Revista Casa Marx

A crise democrática e a esquerda. Sobre um livro de Roberto Gargarella

Matías Maiello

 

Nas últimas semanas, o regime político argentino parece estar empenhado em exibir sua decadência. Milei apela à prerrogativa monárquica do “veto” presidencial para anular um modesto aumento nas aposentadorias, ao mesmo tempo em que reprime aposentados na porta do Congresso. Uma interminável negociação nos corredores do Senado, que vai desde o governo até o kirchnerismo, busca definir quem será ungido vitaliciamente como juiz supremo do que é legal ou não no país. Deputados visitam genocidas, enquanto Bullrich e Stornelli mantêm um manifestante contra a Lei de Bases como refém. Nas comissões parlamentares, debate-se como aumentar a intervenção estatal para restringir ainda mais a liberdade de associação e protesto dos trabalhadores, enquanto a burocracia sindical, cúmplice indispensável dos ataques do governo, se preocupa apenas com a defesa de seus privilégios. Como pano de fundo, anunciam-se novas rodadas de aumentos tarifários em um mar de pobreza que afeta mais da metade da população.

Neste artigo, propomos ir além desta conjuntura para pensar em algumas questões que estão na base das crises das democracias contemporâneas. Para explorá-las, o livro de Roberto Gargarella, Manifiesto por un derecho de izquierda, publicado no final do ano passado pela editora Siglo XXI, é mais do que oportuno. Jurista e sociólogo, o autor tem uma vasta obra cujos temas se condensam neste livro, convidando à reflexão e ao debate. Aqui, abordaremos suas teses e faremos um contraponto com algumas delas para refletir sobre a crise das democracias atuais e suas instituições, concepções alternativas de democracia, a questão do autogoverno coletivo, as liberdades pessoais e democráticas, o direito ao protesto e à resistência, entre outros temas que consideramos de suma importância para o debate da esquerda hoje.

Engrenagens institucionais baseadas na desconfiança da democracia

Para iniciar nosso percurso, escolhemos começar pelas críticas que o autor faz a um tipo predominante de constitucionalismo, caracterizado pela desconfiança na democracia e nas instituições que promove. O autor afirma que: “O tipo de constitucionalismo que se expandiu pelo Ocidente desde o final do século XVIII destinava-se mais a conter e limitar do que a promover e expandir esse ideal democrático” 1. Ele sustenta que este constitucionalismo se fundou na desconfiança democrática, dando lugar a uma estrutura institucional projetada para evitar excessos democráticos.

Atualmente, os mecanismos identificados com a democracia parecem restringir-se ao voto periódico a cada tantos anos. Gargarella problematiza essa situação e apela às tradições radicais do pensamento político para destacar que, embora o voto periódico seja indispensável em qualquer organização democrática, ele ganha sentido quando articulado com uma série de outras ferramentas. Entre elas, cita a rotação obrigatória dos cargos, mandatos curtos, revogação de mandatos e assembleias comunitárias. Na hora de definir as políticas futuras, o voto realizado em uma cabine de votação é um exercício solitário e individual, cuja mensagem outros interpretam por nós a partir de suas posições de poder. Ao mesmo tempo, mecanismos como a revogação de mandatos seriam mais adequados para julgar as políticas já realizadas. A democracia exige instituições que incluam o voto, mas que vão muito além disso.

Por outro lado, contra a concentração de poder nas mãos de poucos, o autor destaca que o direito de esquerda deveria ter uma inclinação antipresidencialista. No entanto, essa crítica não leva à alternativa de um sistema parlamentar, pois quando “a classe dirigente se distancia da cidadania que representa, o fato de que todos os assuntos públicos fiquem nas mãos de uma única pessoa ou de uma pequena elite constitui um problema bastante similar”; além disso, é preciso considerar os efeitos do lobby permanente de setores economicamente poderosos. A crise de representação existente é estrutural. Gargarella argumenta que, nas sociedades atuais, plurais e multiculturais, não há possibilidade de contar com instituições capazes de representar toda a sociedade. “Hoje, há muito mais vida política fora do Parlamento do que dentro dele. […] A forma cotidiana de expressão da cidadania não pode continuar dependendo dessa estrutura, incapaz de satisfazer qualquer de suas ambições básicas”.

Nesse sentido, a ideia de checks and balances (freios e contrapesos) é outro ponto problematizado. Seu argumento é claro: “O sistema de freios e contrapesos – o mecanismo que constitui o coração do constitucionalismo moderno – se baseia em uma lógica abertamente antidemocrática e inimiga do diálogo coletivo”. Sociologicamente obsoleto, respondia à tentativa de garantir um lugar institucional para cada uma das diferentes seções em que a sociedade era pensada – os federalistas americanos o viam como uma forma de evitar a guerra civil. A ideia de que se poderia evitar a opressão entre maiorias e minorias dando-lhes poder equivalente reflete o caráter antidemocrático com que o sistema foi concebido.

Dentro desse esquema, o autor dedica atenção especial à crítica do poder judiciário. A ideia de sua independência foi entendida, sobretudo, como distanciamento ou separação da cidadania; por isso, sua escolha é indireta, às vezes por acordo entre o Executivo e o Senado, os juízes têm ampla estabilidade, é exigida formação técnica especial, etc. Contra os princípios elitistas que constituem o coração do poder judiciário, com sua discricionariedade interpretativa e a pretensão de ter a última palavra, o autor afirma que é necessário reconectar a justiça com processos de conversa coletiva.

Embora no Manifiesto por um derecho de izquierda isso não seja tematizado, não é difícil encontrar alguns pontos de contato entre várias dessas críticas de Gargarella e as que Marx formulou em seu tempo. Este atribuiu à divisão de poderes um caráter fictício que, na prática, leva a uma progressiva concentração de poder nas mãos do executivo, especialmente em regimes presidencialistas, onde o Presidente atua como um substituto virtual do monarca constitucional. As “câmaras altas” ou senados atuam como câmaras de controle em relação aos parlamentos de base eleitoral mais ampla (“câmaras baixas” ou de deputados). Elas funcionam como uma proteção contra a vontade popular no campo legislativo. O poder judiciário proclama sua verdadeira “independência” em relação à eleição e deliberação popular 2.

Todo o sistema de “checks and balances” tem como objetivo evitar decisões que possam afetar os interesses fundamentais das classes dominantes. Em outras palavras, serve para limitar a soberania popular. Essa é uma característica distintiva que pode ser observada, não só na Argentina, mas em todas as democracias capitalistas do mundo atual.

Perspectivas sobre o autogoverno

Diante desse panorama, Gargarella faz uma pergunta pertinente: de que adianta expandir direitos se não se altera a estrutura de organização do poder? Sua resposta é: “Não faz sentido agregar, precisar, expandir ou reforçar os direitos constitucionais se, ao mesmo tempo, não se entra na (e modifica de maneira adequada) sala de máquinas da Constituição”. É necessário mudar a organização constitucional do poder, que foi moldada por concepções elitistas do constitucionalismo sob pressupostos de desconfiança na democracia. Enquanto isso não ocorrer, qualquer lista de direitos, por mais generosa que seja, continuará sem o motor político e social necessário para ativá-los. Sem controle da “sala de máquinas”, observa o autor, “os direitos correm o risco de permanecer como concessões do poder estabelecido, através das quais esse poder vigente procura – antes de tudo – beneficiar a si mesmo (conter protestos, obter legitimidade, cooptar opositores, expandir seu próprio poder)”. Por isso, ele defende a necessidade de concentrar as energias na mudança da organização constitucional do poder.

De onde propor essa mudança é um dos principais eixos do livro. Dois ideais ocupam o lugar central: uma ideia forte de democracia (autogoverno coletivo) e uma noção robusta de liberdade pessoal (autonomia pessoal). Começaremos pelo primeiro. O autogoverno coletivo, segundo Gargarella, está vinculado a uma ideia de democracia radical, que alude à possibilidade efetiva de que cada sociedade se governe de acordo com suas próprias leis e se torne plenamente dona de seu próprio destino. Em seu percurso histórico, que passa pela democracia ateniense, Revolução Francesa, independência norte-americana, entre outros momentos, destaca as palavras de Thomas Jefferson, quando afirma que:

“… o Povo tem o direito de mudar ou abolir qualquer outra forma de governo que tenda a destruir esses propósitos (vida, liberdade, busca pela felicidade), e de instituir um novo governo, fundado em tais princípios, e organizar seus poderes de forma que a realização de sua segurança e felicidade seja mais viável 3.”

Gargarella problematiza o velho esquema de organização de poderes – a tríade Executivo, Legislativo e Judiciário. Ele argumenta que a alternativa de poder concentrado nos modelos presidencialistas é inaceitável, ao mesmo tempo que questiona as formas tradicionais de organização do poder legislativo, com legisladores desvinculados de seus eleitores e sem assumir responsabilidade perante a cidadania. Também critica o poder judiciário, cuja estrutura atual ele considera falha e necessitada de uma reconstrução radical, ao mesmo tempo em que defende um papel amplo para os júris populares. Para o autor, as formas de representação cidadã devem ser repensadas a fim de canalizar a voz pública de outra maneira. Nesse sentido, ele desenvolve como questão destacada a ideia de “assembleias cidadãs”, que aborda tanto em relação às reformas constitucionais quanto às decisões mais relevantes de caráter local. No entanto, o caráter limitado que ele lhes confere (sejam emendas constitucionais ou decisões locais sobre impostos, investimento de recursos, questões ambientais) marca, em nossa opinião, uma desproporção considerável diante dos vastos problemas que o próprio Manifiesto por un derecho de izquierda levanta.

Na tradição do marxismo, há desenvolvimentos sobre esses temas em contraponto com a democracia radical que interessa trazer para o debate. Referimo-nos especialmente às formulações de Trotsky frente à decadente Terceira República Francesa em meados de 1930. Ali, ele ressignificaria algumas das observações de Marx em torno da Comuna de Paris de 1871 para delinear um regime alternativo através de uma série de propostas programáticas “transicionais” 4 rumo a uma democracia de outra classe, sob a premissa de que “uma democracia mais generosa facilitaria a luta pelo poder operário” 5. Entre elas, a supressão tanto do Senado quanto da presidência da República e a constituição de uma única assembleia que combinaria os poderes legislativo e executivo, onde “seus membros seriam eleitos por dois anos, por sufrágio universal de todos os maiores de dezoito anos, sem discriminação de sexo ou nacionalidade”. E acrescentava que: “seriam eleitos com base em assembleias locais, constantemente revogáveis por seus constituintes, e receberiam o salário de um operário especializado” 6. Essa eleição de deputados com base em assembleias locais está referenciada no modelo da Convenção Jacobina de 1793, o que é significativo se considerarmos que muitas dessas assembleias não se dissolveram após a eleição e assumiram um papel ativo no processo político.

Agora, além da democracia radical, podemos situar outra tradição ampla e muito cara à esquerda ao tratar o problema do autogoverno, que não é abordada no Manifiesto por un derecho de izquierda. Referimo-nos à democracia dos conselhos. Ela vai além do próprio marxismo, tanto que uma teórica liberal como Hannah Arendt observava que:

“… desde as revoluções do século XVIII, todo grande levante desenvolveu os rudimentos de uma forma de governo inteiramente nova, que surgiu de maneira independente de todas as teorias revolucionárias anteriores, diretamente do curso da própria revolução, ou seja, das experiências da ação e da consequente vontade dos executores de participar no desenvolvimento posterior dos assuntos públicos. Essa nova forma de governo é o sistema de conselhos 7.”

O correlato das críticas de Marx, mencionadas na seção anterior, eram suas considerações sobre a Comuna de Paris, sobre as quais marxistas posteriores se basearam para refletir sobre o problema do autogoverno vinculado à democracia dos conselhos. O que distingue essa proposta, em contraste com recuperações liberais como a de Arendt, é a possibilidade de integrar na ideia de autogoverno tanto “liberdade” quanto “necessidade”, democracia política e emancipação econômico-social. Ali, Marx, em oposição ao princípio de divisão de poderes, já defendia a ideia de um “órgão de trabalho”, executivo e legislativo ao mesmo tempo, o que implicava que uma mesma assembleia não fosse eleita apenas para debater, mas para executar suas próprias resoluções. Essa ideia de “órgão de trabalho” de Marx, juntamente com a revogabilidade e o fim dos privilégios, tem especial relevância para pensar o problema do autogoverno.

O conceito de democracia que fundamenta os regimes representativos atuais, retomando alguns termos da análise de Bernard Manin em Los principios del gobierno representativo, seria que a massa de cidadãos atua, antes de tudo, como fonte de legitimidade política, cujo direito se limita a consentir o poder, em vez de ser um conjunto de pessoas convocadas a participar do governo. É a essa última alternativa que aponta a longa tradição da democracia conselhista dentro do marxismo. Nessa perspectiva, como Gramsci destacou: “O consenso se supõe permanentemente ativo, a ponto de que os consentidores poderiam ser considerados como ‘funcionários’ do Estado, e as eleições, um modo de recrutamento voluntário de funcionários estatais de certo tipo, que, em certo sentido, poderia se aproximar (em diferentes níveis) do autogoverno 8.”

Liberdades pessoais e democracia capitalista

Se o vínculo entre o direito de esquerda e o ideal de autogoverno para Gargarella é claro e indiscutível, não se pode dizer o mesmo em relação à proteção das liberdades pessoais básicas, a qual ele considera muito mais controversa. O autor esclarece que sua observação não se refere ao óbvio, as ditaduras totalitárias que se autodefiniram como de esquerda, mas ao que ele vê como um desdém por parte de muitos autores e ativistas ligados à esquerda em relação à questão dos direitos fundamentais. Em sua visão, há uma resistência da esquerda em relação ao direito, que, em geral, foi caracterizado como um epifenômeno ou um elemento meramente superestrutural. Sua hipótese é que essa atitude pode ter sido influenciada pela suspeita de que as liberdades invocadas por outras correntes políticas fossem meras liberdades burguesas ou uma interpretação unilateral de alguns textos de Marx que, ele esclarece, contradizem o sentido geral do pensamento deste; para fundamentar isso, ele remete à obra do marxista analítico Jon Elster.

Duas questões parecem necessárias para contextualizar a problemática que o autor propõe, uma mais histórica e outra teórica. A primeira é destacar a ampla tradição do movimento socialista na luta pelas liberdades pessoais e democráticas, que praticamente não é abordada no livro. Essa tradição pode ser traçada até os primeiros escritos dos próprios Marx e Engels. A partir daí, o movimento socialista desempenhou um papel de vanguarda na luta pelas liberdades pessoais de expressão, imprensa, circulação, reunião, associação e liberdades democráticas em geral. Também no campo da luta pelos direitos das mulheres. August Bebel, que seria o principal dirigente do partido alemão e, em 1879, escreveria A Mulher e o Socialismo, e Clara Zetkin, grande organizadora das mulheres socialistas. Essa tradição continuou na Terceira Internacional. No campo da diversidade sexual, desde o início do século XX, foi no movimento socialista que se desenvolveram as concepções mais avançadas em relação ao clima ideológico retrógrado da época. O mesmo se aplica à luta contra o racismo, como se pode ver nas obras de José Carlos Mariátegui sobre a opressão dos povos indígenas. Uma lista que pode ser ampliada indefinidamente, incluindo o fato de que muitos dos avanços em direitos e liberdades pessoais dos primeiros anos da Revolução Russa, antes da contrarrevolução stalinista, ainda não foram superados por outras experiências 9.

Essa tradição do movimento socialista é indispensável para abordar profundamente a questão das liberdades pessoais e democráticas na esquerda. Nesse ponto, a crítica do marxismo, pelo menos aquele que vale a pena, refere-se ao lugar que o capitalismo dá às liberdades pessoais. Não consiste em descartá-las como “simples liberdades burguesas”, mas em expor suas limitações, que fazem com que apenas certos setores da sociedade possam gozá-las. E isso se vincula à segunda questão que queríamos destacar, que remete a um problema teórico.

Em sua crítica ao direito, Gargarella observa que, em determinadas circunstâncias, o direito perde seu conteúdo igualitário e passa a servir a propósitos contrários àqueles que justificariam sua existência. A esse tipo de situação ele chama de “alienação jurídica”. Fazendo um paralelo com o conceito de alienação desenvolvido por Marx em relação à produção, ele afirma que:

a ideia básica é a mesma à qual Marx apelava: em um sentido não trivial, nem metafórico, passamos a estar submetidos, controlados por aquilo que ajudamos a construir, esperando que nos libertasse: agora vemos o direito como um objeto estranho, “como uma força independente do produtor”, alheio ou externo àquele que supostamente o criou.

Essa “alienação legal” seria uma distorção do sistema provocada pelo poder privado. Trata-se de uma visão crítica potencialmente antagônica à ordem existente. De fato, diante dessa situação, o autor sustenta que a resistência ao direito é justificada. No entanto, essa não é a posição de Marx. Para este, a crítica ao direito sob o capitalismo é mais radical.

A abordagem de Gargarella pressupõe que os sujeitos de direito em um Estado capitalista seriam ou deveriam ser, em princípio, autores do direito, de alguma forma produzindo-o. Daí a analogia com a alienação do produtor. Mas, para Marx, o direito burguês não é algo próprio, e sim uma “coisa estranha e hostil” ao trabalhador, e o Estado capitalista que garante sua eficácia pela força é um “poder independente” que serve para manter a dominação. Como afirma em O Capital, o direito constitui uma relação social da qual o trabalhador faz parte, não enquanto trabalhador, mas enquanto proprietário igual aos demais, que recebe uma “personalidade” juridicamente atribuída e uma “vontade” presumida para ir ao mercado vender sua mercadoria, a força de trabalho. A partir dessas considerações, o jurista soviético Evgeni Pashukanis falou de “fetichismo jurídico”. Esse fetichismo nasce das entranhas das relações de produção capitalistas e serve para ocultar a desigualdade real — em primeiro lugar entre exploradores e explorados — por trás da igualdade formal dos indivíduos que se apresentam ao mercado como proprietários de mercadorias. O direito burguês, do ponto de vista de Marx, nunca pode realizar o “igualitarismo” exigido por Gargarella, pois sua função primária é justamente sancionar a desigualdade real.

De ambas as perspectivas, derivam-se conclusões diferentes. A questão é se, como aponta Gargarella, trata-se de alcançar uma “integração legal” 10 para que aqueles setores que sofrem a “alienação jurídica” possam ver o direito como algo próprio, ou se é necessária uma perspectiva revolucionária para subverter as relações sociais capitalistas. A alternativa de Marx era esta última. No entanto, e isso é fundamental destacar, essa perspectiva não nega, mas sim compreende a luta pelas liberdades pessoais e democráticas que caracterizou a história do movimento socialista. Se quisermos, trata-se de uma abordagem muito mais ampla das liberdades pessoais, que não se limita ao indivíduo isolado, mas que almeja, em perspectiva, o desenvolvimento de um novo individualismo a partir da autogestão da vida coletiva. Um individualismo no qual o indivíduo não se limita, como acontece sob o capitalismo, a aceitar passivamente as imposições externas das relações sociais inconscientemente assumidas, mas passa a ser protagonista consciente do autogoverno do coletivo 11.

Igualdade e liberdade

Tanto a liberdade coletiva quanto a pessoal precisam de determinadas condições materiais para se realizarem. O Manifiesto por un derecho de izquierda dedica especial atenção a esse problema. O autor propõe abordá-lo a partir de uma filosofia política igualitária, inspirando-se nas teses do filósofo norte-americano John Rawls. Uma sociedade pode ser considerada mais justa quanto melhor permitir que a vida das pessoas não dependa de circunstâncias alheias à sua responsabilidade, como cor de pele, gênero, etnia ou classe social de nascimento. O Estado pode violar direitos não apenas por ação (censura, perseguição, tortura), mas também por omissão (não assegurar os direitos que lhe cabem: saúde, educação, vida digna). Gargarella diferencia essa abordagem das visões stalinistas que propõem sacrificar as liberdades pessoais para maximizar a acumulação econômica coletiva, bem como das teorias do “gotejamento” capitalista, que promovem a acumulação sem limites de riqueza por poucos, na expectativa de que beneficie os demais. Ele também se distancia das propostas social-democratas que defendem a proteção de certos direitos sociais, ao mesmo tempo que permitem a concentração econômica e as desigualdades sociais ampliadas.

Sob essa ótica, ele revisita várias tentativas iniciais de articular preocupações constitucionais e políticas com propostas para uma organização econômica mais igualitária. Essas tentativas incluem Rousseau e seu Discurso sobre a Desigualdade; o primeiro republicanismo inglês, com destaque para James Harrington e sua obra Oceana; os escritos do filósofo anarquista William Godwin; figuras influentes do momento fundacional do constitucionalismo moderno no final do século XVIII, como Thomas Paine e Thomas Jefferson; além de referências a José Artigas e seu “Regulamento Provisório da Província Oriental para o Fomento de sua Campanha”, entre outros. Em seguida, ele examina diversos processos do século XX sob a perspectiva da articulação das liberdades básicas com a igualdade material, e focaremos em alguns desses processos, com especial atenção ao papel do Estado ao refletir sobre essa articulação em cada caso.

Uma primeira parada será a Revolução Mexicana, iniciada em 1910, um dos processos revolucionários mais importantes da história latino-americana. Gargarella destaca que a Convenção Constituinte de 1917 — embora o radicalismo que impulsionou a revolução em seus primórdios tenha diminuído — daria origem ao constitucionalismo social. Contudo, junto com as importantes declarações de direitos sociais, econômicos e culturais, desenvolveram-se formas mais tradicionais, autoritárias e concentradas de organização do poder, mostrando as “duas almas” desse constitucionalismo. Tratava-se de um “constitucionalismo social-conservador” que, desde então, parte da esquerda jurídica começou a adotar como próprio. Em sua crítica a esse tipo de constitucionalismo, no entanto, não há referências à opressão imposta por potências imperialistas em sociedades como as latino-americanas. Incorporar esse aspecto parece muito importante ao considerar que essa opressão é um impedimento, por si só, não apenas à liberdade coletiva, mas também à liberdade pessoal, uma vez que o gozo contínuo desta última só é possível para os membros de uma sociedade que determina suas próprias ações. Além disso, essa opressão imperialista tem consequências diretas — e complexas — sobre as formas de organização e concentração do poder estatal 12.

Outro dos processos abordados é a Revolução Russa de 1917. O autor aponta que ela nasceu invocando a máxima democratização do poder (“Todo o poder aos sovietes”) e promovendo a “Declaração dos direitos do povo trabalhador e explorado” (1918), mas logo se degradou em formas extremas de autoritarismo que demonstravam desinteresse ou direto desprezo pelo direito. De fato, a burocratização da URSS, o auge do stalinismo e a liquidação dos sovietes, substituídos por uma ditadura totalitária, foram a negação dos anseios democráticos e constituintes da Revolução de Outubro. No entanto, Gargarella situa como ponto de inflexão desse processo a dissolução, por iniciativa dos bolcheviques, da Assembleia Constituinte de 1918, depois que esta se recusou a reconhecer a constituição votada pelos sovietes. O problema dessas visões é que abstraem o fato de que estava em jogo, não apenas a forma do regime político, mas o enfrentamento entre dois tipos de Estado: um capitalista, representado pela constituinte, e outro dos trabalhadores e camponeses, representado pelos sovietes. Ou seja, não se tratava de liquidar a democratização máxima de “todo o poder aos sovietes”, como aconteceu mais tarde com o stalinismo, mas, ao contrário, de defendê-la contra a contrarrevolução capitalista. Cabe acrescentar que o período imediatamente posterior à dissolução da constituinte, longe de levar ao desinteresse pelo direito, foi um dos momentos históricos mais prolíficos em termos de debate jurídico, reconhecido pelo próprio Hans Kelsen 13, com autores como Pashukanis, Stucka, Reisner, Goikhbarg (redator do primeiro código civil da URSS), entre outros.

Para ver mais claramente que se tratava de um confronto entre dois tipos de Estado, pode-se contrastar o caso russo com outro dos exemplos abordados por Gargarella, o da Alemanha após a Primeira Guerra Mundial. Lá, a Revolução Alemã de 1918 viu surgir em todo o país os Räte, conselhos de trabalhadores e soldados que foram os grandes protagonistas da queda da monarquia. No entanto, ao contrário da Rússia, foi a Assembleia Constituinte de Weimar que definiu os contornos do Estado, incorporando os Räte à constituição burguesa, relegando-os a simples câmaras de trabalho sem poder algum. Com a revolução sufocada, a constituição de Weimar, com seu famoso artigo 48 – sobre o qual Carl Schmitt teorizou até a exaustão o poder excepcional da figura presidencial – forneceria o quadro para os regimes bonapartistas do final dos anos 1920 e início dos anos 1930, que culminariam na coroação legal de Hitler como chanceler, antes de se constituir na ditadura imperialista mais sanguinária da história.

Nessas comparações, Gargarella também introduz a Revolução Cubana, à qual posiciona, juntamente com a russa, como exemplo de desvio autoritário. Ele aponta que, em nome da garantia das condições materiais, acabou rapidamente se convertendo em um regime opressor, dentro do qual o constitucionalismo foi uma mera fachada sem conteúdo real. Os poderes legislativo e executivo foram fundidos para concentrar o poder em Fidel Castro sob um regime de partido único. No entanto, a comparação entre ambos os processos omite uma questão que nos parece fundamental: enquanto a política dos bolcheviques passava pelos sovietes, o movimento 26 de Julho, que liderou a revolução em Cuba, era um partido na forma de um exército popular que se propunha a substituir o Estado anterior, assemelhando-se posteriormente ao stalinismo. No caso do bolchevismo, a continuidade da perspectiva soviética se expressou na Oposição de Esquerda liderada por Trotsky, que não apenas defendeu, contra o dogma do “partido único”, a democracia soviética, a pluralidade de partidos soviéticos, o sufrágio livre para trabalhadores e camponeses, a liberdade sindical, de reunião, de imprensa, etc., mas também levantou a necessidade de uma nova revolução contra a burocracia que havia se apoderado do Estado 14.

No Manifiesto por un derecho de izquierda, a Revolução Cubana também é comparada com a “via democrática ao socialismo” defendida por Allende no Chile. Para o autor, em ambos os casos “os regimes instalados mostraram sua convicção de que a liberdade tinha como prerrequisito a atenção urgente a certas condições materiais. No entanto, tais experiências diferiram em […] o princípio segundo o qual as liberdades pessoais deveriam ser articuladas conjuntamente com o autogoverno político e a atenção à questão social”. Ele destaca que no Chile se buscou promover uma transformação econômica igualitária, mas por uma via democrática, com a ajuda do direito. E acrescenta: “Fica claro que, apesar de seus esforços legalistas, o governo de Allende encontrou fortíssimas resistências nos poderes estabelecidos para impor suas políticas”. No entanto, a comparação entre ambos os processos, como se se referisse simplesmente a dois regimes políticos, carece novamente de uma análise em termos de Estado. Trata-se de dois tipos de Estado diferentes, como pode ser constatado no fato de que, na Revolução Cubana, o Exército de Batista foi derrotado e as bases capitalistas foram subvertidas. Enquanto o governo de Allende foi o de um Estado burguês semicolonial que foi liquidado por suas próprias forças armadas e por seu próprio comandante em chefe, Pinochet, nomeado poucas semanas antes do golpe.

Gargarella afirma, com razão, que o constitucionalismo é incapaz de ganhar vida autônoma em relação ao quadro socioeconômico sobre o qual se ergue, embora esclareça que isso “não implica sustentar, como fazia Ferdinand Lassalle, que o constitucionalismo deva ser entendido como uma ’mera folha de papel’, se não levarmos em conta a ’Constituição material’”. No entanto, em defesa de Lassalle, é preciso dizer que também não é possível abstrair-se dessa constituição material, sob pena de sermos destinatários daquela resposta hipotética de O que é uma constituição?, em que o monarca dizia:

“As leis podem estar destruídas, mas a realidade é que o Exército me obedece, que segue minhas ordens; a realidade é que os comandantes dos arsenais e quartéis tiram os canhões para as ruas quando eu mando, e, apoiado nesse poder efetivo, nos canhões e nas baionetas, não tolerarei que me atribuam mais posição nem outras prerrogativas além das que eu quiser” 15.

Por isso, em nossa opinião, é fundamental para pensar – e mais ainda para lutar por – a liberdade coletiva e pessoal e as condições materiais que elas necessitam para se realizar, contar com uma definição de classe do Estado – bem como da opressão entre nações (imperialismo). Essa, no entanto, é uma ausência significativa no Manifiesto por un derecho de izquierda.

“Democracia deliberativa” e luta de classes

Chegamos agora a uma das perguntas centrais do livro de Gargarella: que concepção de democracia deve um direito de esquerda adotar? Sua resposta é: a conversação entre iguais como versão da democracia deliberativa. Assim, ele posiciona sua proposta como parte da vasta família das teorias da “democracia deliberativa”, que inclui Jose Luis Martí e Samantha Besson, Jon Elster, Carlos Nino e Jürgen Habermas, este último sem dúvida o maior de seus expoentes. Nas palavras do próprio Gargarella: “Trata-se de teorias que consideram que as decisões públicas se justificam na medida em que sejam o resultado de uma deliberação entre todos os afetados: a decisão do caso deve ser o resultado da força do melhor argumento”. O autor se encarrega de distinguir esse ideal tanto da ideia rousseauniana de “vontade geral”, quanto das visões meramente participativas ou plebiscitárias da democracia, bem como da democracia populista ou radical defendida por Ernesto Laclau.

Antes de nos referirmos às nuances significativas – muito ligadas ao protesto social – que a teoria de Gargarella guarda em relação a outras da família da “democracia deliberativa”, faremos uma breve referência a um dos núcleos dessas aproximações. Retomando algumas considerações do próprio Habermas, podemos dizer que sua teoria combina aspectos de uma concepção liberal, que pressupõe que o processo de formação da opinião e da vontade democráticas toma a forma de compromisso de interesses, e outros de uma concepção republicana, que parte de uma autoconsciência ética, onde a deliberação pode apoiar-se em um consenso de fundo baseado em uma pertença comum, por exemplo, a uma mesma cultura. No tipo de paradigma procedimental da política deliberativa em que se inscreve Habermas, estabelece-se, em relação ao procedimento democrático, uma conexão interna entre negociações, discurso de auto entendimento e discursos relativos a questões de justiça, que serve de base para a presunção de que, sob tais condições, obtêm-se resultados racionais 16.

Existiriam muitos ângulos para o debate desse tipo de abordagem à noção de democracia, mas o primeiro problema é que pressupõem uma sociedade que não existe. O ponto de Marx e Engels, segundo o qual as sociedades capitalistas estão divididas entre uma classe proprietária dos meios de produção social que explora outra que carece desses meios e expropria a potência da cooperação social, e que, sem serem as únicas classes, representam os dois pólos irreconciliáveis da sociedade, continua sendo um marco indispensável para pensar qualquer perspectiva democrática. O ideal deliberativo que, em versões muito menos sofisticadas, poderia remontar ao antigo fundamento do parlamentarismo burguês e sua ideia de government by discussion poderia ter operatividade – sendo generosos – até o século XIX, mas a partir do desenvolvimento da política de massas entrou em crise terminal. Uma coisa eram as possibilidades de convencerem-se mutuamente, através da racionalidade de seus discursos, um grupo de representantes burgueses em parlamentos restritos diante de um monarca, mas quando as grandes massas passaram a fazer parte da equação da democracia burguesa, aquela aura de racionalidade se perdeu para sempre. Por isso, não pode surpreender a crescente importância de todos os mecanismos criticados por Gargarella para limitar a vontade democrática, inscritos na “sala de máquinas” das constituições.

O problema de trabalhar com esse tipo de matriz, mesmo que ligada a uma perspectiva democrático-radical, é que a irracionalidade desempenha um papel fundamental na história, intimamente ligado aos interesses materiais irreconciliáveis que fazem a divisão da sociedade em classes. Em sua polêmica com Bertrand Russell, Trotsky o colocava de maneira bastante ilustrativa quando dizia que:

“…a revolução expressa justamente a impossibilidade de reconstruir, com a ajuda de métodos racionalistas, uma sociedade dividida em classes. Os argumentos lógicos […] são impotentes diante dos interesses materiais. As classes dominantes condenarão toda a civilização à extinção […] antes de renunciar aos seus privilégios. […] Os mesmos fatores irracionais da história operam da maneira mais brutal através dos antagonismos de classe.” 17

Não se tratava de uma expressão de desejo, mas da constatação de um fato. Que as classes dominantes são capazes de condenar à morte toda a civilização para não renunciar aos seus privilégios não é demonstrado apenas pela história em geral – e pela nossa em particular, incluindo o genocídio da última ditadura – mas também pela atualidade das guerras, a desigualdade abismal e a destruição do planeta, que o mostram em tempo real. Por isso, Trotsky concluía dessas considerações que a política só pode exercer uma ação racional quando leva em conta claramente as contradições irracionais da sociedade, e isso implicava a necessidade de uma revolução. O que foi dito muda radicalmente a equação deliberativa, começando porque, em momentos de crise, o pressuposto de relações discursivas ocorrendo normalmente se dissolve ao ritmo da intensificação dos conflitos entre forças sociais e políticas.

Nada do que foi dito anteriormente implica abandonar um ideal democrático, pelo contrário, exige uma reflexão necessária – tática e estratégica – para conquistá-lo. Richard Day, por exemplo, associa elementos da concepção conselhista de Trotsky com a teoria da ação comunicativa de Habermas. Em ambos, encontra-se a ideia de que a liberdade política requer institucionalização para que os cidadãos possam fazer as leis e para que aqueles que as redigem prestem contas através de explicações razoáveis. Segundo Day:

“Oposto tanto ao igualitarismo primitivo quanto aos privilégios da burocracia stalinista, Trotsky esperava que a luta por renda e as oportunidades correspondentes para a autorrealização pudessem ser resolvidas comunicativamente. O reconhecimento mútuo das necessidades legítimas viria por meio de um discurso institucionalizado sobre as prioridades do planejamento.” 18

Independentemente dos limites que a comparação feita por Day possa ter, ela é sugestiva se considerarmos a forma como Trotsky se posicionou diante de agudos conflitos internos na URSS, como aquele que ocorreu durante boa parte da década de 1920, frente aos setores acomodados do campesinato. Naquela época, ele defendeu repetidamente que as medidas necessárias para resolvê-lo deveriam ser levadas a cabo através da confrontação política, da persuasão e da negociação em face das massas, em conselhos como órgãos democráticos do Estado. Claro que aqui estamos falando em um terreno muito diferente do de Habermas. Já não se trata de uma democracia deliberativa que implica o entendimento “racional” sob o domínio dos capitalistas, mas de uma democracia de outra classe, em uma sociedade de transição onde os antigos exploradores e suas prerrogativas foram radicalmente eliminados da equação.

Do protesto ao poder constituinte

No Manifiesto por un derecho de izquierda, Gargarella afirma que os direitos relacionados ao protesto social e à resistência à opressão foram relegados, desvalorizados ou até repudiados pela doutrina jurídica e política dominante. Ele também critica a desconfiança em relação ao direito de protesto que existe mesmo entre as próprias concepções da deliberação democrática. Ele nos lembra que estas últimas nasceram vinculadas à noção da força do melhor argumento, o que implicava que as melhores razões deveriam prevalecer. Mas essa atenção tão particular aos argumentos logo pareceu deixar de lado a consideração de outras fontes fundamentais de deliberação coletiva, entre elas as emoções e o protesto social. Para sua concepção de conversa entre iguais, esclarece, a ideia de protesto social desempenha um papel central. Mais ainda, ele propõe, aqui e em outros trabalhos, que o direito de protesto deve ser entendido como um direito primordial, aquele que ajuda a manter intactos os demais direitos.

Em sociedades como as nossas, onde ocorrem violações de direitos e levando em conta as dificuldades existentes para canalizar institucionalmente as queixas, ele aponta que: “as demandas e protestos extra-institucionais ou, em algumas ocasiões, contra-institucionais realizados por esses grupos se tornam relevantes – senão imprescindíveis – para que o restante da comunidade conheça essas faltas, e o sistema institucional se ative, de alguma forma, para remediá-las.” O autor faz questão de esclarecer que isso não implica, para ele, que tudo o que esses grupos fazem durante os protestos, por exemplo, atos graves de violência, esteja justificado ou que não possam ser criticados pelas falhas cometidas em suas ações. No entanto, contra a doutrina prevalecente, ele destaca que um pensador liberal conservador como Locke colocou o direito de resistência entre as quatro ideias fundamentais com as quais concebia o governo civil. Primeiro em Locke e depois em Jefferson, a noção de “resistência ao direito” percorreu a história do direito moderno “até desaparecer, repentina e surpreendentemente, daquele menu privilegiado de princípios onde se encontrava”.

A ideia de que o direito de protesto é o primeiro direito é, sem dúvida, um ponto de partida central para uma visão do direito que se considere de esquerda e é uma das temáticas distintivas da obra do autor do Manifiesto por un derecho de izquierda. Não é pouca coisa que um constitucionalista reconhecido como Gargarella sustente essa tese, considerando que o regime político na Argentina constantemente busca restringir e enfraquecer o caráter contencioso do movimento de massas que se expressa nas ruas.

Agora, queremos introduzir algumas questões finais que vão além do protesto. Como o próprio Gargarella analisa em seu livro, grande parte dos exemplos históricos nos quais ele se baseia para refletir sobre um constitucionalismo de esquerda corresponde a revoluções ou processos revolucionários. Desde as revoluções burguesas clássicas como a inglesa, a francesa e a norte-americana, passando pela mexicana até a russa, a alemã, ou o próprio processo revolucionário chileno dos anos 70, entre outros. Disso pode-se deduzir a importância das revoluções para se pensar um “direito de esquerda” como o que o autor propõe. Elas fazem parte do vínculo entre constituição e poder constituinte. No entanto, essa relação não é abordada no Manifiesto por un derecho de izquierda.

Trata-se de uma problemática central para a esquerda, se partirmos do entendimento do caráter de classe do Estado e da luta de classes, dois conceitos muito caros ao pensamento de esquerda. Quando ao longo dessas páginas colocamos ênfase nos conselhos ou soviets – segundo a transliteração do russo – o fizemos porque, no século XX, esses emergiram como uma forma nova daquele poder constituinte. Não se trata de um desenho institucional ideal, mas, como bem observa Arendt, desenvolvem-se em todo grande levante revolucionário, vinculados às próprias experiências da ação do movimento de massas e de sua vontade de intervir na cena política.

Assim, esses organismos não se desenvolveram apenas na Rússia (1905 e 1917) ou na Alemanha com os räte (1918), mas também na Itália com os conselhos de fábrica (1919-1920), na Revolução Húngara (1956) com os conselhos de operários e camponeses, na Revolução Portuguesa (1974) com os comitês de fábrica, inquilinos e soldados, na Revolução Iraniana (1979) com os shoras, no Chile com os Cordões Industriais (1972-1973), entre muitos outros. Pode-se até considerar que as Coordenadoras Interfabriles da Argentina em 1975 expressaram, em menor medida, a mesma tendência. Na maioria dos casos, essas instituições foram neutralizadas, seja por repressão ou por assimilação aos regimes burgueses. Mas isso não altera o seu caráter; pelo contrário, coloca a necessidade de uma política consciente, uma estratégia e uma tática capazes de desenvolvê-los.

Os conselhos expressaram uma nova prática potencialmente antagônica à prática burguesa da política. Sua estrutura flexível e elástica, com representantes revogáveis eleitos a partir do tecido que constitui a produção e reprodução da sociedade – hoje diríamos as fábricas, as empresas, os escritórios, os campos, os hospitais, as escolas, as universidades, entre outros – permite articular as diversas reivindicações e formas de luta para criar um poder alternativo. Trata-se de um tipo de organização política que coincide aproximadamente com a organização da própria sociedade para sua produção e reprodução, que não só permite conectar em todos os níveis a deliberação com a execução, mas também tem o potencial de facilitar que o povo trabalhador, enquanto soberano, não se dissolva após cada eleição. Do nosso ponto de vista, não há constituição que possa mudar radicalmente o estado das coisas que não seja o emergente de um poder constituinte organizado e em movimento que expresse uma vontade de autogoverno que transcenda os limites do capitalismo.

Como tentamos mostrar, o Manifiesto por un derecho de izquierda levanta importantes debates que precisam ser desenvolvidos. Com essas linhas, esperamos ter contribuído para eles.

 

Notas de rodapé
1. Gargarella, Roberto, Manifiesto por un derecho de izquierda, Buenos Aires, Siglo XXI, 2023 (Edición digital).A partir de agora todas as citações ao autor correspondem a este livro e a esta mesma edição, desde que nenhuma outra obra seja especificada.
2. Ver: Marx, Karl, “El dieciocho brumario de Luis Bonaparte” y “La guerra civil en Francia”, en Revolución (compilación), Buenos Aires, Ediciones IPS, 2018.
3. Citado en Gargarella, Roberto, ob. cit.
4. Ver: Maiello, Matías, De la movilización a la revolución, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2022.
5. Trotsky, León, “Un programa de acción para Francia”, en ¿Adónde va Francia? / Diario del exilio, Buenos Aires, Ediciones IPS–CEIP León Trotsky, 2013, p. 34.
6. Idem.
7. Arendt, Hannah, Crisis de la república, Madrid, Taurus, 1999, p. 232.
8. Gramsci, Antonio, “El número y la calidad en los regímenes representativos”, Cuadernos de la Cárcel, Tomo 5, México, Ediciones Era, 1999, pp. 70–71.
9. No caso do PTS – bem como das nossas organizações irmãs FT-CI a nível internacional – juntamo-nos a esta ampla tradição de socialismo que procuramos honrar com a nossa militância diária.
10. Ver: Gargarella, Roberto, “El derecho de resistencia en situaciones de carencia extrema”, Astrolabio. Revista internacional de filosofía N° 4, 2007.
11. Gramsci, Antonio, “Introducción al estudio de la filosofía”, Cuadernos de la Cárcel, Tomo 5, México, Ediciones Era, 1999, p. 201.
12. Neste sentido, Trotsky elabora a noção de “bonapartismo sui generis” para dar conta de um tipo especial de bonapartismo, típico do mundo semicolonial, onde a fraqueza da burguesia local coloca a classe trabalhadora e o imperialismo como as duas classes fundamentais. Este “bonapartismo sui generis” tanto pode ser um instrumento do imperialismo para endurecer a dominação sobre o proletariado, aludindo, por exemplo, a muitas ditaduras latino-americanas das primeiras décadas do século XX. Ou confiar na classe trabalhadora, fazendo concessões, para obter uma certa independência do imperialismo, mas arregimentando o movimento de massas. Com esta última variante do conceito de bonapartismo “de esquerda” sui generis ele explicou o governo de Lázaro Cárdenas no México na década de 1930. Ver: Trotsky, León “A indústria nacionalizada e a administração dos trabalhadores”, Escritos Latino-Americanos, Buenos Aires, Edições IPS-CEIP, 2013.
13. Ver: Kelsen, H. (1957), Teoría Comunista del Derecho y del Estado, Bs. As., Emecé Editores.
14. Ver: Trotsky, León, “El Programa de Transición”, en El Programa de Transición y la fundación de la IV Internacional, Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP, 2017.
15. Lassalle, Ferdinand, ¿Qué es una constitución?, Bogotá, Editorial Temis, 2003, p. 43.
16. Ver: Habermas, Jürgen, “Tres modelos de democracia. Sobre el concepto de una política deliberativa”, en Polis. Revista Latinoamericana, 2005.
17. Trotsky, León, ¿Adónde va Inglaterra?, Buenos Aires, El Yunque Editora. 1974, p. 201.
18. Day, Richard, “Beeween Hegel and Habermas: the political theory of Leon Trotsky”, en Brotherstone, Terry y Dukes Paul, The Trotsky reappraisal, Edinburhg, Edinburg University Press, 1992, p. 129.
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