Gabriela Mueller
Luno P.
Em meio às eleições municipais de 2024, a pauta da legalização da maconha, assim como outras pautas como legalização do aborto, pautas históricas dos setores oprimidos e dos trabalhadores, são deixadas de lado em favor de uma política de conciliação. A direita se utiliza da guerra às drogas e da precarização do trabalho para encher seus bolsos, por isso, as candidaturas do MRT levantam alto a bandeira da legalização, contra o racismo, o assassinato em massa e pelo direito ao lazer.
O tema da legalização da maconha historicamente atrai muitas pessoas, seja pelo direito a poder utilizá-la de forma recreativa sem ser criminalizado, seja pelos seus componentes medicinais, utilizados em alguns fármacos para o tratamento de dores, convulsões, entre outros. Recentemente, o debate sobre a legalização voltou à tona por conta da tramitação no STF que descriminalizou o porte de até 40g ou 6 pés fêmeas da planta, medida que foi fruto de anos de mobilização de jovens, trabalhadores e pesquisadores, mas que ainda mantém os contornos do racismo presente nas abordagens policiais, as quais decidem no final das contas quem é traficante ou usuário.
Para abordar esse debate de forma séria, é necessário limpar o campo de qualquer moralismo, pois a humanidade utiliza diversas substâncias psicoativas há séculos. Desde o café preto, até os medicamentos, antidepressivos e o álcool, todos são substâncias que interagem quimicamente nos neurotransmissores do organismo, e grande parte deles têm grandes indústrias como a farmacêutica ou a de bebidas. A questão é quem define quais substâncias são legais e quais são ilegais e qual o critério utilizado para decidir quais são permitidas e quais não. Para responder tais perguntas é necessário buscar o histórico do proibicionismo no Brasil e os interesses políticos e econômicos por trás da criminalização da maconha.
A maconha acompanha o homem desde o tempo dos antigos caçadores-coletores da Idade da Pedra, mesmo período em que a origem do ritual da planta teria derivado dos cultos de fertilidade direcionados à agricultura. Do cânhamo, como era conhecida a maconha, era utilizada a fibra para fazer tecidos, papel e cordas para embarcações de navios pela coroa portuguesa e países europeus, havendo registros de plantações no Brasil com esse objetivo comercial. Também, internacionalmente, o óleo e a fibra do cânhamo eram utilizados para fabricação de tintas, vernizes e até protótipos de biocombustíveis. A planta consumida como fumo chegou no Brasil, conforme alguns estudos, por meio dos negros escravizados, sendo conhecida também como “fumo de Angola”, “fumo de negro”, “liamba”, “pito do pango” dentre outros apelidos. Os negros tinham ali, assim como a capoeira, como as suas religiosidades, mais um elemento cultural que permitia a confraternização de sua identidade e o sentimento de unidade com suas origens. A maconha era plantada e cultivada nos quilombos, inclusive no de Palmares, onde era utilizada para consumo dos demais negros libertos. Conforme o livro O Quilombo dos Palmares”, de Edison Carneiro,
“Da fauna e da flora dos Palmares, portanto, os negros retiravam grande parte de seu sustento, azeite, luz, a sua vestimenta, os materiais, com que construíam as suas choças e as cercas de pau a pique com que se fizeram famosos na guerra.
E, nos momentos de tristeza, de banzo, de saudade da África, os negros tinham ali à mão a liamba, de cuja inflorescência retiravam a maconha, que pitavam por um cachimbo de barro montado sobre um longo canudo de taquari atravessando uma cabaça de água onde o fumo esfriava. ( Os holandeses diziam que esses cachimbos eram feitos com os cocos das palmeiras.) Era fumo de Angola, a planta que dava sonhos maravilhosos.”
A proibição da maconha e o controle repressivo dos negros
O Brasil foi o primeiro país a proibir a maconha no mundo. Em 1830, no Rio de Janeiro, cidade com uma das maiores concentrações de população negra do Brasil, publicou a lei do “pito do pango”, que dizia o seguinte:
“É proibida a venda e o uso do “Pito do Pango”, bem como a conservação dele em casas públicas: os contraventores serão multados, a saber, o vendedor em 20$000, e os escravos, e mais pessoas que dele usarem, em 3 dias de cadeia.”
A lei era evidentemente racista, pois diferenciava a pena, muito mais pesada para o consumidor, geralmente os negros, do que para os vendedores, geralmente homens brancos, que deveriam pagar apenas uma multa. Essa lei e a proibição da maconha tinham uma importância crucial para a elite branca do país, que buscava associar a maconha à comportamentos agressivos e “criminosos” dos negros. Aí a psiquiatria teve um papel importante, representada pelo médico José Rodrigues Dória, como mais um respaldo supostamente científico (racista) para a repressão aos negros, o qual sustentava a tese de que a maconha aprofundava comportamentos de roubo e agitação.
Claramente, toda a operação para criminalizar e demonizar a maconha tinha um caráter essencialmente racista, pois buscava, juntamente com a perseguição à capoeira e às religiões de matriz africana, aprofundar a repressão aos negros e suas formas de expressão. Esse processo também possuía uma característica preventiva para a elite nacional, sendo uma forma de manter os negros, que se rebelavam em diversas partes do Brasil e do mundo, controlados. É indispensável considerar que a Revolução Haitiana, ocorrida em 1791, teve um papel fundamental no tabuleiro internacional, constituindo a primeira revolução de negros do mundo, os quais conseguiram expulsar os colonos brancos, constituindo o primeiro país negro independente. Esse acontecimento produziu um medo nas elites dos países da “haitinização”, de que as massas de negros também se rebelassem de forma revolucionária contra eles, o que, de fato aconteceu, nos processos da revolta dos Malês, dos Ganhadores na Bahia ou mesmo no processo de resistência representado pelo Quilombo dos Palmares.
Mesmo com a abolição da escravatura, a proibição serviu para continuar reprimindo e controlando a liberdade dos negros. A escravidão foi abolida em 1888, a República foi proclamada em 1889 e a sua Constituição entrou em vigor em 1891. Um ano antes de ser promulgada sua lei maior, a República tratou de instaurar dois instrumentos de controle dos negros em 1890: O Código Penal e a “Sessão de Entorpecentes, Tóxicos e Mistificação”, a fim de combater cultos de origem africana e ao uso da cannabis, utilizada em rituais de candomblé, considerado “baixo espiritismo”. 1
Tripé de sustentação da exploração da classe trabalhadora brasileira: guerra às drogas, encarceramento e precarização do trabalho
O termo “guerra às drogas” foi cunhado por Richard Nixon, em 1960, como uma forma de perseguição aos jovens que compunham o movimento contra a guerra no Vietnã e também contra os Panteras Negras. Isso fica evidente em uma entrevista de John Ehrlichman, conselheiro de Nixon na década de 1960, para a revista Harper’s, em que diz:
“… a Casa Branca de Nixon tinha dois inimigos: a esquerda anti-guerra e os negros (…) Sabíamos que não podíamos proibir ser anti-guerra ou ser negro, mas poderíamos fazer as pessoas associarem hippies com maconha e negros com heroína, criminalizá-los duramente. Podemos prender seus líderes, invadir suas reuniões, denegrir na mídia todos os dias. Sabíamos que estávamos mentindo sobre drogas? Claro”
No Brasil essa política teve e ainda tem muito peso como instrumento de repressão constante dos negros, que tem também uma forma preventiva contra possíveis rebeliões contra a opressão e a exploração. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o sistema carcerário brasileiro apresentava cerca de 900 mil presos até o terceiro semestre de 2022. Deste total, 199.198 cumprem pena por tráfico de drogas, sendo 19 mil presos por portar até 100g de maconha. Ainda, desse total de quase 900 mil, 44,5% são presos provisórios, ou seja, estão encarcerados sem a devida ocorrência de um julgamento. Do total dos encarcerados, mais da metade, 68% são negros.
O tráfico de drogas movimenta cerca de 400 bilhões de dólares anualmente, segundo estimativas da ONU, sendo uma indústria altamente rentável. Ao contrário do que povoa o imaginário de muitos, os verdadeiros comandantes do tráfico não são jovens negros que moram em favelas, e sim grandes empresários, muitas vezes, deputados, políticos e burgueses. Esses saem sempre impunes, como foi com o caso do helicóptero com 450 kg de pasta base de cocaína que parou para abastecer na fazenda da família de Aécio Neves, ou o caso de apreensão de 39 quilos de cocaína na bagagem do sargento Manoel Silva Rodrigues, membro da comitiva de Jair Bolsonaro, em 2019. Obviamente, não houve punição alguma para ninguém até hoje.
Fica, portanto, evidente que a política proibicionista da guerra às drogas, juntamente com o encarceramento em massa são pilares base do capitalismo brasileiro, fundado na repressão à classe trabalhadora e à luta negra. Outro pilar fundamental que compõe esse tripé de sustentação do Estado burguês brasileiro é o trabalho precário.Segundo dados da Agência Brasil, Apesar dos negros representarem 56,1% da população em idade de trabalhar, estes correspondem a mais da metade dos desocupados (65,1%), sendo que 46% dos que estão ocupados, trabalham sem carteira assinada. Quando se fala do símbolo do trabalho precarizado, ou seja, trabalho sem direitos e sem vínculo empregatício, representado pelo trabalho de entregas de comida por aplicativo, uma pesquisa revelou que a maioria desses trabalhadores são negros. A pesquisa do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), em parceria Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) identificou que 68% dos entregadores e 62% dos motoristas se declaram pretos ou pardos. Ou seja, o trabalho precário é também uma forma que o sistema capitalista se utiliza da opressão racial para impor jornadas ainda mais extenuantes aos negros, em busca de maiores margens de lucro em cima de um trabalho ultra explorado. Quando se fala da escala 6 por 1 (trabalhar 6 dias na semana e folgar 1), o cenário é o mesmo, com imensas massas de jovens negros, mulheres e LGBTs tendo que se sujeitar a jornadas exaustivas, com um direito à folga limitadíssimo para ter o que comer. Tudo isso é herança da obra de reformas e ataques que começaram no golpe de 2016 com Temer, aprofundaram-se com Bolsonaro e são mantidas intactas por Lula-Alckmin, que reservam à juventude uma perspectiva de trabalho precário, sem direito ao descanso e ao lazer.
Legalizar a maconha, pelo fim da polícia e da guerra às drogas: queremos o direito a uma vida que valha a pena ser vivida
Não devemos ter nenhuma ilusão nas saídas institucionais, como no STF que é parte do Judiciário racista, mas sim confiar na luta para arrancar a legalização da maconha e de todas as drogas, o que só será possível com a hegemonização, pela classe trabalhadora, dos setores oprimidos que mais sofrem com repressão policial para dar uma saída consequente para o problema da violência policial. A frente ampla de Lula-Alckmin não está comprometida com essa pauta, fazendo coro com os setores reacionários da extrema direita bolsonarista apoiadores da guerra às drogas. O governo Lula, em parceria com Eduardo Leite, governador do RS, inaugurou a política de privatização dos presídios (uma política defendida por Bolsonaro), a exemplo do presídio privado de Erechim, no RS, que oferece R$233,01 por pessoa presa ao dia, fazendo um negócio lucrativo com o encarceramento. Isso prova que não é do interesse do governo combater a violência policial e o genocídio da população negra. Compondo a Frente Ampla e buscando reeditá-la em São Paulo, com Marta Suplicy,, o PSOL desistiu de levantar a bandeira da legalização à frente, a exemplo de Boulos, candidato a prefeito em São Paulo e que faz questão de afirmar em entrevistas que não defende a legalização das drogas. O argumento do “recuo tático” é frequentemente utilizado por setores do PT e do PSOL, como se, para conseguir avançar em condições melhores para eleger tal candidato, é necessário recuar em algumas pautas. O problema dessa lógica é que, progressivamente, as pautas históricas da juventude, dos negros e negras e da classe trabalhadora vão sendo deixadas de lado em favor da conciliação de classe, para não desagradar os setores de direita com os quais se está aliado.
Por apostar na perspectiva da independência de classe e na força da classe trabalhadora e não em alianças com a direita como faz o PT e o PSOL, é que as candidaturas do MRT nacionalmente defendem a legalização da maconha, contra a violência policial e a extrema direita. Essa luta precisa ser parte de impor um fim à farsa da guerra às drogas sendo, portanto, uma pauta antirracista, que envolva também a luta pelo fim da polícia, já que essa tem a função de reprimir negros e trabalhadores, em favor da manutenção dos lucros e da propriedade privada da burguesia. No entanto, a legalização por si só, sob um estado capitalista não garante o fim da opressão aos negros e jovens, já que não se enfrenta com a lógica do lucro e pode transformar a comercialização da maconha em mais um negócio rentável, aproveitando para seguir explorando a classe trabalhadora. Por isso, a organização da produção da maconha e sua distribuição precisa se dar sob controle dos trabalhadores e usuários, estando ligada ao enfrentamento da precarização do trabalho e ao questionamento da propriedade capitalista e o aparelho repressivo do Estado. Além disso, é necessário também avançar contra o roubo capitalista da vida da juventude, contra a escala 6 por 1, pela redução da jornada de trabalho para 30 horas semanais sem redução salarial, distribuindo as horas entre empregados e desempregados. Nesse sentido, se pode batalhar por uma vida que valha a pena ser vivida, em uma sociedade em que as pessoas não fiquem refém do vício em substâncias entorpecentes, e de qualidade cada vez mais duvidosa, para se anestesiar da brutalidade do dia a dia. Lutemos pela livre escolha do que e quando utilizar, superando estigmatizações e garantindo o amparo social e de saúde necessários, em uma lógica redutora de danos, garantida por um sistema de saúde 100% público e controlado pelos trabalhadores.