Revista Casa Marx

As encruzilhadas da história recente e as perspectivas estratégicas para a esquerda hoje

Emilio Albamonte

Matías Maiello

Em dois artigos publicados recentemente em Ideias de Esquerda, buscamos recuperar o papel determinante da insurgência da classe trabalhadora e do movimento de massas na história política argentina e debater uma série de conclusões estratégicas do Cordobazo e da etapa revolucionária dos anos 70, encerrada com o golpe militar de 76. Nessas páginas, nos concentramos no período posterior à ditadura, com o surgimento de um regime político moldado por aquela derrota e, posteriormente, marcado por importantes processos como as jornadas de 19 e 20 de dezembro de 2001, com o objetivo de investigar as perspectivas estratégicas da esquerda hoje.

O tempo homogêneo e vazio do progresso mecânico, sem crises nem rupturas, é um tempo não político. Sob estas coordenadas tomadas de Walter Benjamin, Daniel Bensaïd contrapunha a visão da história do “progressismo” com aquela que inspirou Lenin, que, pelo contrário, pensava a política como um tempo povoado de batalhas, crises e rupturas. Não há forma de entender a história em geral e a argentina em particular se não for a partir daí. Desde a queda da última ditadura até hoje, vivemos a debacle hiperinflacionária de 1989-91, o colapso da convertibilidade em 2001 e estamos hoje, novamente, diante de uma crise histórica. Todo este ciclo teve duas etapas. Uma primeira ofensiva capitalista e retrocesso do movimento operário e de massas. Depois, as jornadas de dezembro de 2001, com a queda de De la Rúa, serão um ponto de inflexão na relação de forças e o início de uma segunda etapa de recomposição relativa da classe operária e de algumas de suas conquistas no contexto da precarização e da pobreza crônica de amplos setores da população 1.

O capital imperialista e a burguesia local, em suas diferentes alas, tiveram uma impossibilidade crônica de impor um projeto hegemônico estável; aquilo que Fernando Rosso definiu como “a hegemonia impossível”. Os períodos do menemismo e do kirchnerismo, nos quais algo próximo à hegemonia foi imposto, valeram-se, em ambos os casos, de uma crise de origem, uma reconfiguração das relações de força e um ciclo internacional favorável 2. Ambos naufragaram quando essas condições se esgotaram. A última década de trocas políticas e “males menores” foi uma expressão acabada dessa impossibilidade hegemônica. O governo de Milei pretende romper o impasse e mudar a relação de forças para moldar um país à imagem e semelhança do capital financeiro. Diante dos enfrentamentos superiores da luta de classes que se avizinham no cenário político, a pergunta sobre como derrotar o plano de guerra de Milei é inseparável de outra pergunta mais estratégica: e depois? Para a esquerda, ambas as perguntas são fundamentais e estão imbricadas. Abordá-las a fundo implica aprofundar as conclusões das principais encruzilhadas da história recente.

A decadência de um regime político surgido da derrota

Na saída da ditadura em 1983, a transição pactuada entre os militares e a “multipartidária” – com a UCR e o PJ à frente – buscou apresentar-se como uma descontinuidade absoluta entre a democracia burguesa emergente e a ditadura genocida, entre o novo “consenso” e a violência fundante do neoliberalismo que nos chega até hoje. Aquele pacto foi mais pérfido na medida em que a ditadura estava colapsando. Suas próprias contradições internas haviam sido fomentadas tanto pelo movimento democrático quanto por eventos da luta de classes, especialmente desde 1979, que tiveram seu ponto mais alto com a greve geral com mobilizações e enfrentamentos de março de 1982. Sua debacle final sobreviveria após a política aventureira que levaria à derrota ante o imperialismo britânico na guerra das Malvinas. Este foi um elemento central na configuração do que poderíamos chamar de “a democracia da derrota” ao consolidar o neoliberalismo e aprofundar os traços semicoloniais do país. Uma das expressões mais evidentes disso tem sido o estigma da dívida e a intervenção quase permanente do FMI.

Com o objetivo de aprofundar essa subordinação, o governo de Milei quer avançar para um regime mais autoritário concentrando os poderes na figura presidencial através da delegação de faculdades extraordinárias estipulada na Lei de Bases e acentuando seu caráter repressivo para impedir a mobilização através da perseguição policial e judicial. O ensaio realizado a partir da mobilização ao Senado do 12J com acusações de “terrorismo” e detenções ao acaso vem fracassando devido ao amplo repúdio que colheu em poucos dias. Diante da tentativa bonapartista em curso, que busca cercear as liberdades democráticas, é necessária a mais ampla mobilização. Agora, essa luta não pode ser encarada seriamente separando, como se pretende desde o peronismo, esses combates democráticos da contestação às bases neoliberais e semicoloniais da democracia da derrota, começando pela ruptura com o FMI e o não pagamento soberano da dívida.

Trata-se de um problema profundo, já que a história oficial da “transição para a democracia” se baseia, justamente, nessa separação. No final dos anos 70 e durante os anos 80 ocorreu um amplo processo de absorção por parte das classes dominantes de setores que nos anos 70 aderiram a alguma variante de esquerda, expressão daquilo que Gramsci chamou de “transformismo” 3. Amplos setores da intelectualidade, com revistas como Controversia (1979-1981) e Punto de vista, o Club de Cultura Socialista ou o “grupo esmeralda” – que redigia os discursos para Alfonsín – passaram de sustentar estratégias guerrilheiras ligadas aos Montoneros ou ao maoísmo nos anos 70, a abraçar depois uma ideia de “democracia” pura, esterilizada de qualquer conteúdo de classe. Esta operação foi fundamental para consolidar as raízes do novo regime entre as classes médias e setores da classe trabalhadora. Outra consequência foi o abandono do anti-imperialismo: a derrota nas Malvinas apareceu valorizada positivamente como ponto de quebra da ditadura que abriu caminho para a democracia; Beatriz Sarlo foi e é, até hoje, uma das maiores expoentes dessa tese 4. Era um espírito da época. Já a partir da Revolução portuguesa (1974), o imperialismo havia começado uma política de “transições para a democracia” como via para desviar e derrotar ascensões de massas contra regimes ditatoriais 5.

Este clima de algum modo chegará a setores da esquerda trotskista 6. Em 1977, a corrente dirigida por Nahuel Moreno havia caracterizado aquela política do imperialismo como experimentos de “contrarrevolução democrática”, nos quais as “transições para a democracia” eram a via para evitar o triunfo de processos revolucionários e impor os interesses imperialistas. No entanto, quando essa política começou a se generalizar entre o final dos anos 70 e o início dos anos 80, estendendo-se à América Latina, Moreno abandonou essa ideia e elaborou uma teoria da “revolução democrática” 7 que, embora reivindicasse a luta pelo socialismo em geral, apontava que diante dos “fascismos e regimes contrarrevolucionários” era necessária “uma revolução no regime político: destruir o fascismo para conquistar as liberdades da democracia burguesa, ainda que fosse no terreno dos regimes políticos da burguesia, do Estado burguês” 8. Consequente com isso, concluía que: “não é obrigatório que seja a classe operária e um partido marxista revolucionário que dirija o processo da revolução democrática rumo à revolução socialista…” 9. Sob essas coordenadas, sustentaria que na Argentina havia ocorrido uma revolução democrática triunfante.

Com esses fundamentos se desenvolveu a principal organização da esquerda trotskista da década de 1980, o Movimento ao Socialismo (MAS). No entanto, essas bases se mostraram frágeis frente à crise de 1989-1991, uma das maiores dos últimos 40 anos. Naquela época, ocorreram importantes lutas contra as reformas neoliberais e as privatizações (ferroviários, telefônicos, etc.) isoladas pela burocracia sindical e derrotadas uma a uma, com importantes exceções, como os Estaleiros Rio Santiago. O ponto mais alto de mobilização do MAS coincidiu com o momento de sua adaptação política ao regime com a chamada “praça do Não” a Menem em 1º de maio de 1990 10. Junto com o PC, mobilizaram cerca de 50.000 pessoas na Praça de Maio em uma espécie de ato político-eleitoral sob o programa mais breve da história da esquerda mundial: “Não”. A ausência de programa estava alinhada com o gesto de deixar uma cadeira vazia no ato para o burocrata Saúl Ubaldini, na época catalogado como “combativo”, mas que deixaria passar todo o plano privatizador de Menem sem uma greve geral até o final de 1992. Este ato resumiu a política do MAS naqueles anos.

A nível internacional, começavam tempos hostis para a esquerda revolucionária. No final dos anos 80 e início dos anos 90, a burocracia dos Partidos Comunistas daqueles Estados onde a burguesia havia sido expropriada, como a URSS ou China, estava à frente da restauração capitalista 11. A incapacidade do MAS de questionar os marcos da democracia da derrota foi acompanhada por uma deriva eleitoralista que o encontraria, nesses mesmos anos, em uma frente eleitoral com o Partido Comunista argentino. Em 1985 seria a Frente do Povo (FrePu), que se romperia em 1987 quando o PC assinou o “Ato de Compromisso Democrático” 12. Mas depois conformaria a Izquierda Unida (IU) com o PC, que se apresentaria encabeçada pelo democrata-cristão Néstor Vicente nas eleições de 1989. Sob o argumento de que era “uma frente operária” 13 no terreno eleitoral, a direção do MAS havia feito uma aliança cujo programa postulava a luta por “uma democracia autêntica”, enquanto limpava a imagem do stalinismo local simultaneamente à queda do Muro de Berlim. O PTS se fundaria contra essa orientação, primeiro sendo uma fração do MAS e, depois de sua expulsão, constituindo-se como organização independente em 1988.

O fato é que a extensão de regimes democrático-burgueses à periferia capitalista durante aqueles anos veio acompanhada do neoliberalismo, ou seja, de uma ofensiva imperialista em escala global. Contrariamente à teoria da “revolução democrática” de Moreno, que tendia a separar a luta por certas demandas democrático-formais como o sufrágio universal da resolução dos problemas democrático-estruturais como a opressão imperialista, o que se aprofundou foi a enorme imbricação entre ambas. Esse era, justamente, um dos pontos nodais da teoria da revolução permanente de Trótski 14. Nos países de desenvolvimento capitalista atrasado, as burguesias locais são incapazes de liderar a luta pela resolução íntegra e efetiva dos objetivos democráticos e da emancipação nacional devido aos seus múltiplos laços com o imperialismo. Por isso, a proposta de Trótski era que apenas uma aliança de setores populares liderada pela classe trabalhadora conduzida por um partido revolucionário estaria em condições de levar adiante esses objetivos afetando os interesses fundamentais da burguesia “nacional” e colocando na ordem do dia objetivos propriamente socialistas.

Uma confirmação daquela subordinação das burguesias locais ao imperialismo de que falava Trótski é que, exceto a esquerda, até hoje não há nenhuma força política na Argentina, inclusive entre aqueles setores do peronismo que se referenciam na burguesia “nacional”, que propunha a ruptura com o FMI e o não pagamento soberano da dívida. O próprio kirchnerismo nunca questionou realmente as bases da estrutura dependente e neoliberal (precarização, pobreza crônica, dívida, modelo extrativista, etc.), no máximo propôs “regulá-las” para atenuar suas consequências (planos sociais, subsídios aos serviços públicos, etc.); a isso se reduziu o “Estado presente”. O grande êxito das classes dominantes desde a transição pós-ditadura foi selar a cisão entre a luta pelas liberdades democráticas e as reivindicações setoriais de cada movimento, por um lado, e o questionamento das bases econômico-sociais que a ditadura havia legado, por outro. A grande operação de Milei é questionar essa hipócrita separação pela direita para afirmar que as liberdades democráticas e as conquistas dos movimentos são a causa da decadência nacional, o obstáculo que impede a estrutura neoliberal e dependente de desenvolver todo o seu potencial.

Por isso, hoje, mais do que nunca, para combater realmente a direita é indispensável questionar aquela separação pela esquerda. Somente com a liquidação das bases neoliberais e da dependência semicolonial do país podem-se realizar íntegra e efetivamente os objetivos democráticos. Nenhuma força burguesa, por mais “progressista” ou “democrática” que seja no papel, está em condições de levar adiante essa tarefa. Daí que o problema estratégico é que um programa de saída da crise em favor dos interesses do povo trabalhador só pode ser imposto por um governo das e dos trabalhadores baseado na organização democrática do povo trabalhador, sem burocratas, partindo de seus locais de trabalho e moradia, somando os profissionais e trabalhadores autônomos que não exploram trabalho assalariado, os e as estudantes a partir de seus locais de estudo, os povos originários e outros setores oprimidos. E nesse sentido, a pergunta que segue é como realizar essa perspectiva.

2001: a diferença entre revolta e revolução

Em dezembro de 2001, pela primeira vez na história argentina, um governo eleito pelo sufrágio universal é derrubado não por um golpe militar, mas pela ação direta das massas. O que aconteceu naqueles dias foi mais do que uma mobilização, mas menos do que uma insurreição. Os desempregados e massas empobrecidas marcharam sobre os hipermercados em busca de alimentos, as classes médias realizaram “cacerolazos” e marchas contra os bancos, e uma ampla vanguarda juvenil protagonizou confrontos com a polícia. Todos eles irromperam simultaneamente. Foram dias revolucionários em que houve uma insubordinação generalizada de todas as classes exploradas e oprimidas, onde as direções oficiais foram ultrapassadas. A ação histórica independente do movimento de massas colocou acima da “legalidade” do aparato estatal a “justiça” de suas reivindicações (pão, trabalho, devolução das economias confiscadas, repúdio à liderança política burguesa, etc.).

Nos dias anteriores à quarta-feira, 19, eclodiram saques protagonizados pelos desempregados e pelos habitantes das favelas em onze províncias, incluindo a Grande Buenos Aires. A irrupção dos pobres urbanos terminou incentivando um clima de insubordinação geral e ruptura da legalidade burguesa. Imediatamente após o discurso em cadeia nacional de De la Rúa, onde declarou o “estado de sítio”, explodiu um “panelaço” com epicentro na cidade de Buenos Aires. Centenas de fogueiras foram acesas nas esquinas da cidade e uma maré humana se reuniu nas ruas desafiando abertamente o governo, que desencadeou a repressão na Plaza de Mayo. Na quinta-feira, 20, os combates se transferiram para as artérias da Praça: Avenida de Mayo, diagonal Norte e Sul, nas quais se desenvolveu uma espécie de “guerra de guerrilha” durante todo o dia. O centro da cidade se transformou em uma zona de combate repleta de pedras, envolta em nuvens de gás lacrimogêneo, latas de lixo incendiadas, barricadas improvisadas, entidades bancárias incendiadas, etc. Também ocorreram confrontos em outras cidades do país, como Rosário, Córdoba, entre outras. Às 19 horas, De la Rúa renunciou e fugiu de helicóptero.

Há duas décadas, as jornadas de dezembro de 2001 são uma presença espectral permanente na política argentina. Até hoje mobilizam imaginários e condicionam decisões estratégicas. A esquerda, obviamente, não é exceção. As diferentes perspectivas de 2001 são parte integrante da hipótese para o futuro. A maioria da esquerda trotskista sustentou que foi uma revolução. Para o MST, tratou-se de uma “revolução popular” triunfante. O Partido Obrero caracterizou que foi mais do que uma revolução popular porque a classe operária teria desempenhado um papel dirigente, e chegou ao extremo de afirmar que um pequeno grupo como o PO havia cumprido um papel decisivo. A ideia de que quanto mais “vermelha” é a caracterização, mais de esquerda é a organização que a faz, é um velho karma da esquerda – já vimos como Moreno falava na transição de uma “revolução democrática” triunfante – que levou a todo tipo de desorientações. Mas, no fundo, o que há é uma discussão estratégica sobre as vias para o triunfo de uma revolução, o papel da classe trabalhadora e de um partido revolucionário.

Ao contrário de semi-insurreições como o Cordobazo, onde a classe operária e os estudantes intervieram com suas organizações e derrotaram as forças repressivas, na batalha que teve lugar na Plaza de Mayo em 20 de dezembro praticamente não houve organização e se concentrou no apedrejamento por parte dos manifestantes. A vitória foi essencialmente política, ou seja, a polícia não foi derrotada nas ruas, mas conseguiu-se a queda de De la Rúa. Esse limite marcaria um curso ao processo muito diferente do dos anos 70 após o Cordobazo. A burocracia das duas CGT (a “dissidente” de Hugo Moyano, cujo programa era a desvalorização, e a “oficial” de Rodolfo Daer) impediu que os trabalhadores impusessem sua marca ao declarar, apenas na quinta-feira, 20, ao meio-dia, uma tardia greve geral a partir de sexta-feira, que depois seria levantada. Por sua vez, a CTA, que havia sido um dos pilares no surgimento da Aliança que levaria De la Rúa ao governo, chegou ao cúmulo de suspender uma mobilização piqueteira já convocada para o dia 20, entre a FTV-CTA e a CCC, alegando a “ausência de condições” políticas.

Se compararmos 2001 com os processos mais recentes de revoltas que ocorreram em diferentes países 15, podemos ver algumas características comuns. Entre elas, a irrupção das massas majoritariamente atomizadas (enquanto “cidadãos”) e desorganizadas pela defecção da burocracia das organizações de massas. No caso do movimento operário ocupado, isso impediu o desdobramento da força de suas posições estratégicas no transporte, na indústria, nos serviços essenciais, etc., com seus próprios métodos, como a greve geral. Aproveitaram-se do fato de que a classe operária vinha muito golpeada pelo menemismo, com um amplo setor precarizado e sem sequer exercício sindical. Nessa ausência, se sustentaram as manobras do regime para dividir o movimento entre setores “legítimos” e “ilegítimos”. Em 2001, essa operação – a que visava o “estado de sítio” – fracassou inicialmente pela unidade entre “piquete e cacerola”. Foram formadas assembleias populares – com influência das classes médias urbanas –, os movimentos piqueteiros combativos se expandiram e se desenvolveu o processo de ocupação de fábricas; entre seus símbolos estariam Brukman e Zanon. No entanto, a ausência de intervenção independente e hegemônica do movimento operário como tal marcou a precariedade da articulação dos diferentes movimentos e foi determinante para a resolução burguesa “por cima” da crise. Impôs-se o setor que propiciava a saída desvalorizadora (exportadores e grupos empresariais baseados no mercado interno) sobre a ala que pretendia dolarizar (grandes bancos privados, empresas privatizadas, etc.).

Após a queda de cinco presidentes, o peronismo conseguiu se firmar como “partido da ordem” com a chegada de Duhalde à presidência em 2 de janeiro de 2002 (votado por uma Assembleia Legislativa). Duhalde passou a conta da crise aos trabalhadores com uma mega desvalorização que reduziu em quase 30% o poder aquisitivo dos salários e aposentadorias, o desemprego disparou até 20% e a pobreza atingiu 57%. No contexto da trégua da burocracia sindical, o governo pôde impor a divisão do “piquete e cacerola” através de uma combinação de atendimento a determinadas demandas (extensão massiva dos planos sociais e devolução de parte das economias via judicial) e repressão (assassinato de Kosteki e Santillán na Ponte Pueyrredón; despejo da têxtil Brukman com repressão por toda a zona de Once em Buenos Aires). Após a repressão na Ponte Pueyrredón, Duhalde se viu obrigado a antecipar as eleições para abril de 2003, embora tenha conseguido impor seu candidato, Néstor Kirchner. Iniciaria um novo momento do peronismo como “partido da contenção” com base na “obra” duhaldista e na recuperação da economia com o excepcional boom internacional das commodities.

Dessa forma, o processo aberto pelas jornadas revolucionárias de 2001 deixou duas questões fundamentais. Por um lado, foi e continua sendo uma desmentida à lógica do “mal menor” que se impôs nos últimos anos, segundo a qual não restaria alternativa senão olhar o cardápio eleitoral e escolher o menos pior, seja ele Scioli, Alberto ou Massa. Quando o movimento de massas irrompe de forma independente, sua força avassaladora e sua criatividade abrem um novo campo para o político, o poder instituído estremece e as mudanças na consciência se aceleram de tal forma que em poucos dias superam as de anos de evolução pacífica. Por outro lado, demonstrou que apenas com a revolta não é suficiente para dar uma saída à crise favorável ao povo trabalhador. É necessário evitar que toda a energia despendida pelo movimento termine se dissipando entre o desgaste e os golpes repressivos, e que a saída termine sendo imposta pelo regime em favor dos capitalistas, como fez o peronismo, embora pela relação de forças que se estabeleceu tenha que passar rapidamente do fanatismo neoliberal a uma espécie de peronismo “progressista” com Kirchner. Essa questão remete ao problema da preparação estratégica.

Durante todo o período anterior a 2001, acumularam-se importantes experiências na luta de classes. No entanto, o movimento operário acumulou derrotas significativas sob o menemismo. A esquerda classista havia tido uma importante descontinuidade após o colapso do MAS, somado ao cenário de reação em nível internacional. Embora após 2001 tenha conseguido certa influência indireta através de suas frações nos movimentos piqueteiros, nas fábricas ocupadas e nas assembleias populares, foi muito fraca em toda a etapa anterior. Foi fraca para generalizar experiências e agrupar democraticamente a vanguarda que ia se decantando das sucessivas revoltas com características semi-insurrecionais que ocorreram desde o “Santiagueñazo” de 1993 até Mosconi e Tartagal em 1997. Também para semear um programa transicional de saída da crise e uma alternativa política anticapitalista e socialista que pudesse, em algum nível, enfrentar a canalização da resistência ao menemismo dentro do regime através da Aliança. Careceu, por sua vez, de capacidade para articular forças para disputar com a estratégia puramente de pressão que impuseram as burocracias em torno das 7 paralisações gerais contra De la Rúa; entre eles a greve de 36 horas de novembro de 2000, na qual cerca de 150.000 trabalhadores ocupados e desempregados cortaram estradas em todo o país, mostrando uma tendência a superar a burocracia, questão que, apesar do desprestígio desta última, não aconteceu.

Além do fato de que o fechamento da situação aberta pelas jornadas revolucionárias de 2001 teve como fator principal a recuperação da economia mundial que permitiu sair da crise, a reversão dessas falhas será um dos grandes desafios que ficarão colocados para a esquerda. E aqui novamente se colocou a pergunta estratégica de como fazê-lo.

Recomposição estatal e “guerra de posições”

A irrupção do movimento de massas em 2001 modificou substancialmente a relação de forças deixada pela ofensiva menemista. Diferentemente de tentativas anteriores de reestruturar o país em favor das grandes corporações e do capital financeiro, a de Menem foi a primeira que não se valeu de uma ditadura. No contexto do disciplinamento provocado pela hiperinflação, ele utilizou o aparato territorial peronista, a estatização dos sindicatos e o controle do movimento operário através da burocracia sindical que se transformou em empresarial. Sem esse suporte, a continuidade da política menemista com De la Rúa durou pouco. A consequência de todo esse processo foi um importante enfraquecimento do Estado ampliado no sentido “integral” em que Gramsci o definia como “ditadura + hegemonia” 16, segundo o qual a burguesia vai além da espera passiva do consenso e desenvolve uma série de mecanismos para organizá-lo, dentre os quais a estatização das organizações de massa e a expansão das burocracias em seu interior são elementos centrais.

O governo de Néstor Kirchner ficou encarregado de recompor a autoridade do Estado capitalista. Através da “passivização” do movimento, da integração das políticas do governo pela maioria dos organismos de Direitos Humanos e das organizações do movimento de desempregados, avançou-se em retirar a política das ruas para devolvê-la aos canais “normais” dos gabinetes e ministérios. No entanto, um dos pontos fracos desse esquema foi a continuidade da descredibilizada burocracia sindical. A partir de 2004-2005, desenvolveu-se uma vanguarda no movimento operário que questionava três pilares do esquema do kirchnerismo: os tetos salariais, a precarização laboral e a representação burocrática nos sindicatos. Ela ficou conhecida como o “sindicalismo de base”.

Os primeiros sinais vieram com importantes greves vitoriosas (metrô, telefonistas, Garrahan, etc.) que impuseram o retorno das negociações coletivas. Nos anos seguintes, houve lutas duras contra a precarização laboral, como a dos petroleiros em Las Heras, dos terceirizados no metrô e na Ferrovia Roca, dos colhedores de alho em Mendoza, além de importantes greves de professores em Santa Cruz ou Neuquén, onde foi assassinado Carlos Fuentealba. Também ocorreram conflitos na TVB (ex-Jabón Federal), a luta na FATE – em que 800 operários bloquearam a Panamericana e expulsaram a burocracia de Waseijko à força – a dos trabalhadores da têxtil Mafissa (La Plata) – que culminou com a desocupação da fábrica através de uma impressionante operação ordenada por Scioli e Cristina com 500 agentes da Infantaria, Cavalaria, Divisão de Motos, carros de assalto, helicópteros e o Grupo “Halcón” – ou a luta das trabalhadoras do Casino Flotante, reprimidas várias vezes pela Polícia Marítima para defender os negócios de empresários amigos do governo.

Em 2009, junto com uma série de duras lutas fabris (dentre as mais destacadas, a luta na Iveco contra demissões que enfrentou a burocracia do SMATA), ocorreu o conflito na multinacional norte-americana Kraft Foods. Os trabalhadores foram atacados conjuntamente pelo governo K, pela embaixada norte-americana e pelo sindicato, e finalmente reprimidos com um grande contingente de infantaria e cavalaria. Em 2010, desenvolveu-se a luta pela efetivação dos terceirizados na Ferrovia Roca, em que a burocracia de Pedraza, aliada dos Kirchner, assassinou o jovem militante do PO Mariano Ferreyra. Em 2014, com o fim do vento favorável que acompanhou o governo por uma década, emergiu uma nova onda de conflitos cujo emblema foi a luta na Lear, que atingia o coração da aliança da burocracia com o governo. O conflito incluiu 240 demitidos, 21 bloqueios na Panamericana, 16 jornadas nacionais de luta com piquetes em todo o país, 5 repressões, 22 presos, 80 feridos, medidas judiciais a favor de 16 trabalhadores, duas semanas de lockout patronal e o governo organizando a importação de cabos para quebrar a greve. Também em 2014 ocorreu a ocupação e a retomada da produção pelos trabalhadores da gráfica Donnelley (atual Madygraf), seguindo o exemplo da Zanon (atual Fasinpat). Não por acaso, uma das repressões mais violentas do governo de Cristina Kirchner na Panamericana foi contra um bloqueio conjunto dos trabalhadores da Lear e da Donnelley.

Os governos kirchneristas tiveram duas políticas frente a esses setores de vanguarda, com diferentes combinações dependendo do momento: a repressão, como vimos, mas também a cooptação. A nível de massa, a política foi de concessões salariais enquanto se mantinha a precarização imposta pelo menemismo. Dessa forma, conseguiram isolar a vanguarda e, a partir de 2012, disciplinar com a perda de conquistas. Nesse contexto, dentro do sindicalismo de base foram se desenvolvendo duas alas: um setor conciliador com a burocracia e a patronal que foi progressivamente se aproximando do governo, baseando-se nas ilusões de amplos setores na obtenção evolutiva de conquistas, e outro com uma tendência consequentemente anti burocrática que, contra o corporativismo, lutava pela coordenação entre os diferentes setores e defendia a independência do governo. Essa tendência teve como precursores, desde o início, a oposição dos trabalhadores da alimentação liderada pela Comissão Interna da Pepsico, a oposição da agrupação Violeta no FOETRA, o Sindicato Ceramista de Neuquén, entre outros. O PTS se uniu a esse fenômeno como parte desse último setor, batalhando pela democracia sindical e pela independência política em disputa contra os setores conciliadores que pretendiam alinhá-la ao kirchnerismo. Isso se expressou, entre outras coisas, no fato de que a partir de 2013, centenas de trabalhadores da vanguarda integraram as listas do PTS/FIT. Essa sinergia entre “o social” e “o político”, a partir da conquista de deputados, incluiu a luta parlamentar colocando-a a serviço do desenvolvimento da luta de classes, o que foi a chave para a consolidação da Frente de Esquerda.

O Partido Obrero, após 2001, teorizou a existência de um novo “sujeito piqueteiro” – o que debatemos em várias ocasiões – a partir do crescimento dos movimentos de desempregados em meio ao aumento do desemprego daqueles anos e à massificação dos planos sociais sob o governo de Duhalde. A mobilização de dezenas de milhares de desempregados para obter conquistas como os planos sociais constituiu uma particularidade da situação argentina, o que o sociólogo Juan Carlos Torre chamou de “a pobreza em movimento”. No entanto, a cooptação do kirchnerismo foi especialmente forte entre setores dos movimentos piqueteiros ao estabelecer a negociação da administração dos planos de acordo com as diferentes tendências políticas. O PTS questionou esse mecanismo e defendeu a necessidade de conformar um movimento único de trabalhadores desempregados com liberdade de tendências políticas em seu interior, para que os próprios desempregados auto-organizados – destinatários diretos desses planos – administrassem e decidissem por si mesmos. Sendo parte do setor que se manteve independente do governo, o PO, entretanto, adaptou-se à proliferação de colaterais que fragmentou o movimento sem instâncias de base comuns, o que impediu o desenvolvimento de uma luta em conjunto – além de cada colateral – contra a cooptação governamental. A outra face disso foi que, com o aumento do emprego durante os longos anos de crescimento econômico, o PO careceu de uma política para estruturar nos sindicatos os setores do movimento de desempregados que influenciava para convergir com o fenômeno do sindicalismo de base.

Essas batalhas pelo desenvolvimento independente do movimento de massas – das quais o período kirchnerista foi um verdadeiro laboratório – não se limitaram aos sindicatos e ao movimento de desempregados, mas tiveram sua expressão, com resultados diversos, também no movimento estudantil, no movimento de mulheres, no movimento de Direitos Humanos, etc. Assim, a recomposição do “Estado ampliado” após 2001 colocou uma renovada “guerra de posições” que, com suas diferenças, continua até os dias de hoje. Não no sentido que se pretendeu dar a esse conceito desde interpretações reformistas – desde Palmiro Togliatti em diante – mas no que podemos dar a partir de Gramsci para dar conta da luta de caráter preparatório na qual tanto um partido revolucionário quanto às diversas instituições da classe trabalhadora devem lutar constantemente por se desenvolver com uma política independente do Estado capitalista e por combater a assimilação de seus dirigentes. Nessa luta, a esquerda não pode se limitar a um programa de reivindicações imediatas e democráticas combinado com propaganda socialista geral, mas é fundamental uma prática não corporativa, que não separe o político do sindical, bem como a agitação – mais propagandística ou para a ação, dependendo da situação – de um programa transicional que, como apontava Trótski, estabeleça uma “ponte” entre aquelas demandas e a luta por um governo da classe trabalhadora. 17

Essa “guerra de posições” está estreitamente ligada à tática da “frente única operário”. Ou seja, à possibilidade de unificar as fileiras da classe operária na luta de classes para enfrentar a burguesia e, ao mesmo tempo, agrupar os setores mais avançados da classe em um partido revolucionário. Uma combinação que a III Internacional sintetizou na fórmula “golpear juntos, marchar separados”. Em pequena escala, elementos do que chamamos de “frente única” pudemos ver durante as jornadas de dezembro de 2017 (previamente, sob o governo de Macri, houve importantes lutas como AGR-Clarín, Cresta Roja, Bangho, a linha 60, etc., com um de seus símbolos na luta na Pepsico contra um ataque massivo com o fechamento da fábrica a um dos corações da vanguarda operária de todo o período). Naquelas jornadas de 2017, mobilizaram-se setores dos sindicatos – com ou apesar de suas direções –, movimentos sociais – incluindo alguns vinculados ao kirchnerismo – e a esquerda para protagonizar a ação na Praça do Congresso contra a reforma da previdência de Macri e enfrentar a repressão. Apesar da ação da burocracia, que retratou a mobilização e suspendeu a greve que supostamente havia convocado, e da própria repressão, que juntas impediram que a ação se massificasse ainda mais, esta foi uma demonstração limitada do poder que pode ter a “frente única”. Após aquelas jornadas, o governo de Macri teve que abandonar seu anunciado plano de reformas estruturais e permitir a discussão sobre a legalização do aborto.

A própria força da frente única é o que faz com que a burocracia busque permanentemente evitar “golpear juntos”. Ela cuidou muito bem de repetir isso desde 2017. A última amostra disso tivemos no dia da votação da Lei de Bases no Senado, tanto com a negativa de chamar à greve para massificar a mobilização quanto com sua retirada precoce quando ainda a lei não havia sido votada sequer em geral. E isso nos leva a outro ponto central. Para conseguir impor a frente única são necessárias forças. Existem essencialmente três formas de impor a frente única. Uma é pelo próprio impulso das massas que passam à ação, que seria mais uma unificação “de fato”, como aconteceu em dezembro de 2001 e cristalizou em uma aliança entre o movimento de desempregados e setores das classes médias; o famoso “piquete e panela” do qual ficaram de fora os sindicatos devido à ação da burocracia. Outra é graças à ação de um partido revolucionário, que para isso precisa ser uma força política poderosa que constitua uma porção decisiva da classe operária organizada sindical ou politicamente – Trótski, em suas “Teses sobre a frente única”, fala que é necessário um quarto ou um terço dela. Uma terceira forma é a partir da articulação dos setores em luta que constituem a vanguarda do movimento operário em instituições de coordenação que imponham seu peso à burocracia. Uma mecânica desse tipo ocorreu em 1975, quando as Coordenadoras Interfábricas obrigaram a burocracia a ir à greve geral de 7 e 8 de julho.

Evidentemente, não são formas “puras”, geralmente se combinam em alguma medida. Mas a perspectiva de uma esquerda revolucionária nunca pode ser esperar passivamente que o impulso das massas imponha a frente única. Quando isso acontece dessa forma, os limites que vimos em 2001 se manifestam. Assim, enquanto não houver uma organização revolucionária suficientemente poderosa para impô-lo, ganha especial relevância a proposta de Trótski sobre o que chamou de “comitês de ação”. Ou seja, instituições permanentes de unificação e coordenação dos setores em luta, combativos e organizações políticas da classe trabalhadora que possam evitar que a energia despendida pelo movimento se dilua em combates isolados sem continuidade e sirva de alavanca para explodir a estrutura burocrática que se ergue sobre o movimento operário e de massas. Ao mesmo tempo, essas instituições de auto-organização são uma fonte inestimável de novas forças necessárias para a construção de um partido revolucionário, que é o elemento-chave em toda essa disputa posicional.

A necessidade de uma alternativa política frente a um regime em decadência

Assim como analisamos a importância determinante da insurgência da classe trabalhadora na história argentina, é necessário destacar que o desenvolvimento da esquerda, desde meados do século XX até hoje, foi marcado por uma oscilação constante entre os dois grandes polos que caracterizam a política em nosso país: o peronista e o republicano-liberal. Desde o próprio surgimento do peronismo, o Partido Socialista e o Partido Comunista se alinharam atrás da Sociedade Rural, da UIA e da embaixada norte-americana, enquanto o setor de Rodolfo Puiggrós expulso do PC e a fração do PS liderada por Enrique Dickmann, que fundou o Partido Socialista da Revolução Nacional (PSRN), se aliaram ao peronismo. Esta divisão atravessou também as jovens correntes trotskistas. Daquela época até hoje, diante das grandes crises nacionais, a influência do peronismo e do republicanismo liberal será uma constante pressão contra a emergência de uma esquerda verdadeiramente independente.

Uma das divisões que marcou um ponto de ruptura em todo o período pós-2001 foi a que ocorreu durante o conflito entre o kirchnerismo e as patronais agrárias em 2008. Os dois atores centrais procuraram arrogar-se uma posição “defensiva” e progressiva, o que impactou muitos setores que se diziam de esquerda. Por um lado, o kirchnerismo, que não queria enfrentar seriamente o agropower, mas sim conseguir recursos fiscais, defendia que os fundos obtidos com o aumento das retenções ao agronegócio eram para “redistribuir a riqueza”. Sob este argumento, o histórico Partido Comunista argentino reforçou seu alinhamento com o governo, enquanto a chamada “esquerda independente” (que finalmente se condensava em Pátria Grande) começou uma assimilação a prazo fixo ao kirchnerismo. Por outro lado, o agropower liderado pela Sociedade Rural buscou camuflar-se atrás dos “pequenos produtores”, ganhando o apoio de um setor das classes médias. Assim, o PCR se aliou à oposição patronal do agropower com a mesma personalidade com que anos depois se integrou às listas do peronismo. O MST também se posicionou ao lado das patronais agrárias e apostou infrutiferamente na formação de uma centro-esquerda com Pino Solanas. A Izquierda Socialista inicialmente apoiou os “agrários” para depois tomar distância.

Nesse contexto, o mapa da esquerda argentina esteve à beira de reproduzir mais uma vez a velha história de alinhar-se, com reservas ou sem elas, atrás dos diferentes bandos capitalistas. No entanto, impulsionado pelo PTS, juntamente com o PO e também um setor da intelectualidade, surgiu um polo independente popularizado como “Ni K, ni campo” que propunha, entre outras questões, “a nacionalização da grande propriedade agrária, das grandes exportadoras e dos portos privados e privatizados; pelo não pagamento da dívida externa e a nacionalização sob controle dos trabalhadores dos bancos e do comércio exterior”. Nesse momento de extrema polarização, o PTS lutou desde o início por uma posição independente de classe, partindo da premissa de não apoiar nem as patronais agrárias, nem o governo que só buscava beneficiar outro setor da classe dominante. Embora minoritário, este polo estabeleceria as bases de uma posição política independente da esquerda frente à divisão burguesa que marcaria toda a etapa posterior e, nesse sentido, pode ser considerado um antecedente do que depois seria a Frente de Esquerda.

Enquanto todo o resto da esquerda em um sentido amplo (PC, Pátria Grande, PCR, etc.) terminaria se alinhando com o kirchnerismo, cuja política buscava dar conta da relação de forças herdada de 2001 (Direitos Humanos, concessões salariais, negociações coletivas, estatização das AFJP, etc.) e estabelecer que à sua esquerda “estava a parede”, em 2011 foi constituída a Frente de Esquerda como um polo de independência de classe. Hoje já leva mais de uma década como referência política da esquerda no país. Durante toda uma primeira etapa, sua existência coincidiu com o desenvolvimento de fenômenos como o sindicalismo de base que mencionamos, gerando uma sinergia entre o sindical e o político. A emergência de Nicolás del Caño como principal representante da Frente de Esquerda em 2015 esteve diretamente associada à intervenção nesses conflitos, que motivou o reconhecimento, de próprios e estranhos, de que a FIT está sempre com os trabalhadores. A partir das jornadas de 2017 se abriu uma nova etapa onde Macri teve que abortar seu plano de reformas estruturais; o FMI veio resgatá-lo para financiar sua reeleição com um empréstimo histórico e o kirchnerismo contribuiu para sustentar a governabilidade colocando como objetivo do movimento “anti Macri” o “hay 2019” e se reunificou com Massa, que havia sido um dos principais sócios do governo macrista.

A Frente de Esquerda, por sua vez, não se manteve estática e passou por importantes mudanças em seu interior. Nas PASO presidenciais de 2015 se expressaria uma disputa entre as diferentes estratégias dentro da FIT – cujos contornos fomos expressando nos parágrafos anteriores – que concluiu, a partir da negativa do PO em integrar a fórmula presidencial, com a vitória da lista do PTS encabeçada por Nicolás del Caño sobre a do PO encabeçada por Jorge Altamira, que estava à frente das listas da FIT desde 2011. Em 2019, o MST se incorporaria após concordar com o programa que a FIT vinha levantando havia 8 anos, a partir de então sob a denominação de Frente de Esquerda-Unidade. O PO, por sua vez, se fragmentaria em duas organizações e o setor de Altamira – atual Política Obrera – abandonaria a FIT-U. Para as presidenciais de 2023, o PO liderado por Gabriel Solano e o MST se uniriam nas PASO com uma campanha centrada em ataques contra a fórmula de Myriam Bregman e de Caño (proposta pelo PTS e IS). Esta última acabaria se impondo com mais de 70% dos votos e, de conjunto, suas listas terminarão liderando as principais candidaturas em quase todo o país.

No cenário político, após as jornadas de 2017, seguiram-se sete anos de impasse marcados tanto pela falta de vontade da burguesia para atacar em grande escala quanto pela falta de disposição do proletariado em resistir à degradação que se expressou no aumento da precarização do emprego e da pobreza. Todo o peronismo se jogou para impor a lógica do mal menor. A partir de 2019, a burocracia sindical decretou uma trégua que duraria quatro anos. Durante este período, desde o PTS/FIT-U continuamos uma atividade contra a corrente nas fábricas, nas estruturas de trabalho em geral e nas universidades, participamos do imponente movimento de mulheres que mobilizou multidões com nossa agrupação Pão e Rosas, da onda de ocupações de terras de 2020 que teve seu epicentro em Guernica – duramente reprimida por Kicillof –, da série de conflitos e rebeliões anti burocráticas que tiveram como um dos seus símbolos os “elefantes” da saúde de Neuquén. Mas, junto com isso, fortalecemos nossa atividade de agitação política “por cima”, a qual cumpriu um papel chave que permitiu fortalecer a presença da esquerda na cena política nacional.

Nunca antes na história argentina a esquerda trotskista teve uma presença tão contínua ao nível da que tem a FIT-U na cena nacional. Uma força minoritária, mas significativa, que vem mantendo uma influência de cerca de 800.000 votos nas eleições executivas e cerca de 1,2 milhões – contando toda a esquerda, 1,3 ou 1,4 milhões – nas legislativas. A chegada de representantes como Myriam Bregman (PTS) está ao nível dos principais políticos do país e, junto com Nicolás del Caño (PTS) contam com um conhecimento de mais de 80% da população. A nível provincial destacou-se a votação de Alejandro Vilca (PTS) em Jujuy, que chegou a obter 25% dos votos, conseguindo ser deputado nacional. A FIT-U atualmente conta com uma bancada na Câmara dos Deputados da qual fazem parte também Christian Castillo (PTS) e Romina del Plá (PO), assim como bancadas a nível local em diferentes províncias. Trata-se de uma conquista muito importante para que a esquerda possa cumprir seu papel como “tribuno do povo”, o que compreende também todos os representantes nos locais de trabalho, de estudo, nos movimentos e no conjunto da militância. Como apontava Lenin, ser “tribuno do povo” não significa apenas denunciar cada ataque concreto, mas inscrevê-los no quadro geral da dominação de classe e contrapor a necessidade da luta por uma perspectiva anticapitalista e socialista. 18

No terreno ideológico, isso implica contrapor ao individualismo do salve-se quem puder a enorme força da cooperação, que é vital não só na produção, mas na sociedade como um todo, mas que se encontra expropriada pelos capitalistas, e colocar os recursos da ciência, da técnica, do intelecto social geral ou “general intellect”, como o chamava Marx, em função das necessidades do povo trabalhador e de sua emancipação, assim como de uma relação mais harmônica com a natureza. Esta proposta é parte de uma luta política e ideológica mais geral para a qual, desde o PTS, desenvolvemos toda uma rede de meios próprios, começando por La Izquierda Diario, o programa de rádio El Círculo Rojo, o semanário Ideas de Izquierda, Armas de la Crítica, o CEIP “León Trotsky”, as produções audiovisuais de Contraimagen e a editora Ediciones IPS com uma ampla gama de livros que, em muitos casos, expressam elaborações de militantes do próprio PTS e de sua organização internacional, a FT-CI.

Frente ao plano de guerra de Milei, assim como também ao suposto “capitalismo regulado” que propõe um setor do peronismo, trata-se de opor um programa de saída para a crise própria do povo trabalhador. Porque além do desenvolvimento da luta e da organização, é fundamental que a vanguarda tome em suas mãos um programa próprio frente à crise para o combate político, não só com o governo, mas também com o peronismo, para evitar que leve o movimento de massas novamente a um beco sem saída como foi Alberto ou como seriam Scioli (atual secretário do governo de Milei) ou Massa (agora empregado do fundo abutre Greylock Capital). A grande contradição subjetiva da classe trabalhadora argentina é que, embora tenha desempenhado um papel determinante com sua luta na história nacional, também foi moldada pela lógica da conciliação de classes do peronismo que fomenta a ideia de que há setores burgueses “amigos” do povo. O certo é que por trás do plano de guerra de Milei estão não apenas o capital financeiro e o FMI, mas o grosso da grande burguesia local, com quem está colocada a batalha de fundo pelo futuro que terá a Argentina.

O equilíbrio que sustenta Milei e a necessidade de superar o peronismo

A votação da Lei Bases no Senado foi uma demonstração do frágil equilíbrio que sustenta o governo de Milei, que carece por si só de um sólido respaldo político. Após a contribuição fundamental de Lousteau para garantir o quórum, conseguiu aprovar as “faculdades extraordinárias” que destacam os traços bonapartistas do regime, graças aos votos do PRO, da maioria da UCR, dos blocos provinciais (com Carambia e Gadano ajudando com sua ausência) e de três senadores peronistas (Kueider, Espínola e Vigo). Para evitar uma mobilização mais ampla, foi crucial a inação ou ação contida da burocracia sindical e dos movimentos sociais peronistas, além de um enorme desdobramento de forças de segurança, incluindo polícia federal, polícia da Cidade, gendarmaria e serviços de inteligência. A recusa da CGT e da CTA em convocar uma greve para aquele dia e seu apelo para desmobilizar muito antes da primeira votação também foram centrais.

Como Trótski apontou sobre o bonapartismo, se dois garfos são enfiados simetricamente em uma rolha, esta pode manter o equilíbrio até mesmo sobre a ponta de um alfinete. A imagem da Lei Bases no Senado ilustra isso; simboliza o delicado equilíbrio que permite o avanço de Milei, mas também sua vulnerabilidade. O peronismo desempenha um papel crucial neste contexto, não apenas pelos senadores ou deputados que foram decisivos na votação da Lei Bases, mas como parte de uma estrutura política muito mais ampla. Isso inclui desde Kueider, Espínola e Vigo votando pelas faculdades extraordinárias até Scioli como secretário de Turismo, passando pela burocracia sindical e social peronista – tanto aqueles que não convocaram mobilização quanto os que se posicionaram como oposição, convocaram e depois se retiraram da Plaza. Também envolve figuras como Kicillof ou Grabois, que adotaram um discurso abertamente oposto em face do possível desgaste do governo para as próximas eleições, além da perspectiva mais ampla de uma rearticulação do peronismo até 2027 com a colaboração da Igreja Católica e do Papa.

Neste contexto, a questão não é apenas a oposição ao governo, mas quais forças políticas, sindicais ou sociais estão comprometidas com romper esse equilíbrio em favor dos trabalhadores. Por isso, continua sendo uma intensa “guerra de posições” para articular de forma independente os setores avançados, seja enfrentando ataques específicos, a supressão de liberdades democráticas ou, mais amplamente, aqueles que desejam enfrentar politicamente Milei. Daí a importância estratégica das assembleias de bairro e da necessidade de estabelecer instituições de unificação e coordenação da vanguarda onde for possível. Esta articulação de forças pode permitir, à medida que os confrontos de classe se intensificam (como ocorreu recentemente em Misiones), impor uma frente única que a burocracia resiste. Do ponto de vista estratégico, a luta para desenvolver uma ampla auto-organização deve visar criar conselhos de trabalhadores, estudantes e setores populares que possam se tornar verdadeiros organismos independentes de poder frente ao Estado capitalista.

No entanto, como as jornadas de 2001 demonstraram, o equilíbrio do regime político pode ser rompido além da intenção de seus atores, tanto à direita quanto à esquerda. No entanto, como mencionado anteriormente com base nas lições desse processo, mesmo quando o movimento de massas irrompe violentamente na cena política, se não houver uma intervenção protagonista da classe trabalhadora organizada, se não houver uma organização revolucionária com peso suficiente para apresentar uma alternativa política, acabam prevalecendo setores da burguesia. Historicamente, em momentos de maior ameaça ao regime, surge o que na tradição marxista é chamado de “frente popular”, uma colaboração entre organizações operárias, sindicatos e movimentos sociais por trás de setores da burguesia que adotam algumas demandas do movimento de massas para enquadrá-las na defesa dos interesses fundamentais da burguesia para salvá-los. Uma política desse tipo parece ser apoiada por Grabois e a ala esquerda do peronismo. Na década de 70, o peronismo – político e sindical – dividiu-se entre essas variantes (Montoneros, etc.) e aqueles que apostaram em métodos fascistas para eliminar a vanguarda, cuja expressão mais notória foram os bandos da Triple A.

O regime democrático-burguês, com as características que o definiram após a ditadura militar e as Malvinas, hoje enfrenta uma profunda crise, da qual Milei é apenas um sintoma emergente. É necessária uma redefinição das relações de força que foi adiada durante todo o impasse que se seguiu às jornadas de dezembro de 2017. O capital conquistou uma nova força política, La Libertad Avanza, para tentar um avanço ofensivo contra as grandes maiorias. A construção de uma grande força política da classe trabalhadora que aposte na mobilização e organização independentes do movimento de massas é crucial para resolver este teste de forças. O desafio é alcançar não apenas através do discurso, mas também da organização, os setores que já se inclinam para a esquerda e uma parte daqueles 44% que votaram por medo ou ódio contra Milei, convergindo com eles para lutar pela juventude que já está em processo de rompimento com Milei e os setores populares que o apoiaram.

Depois da experiência da Triple A nos anos 70, da guerra que o menemismo travou contra os trabalhadores, do fim do ciclo kirchnerista e do desastre do governo de Alberto que abriu caminho para Milei, apostar novamente no peronismo seria catastrófico para a classe trabalhadora. Retomar as lições do movimento dos anos 70 e dos processos das últimas décadas implica fortalecer a ideia de superar a direção peronista nos sindicatos, nos movimentos e na cena política nacional, construindo um grande partido socialista dos trabalhadores. Frente às tentativas de impor um regime mais bonapartista e de adormecer o movimento sob a ideia de colaboração de classes, levando a resistência contra Milei à impotência, somente uma esquerda revolucionária forte pode, no calor desses confrontos, convergir com os setores que rompem com o peronismo e apresentar uma alternativa política para enfrentar a aguda crise que o país atravessa hoje. A luta está apenas começando.

 

Notas de Rodapé
1. Para uma análise sobre a morfologia da classe trabalhadora atual na Argentina, ver: Informe del Observatorio de les trabajadores de La Izquierda Diario.
2. Fernando Rosso, La hegemonía imposible. Veinte años de disputas políticas en el país del empate. Del 2001 a Alberto Fernández, Buenos Aires, Capital intelectual, 2022, pp. 21-22.
3. Gramsci, Cuadernos de la cárcel Tomo V, México, Era, 1981, p. 387.
4. Ver, entre outros: Sarlo, Beatriz, “No olvidar la guerra de Malvinas”, Punto de Vista N.° 49, Buenos Aires, agosto de 1994. También “¿La voz universal que toma partido? Crítica y autonomía”, Punto de Vista N.° 50, Buenos Aires, diciembre de 1994.
5. Juan Chingo y Laura Lif, “‘Transiciones a la democracia’. Un instrumento del imperialismo norteamericano para administrar el declive de su hegemonía‘”, Estrategia Internacional N.° 16, agosto 2000.
6. Ver: Liszt, Gabriela, “Historia y balance del MAS argentino (parte 1)”, revista Lucha de Clases N.° 6, junio de 2006.
7. Esta teoria seria reflectida inicialmente num relatório interno de Março de 1983 (“Argentina: uma revolução democrática triunfante”) e depois na escola de quadros de 1984.
8. Moreno, Nahuel, Las revoluciones del siglo XX, Bs. As., Ediciones Antídoto, 1986.
9. Nahuel Moreno, “Escuela de cuadros” – Argentina, 1984. Crítica a las Tesis de la Revolución Permanente.
10. A “Plaza del No” foi proposta simbolicamente em contraste com a “Plaza del Yes” chamada pelo jornalista pró-governo Bernardo Neustadt. Mas enquanto esta última tinha um programa claro – o neoliberal que Menem aplicava –, a “Plaza de No” carecia de qualquer programa alternativo.
11. Durante esses anos, desenvolveram-se nesses países processos de mobilização de massas muito contraditórios. Como não havia alternativa para a classe trabalhadora, foi imposto o programa de restauração capitalista das lideranças burocráticas, pequeno-burguesas ou diretamente burguesas e da Igreja. Ver: Claudia Cinatti, “La actualidad del análisis de Trotsky frente a las nuevas (y viejas) controversias sobre la transición al socialismo”.
12. Este ato foi um disfarce para o pacto de impunidade com os militares selado por Alfonsín, do qual surgirá a lei de Obediencia debida.
13. Documento electoral de 1989, p. 22.
14. Para uma aproximação global à teoría da revolução permanente, ver: Liszt, Gabriela, “Prólogo”, en Trotsky, León, La Teoría de la Revolución Permanente, Bs. As., Ediciones IPS, 2011.
15. Ver: Matías Maiello, De la movilización a la revolución, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2020.
16. Gramsci, Antonio, “Pasado y presente. Política y arte militar” (Q6, §155), Cuadernos de la cárcel, Tomo 3, México, Era, 1984, p. 112.
17. Sobre este debate, ver: Matías Maiello, De la movilización a la revolución, ob. cit
18. Lenin, V. I., “¿Qué hacer?”, Obras Selectas, Tomo 1, Buenos Aires, IPS, p. 126.
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