Revista Casa Marx

A “democracia da derrota”, um debate na esquerda

Matías Maiello

 

Em um artigo de alguns meses atrás, esboçávamos um percurso pelas encruzilhadas da história recente da Argentina e as perspectivas estratégicas para a esquerda hoje 1 . Miguel Sorans, dirigente da Izquierda Socialista, publicou recentemente uma crítica a esse texto: “PTS e Izquierda Socialista: Duas visões opostas desde a queda da ditadura e da política para construir uma direção socialista revolucionária” 2 . Um título acertado. Nossa visão contrasta com a forma como o autor aborda a história recente, a transição de 1983 e o regime político que dela surgiu e que continua até hoje. Apresentamos aqui algumas considerações históricas, teóricas e políticas em forma de resposta.

 

Um relato com tons social-liberais da transição

Concordamos com Sorans que os debates políticoideológicos são bem-vindos. Neste caso, no entanto, a forma de abordá-los deixa muito a desejar. O autor constrói suas próprias premissas, atribui-as a nós — incluindo trechos fora de contexto 3 — e, em seguida, tenta refutá-las para reafirmar seus argumentos. O interessante nesta operação é que expõe completamente a maneira como raciocina. Sua tese é que usar o conceito de “democracia da derrota” implicaria dizer que o fim da ditadura foi uma derrota. Logo depois, nos exige absurdamente que nos pronunciemos sobre se, para nós, teria sido melhor que os genocidas continuassem no poder. Esta é a parte mais extravagante; a outra é que, a partir desse raciocínio, Sorans embarca em uma quase apologia do regime democrático-burguês surgido em 1983. Embora o autor pareça não perceber, sua abordagem, em certos momentos, se assemelha ao discurso social-liberal, hegemônico em um certo progressismo, cuja chave está em estabelecer uma descontinuidade absoluta entre a democracia capitalista emergente e a ditadura.

A noção de “democracia da derrota” visa o oposto. Ou seja, ressaltar as continuidades subjacentes entre ambos os regimes. Não é um conceito novo. Uma versão dele pode ser rastreada no ensaio “A democracia da derrota” de Alejandro Horowicz, publicado como prólogo na edição de 1991 de seu livro Los cuatro peronismos, um dos livros clássicos da historiografia argentina recente. Ali, o autor procurava explicar, entre outros aspectos, que a ditadura significou do ponto de vista de afastar a vontade de transformação revolucionária da sociedade, assim como a continuidade do poder econômico que a sustentou e seu programa econômico, político e social após a transição para o regime democrático. Até hoje, essa noção está em debate. No ano passado, por exemplo Ediciones Herramienta e Contrahegemonía publicaram o livro 1983-2023: Cartografía de una democracia de la derrota, com o qual debatemos nas páginas de Armas de la Crítica 4, onde uma série de autores abordam o tema sob diferentes ângulos. Nem nós, nem ninguém até onde sabemos, sugeriu que a derrota a que o conceito se refere fosse a queda da ditadura. Deve-se reconhecer, nesse sentido, que a interpretação que Sorans tira da cartola é tão absurda quanto original.

No nosso caso, quando falamos de “democracia da derrota”, referimo-nos à existência de uma dupla derrota sobre a qual se ergue o regime democrático-burguês pós-ditadura. A saber: 1) a derrota da ascensão operária e popular dos anos 70, com a qual a burguesia procurou apagar a vanguarda e disciplinar o movimento de massas; e 2) a derrota diante do imperialismo britânico na Guerra das Malvinas, provocada pela política aventureira da Junta militar e que resultou em uma maior profundidade dos traços semicoloniais do país. Ambas as derrotas convergiram para delinear a continuidade de elementos fundamentais no regime democrático-burguês posterior.

Não se trata, como Sorans tenta ridicularizar, da obviedade de que o país continuou sendo capitalista e o socialismo não triunfou, mas de questões muito mais específicas. Estas vão desde o fortalecimento do estigma da dívida e a imposição do FMI, que perdura até hoje; a consolidação dos grupos burgueses locais e de capitais imperialistas que apoiaram a ditadura e se beneficiaram com a estatização de suas dívidas milionárias antes da “transição”, como os Techint, Renault, Pérez Companc, Bulgheroni, Pescarmona, os Macri; a permanência de atores-chave na teia institucional (seja no poder judiciário, nos partidos burgueses, na burocracia sindical, no aparato repressivo, etc.); assim como a continuidade legal (mais de 400 leis ainda vigentes, muitas delas cruciais, que “modelam” o Estado argentino); entre outros.

Em sua ânsia de defender a descontinuidade entre a democracia burguesa e a ditadura, Sorans parece ignorar tudo isso. Tanto que em sua longa exposição sobre a importância da luta por justiça para os genocidas — que, diga-se de passagem, não sabe com quem está discutindo, pois imaginamos que conhece a ampla trajetória do PTS nesse terreno — destaca a importância de os genocidas terem sido julgados, mas não menciona uma palavra, nem sobre os militares impunes, nem sobre os privilégios que têm os que foram julgados, etc., e muito menos sobre a impunidade quase absoluta que persiste até hoje em relação a todo o aparato civil e patronal da ditadura. Algo semelhante poderíamos dizer sobre o regime dos partidos ou os sindicatos, onde não faz uma única crítica ao papel dos principais partidos (UCR e PJ) durante a ditadura ou sobre a continuidade de todo um setor da velha burocracia que foi colaboracionista e continuou à frente dos sindicatos depois de 83. Parece mentira ter que abordar esses temas entre organizações de esquerda, mas isso se torna necessário diante da visão quase festiva da transição que Sorans nos apresenta em nome da Izquierda Socialista.

Para encerrar, o autor nos critica por dizer que a extensão de regimes democrático-burgueses à periferia capitalista durante aqueles anos veio de mãos dadas com o neoliberalismo, ou seja, com uma ofensiva imperialista em escala global. E nos faz a insólita pergunta: “Devemos agradecer ao neoliberalismo pelas liberdades, já que ele as trouxe ‘de mãos dadas’?”. Ao negar completamente essa relação entre a ofensiva neoliberal e a transição para a democracia burguesa, Sorans não faz mais do que confirmar o diagnóstico que fizemos no artigo que critica: o grande feito das classes dominantes desde a transição pós-ditadura foi selar a cisão entre a luta por liberdades democráticas e as reivindicações setoriais de cada movimento, por um lado, e o questionamento às bases econômico-sociais e à opressão imperialista legada pela ditadura, por outro. Naquela época, importantes setores da intelectualidade, desde revistas como Controversia (que reuniu no exílio Aricó, Casullo, Portantiero, Terán, entre outros) e Punto de Vista (que então tinha como principais figuras Sarlo e Altamirano), até o Club de Cultura Socialista ou o “grupo esmeralda” (Portantiero, Hilb, de Ípola, Aricó, etc.), se empenharam em selar essa separação com argumentos muito mais sofisticados. Forjaram a ideologia social-liberal que permeou o progressismo da transição e da pós ditadura. Sorans parece decidido a ecoá-la.

Como alucinar a história nacional a partir de um conceito não marxista de revolução

O confronto militar contra as forças britânicas era uma causa justa que foi traída pelo general Galtieri e pela ditadura, o que levou à sua queda em meio a mobilizações populares na Praça de Maio em 15 de junho de 1982. A isso chamamos de revolução democrática triunfante. A queda da ditadura foi alcançada pela mobilização revolucionária das massas. Não foi uma “saída” pactuada por militares e políticos patronais.

Essa definição de Sorans concentra a visão excêntrica de sua corrente sobre a transição de 1983, argumentada de forma ainda mais extravagante pelo autor. Assim, Galtieri traiu nas Malvinas, as massas se mobilizaram no dia seguinte à rendição, isso derrubou a ditadura e então triunfou a revolução. Quem dera fosse tão fácil. Seríamos mais felizes e não teríamos que suportar décadas de submissão ao imperialismo e às políticas neoliberais. Mas, infelizmente, o argumento do autor não passa de um rosário de inconsistências históricas e teóricas. Vamos ver.

A primeira coisa a destacar é que, após a rendição de 14 de junho, os protestos subsequentes contra o governo na Praça de Maio, com o grito de “os meninos morreram, os chefes os venderam”, e a queda de Galtieri, deixaram o regime ferido de morte, mas a ditadura continuou por mais 15 meses. A desvalorização desse fato, enorme como uma casa, está no centro da ideia de “revolução triunfante” que Sorans imagina. Por sorte, ele esclarece que: “Só depois [da queda de Galtieri], os militares, com o aval do PJ, da UCR e dos partidos burgueses unidos na Multipartidária, decidiram que o general Bignone assumisse, tentando desviar essa mobilização revolucionária…”. Se fosse esse o caso: eles triunfaram ou não nessa política? Se lermos Sorans, pareceria que não, o que seria demonstrado pelo fato de que “hoje os militares continuam totalmente desprestigiados”.

No entanto, o que a história nos conta é outra coisa. A derrota nas Malvinas e a subsequente crise terminal da ditadura implicaram uma mudança abrupta da situação que selou a impossibilidade de qualquer transição muito mais continuísta como a que ocorreu depois no Chile, com a ditadura de Pinochet. Justamente para enfrentar esse cenário, já em 24 de junho de 1982 a Multipartidária — criada em 1981 — reuniu-se no Congresso e apoiou a continuidade da ditadura através da posse do general Bignone, tornando-se seu principal sustentáculo até as eleições de outubro de 1983, evitando uma queda abrupta da ditadura. Assim se gestou o caráter pactuado da transição. O fato de ter havido mobilizações contra a ditadura não diminui esse pacto, apenas o torna mais pérfido. Foi assim que se consolidaram toda uma série de continuidades institucionais, políticas e econômicas que mencionamos, e que fortaleceram tanto os pilares neoliberais do regime democrático-burguês que o sucedeu quanto a submissão ao imperialismo, que persiste até hoje.

A isso se deve acrescentar que a política de Galtieri de tomar uma causa justa para declarar guerra à ordem de Yalta 5 foi aventureira em muitos sentidos. Não só para a nação, mas para a própria burguesia. Com seu plano de “ocupar para negociar” 6 , a Junta apostava na ideia peregrina de que o imperialismo norte-americano recompensaria sua fidelidade, intercedendo a seu favor para evitar uma ação britânica. Obviamente, isso não aconteceu. Bem antes disso, a ditadura já havia cumprido a missão para a qual a burguesia a havia convocado. A queda de Viola já havia sido a expressão de uma disfuncionalidade crescente. O desastre militar nas Malvinas, que alienava a relação entre a burguesia local e seu amo norte-americano, acabou confirmando isso. Daí um importante incentivo que a burguesia tinha para a “transição” e que, como outros aspectos, desaparece no relato do nosso autor.

Agora, por que Sorans coloca tanto empenho em forçar os fatos? Estamos diante de um exemplo clássico de dogmatismo. Acontece que a Izquierda Socialista tem determinada teoria da revolução, e como essa teoria não condiz com os fatos, são estes últimos que devem estar errados. Essa teoria remonta à teoria da revolução democrática de Nahuel Moreno 7. Sorans se escandaliza porque dizemos que essa proposta se separa da teoria da revolução permanente de Trotsky. Mas não estamos discutindo problemas talmúdicos. O próprio Moreno tinha menos dificuldades em marcar essas diferenças. Assim, ele afirma que:

O que Trotsky não propôs, apesar de ter feito o paralelo entre stalinismo e fascismo, foi que também nos países capitalistas era necessário fazer uma revolução no regime político 8 : destruir o fascismo para conquistar as liberdades da democracia burguesa, mesmo que fosse no terreno dos regimes políticos da burguesia, do Estado burguês. Concretamente, não propôs que era necessária uma revolução democrática que liquidasse o regime totalitário fascista como parte ou primeiro passo para a revolução socialista, e deixou pendente esse grave problema teórico. 9

A discussão nesse ponto é que Trotsky não havia deixado pendente esse problema teórico. Ele havia se referido a isso tanto em relação à Itália quanto à Alemanha. Mas o havia feito em termos muito diferentes dos esboçados por Moreno. Em diálogo com seus partidários italianos, Trotsky responde à questão de se pode existir uma hipotética “revolução antifascista”. Sua resposta é não.

No entanto, não descarta que, se eclodir uma profunda crise revolucionária e a vanguarda proletária não tomar o poder, “possivelmente a burguesia restaurará seu domínio sobre bases ‘democráticas’” 10. Algo semelhante ele defende em relação à Revolução Alemã de 1918.

Em sua concepção, a República de Weimar não foi o coroamento de uma revolução burguesa, mas o resultado de uma revolução proletária decapitada pela social-democracia. Ou seja, para Trotsky, não havia o tipo de “revolução democrática triunfante” que Moreno vislumbrava. Se, como produto do aborto de uma revolução proletária, surgisse um regime democrático burguês, seria porque a contrarrevolução burguesa foi forçada pelas circunstâncias. Isso, de fato, também aconteceu muito depois na Revolução Portuguesa de 1974 contra a ditadura de Salazar. A partir de então, o imperialismo transformou as “aberturas democráticas” em políticas preventivas diante da queda de vários regimes ditatoriais. Antes do desenvolvimento de sua teoria sobre a revolução democrática, a corrente de Moreno havia analisado essas políticas em termos de “contrarrevolução democrática” 11.

Embora Sorans se irrite, a ideia de revolução democrática de Moreno se opõe à revolução permanente de Trotsky. A primeira, ao apontar para uma suposta revolução nos marcos do regime político burguês, separa a luta por certas demandas democráticas, como o sufrágio universal ou a legalização de partidos e sindicatos, da resolução dos problemas democráticos-estruturais, como a opressão imperialista, que são centrais em países oprimidos como o nosso. A teoria da revolução permanente, ao contrário, ressalta a enorme interconexão entre ambas — embora soe estranho ter que lembrar disso. Assim, aponta que nos países de desenvolvimento capitalista atrasado, as burguesias locais são incapazes de liderar a luta pela resolução integral e eficaz dos objetivos democráticos e pela emancipação nacional, devido aos seus múltiplos laços com o imperialismo. Por isso, a proposta de Trotsky era que apenas uma aliança de setores populares, liderada pela classe trabalhadora conduzida por um partido revolucionário, estaria em condições de levar os objetivos democráticos até sua resolução integral e eficaz, afetando os interesses fundamentais da burguesia “nacional” e colocando em pauta objetivos propriamente socialistas. As quatro décadas de democracia burguesa cada vez mais decadente na Argentina, atravessadas por todo tipo de reformas neoliberais “estruturais”, pela dívida e pelo FMI, são uma confirmação clara, pela negativa, desse problema.

Além disso, seria injusto atribuir a Nahuel Moreno a visão delirante que Sorans apresenta sobre os últimos 40 anos da história argentina, consistindo em uma espécie de ascensão ininterrupta do movimento operário e de massas durante os anos 80 e 90, aberto pelo “imenso triunfo revolucionário” de 1982. Para fundamentá-lo, nosso autor repete toda a história de grandes lutas defensivas, heróicas em muitos casos, travadas pela classe trabalhadora e pelos setores populares que já analisamos em nosso artigo original, apenas despindo-as de qualquer reflexão política, estratégica ou até mesmo tática. As batalhas são apresentadas como uma soma de eventos para fins puramente descritivos, entre elas as jornadas revolucionárias de 2001, das quais já não se sabe se ele continua considerando uma “revolução popular” triunfante, como considerava quando a IS fazia parte do MST. O desfecho dessa visão superficial é a ausência, em seu relato, do kirchnerismo, que, após Duhalde, liderou a reconfiguração do peronismo e a recomposição do “Estado ampliado” durante 12 anos ininterruptos após a irrupção das massas em 2001. Seria necessário perguntar a Sorans porque, se viemos de uma ascensão de 40 anos, com uma ou duas revoluções triunfantes — dependendo se se conta ou não 2001 —, a corrente da qual ele é dirigente, apesar de sua clareza meridiana, não conseguiu aproveitar isso para se fortalecer. Um grande mistério.

Por que optamos pela “frente única” da III Internacional em vez da que “prefere” a IS

Nesse desenvolvimento, destacam-se como política do PTS a proposta da “frente única operária”. A esse respeito, Maiello-Albamonte citam a III Internacional e Trotsky. É seu eterno hábito recitar citações. Na Izquierda Socialista, preferimos falar de chamados à “unidade de ação e enfrentamento” ou diferenciação com as direções. Já que “frente” é concretizar uma forma organizativa que dificilmente ou excepcionalmente pode ser constituída com a burocracia sindical ou setores dela. Popularmente, definimos isso como táticas de “exigência e denúncia”. Por exemplo, “que a CGT rompa a trégua e convoque uma nova greve nacional”.

Com esses termos, Sorans nos convida a deixar de lado a ideia de Trotsky e da III Internacional sobre a frente única para nos somarmos à concepção que a IS “prefere”. A resposta é simples: muito obrigado, mas não. Segundo nosso autor, a “frente única”, que deveríamos chamar de “unidade de ação e enfrentamento”, seria uma espécie de seguidismo à burocracia sindical com as bandeiras em alto. Sob esse ângulo, ele critica o PTS por não ter cumprido com o dever de ser comparsa no ato de 1º de maio organizado pela burocracia da CGT. Esse ato folclórico, sem nenhum tipo de relevância do ponto de vista da luta de classes, é definido pela IS como “uma das mobilizações de massas contra o plano Milei”. Parece uma piada, mas é literal. Por outro lado, em relação à greve contundente de 9 de maio — cuja organização desde as bases envolveu todas as agrupações do Movimento de Agrupações Classistas e o PTS —, Sorans nos repreende por termos ousado criticar a burocracia por deixar passar sem luta a aprovação da Lei de Bases na câmara dos deputados. Também teríamos pecado contra a “unidade de ação e enfrentamento” por querer organizar uma política independente na marcha educativa de 23 de abril para defender a independência do movimento estudantil em relação aos reitores que, após os discursos no palco, acabaram entregando tudo por um prato de lentilhas. Se esses são nossos pecados, não podemos negá-los, somos pecadores.

Agora, a frente única é algo muito diferente do que Sorans propõe. Popularizada pela III Internacional com a fórmula “golpear juntos, marchar separados”, refere-se, por um lado, à possibilidade de unificar as fileiras da classe trabalhadora na luta de classes para enfrentar a burguesia, além das divisões impostas pela burocracia — por exemplo, contratados-efetivos, empregados-desempregados, sindicalizados-não sindicalizados, etc. Por outro lado, tem como objetivo, com base nessa experiência comum, agrupar os setores mais avançados da classe em um partido revolucionário, subproduto da confrontação de programas e estratégias. Naquele “golpear juntos”, o termo “golpear” é mais literal do que imagina Sorans. Refere-se a ações de luta reais, não meros atos folclóricos organizados pela burocracia, como o de 1º de maio, que nosso autor tanto exalta, os quais carecem de qualquer efeito e servem apenas para que a burocracia faça sua mímica de luta. Por isso, em nosso artigo utilizamos como exemplo de uma ação que teve elementos de “frente única” as jornadas de dezembro de 2017 contra a reforma previdenciária de Macri. Ali, setores dos sindicatos — com ou apesar de suas direções —, movimentos sociais — inclusive alguns vinculados ao kirchnerismo — e a esquerda se mobilizaram para protagonizar aquela concentração na Praça do Congresso que enfrentou a repressão e marcou o início do declínio do governo Macri.

Esse vínculo estreito com a ação na luta de classes é crucial na frente única como tática também do ponto de vista daquele “marchar separados”. É precisamente na intervenção nesses combates que os trabalhadores e as trabalhadoras que ainda confiam na direção da burocracia ou em variantes de conciliação de classes podem fazer uma experiência e tirar conclusões sobre a orientação de seus líderes. Ou seja, onde a esquerda revolucionária pode demonstrar que é — desde que realmente seja — o setor mais decidido, mais consequente na luta, ao impulsionar a democracia operária e a unidade contra os patrões, com seu programa, sua política, e assim convencer parte desses trabalhadores a se unir à construção de um grande partido anticapitalista e socialista da classe trabalhadora. Por isso, soa ridícula a crítica de Sorans, quando nos censura por criticar a orientação totalmente capituladora da burocracia no contexto dos preparativos para a grande greve de 9 de maio. A mesma que até hoje, na melhor das hipóteses, continua convocando ações isoladas sem nenhum plano de luta para derrotar a “liquidificadora e a motosserra” de Milei. Embora se refira ao movimento estudantil, guardadas as devidas diferenças, pode-se dizer o mesmo de sua crítica à nossa proposta de política independente na marcha universitária de 23 de abril.

Reduzir a frente única a uma tática de “denúncia e exigência” é confundir a luta com a diplomacia. Quando a III Internacional falava de frente única, referia-se à articulação de volumes de força para o combate. Não se trata de uma exigência impotente à burocracia para que ela mude sua orientação, caso contrário a denunciaremos. A chave da frente única é como consegui-la de forma efetiva. Para isso, são necessárias forças “próprias”. Por isso, em nosso artigo apontamos três formas de se impor a frente única. A primeira é pelo próprio impulso das massas que passam à ação, o que seria mais uma unificação “de fato”, como ocorreu em dezembro de 2001 e cristalizou-se numa aliança entre o movimento dos desempregados e setores das classes médias (o famoso “piquete e panelaço” do qual os sindicatos ficaram de fora por causa da ação da burocracia). A segunda é graças à ação de um partido revolucionário, que para consegui-lo precisa ser uma força política poderosa que constitua uma porção decisiva da classe trabalhadora organizada sindical ou politicamente (Trotsky em suas “Teses sobre a frente única” fala que é necessário um quarto ou um terço dela). E uma terceira variante surge a partir da articulação dos setores em luta que constituem a vanguarda do movimento operário em instituições de coordenação (o que chamamos, seguindo Trotsky, “comitês de ação”) que, com seu peso, imponham a frente única à burocracia. Uma mecânica desse tipo aconteceu em 1975, quando as Coordenadoras Interfabriles forçaram a burocracia a realizar a greve geral de 7 e 8 de julho.

Certamente a esquerda revolucionária não pode simplesmente esperar passivamente que a frente única se imponha pelo impulso das massas (como em 2001). Isso significaria ignorar que as forças do regime atuam constantemente para tirar os movimentos de luta das ruas e devolvê-los aos canais institucionais, seja desviando os processos de mobilização, seja pela repressão ou por uma combinação de ambos. No caso argentino, esse processo foi encarnado, primeiro por Duhalde durante seu breve interregno e depois plenamente pelo kirchnerismo. Esse é um dos principais problemas enfrentados pelas múltiplas revoltas que atravessaram o globo na última década, incluindo o ciclo de 2019, cujo epicentro foi o Chile. Frentes únicas “de fato”, como o conquistado durante a greve de 12 de novembro de 2019 no Chile, onde diversos sindicatos se uniram com a juventude precária das periferias em aliança com setores médios democráticos atrás do “Fora Piñera”, foram rapidamente desarticulados por uma combinação de desvio político, ao qual a burocracia aderiu (“Acordo pela Paz Social e a Nova Constituição”) e repressão redobrada contra os setores mais combativos. Nesse contexto, enquanto não houver partidos revolucionários com força suficiente para impor a frente única por seu próprio peso, ganha especial relevância, em um cenário de fragmentação da classe trabalhadora, o desenvolvimento de instituições permanentes de unificação dos setores em luta, combativos e organizações políticas da classe trabalhadora (“comitês de ação”). Podem ser coordenadoras que incluam a participação do ativismo. Inclusive, instâncias como as Assembleias de bairro, que surgiram desde o final do ano passado, principalmente na Grande Buenos Aires, mostraram elementos nesse sentido, assim como outras experiências, como a luta autoconvocada de trabalhadores da educação e da saúde em Misiones ou o recente conflito docente em Neuquén, que deram origem a experiências assembleistas que são um ponto de apoio nesse mesmo sentido. A questão é que a energia mobilizada pelo movimento não se disperse em combates isolados sem continuidade, mas sirva como alavanca para impor a frente única.

A luta por um governo de trabalhadores e uma democracia de outra classe

O desenvolvimento virtuoso de uma mecânica como a que descrevemos é vital se estamos pensando na revolução, não “no terreno dos regimes políticos da burguesia”, mas em termos do desenvolvimento de um poder alternativo que possa enfrentar com sucesso o Estado capitalista em um processo revolucionário. Os conselhos ou “soviets”, que emergiram no século XX como forma nova de poder constituinte da classe trabalhadora e do povo explorado e oprimido, são precisamente organismos de frente única de massas quando esse atinge seu maior desenvolvimento. Eles expressaram uma nova prática potencialmente antagônica à prática burguesa da política. Sua estrutura flexível e elástica, com deputados revogáveis eleitos a partir da rede que compõe a produção e reprodução da sociedade –fábricas, empresas, escritórios, campos, hospitais, escolas, universidades, entre outros– permite articular as diversas reivindicações e formas de luta para criar um poder alternativo. Desde Marx e Engels sabemos que “a classe trabalhadora não pode simplesmente tomar posse da máquina do Estado tal como está, e colocá-la em movimento para seus próprios fins” 12. Os conselhos demonstraram seu potencial tanto para a preparação da luta pelo poder quanto para a tomada do poder pela classe trabalhadora e, uma vez conquistado, como instituições de uma democracia de outra classe, muito mais ampla que qualquer democracia burguesa. Um “governo dos trabalhadores e das trabalhadoras imposto pela mobilização dos explorados e oprimidos”, como propõe a declaração programática do FITU, deve se basear em uma democracia dos conselhos (soviets). No entanto, essa é uma das diferenças históricas centrais que temos dentro da Frente de Esquerda, o que tem levado a que não haja uma formulação comum em seu programa que seja explícita nesse sentido.

Sem essa luta pelo desenvolvimento de instituições de unificação e coordenação dos setores em luta e, em perspectiva, de conselhos/soviets, é praticamente impossível romper com o ecossistema de reprodução dos regimes burgueses em crise, típico da atualidade, onde surgem fenômenos de direita e extrema-direita, assim como frentes “anti” –“antineoliberais” ou “populismos de esquerda” cada vez mais degradados– que atuam como válvulas de escape para sustentar politicamente um capitalismo incapaz de consolidar novas hegemonias. A isso se soma que, nos casos em que o regime se encontra mais ameaçado, surge, em oposição à frente única (“golpear juntos, marchar separados”), o que na tradição marxista é chamado de “frente popular”, cuja crítica, curiosamente, não aparece no artigo de Sorans. Esse consiste na colaboração entre organizações operárias, sindicatos e movimentos sociais por trás de setores da burguesia –ou suas sombras– com um programa que adota algumas demandas do movimento de massas para enquadrá-las na defesa dos interesses fundamentais da burguesia, a fim de salvá-los. Em perspectiva, parece que essa política é propiciada por Grabois e a ala esquerda do peronismo. Nos anos 70, o peronismo –político e sindical– se dividiu entre esse tipo de variante (Montoneros, etc.) e aqueles que apostaram em métodos fascistas para liquidar a vanguarda, cuja expressão mais marcante foram os bandos da Triple A. Mas, como era de se esperar, as referências àquele “ensaio revolucionário” e seu balanço, que constituíam o ponto de partida de nosso artigo anterior (e de qualquer reflexão séria), brilham pela ausência na abordagem de Sorans [O artigo criticado por Sorans faz parte de uma série que inclui dois anteriores. Nomeadamente “Liberalismo y peronismo: dos ‘relatos’ para borrar la insurgencia de la clase trabajadora de la historia política nacional” y “Los herederos del Cordobazo: conclusiones políticas del ‘1905’ argentino”.].

Hoje estamos diante de um momento histórico decisivo, diante de uma nova tentativa de reestruturar o país em função dos interesses das grandes corporações e do capital financeiro. O peronismo está em uma crise profunda e começam a esboçar-se as primeiras batalhas da luta de classes do período. A Frente de Esquerda que integramos já é, há mais de uma década, uma referência política no país. Sorans tem razão quando diz que o PTS e a Izquierda Socialista têm “duas visões opostas desde a queda da ditadura e da política para construir uma direção socialista revolucionária”. O problema é que a visão de Sorans, ligada a revoluções “no terreno dos regimes políticos da burguesia”, à separação da luta por certas demandas democráticas da resolução dos problemas democrático-estruturais como a opressão imperialista, à não ver a vinculação entre a democracia capitalista pós-83 e o neoliberalismo, à redução da frente única a um problema de “exigência e denúncia”, a pensar a questão do governo dos trabalhadores fora do desenvolvimento de conselhos/soviets, já fracassou sistematicamente nas últimas quatro décadas.

Para construir um grande partido revolucionário de trabalhadores com um programa anticapitalista e socialista, precisamos de uma esquerda que impulsione a auto-organização e se conecte com os setores de vanguarda do movimento operário, estudantil, de mulheres, das Assembleias de bairro, que lute sistematicamente contra a burocracia nos sindicatos, apelando à tática da frente única operário, que tenha como perspectiva o desenvolvimento de conselhos e uma democracia de outra classe que ultrapasse os estreitos limites da democracia capitalista, que se prepare teórica e politicamente para enfrentar as variantes de colaboração de classes da “frente popular”, que levante as bandeiras do internacionalismo proletário contra qualquer “campismo” que termine apoiando uma potência imperialista contra outra (debate que tivemos com a IS, por exemplo, em torno da Ucrânia), entre outros aspectos centrais. Para nós, apenas uma esquerda revolucionária assim pode convergir, no calor dos combates que estão colocados nesta etapa do processo político nacional e internacional, com os setores que rompem com o peronismo e propor uma alternativa política para a saída da crise aguda que atravessa o país hoje 13. Se serve para esclarecer algo disso, seja bem-vinda a polêmica.

 

Notas de rodapé
3. Veja-se, por exemplo, a citação sobre a qual Sorans constrói sua argumentação: “Segundo Maiello-Albamonte, a ‘saída’ da ditadura teria sido fruto de uma ‘transição pactuada entre os militares e a ‘multipartidária’ – com a UCR e o PJ à frente. (…) Este foi um elemento central na configuração do que poderíamos chamar de ‘a democracia da derrota’”. Quando a citação original é a seguinte (em negrito as partes extraídas): “Na saída da ditadura em 1983, a transição pactuada entre os militares e a ‘multipartidária’ – com a UCR e o PJ à frente – buscou se apresentar como uma descontinuidade absoluta entre a democracia burguesa emergente e a ditadura genocida, entre o novo ‘consenso’ e a violência fundadora do neoliberalismo que chega até nós hoje. Aquele pacto foi mais pérfido na medida em que a ditadura estava colapsando. Suas próprias contradições internas haviam sido exacerbadas tanto pelo movimento democrático quanto por eventos da luta de classes, especialmente a partir de 1979, que tiveram seu ponto culminante com a greve geral com mobilizações e confrontos de março de 1982. Seu colapso final viria após a política aventureira que levou à derrota frente ao imperialismo britânico na Guerra das Malvinas. Este foi um elemento central na configuração do que poderíamos chamar de ‘a democracia da derrota’, ao consolidar o neoliberalismo e aprofundar os traços semicoloniais do país. Uma das expressões mais evidentes disso tem sido o estigma da dívida e a intervenção quase permanente do FMI”.
4. https://www.laizquierdadiario.com/1983-2023 debates-sobre-la-democracia-y-la-izquierda
5. Em alusão à Conferência de Yalta no final da Segunda Guerra Mundial, nos referimos à ordem que estabelecia a divisão entre o bloco ocidental comandado pelos EUA e a URSS, à época em total decadência.
7. Após a morte de Nahuel Moreno, o que restou dessa corrente aprofundou as teses da revolução democrática contra toda evidência. Para um debate sobre a utilização mais ampla dessa teoria, ver: Albamonte, Emilio e Maiello, Matías, “Nos limites da restauração burguesa”, Estratégia Internacional N.º 27, 2011.
8. Aqui Moreno está fazendo um paralelo com a proposta de uma “revolução política” que Trotsky havia colocado contra a burocracia stalinista na URSS. Nesse caso, a interpretação de Moreno dessa proposta exclusivamente como uma revolução dentro do regime político também se afasta da proposta de Trotsky. Como se assinala no Programa de Transição, a “revolução política” na URSS, baseada na defesa da propriedade estatal dos meios de produção, ocorrerá ao mesmo tempo “contra a desigualdade social e a opressão política”, onde ambos os aspectos são centrais. Assim, junto com a defesa da mais ampla democracia soviética, Trotsky sustenta como parte do programa para a “revolução política” a “revisão completa da economia planificada em benefício dos produtores e consumidores”.
9. Moreno, Nahuel, Las revoluciones del siglo XX, Bs. As., Ediciones Antídoto, 1986, p. 53.
10. Trotsky, León, “Problemas de la revolución italiana”. Ver al respecto también Romano, Manolo, “Polémica con la LIT y el legado teórico de Nahuel Moreno”, Estrategia internacional N.° 3, 1994.
11. Ver “América Latina. Presiones para ‘caracterizarla’”, Unidad Socialista N.° 4, Año 1, 8/1977. Para un análisis, ver: Liszt, Gabriela, “Historia y balance del MAS Argentino (parte 1)”, revista Lucha de Clases N.° 6, junio de 2006.
12. Marx, Karl y Engels, Friedrich, “Prólogo a la edición alemana de 1872”, en El manifiesto comunista, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2023.
13. Em seu artigo, Sorans dedica uma parte importante de sua atenção e veemência a críticas que, em consideração aos leitores, preferimos não abordar. Por exemplo, que em nosso artigo não mencionamos o “Pollo” Sobrero, o que implicaria que não quererímos reconhecer a importância da recuperação da seção Oeste-Haedo da União Ferroviária. Só cabe dizer que não é o caso; de fato, em nosso artigo traçamos um panorama geral sem referências a dirigentes específicos, revendo alguns exemplos que, desde já, podem ser completados sem tanto alarde. Em relação a outros debates, como o que ocorreu em torno da formação de listas nas eleições de 2018 da ATEN (há seis anos!) e a política mesquinha da IS, pode-se ler nossa resposta aqui https://www.laizquierdadiario.com/Elecciones-en-ATEN-se-conformo-un-frente-antiburocratico-y-abierto-a-las-bases. Também no que se refere às nossas posições históricas dentro da Plenária do Sindicalismo Combativo, remetemos às páginas de La Izquierda Diario, onde escrevemos amplos debates sobre cada um dos aspectos apontados por Sorans.
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