devido à sua dependência do mercado norte-americano. Isso terá repercussões não apenas em sua política externa, mas também fortemente no plano doméstico, devido ao caráter interligado das relações entre o México e seu “Amo do Norte”, tanto no comércio e energia quanto em questões de segurança, fronteira e migração (de cada cinco mexicanos, um vive nos Estados Unidos).

A nova ofensiva bonapartista de Trump e o trumpismo

O mundo que Trump enfrenta em 2024 – descrito nos capítulos anteriores – é muito mais instável e tumultuado do que em 2017, embora sua eleição já indicasse que o equilíbrio capitalista nos EUA e no nível internacional estava se fissurando. Internamente, o ataque ao Capitólio no final de sua presidência marcou uma crise orgânica ao paroxismo para a democracia da principal potência imperialista. A administração Biden, apesar de ter definido desde o início que a política externa deveria se orientar para fortalecer a classe média e responder aos interesses dos trabalhadores, não atingiu seus objetivos. De 2020 até hoje foram anos difíceis nos Estados Unidos. A Covid-19 matou quase um milhão de pessoas. As vacinas e os lockdowns dividiram a população, percebidos por muitos como provas da intromissão do governo na vida pessoal. A criminalidade disparou antes de cair nos últimos meses. O fentanil e os opioides causaram mais mortes do que nunca. A inflação aumentou em média 20%, com picos de 30-40% nos aluguéis e nos seguros de saúde. Como escrevemos no início do ano:

Os cidadãos norte-americanos estão cada vez mais relutantes em suportar custos indefinidos para defender a hegemonia, contestam o uso da força no exterior, estão menos dispostos a servir nas forças armadas e exigem limites aos gastos para apoiar aliados, entre outras demandas. Essa recusa em suportar sacrifícios pelo papel imperial dos Estados Unidos está ligada ao aumento do sofrimento social: tiroteios diários, redução da expectativa de vida, depressão juvenil generalizada, queda acentuada na qualidade da educação, a epidemia de opioides como uma das principais causas de morte entre adultos com menos de 50 anos. A anteriormente forte aristocracia operária (ou mal chamada classe média) encontra-se degradada em suas condições de vida, como demonstrou a recente greve das montadoras. [16]

Ligada às percepções sobre política externa, essa realidade criou as bases para uma resposta cesarista – ou seja, a busca por um líder forte, disposto a assumir poderes desmesurados, como frequentemente ocorre em tempos de guerra ou perigo nacional.

Trump quer usar seu “mandato” com o objetivo expresso de realizar uma purga na burocracia estatal em todos os níveis, talvez começando pelo próprio Pentágono e pelas agências da chamada “comunidade de inteligência” (FBI, CIA, etc.), para preencher esses cargos com funcionários leais e ampliar o escopo de sua arbitrariedade pessoal. Mas o objetivo vai além. As tropas de choque do movimento MAGA acreditam que só podem “tornar seu país grande novamente” destruindo primeiro seus inimigos internos. Trump declarou que o “inimigo interno” é “mais perigoso” do que Rússia e China. Pete Hegseth, indicado por Trump como secretário de Defesa, escreveu que “às vezes a luta deve começar contra os inimigos internos”. Em um podcast, ele exigiu: “Qualquer general ou almirante… que tenha participado de programas de diversidade, equidade e inclusão ou merdas woke precisa ir embora.”

A ofensiva não se limita às instituições governamentais e à apropriação dos três poderes constitucionais, mas vai além: as instituições de ensino norte-americanas também estão na lista de inimigos de Trump. Seus aliados afirmam que as universidades são bastiões do “wokismo” e do antissemitismo. Bill Ackman, um financiador que apoia Trump, opinou recentemente que Yale “não é diferente do Hamas”. Ao atacar o “woke”, Trump identificou que a solidificação de um bloco xenófobo agressivo só pode ter sucesso exercendo controle sobre as consciências, eliminando resistências como condição sine qua non para avançar com seu projeto imperial. Em outras palavras, a transformação bonapartista – com tons ditatoriais e plutocráticos – do regime político, assim como os costumes e formas de pensar da população, torna-se uma necessidade e uma pré-condição diante das ferozes disputas geopolíticas e militares que estão por vir. No entanto, diferentemente do período entre-guerras, esse nacionalismo reacionário e xenófobo, que autores marxistas como Richard Seymour chamam de “nacionalismo do desastre”, “ainda não é fascista porque, embora organize os desejos e emoções das pessoas em uma direção muito reacionária, eles ainda não estão tentando derrubar a democracia parlamentar, nem extinguir até o último direito humano e civil… ainda. Também falta maturidade organizativa e ideológica. Estamos em uma etapa de acumulação de força fascista” [17].

Essa radicalização no plano interno corresponde a um projeto que não é apenas defensivo no exterior. O “Trump II” não se limita a uma espécie de isolacionismo contra a globalização; ao contrário, aliado a Musk e aos grandes empresários tecnológicos, apresenta um aspecto muito ofensivo e “subversivo” de reconquista do Ocidente, tanto em valores quanto em aspirações, em guerra contra socialistas, progressistas e “wokistas”. Desde o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, até a primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, na Europa, passando por Milei e Bolsonaro na América Latina, e pelo Vox no estado espanhol, a direita e a extrema direita de todas as cores devem se sentir encorajadas por Trump. Esse “partido mundial da direita”, que tem em Trump sua liderança indiscutível, será uma força não apenas ideológica, mas também de combate, ao estilo dos EUA durante a Guerra Fria, promovendo e incentivando tentativas de golpes de Estado, fraudes eleitorais e levantes, como o de janeiro de 2023 em Brasília. Ou seja, conspirações reacionárias estarão na ordem do dia em muitos lugares.

Do ponto de vista da “Grande Estratégia”, espera-se que o presidente eleito exiba o poderio econômico e militar dos EUA, tentando infundir medo nos adversários e obter maior acomodação dos aliados. A percepção de um mundo fora de controle, que arrasta os Estados Unidos para uma Terceira Guerra Mundial porque já não é temido por ninguém, e a busca por um líder forte que estabeleça uma linha e imponha respeito, foram parte das razões do sucesso eleitoral do trumpismo. Como diz o “decano britânico de estudos estratégicos”, Lawrence Freedman:

Um aspecto revelador da crítica de Trump à política externa de Biden (refletida no artigo de O’Brien) era que sua incapacidade de demonstrar força significava que não conseguia dissuadir outros de iniciar guerras nem concluí-las rapidamente uma vez iniciadas. Podemos nos perguntar se Putin teria contido sua invasão em larga escala à Ucrânia em fevereiro de 2022, ou se o Hamas teria realizado seu ataque a Israel em outubro de 2023, caso Trump estivesse então na Casa Branca. No entanto, embora os instintos de Biden possam ter sido corretos após esses dois eventos, houve uma vacilação palpável sobre o uso do poder americano, refletindo um senso dos riscos potenciais e uma determinação de limitar as responsabilidades dos Estados Unidos. O resultado foi que os conflitos se prolongaram e se tornaram mais perigosos, em vez de serem reduzidos.

Os democratas fizeram da previsibilidade seu mantra. E isso é exatamente o que muitos dos inimigos dos Estados Unidos exploram a seu favor. Como diz o Wall Street Journal:

A principal vantagem de Trump é sua imprevisibilidade, ao contrário de Biden, que frequentemente telegrafava suas ações com antecedência, segundo seus apoiadores e até alguns de seus críticos. Em um deslize em janeiro de 2022, Biden disse que os aliados ocidentais não teriam uma resposta unificada caso Putin realizasse uma “incursão menor” na Ucrânia. Comentários como esses, segundo os apoiadores de Trump, encorajaram a invasão em larga escala pouco mais de um mês depois. Com Trump, os líderes rivais não podem ter certeza de até onde os Estados Unidos reagiriam a seus movimentos, dizem os aliados. [18]

Traduzir esse ímpeto em uma política externa coerente é evidentemente muito mais complicado. As administrações Trump e Biden descartaram a ilusão de transformar a China em um parceiro menor da globalização. Implementaram uma contenção militar, diplomática, tecnológica e comercial. Um raro consenso bipartidário em Washington se consolidou em relação à ameaça representada pela República Popular da China. Mas, apesar desse consenso sobre quem é o principal inimigo, não há uma ideia comum no establishment político e de segurança sobre qual deveria ser o objetivo dos EUA. Por exemplo, Trump rejeitou publicamente a nomeação de Mike Pompeo para seu gabinete após sua vitória eleitoral. O ex-secretário de Estado e diretor da CIA é um defensor da mudança de regime na China. Ele faz parte de uma influente ala entre os republicanos que pede um aumento da propaganda contra Pequim, disposta a arriscar uma guerra agora. Esse setor ganhou destaque meses atrás com um combativo artigo de Matt Pottinger e Mike Gallagher na Foreign Affairs [19]. Pottinger, ex-vice-conselheiro de Segurança Nacional de Trump, e Gallagher, ex-congressista por Wisconsin e co-presidente do Comitê da China na Câmara dos Representantes, afirmam sem rodeios: “Os Estados Unidos não precisam gerenciar a competição com a China; precisam vencê-la”. O objetivo explícito é fazer com que o inimigo “desista de tentar vencer os Estados Unidos e seus aliados em um conflito quente ou frio” e garantir “uma China capaz de decidir seu próprio caminho livre da ditadura comunista”. Rendição e mudança de regime.

Trump, ao contrário desses republicanos, não busca necessariamente “derrotar” o Partido Comunista Chinês. Uma das poucas certezas sobre seu próximo mandato é que ele intensificará as tarifas. Segundo fontes próximas, o objetivo é forçar a RPC a um acordo comercial favorável aos EUA o mais rápido possível, sem nenhuma intenção estratégica em particular (Tóquio, Seul e outros países asiáticos temem essa política transacional de Trump, um pacto sobre bens e serviços que os deixaria de fora, obrigando-os a lutar por suas quotas de mercado). Seu círculo íntimo, porém, vê a guerra tarifária como um primeiro passo para desvincular a economia americana da de seu rival, parte de um esforço mais amplo para estrangular o adversário.

O próprio Trump, ao nomear Marco Rubio como secretário de Estado e Mike Waltz como conselheiro de Segurança Nacional, entregará as principais funções em política externa a dois congressistas muito combativos em relação à China. Ambos têm realizado intensa propaganda sobre o “genocídio” em Xinjiang. Possivelmente, estão entre os muitos congressistas que questionam por que não declarar guerra à China agora, antes que ela se torne poderosa demais — uma pergunta frequentemente repetida entre os republicanos no Capitólio.

Sobre Taiwan, Trump tem uma posição ambivalente, criticando duramente a ilha por não fazer o suficiente para se defender (uma preocupação comum em Washington), ao mesmo tempo que questiona se os americanos estariam dispostos a se sacrificar por ela em caso de conflito armado. Cada vez mais, analistas que não podem ser acusados de isolacionismo começam a afirmar que não faz sentido arriscar todo o poderio militar dos EUA por uma ilha que não representa um interesse existencial. Sua linha de fuga é sustentar que o verdadeiro interesse dos EUA é evitar uma humilhação militar, que teria consequências catastróficas e levaria os “aliados” a se tornarem mais independentes. O próprio Kissinger, um ano antes de morrer, advertia: “Taiwan não pode estar no centro das negociações entre China e Estados Unidos” [20]. Porém, esvaziar Taiwan de seu “tesouro tecnológico” e permitir a emigração daqueles que não aceitarem a anexação pela China, ao mesmo tempo garantindo a neutralidade do Mar do Sul da China para Filipinas e Vietnã, com o apoio de terceiros países como Austrália e Indonésia, é uma operação de difícil execução, tanto no plano político quanto no operacional.

A realidade é que o foco do trumpismo na China corre o risco de ser insuficiente, pois a disputa global trata-se de uma competição prolongada pela supremacia na Eurásia, que ou inclui uma guerra ou, no melhor dos casos, uma conclusão equivalente à vitória militar de uma ou outra parte em disputa. A unidade dos conflitos euroasiáticos surge de sua base econômica: a região combina a tecnologia e as finanças europeias com a produção energética e os gargalos comerciais do Oriente Médio e, mais a leste, com a capacidade manufatureira asiática em um sistema integrado. Separar a rivalidade sino-americana na Ásia sem fazer referência às atividades de Pequim e Washington no Oriente Médio e na Europa, começando pelas estratégias que ambos os países têm seguido diante da invasão russa na Ucrânia, é um contrassenso. A realidade inexorável é que nenhum governo dos EUA pode permitir que uma potência ou uma coalizão de potências hostis obtenha a hegemonia militar na Eurásia. Esse tem sido o objetivo geopolítico fundamental dos EUA desde 1917, quando interveio na 1ª Guerra Mundial.

Em última análise, o bonapartismo trumpista não pode esconder que, por trás de sua nova tentativa de demonstrar força, se oculta mais um passo na decadência do imperialismo norte-americano. Se a tentativa bonapartista de Trump não for coroada com sucessos táticos (Ucrânia, Oriente Médio e outros “pontos quentes”), seus tropeços podem tornar mais aguda e visível essa trágica realidade de seu domínio.

Salto bonapartista, a impostura do “mal menor” e as respostas da luta de classes

Se demos importância à análise da complexa situação internacional, é porque qualquer estratégia operária e socialista precisa levar em conta o terreno onde as lutas se desenvolvem, ou seja, a instabilidade hegemônica dos Estados Unidos no contexto de uma crise capitalista mundial sem precedentes desde os anos 1930. Assim como ocorreu durante a primeira metade do século XX, a crise atual do capitalismo global assume a forma de uma enorme crise de legitimidade: o lema “socialismo ou barbárie” volta a se colocar com urgência, não só pela tragédia do crescente recurso às guerras, mas também diante do aquecimento global, que continua causando desastres inéditos, como vimos até mesmo em um país avançado como a Espanha, em Valência.

É essa crise de legitimidade da ordem liberal surgida após a Segunda Guerra Mundial que dá origem a fenômenos mórbidos como Trump e o crescimento da extrema-direita a nível mundial. Contudo, o fato de que essas forças reacionárias tenham a iniciativa política (levando alguns intelectuais a reinterpretarem a frase do Manifesto: “um fantasma percorre o mundo, é a extrema-direita”) não deve ser confundido com a ideia de que as classes dominantes tenham conseguido resolver a seu favor a correlação de forças por um período histórico ou que a classe trabalhadora internacional já tenha saído de cena.

Nada mais distante da realidade. Não apenas porque, como já dissemos muitas vezes, nas últimas décadas houve um forte crescimento no tamanho da classe trabalhadora mundial. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 2014, pela primeira vez na história, o trabalho assalariado é agora a experiência majoritária em nível mundial [21]. A mão de obra assalariada não agrícola cresceu de 1,5 bilhão em 1999 para 2,1 bilhões em 2013, representando aproximadamente metade da força de trabalho global. Ao mesmo tempo, o número de trabalhadores industriais aumentou de 533,2 milhões em 1999 para 724,2 milhões em 2013 [22]. Grande parte desse crescimento ocorreu no Sul Global. Mas, apesar da “desindustrialização” no centro (o número de trabalhadores industriais em economias desenvolvidas caiu, no mesmo período, cerca de um sexto), é preciso notar que essa redução é relativa: os Estados Unidos ainda empregam mais de 12 milhões de trabalhadores no setor manufatureiro, e esse número tem aumentado recentemente. Na Alemanha, mais de um quarto dos trabalhadores ainda está empregado na indústria manufatureira. Como afirma Beverly Silver [23], socióloga e economista especializada na história das forças do trabalho: “O potencial da classe trabalhadora para resistir ao capital é mais forte do que nunca.” Além disso, essa potencialidade tem se demonstrado parcialmente, especialmente nos EUA, onde, após a pandemia expor muitas das injustiças fundamentais do sistema, estamos testemunhando uma explosão de organização sindical e de atividade grevista, a mais significativa em décadas. Há mais de um ano, enquanto a campanha presidencial monopolizava a opinião pública, uma multidão de trabalhadores enfurecidos fazia ouvir suas reivindicações nos piquetes, quase sempre com os mesmos pedidos: acabar com mais de uma década de estagnação salarial e abusos patronais. Desde as cidades portuárias do Leste e Sul [24] até as fábricas aeronáuticas do Noroeste do Pacífico [25], desde os grandes hotéis da Califórnia até os complexos de resorts no Havaí [26], as greves voltaram a fazer parte do cenário na principal potência mundial. Mais surpreendente ainda foi o fato de que trabalhadores de base demonstraram certo desafio a seus líderes sindicais conciliadores. Como relatou o The Wall Street Journal [27]:

“Frustrados pela inflação que corrói seus salários e fortalecidos pelas greves bem-sucedidas dos trabalhadores da United Auto Workers no ano passado, os membros dos sindicatos estão enviando uma mensagem aos seus próprios líderes: Faça melhor. Nos últimos meses, os afiliados rejeitaram contratos na Boeing, AT&T, Textron e outras empresas, mesmo após os comitês negociadores de seus sindicatos passarem meses negociando acordos para sua ratificação.”

De forma distorcida, essa ênfase na questão trabalhista apareceu na campanha presidencial. Como afirma um autor de Le Monde Diplomatique [28]: “O lugar central que ocupa a figura do trabalhador nos discursos políticos norte-americanos distingue esta campanha presidencial das anteriores.”

Nenhuma das causas que originaram esta onda de greves vai desaparecer com a nova administração. Ao contrário, ela pode se radicalizar diante dos grandes ataques aos trabalhadores e ao movimento operário que esta administração prepara. É importante lembrar, como dizem os pesquisadores e ativistas sindicais Eric Blanc e Chris Bohner, que o atual aumento da mobilização dos trabalhadores americanos começou com as greves estaduais de professores que varreram os estados vermelhos (republicanos) em 2018, durante o primeiro mandato de Trump. As greves ilegais dos professores de Beverly, Gloucester e Marblehead, que já estão na segunda semana consecutiva, no estado de Massachusetts, exigindo salários mais altos e mais licenças por doença e paternidade, já são uma prova disso. Como dizem os dois autores citados, os sindicatos continuam sendo populares e gozando de confiança. De acordo com uma pesquisa Gallup de setembro de 2024, 70% dos americanos aprovam os sindicatos, o apoio mais alto desde a década de 1950; até 49% dos republicanos apoiam atualmente os sindicatos. Por sua vez, o ativismo dos jovens trabalhadores (da Geração Z e dos trabalhadores milenares) continua presente: a recente proliferação de campanhas sindicais entre os motoristas da Amazon é apenas o último exemplo de um aumento geracional que continua se expandindo por Starbucks, ensino superior, jornalismo e outros setores. Por sua parte, não podemos descartar que a arrogância e a ferocidade patronal de Elon Musk e o trumpismo os levem a dar passos fora da relação de forças, criando as condições para uma evolução menos pacífica dos trabalhadores. Por exemplo, o primeiro, junto com o também milionário Ramaswamy, designado por Trump para reduzir a burocracia governamental, pretende exigir trabalho de escritório em tempo integral para os funcionários federais, ou seja, que voltem ao escritório cinco dias por semana, calculando que essa exigência gerará renúncias em massa. Isso pode despertar a burocracia sindical da Federação Americana de Empregados Governamentais, um enorme sindicato que representa 800.000 trabalhadores do governo federal e do Distrito de Columbia, um dos poucos bastiões sindicais que se mantêm nos EUA.

O que ocorre nos Estados Unidos, com a vitória da UAW, os portuários ou os trabalhadores da Boeing, é a ponta mais visível de uma terceira onda de luta de classes desde a crise de 2008/9, que tem um caráter proletário mais pronunciado do que as anteriores. Na Europa, desde o início da guerra na Ucrânia, o continente tem sido abalado por uma onda de greves, muitas delas as maiores das últimas décadas, impulsionadas pelas perdas salariais devido à inflação. O ponto mais alto foi, sem dúvida, a luta pelas aposentadorias na França. Como dizemos no livro La victoire était possible de Juan Chingo, a batalha das aposentadorias tem sido marcada por uma grande centralidade da classe trabalhadora. De maneira mais geral, como dizemos no documento nacional publicado na edição anterior deste suplemento [29], desde 2016 vimos se desenrolar na França um repertório de ações de luta de classes sem equivalente em outros países capitalistas avançados, que, embora não tenha dado vitórias decisivas, colocou em primeiro plano uma tendência à intervenção direta das massas nos eventos históricos. Esta terceira onda também se expressou nas rebeliões inéditas em países fortemente endividados contra os governos que aplicam planos de austeridade do FMI, como ocorreu no Quênia, ou em rebeliões juvenis que conseguiram até derrubar governos e abrir a possibilidade de intervenção do movimento operário, como ocorreu em Bangladesh. Também se refletiu em mudanças políticas profundas, fruto do processamento de experiências de luta de classes, como a chegada de um “governo de esquerda” no Sri Lanka, após uma terrível crise da dívida e uma revolta que provocou a fuga do presidente anterior em 2022. Posteriormente, o National People’s Power obteve uma vitória sem precedentes nas eleições legislativas, onde, sem coalizões, conquistou uma clara maioria, colocando todos os partidos do establishment na defensiva. Mais importante ainda, a coalizão vencedora é a maior e mais diversa jamais reunida entre trabalhadores, camponeses, pescadores, mulheres, comunidades minoritárias e pobres urbanos de todo o país. Uma derrota das políticas do FMI seria uma luz de esperança para todos os países do sul global submetidos às mesmas correntes de submissão. Mas, apesar da relação de forças favorável, o presidente e sua maioria capitularam de entrada ao FMI, aceitando as condições do programa do FMI negociado pelos governos anteriores. Mais uma vez, como na Grécia em 2015, essa falsa esquerda se contenta em apenas gerenciar o desastre. Mas, seja qual for o desfecho desse processo, o que está claro é que o sudeste asiático, com as ações de massas, os jovens e a classe trabalhadora do Sri Lanka, Myanmar ou Bangladesh, está se transformando em um novo centro de luta de classes, com uma irrupção cada vez mais frequente de forma explosiva. O que falta urgentemente para as massas da região são partidos revolucionários com peso na classe trabalhadora e nos setores oprimidos, que não cedam diante das burguesias locais e do imperialismo, que possam – com o apoio das massas em luta e seus organismos de combate – assumir o poder e implantar seu programa revolucionário.

Nestes anos, além disso, desenvolveram-se a nível internacional grandes movimentos como o das mulheres, movimentos antirracistas e movimentos ambientalistas juvenis. Da extrema direita, esses movimentos têm sido colocados como alvo para polarizar e gerar “batalhas culturais”, enquanto diferentes variantes “progressistas” buscaram sua institucionalização. Provavelmente, o mais novo e destacado seja o movimento em solidariedade ao povo palestino, protagonizado principalmente pelo movimento estudantil dos países centrais, que enfrentou (e continua enfrentando) uma dura repressão e perseguição dos governos cúmplices do genocídio do Estado de Israel. Este movimento desenvolveu uma marca antimperialista que não se via desde a luta contra a guerra do Vietnã.

Tudo o que foi dito acima mostra que, desde a crise de 2008, as massas em geral e a classe trabalhadora mais recentemente têm mostrado tendência a recuperar sua capacidade de luta desde os momentos mais sombrios da ofensiva neoliberal. O problema é que esse fenômeno de luta de classes não costuma encontrar representação no plano político, reforçando uma expressão de classe dos explorados. Enquanto as expressões de (extrema) direita aprofundaram sua radicalização por meio de discursos de ódio, xenofobia e autoritarismo, as variantes surgidas à esquerda do reformismo tradicional moderaram suas posições e adotaram como estratégia restaurar o centro burguês, o que está se mostrando catastrófico. A debacle eleitoral dos Democratas e sua candidata presidencial Kamala Harris é sua última e patética expressão. Como bem sintetizou Bernie Sanders: “Não deveria ser uma grande surpresa que um partido democrata que abandonou o povo da classe trabalhadora descubra que a classe trabalhadora o abandonou.” O que se omite é o papel que ele mesmo e a esquerda desempenharam nessa debacle. Enquanto Trump tomou conta do Partido Republicano com seu movimento MAGA (Make America Great Again), a esquerda optou pela submissão ao Partido Democrata, que acaba agindo como uma máquina de cooptação para conter a radicalização política. Essa esquerda terminou fazendo campanha por Kamala Harris e justificando até mesmo a cumplicidade da candidata democrata com o genocídio israelense em Gaza com o argumento do “mal menor” frente a Trump.

O “mal-menorismo” frente ao “fascismo”, seja o “antitrumpismo” nos Estados Unidos ou o anti-RN/Le Pen na França ou em outros países, está se tornando um câncer para uma verdadeira política de independência de classe. Como diz Anton Jäger na New Left Review de setembro/outubro de 2024 [30]: “O que então consegue a heurística fascista? Sua principal consequência é aglutinar a esquerda descontente atrás de seus patrões capitalistas menos maus, como se os crimes de Biden não fossem nada comparados aos de Trump.” Na França, vimos como a “frente republicana”, impulsionado veementemente pela LFI, permitiu salvar grande parte de seus deputados ao macronismo, incluindo o ex-primeiro-ministro responsável pela reforma das aposentadorias ou o ministro do interior, responsável pela lei de imigração, que acusava a extrema direita de ser “brandas”. Com a mesma lógica, nos Estados Unidos, por trás de Kamala Harris formou-se uma “…coalizão esperançosa, que une pessoas como Bernie Sanders, Alexandria Ocasio-Cortez e os Socialistas Democratas da América com elementos do Partido Republicano notáveis por seus passados crimes contra a humanidade, como Dick Cheney, constituindo nada menos que um reagruppamento da corrente política de centro-direita. Formada com base na capacidade de Trump para colocar em risco a democracia, este realinhamento é notável pelo seu exorcismo de qualquer coisa que tenha o menor aroma de radicalismo, sensibilidades de esquerda. Parece estar arrastando grande parte da esquerda”, como propõe o historiador Bryan Palmer [31].

Os métodos de governo de Trump transtornarão todo o método de domínio da classe dominante norte-americana – a “democracia burguesa” – que esta tem utilizado com eficácia desde a Guerra Civil. Embora o trumpismo, ao contrário de 2016, tenha alinhado setores da classe dominante como os capitalistas do Vale do Silício, ao não existir uma ameaça real desde baixo, seus métodos podem ser muito arriscados. As principais alas da classe capitalista estadunidense temem que um Executivo autoritário imponha normas e leis arbitrariamente, dificultando o funcionamento dos capitalistas. É provável, então, que suas próprias divisões e crises incentivem novos embates da luta de classes. Os trabalhadores precisam estar preparados para aproveitá-las e não vender nossa pele a um ou outro comprador.

O impasse do reformismo de esquerda: não há atalhos para a construção de partidos revolucionários da classe trabalhadora

Exceto ainda a LFI, pouco resta do “momento populista” que denominou boa parte da política na Europa e nos EUA na “longa década de 2010”, para utilizar as duas expressões de Anton Jäger e Arthur Borriello [32]. A evolução e normalização à direita de sua estrela mais brilhante é surpreendente. Em poucos anos, o Syriza passou de ser a esperança que derrubaria o sistema financeiro internacional e construiria uma Europa Social em 2015 a se tornar o mais zeloso servidor dos credores da Grécia. Mais ainda, seu líder, Tsipras, alinhou abertamente sua política externa com os interesses atlânticos, o que significou faltar com sua palavra de romper com as políticas pró-Israel. “Essa ‘socialdemocratização’ da esquerda populista”, resultado lógico da evolução do Syriza, é um “cenário em que a esquerda populista se esvazia completamente de seu potencial subversivo ao mesmo tempo que conserva sua única ambição: conquistar o poder e mantê-lo” [33]. Com diferentes modalidades, esse tem sido, mais ou menos, o caminho das várias correntes populistas de esquerda. Comparado com o temor que sua candidatura e movimento despertaram em 2016, Sanders terminou como um “limão espremido” pelo establishment do Partido Democrata, ao qual vendeu sua alma. Como diz Richard Seymour [34], a política de cooptação de Sanders e da esquerda democrata pela presidência Biden buscava “…esgotar a energia radical da esquerda democrata e amarrá-la com laços de lealdade a uma presidência centrista. O resultado, agora, é que eles mal são um fator na campanha de 2024”. Sua função foi usar sua desgastada imagem de “socialista” e crítico da “classe multimilionária” para canalizar (em certa medida infrutiferamente, como se vê na queda de votos de Kamala Harris em relação a Biden em 2020) jovens e trabalhadores radicalizados novamente para o Partido Democrata, como pode ser observado na questão de Gaza (ver abaixo). Por sua vez, o fracasso do PODEMOS em romper a hegemonia do PSOE na esquerda levou a que:

Seis anos após sua aparição na cena política espanhola, o Podemos finalmente entrou no governo nacional, mas da posição mais fraca possível. O mais importante é que o partido era quase irreconhecível. De um partido populista hostil a todo o sistema de partidos e empenhado em ganhar uma maioria absoluta, progressivamente se “normalizou” e se transformou em uma versão restaurada da esquerda radical espanhola, embora eleitoralmente mais forte que seus homólogos europeus [Arthur Borriello e Anton Jäger, op. cit.]].

Resultado: “A função histórica do Podemos consistiu, de fato, em revitalizar e rejuvenecer a social-democracia”.
Para todas essas variantes do populismo de esquerda, as crises políticas ou os eventos da luta de classes foram provas difíceis de superar. O Podemos não passou no teste da luta nacional catalã: sua posição tímida e sua acomodação à “Constituição de 1978”, após sua origem crítica contra a transição pactuada do franquismo, levaram a que nos momentos de maior tensão fosse mal visto tanto pelo movimento independentista quanto pelo campo pró-unidade espanholista. Corbyn ficou preso sem saída pelo Brexit, entre uma base de classe trabalhadora mais favorável e seu núcleo urbano londrino mais pró-europeu. Mais grave ainda, a luta de classes radical expôs abertamente suas falhas estratégicas. Como escrevemos a propósito da LFI [35]:

Essas tendências semi-insurrecionais ou de revolta, como a ação dos explorados que tende a superar o controle pacificador e de caráter rotineiro do conflito social pelas direções oficiais do movimento operário, assim como o marco legal autorizado da manifestação, como foi o caso durante a sublevação dos Gilets Jaunes, colocam as organizações neo-reformistas em maus lençóis. Isso porque, apesar de flertarem e tentarem obter lucro eleitoral com a radicalidade das ruas, são inimigas, por essência, de toda tendência à luta extraparlamentar, sobretudo se esta sai dos canais normais de mobilização… A ambiguidade programática da FI encontra seu correlato no âmbito da ação política. O populismo de esquerda está preso nesse estreito espaço de manobra que caracteriza a tensão entre o campo institucional e o da mobilização popular. O vínculo entre a estratégia populista e a institucionalização constitui uma linha tênue, que deve ao mesmo tempo evitar a total normalização (tornar-se um partido como qualquer outro) e a incapacidade de demonstrar governabilidade, tranquilidade e criação de certa estabilidade.

Nem falar de Sanders e da esquerda democrata em relação a um teste ácido da luta de classes internacional: o genocídio em Gaza. A menos de uma semana das eleições, diante dos enormes temores dentro do Partido Democrata de que milhões de pessoas se recusem a votar em Harris devido ao seu papel central na campanha diária de assassinatos em massa e limpeza étnica, ele publicou um vídeo visto mais de cinco milhões de vezes no X e no YouTube, pedindo aos trabalhadores e jovens indignados pelo genocídio em Gaza que votassem em Kamala Harris. Recusando-se a caracterizar o assassinato em massa em Gaza como genocídio, afirmou que, como milhões de americanos, também “discorda” de Biden e Harris sobre a guerra em Gaza; afirmando, ao mesmo tempo, de forma insólita, que “Israel tinha o direito de se defender do horrível ataque terrorista do Hamas em 7 de outubro, que matou 1.200 pessoas inocentes e fez 250 reféns”. Reconhecendo, mais uma vez, o repúdio massivo que existe pelo genocídio, Sanders declarou em seu vídeo: “Alguns de vocês estão dizendo: ‘Como posso votar em Kamala Harris se ela está apoiando esta terrível guerra?’”. Sua resposta é essencialmente que “mesmo nesse tema, Donald Trump e seus amigos de direita são piores”. Então, Sanders argumenta que o assassinato em massa em Gaza e a expansão da guerra no Oriente Médio não são os únicos temas nas eleições. Também estão os direitos reprodutivos e a mudança climática. Patético.
Como diz Claudia Cinatti, dirigente do PTS, todos esses exemplos, assim como o governo de Gabriel Boric no Chile, confirmam mais uma vez

que não há “possibilidade de utilizar em sentido revolucionário” o Estado burguês ou algumas de suas instituições, ainda que sejam as mais “democráticas”, como os parlamentos. Parafraseando Rosa Luxemburgo em sua discussão com E. Bernstein, aqueles que optam pelo caminho parlamentar não escolhem um caminho mais pacífico para o mesmo objetivo que os revolucionários, mas, em vez de lutar por uma sociedade nova, têm como objetivo fazer mudanças superficiais na velha [36].

Também mostra que não há atalhos para a construção de um partido revolucionário enraizado na classe trabalhadora. A crise da social-democracia abriu um espaço à esquerda que, após 2008, foi capitalizado por um rápido avanço eleitoral de formações novas ou recicladas à esquerda. No entanto, essas organizações não apenas permaneceram fracas em termos organizacionais, mas também se opuseram politicamente à construção na classe e se afastaram ativamente do modelo de partido de massas com estruturas densas [37]. Politicamente, a ausência de uma acumulação séria de forças na classe trabalhadora e nos oprimidos em geral se revela como o calcanhar de Aquiles deste neorreformismo. A necessidade da organização dos trabalhadores avançados é hoje mais indispensável do que nunca, sendo uma pré-condição para fazer política além do terreno eleitoral. Não podemos, portanto, deixar de concordar com o intelectual marxista francês Guilaume Fondu, quando diz em seu Que Faire de Lénine que:

“A política consiste, portanto, antes de tudo, em criar coletivos capazes de constituir uma força real a partir do nada ou, mais precisamente, se nos colocarmos imediatamente em uma perspectiva marxista, em converter os números – o único recurso real dos dominados – em força real. Portanto, definiremos ’politização’ como o ato de unir-se a esses tipos de coletivos para ganhar influência real no curso dos acontecimentos. Mas isso implica dar uma certa coerência ao coletivo em questão, uma coerência que se divide em duas dimensões, a ideológica e a prática: uma organização deve expressar certas ideias precisas e ser capaz de coordenar a ação de seus membros, de modo que se identifique como uma opção ideológica e aja como um sujeito coletivo. (…) Podemos, ao contrário, diluí-la em uma pseudoorganização de contornos vagos, incapaz de existir realmente tanto no nível ideológico quanto no prático, como aconteceu com o maior partido socialista russo (em termos de número de membros), o Partido Socialista Revolucionário (que desapareceu rapidamente após a revolução de 1917). Esses dois obstáculos continuam marcando nossa vida política, como demonstram as tentativas contemporâneas de ir além da forma de partido para encontrar outros métodos de organização, tentativas que fracassam, pois na maioria das vezes eliminam a questão dessa coerência, reduzindo a organização a ser apenas a expressão de um programa político ao qual só se pode aderir passivamente, sendo a única participação militante real apenas eleitoral e, portanto, pontual e marcada por um calendário imposto de fora.”

Uma esquerda revolucionária com uma dimensão internacionalista reforçada

A ideologia do globalismo, aparentemente hegemônica, deu lugar aos nacionalismos mais belicosos e xenófobos. Durante o ciclo neoliberal, enquanto todas as forças mais poderosas do mundo dos negócios, tecnologia e finanças pareciam impulsionar uma maior integração internacional, o “nacional” aparecia como uma espécie de (falso) refúgio para uma parte importante do movimento de massas, especialmente os perdedores da globalização. Mas agora que o nacionalismo se tornou a corrente política dominante, suas obsessões permeiam todo o arco político: os defensores tão proclamados do livre comércio se calaram diante do tsunami ideológico do protecionismo; os imigrantes foram vilipendiados; o racismo se intensificou com a generalização da supremacia branca. Agora que o nacionalismo começa a mostrar seu caráter mais pútrido, a possibilidade de que a solidariedade internacionalista da classe trabalhadora internacional se transforme em uma identidade essencial de toda política de uma esquerda verdadeiramente revolucionária adquire uma dimensão maior. Isso porque não há possibilidade de lutar contra a extrema-direita nacionalista sem lutar implacavelmente contra o imperialismo.

A Convenção Democrática que ungiu Kamala Harris foi uma demonstração palpável de como este outro partido da burguesia imperialista buscava competir com o nacionalismo sem complexos de Trump. Um observador comenta:

“’EUA’ estava impresso em cartazes distribuídos à multidão, e os cantos dessas três letras (U-S-A), que outrora teriam cheirado a reação, tentaram, em vez disso, destacar um patriotismo inclusivo: a recusa em ceder o amor à pátria à versão estreita e xenófoba oferecida pelos republicanos. O corolário dessas demonstrações de unidade patriótica é que tudo o que se relaciona com radicalismo fica fora de vista, além das grades de segurança e dos policiais entediados com coletes de Kevlar [38].”

A capitulação a essa onda patriótica por parte da esquerda democrata também foi palpável:

“Se o discurso de Ocasio-Cortez mostra o que a esquerda foi capaz de oferecer ao partido, também mostrou o que o partido exigiu da esquerda. Em vez de oferecer uma crítica aos EUA e suas instituições, apresentou sua história como uma representação das promessas do país. O mais próximo de um conflito de classes que teve seu discurso foi envolvê-lo em uma crítica a Trump, quando disse: ’Não se pode amar este país se só se luta pelos ricos e as grandes empresas’.”

Mas também esse nacionalismo se vê na greve e na liderança dos estivadores:

“A linguagem do nacionalismo também tinge a retórica da ILA. A liderança sindical tende a afirmar que ’ILA’ também significa ’Amo os Estados Unidos’, uma formulação que surgiu pela primeira vez durante a Primeira Guerra Mundial. O sindicato exclui cargas militares de suas greves e voltou a fazê-lo desta vez. Os membros também continuarão trabalhando com cruzeiros de passageiros para não ’incomodar ou decepcionar’ as férias das famílias [39].”

Esse internacionalismo consequente implica uma política independente dos dois blocos mais ou menos estruturados que se enfrentam na atual disputa global. Lamentavelmente, não é o caso. Como dizemos em um dos documentos da “XII Conferência da Fração Trotskista pela Quarta Internacional (FT-CI)”, na guerra da Ucrânia:

“O grosso do centro-esquerda a nível internacional se alinha à propaganda fomentada pela imensa maioria dos grandes meios de comunicação ocidentais desde o início da guerra, que tentam usar o repúdio à reacionária invasão de Putin à Ucrânia para apresentar a OTAN como defensora da paz e da democracia. Boa parte da esquerda, com diferentes matizes e intensidades, tem seguido essa política (LITCI, UITCI, SU, etc.). Desde o início do conflito, temos desenvolvido diversas polêmicas nesse sentido. Algumas dessas correntes fizeram bandeira da consigna ’armas para a Ucrânia’ fora de qualquer delimitação de classe, posicionando-se, na prática, no campo da OTAN. Por outro lado, em menor escala, alguns partidos comunistas e setores do populismo latino-americano apresentam Putin – e um bloco com a China – como uma espécie de alternativa ao imperialismo e sustentam que a invasão da Ucrânia é uma medida necessária de ’defesa nacional’ por parte da Rússia frente à OTAN.”

Décadas de globalização imperialista dirigida sem questionamentos pelos EUA criaram as condições políticas para esse novo “campismo”, que beneficia a oligarquia e o chauvinismo russo. Pois o que Putin e os demais autocratas reacionários à frente dos BRICS+ realmente rejeitam no Ocidente não é a política imperialista de dominação, mas o monopólio ocidental dessas relações. Por isso, afirmamos que é necessário romper com toda ilusão no “multilateralismo”; não existe um multilateralismo de esquerda. Contra as visões que depositam esperanças no equilíbrio entre potências e blocos regionais de Estados capitalistas, a luta por semear uma política internacionalista proletária é de primeira ordem. A essas variantes, é preciso opor um anti-imperialismo e um internacionalismo que unam a classe que constitui mais de três bilhões de trabalhadores no mundo, junto com os povos oprimidos, para acabar com o sistema capitalista.

Notas de rodapé

3. Segundo um estudo de fevereiro de 2024 do Pew Research Center, o instituto demográfico mais respeitado dos Estados Unidos, 60% dos menores de 30 anos simpatizam com os palestinos. Ao mesmo tempo, a popularidade de Israel caiu drasticamente entre liberais e progressistas, aumentando a divisão com os republicanos (Laura Silver, Becka A. Alper, Scott Keeter, Jordan Lippert e Besheer Mohamed, “Majority in U.S. Say Israel Has Valid Reasons for Fighting; Fewer Say the Same About Hamas”, Pew Research Center, 21/3/2024). No entanto, os dois lados concordam em um ponto: os Estados Unidos fariam bem em se manter à margem. Outro centro, o Instituto de Estudos de Segurança Nacional, sediado em Tel Aviv e focado nos fatores humanos da estratégia, registra com alarme que a guerra tem o apoio de republicanos, homens, brancos e pessoas com mais de 55 anos; enquanto é rejeitada por democratas, mulheres, jovens menores de 35 anos e minorias, especialmente negros (Jesse R. Weinberg, Rebecca Meller e Inbar Noy-Freifeld, “A Growing Divide in American Public Opinion of Israel”, INSS Insight Nº 1835, Institute for National Security Studies, 12/3/2024).
4. “O historiador Rashid Khalidi: ‘Israel criou um cenário de pesadelo para si mesmo. O tempo está correndo’”, Haaretz, 30/11/2024. Após 7 de outubro, seu livro de 2020 The Hundred Years’ War on Palestine alcançou a lista de mais vendidos do New York Times e permaneceu nela quase consecutivamente por um total de 39 semanas.
5. Este documento já estava concluído quando foi assinado o cessar-fogo no Líbano. Está claro que esta não é uma “vitória divina”, como afirma o Hezbollah. Ele não saiu fortalecido nem militar nem politicamente, ao contrário de 2006, após os golpes espetaculares do sionismo. Contudo, a operação sionista, apesar do espanto pela decapitação do Hezbollah, não conseguiu penetrar profundamente no sul do Líbano, como era seu objetivo declarado. Aumentar qualitativamente a força militar para alcançar esse objetivo submeteria um exército já exausto a um número crescente de baixas diárias de soldados, um exército preparado para cometer genocídios covardes, mas não para o combate terrestre (mais de 50 soldados foram mortos pela resistência libanesa, além de um conhecido arqueólogo sionista que queria provar que o sul do Líbano fazia parte da Grande Israel). Para Netanyahu, nas circunstâncias atuais, as vantagens de aceitar o acordo superavam as desvantagens. Entre elas, romper o vínculo entre os dois cenários – Líbano e Gaza – aumentando a pressão sobre o Hamas. Também permite concentrar-se no Irã, ao mesmo tempo em que dá às Forças de Defesa de Israel a oportunidade de se reagruparem e reabastecerem seus arsenais de munições esgotados. Netanyahu e seu governo esperam que o cessar-fogo no Líbano tenha um impacto positivo no arsenal militar israelense, já que se espera que Washington e Paris retomem o fornecimento de armas normalmente, especialmente com a chegada de Trump à Casa Branca. Do ponto de vista iraniano, o fato de Teerã ter dado luz verde ao acordo poderia significar que, aos olhos de Trump, o Irã está tentando reduzir a tensão no Oriente Médio como gesto de boa vontade para abrir o caminho para negociações diplomáticas e a reconstrução de um novo acordo nuclear com o governo entrante. Além disso, teme-se que a continuação da operação militar israelense possa, em algum momento, levar ao rápido colapso da milícia e ao esmagamento do Hezbollah, eliminando para sempre sua influência no Líbano. Globalmente, do ângulo da ofensiva belicista do estado sionista desde 7/10, o cessar-fogo marca pela primeira vez o abandono do maximalismo que caracterizou este novo episódio da guerra no Oriente Médio. O acordo está cheio de ambiguidades. Não está claro quais serão os meios reais para forçar o Hezbollah a se retirar além do rio Litani, se desarmar e deixar de ser uma ameaça para Israel. Também não é realista pensar que as forças armadas libanesas possam impor seu monopólio da violência em detrimento do Hezbollah e de sua comunidade de deslocados. Por isso, estrategicamente, todos os olhos se voltam para Moscou, que, como ator preponderante na situação na vizinha Síria, pode ter a chave para interromper os fluxos de abastecimento iranianos ao Hezbollah. No próximo período, é provável que este país se torne o próximo foco quente da guerra no Oriente Médio. Dias após a trégua, comandos jihadistas sunitas, incentivados de fato por Erdogan, aproveitaram o vazio deixado pelos milicianos do Hezbollah, que precisaram salvar a frente libanesa, e tomaram a cidade de Aleppo. O exército sírio entrou em colapso, e muitos de seus soldados não estão dispostos a lutar por um regime assassino que lhes paga de 15 a 20 dólares por mês. Enquanto o “carniceiro” Assad se prepara para resistir ao redor de seu bastião na capital, enviados do regime iraniano correm para Ancara, na esperança de mediar com Erdogan para deter a ofensiva da oposição síria. No entanto, o presidente turco pode não ter controle sobre o que acontecerá a seguir, dada a situação em campo e a facilidade do avanço até agora. Por último, é preciso considerar que a Síria é a linha de falha onde chocam os interesses turcos, russos, iranianos e ocidentais.
[6Daher, Joseph, Palestine and Marxism, London, Resistance Books, 2024, p. 83.
[7Recentemente, Xi inaugurou o Porto de Chancay, a 75 quilômetros de Lima, no Peru, financiado e controlado em 60% pela gigante logística chinesa Cosco. Chancay será o maior porto marítimo da costa oeste da América do Sul e o primeiro a ser administrado por uma empresa da República Popular. Esse avanço constitui uma conquista estratégica importante: é parte dos esforços de Pequim para contrabalançar a contenção dos Estados Unidos nos mares da China, penetrar no coração do Oceano Pacífico e expandir sua presença nas proximidades dos EUA. De fato, a infraestrutura contribui para o difícil processo de transformação do Império do Meio em uma potência marítima.
9. Fábricas solares de propriedade chinesa na Malásia, Tailândia e Vietnã estão fechando sob a ameaça de tarifas dos Estados Unidos. Recentemente, o México recuou na decisão de receber fabricantes chineses de automóveis, apesar de um em cada três carros vendidos no México ser agora de origem chinesa. Isso ocorre devido à pressão dos EUA, que insiste que seus tratados com o México não permitirão que o país se torne “uma porta dos fundos para a China”.
10“Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, o número de cidadãos chineses que solicitaram asilo político no exterior aumentou para 120 mil em 2021, um crescimento de mais de doze vezes desde a era do predecessor de Xi, Hu Jintao. Enquanto isso, a patrulha de fronteira dos EUA registrou a entrada ilegal de 24.314 cidadãos chineses pelas fronteiras do sul da Califórnia e do Texas em 2023, com o número subindo para 35.399 nos sete primeiros meses de 2024. … Esses números representam um aumento de 15 a 24 vezes em relação às cerca de 1.500 pessoas na era Hu.” Citado de Lynette Ong, “Fugindo do ‘Sonho Chinês’ de Xi: O grande êxodo de pessoas e capital”, Nikkei Asia 2/10/2024. O mesmo artigo aponta que, “apesar dos controles de capital, estudos sugerem que, desde a pandemia, a quantidade de capital privado que deixou a China por meios legais e ilegais aumentou significativamente, alcançando a impressionante cifra de 738 bilhões de dólares no terceiro trimestre de 2022, segundo estimativas do grupo de especialistas do Conselho de Relações Exteriores. O dinheiro chinês tem sido investido na compra de propriedades de luxo em Singapura, Vancouver e Londres.”
11. Michael Alisky, Scott Rozelle e Martin King Whyte, “Getting Ahead in Today’s China: From Optimism to Pessimism”, STANFORD, setembro de 2024. Para contextualizar, os autores dizem que “não sugerem que seja provável que a insatisfação popular com a injustiça dos atuais padrões de desigualdade exploda em um vulcão social de atividade de protesto”. Mas a realidade é que seriam águas desconhecidas para a China nas últimas décadas.
12. Un monde en guerres, Textuel, 2024. Ver também “A teoria do Desenvolvimento Desigual e Combinado no estudo das transformações da China”, Esteban Mercatante, Ideas de Izquierda 15/9/2024.
17. Para o autor, que acaba de lançar um livro com esse nome, os representantes da extrema-direita “estão realmente cativados e obcecados por cenários alucinantes de desastre extremo”. E questiona: “Por que recorrem a essa fantasia apocalíptica de massa? Porque processa a catástrofe de uma maneira que parece bastante estimulante. Na maioria das vezes, quando as pessoas passam por catástrofes, elas se deprimem e se afastam um pouco da vida e da esfera pública. Mas a extrema-direita oferece uma saída diferente. Diz que ‘esses demônios na sua cabeça, com os quais você tem lutado, são reais e você pode destruí-los’. O problema não é nada difícil, nem abstrato, nem sistêmico; é simplesmente gente má, e vamos acabar com eles.” Ela canaliza todas as emoções difíceis que as pessoas enfrentam em crises econômicas e mudanças climáticas e dá a elas uma saída que parece válida e validada.” Entrevista publicada em Disaster Fantasies Are Paying Off for Right-Wingers, Jacobin, 23/11/2024.
20. Intervenção no Fórum Econômico Mundial de Davos, 23/5/2022.
21. International Labour Organisation, Key Indicators of the Labour Market, 8ª ed. (ILO, Genebra 2013).
22. Moody, Kim, On New Terrain: How Capital Is Reshaping the Battleground of Class War, Chicago, Haymarket, p.8.
24. No início de outubro, 45 mil estivadores interromperam seu trabalho em cerca de 40 portos das costas Leste e Sul, em Nova York, Baltimore, Savannah, Nova Orleans ou Houston. Havia cerca de cinquenta anos que os trabalhadores do setor, representados pela International Longshoremen’s Association (ILA), não faziam uma greve. O movimento durou apenas três dias, mas abalou o poder estabelecido. A capacidade da ILA de bloquear um grande trecho da atividade portuária ameaçou pôr fim a um longo período de boa saúde econômica.
25. Desde 13 de setembro, cerca de 33 mil operários em greve paralisaram várias fábricas da Boeing nos estados de Washington e Oregon. Na véspera das eleições presidenciais dos EUA, após sete semanas de greve, os funcionários aceitaram a nova proposta trabalhista, que incluía, além de um aumento salarial de 43,65% em quatro anos, outras concessões, como maiores contribuições para aposentadoria, bônus, melhorias na segurança no trabalho, planos de incapacidade laboral e cobertura de saúde.
26. Cerca de 10 mil empregados do setor hoteleiro escolheram um dos picos anuais do turismo nos EUA – o feriado do Dia do Trabalho, no início de setembro – para iniciar uma greve de uma semana em 25 estabelecimentos das redes Hilton, Marriott, Hyatt e Omni. A partir dessa data, de Boston a San Diego, passando por Baltimore, Seattle, New Haven ou mesmo Honolulu, ocorreram paralisações que afetaram dezenas de estabelecimentos em uma modalidade de greves rotativas. Os trabalhadores exigiam aumentos salariais, novos postos de trabalho e o fim das restrições orçamentárias impostas durante a pandemia de Covid.
32. Arthur Borriello e Anton Jäger, The Populist Moment: The Left After the Great Recession, Londres, Verso, 2023. Para os autores, a “longa década de 2010” vai aproximadamente de 2008 a 2022.
33. Ídem.
36. “Quatro teses e uma hipótese estratégica: Sobre o estado de situação e as tarefas da esquerda revolucionária”, Jacobin Latinoamérica, N.º 10.
37. Diz Jean-Luc Mélenchon: “É um movimento. Não queremos ser um partido. O partido é a ferramenta da classe. O movimento é a forma organizada do povo. Trata-se de articular o movimento, sua forma e sua expressão: a rede. Sei que não é algo óbvio para os políticos de alto nível, que carregam seus velhos roteiros dos anos 1960, mas o objetivo do movimento França Insubmissa não é ser democrático, mas coletivo. Recusa-se a ser divisivo; quer ser inclusivo. Não tem nada a ver com a lógica de um partido. Além disso, deve ser um organismo útil. Assim, os companheiros distribuem alimentos, buscam roupas, ajudam as pessoas a solicitar os benefícios sociais a que têm direito. E para o restante, o movimento apenas faz campanha. Por isso, quando perguntam onde está a liderança, pode soar estranho, mas ela não existe. Nossos observadores estão presos a uma visão binária que opõe verticalidade e horizontalidade. Mas o movimento não é nem vertical nem horizontal; é gasoso.”
38. Patrick Iber, “El Partido Demócrata y sus insurgencias progresistas”, Nueva Sociedad, consultado el 1/12/24 en https://nuso.org/articulo/kamala-harris-partido-democrata/.
39. Alex N. Press, “The First East Coast Longshore Strike in Half a Century Is On», Jacobin, 1/10/2024
Carrinho de compras
Rolar para cima