Revista Casa Marx

“Ainda estou aqui” e a luta por Memória, Verdade e Justiça

Diana Assunção

O enorme impacto do filme “Ainda estou aqui” já pode ser considerado histórico para o cinema brasileiro. Do ponto de vista cinematográfico, conquistou no Oscar a marca inédita de indicação a melhor filme, além de melhor filme estrangeiro e melhor atriz, mas do ponto de vista de entrada no “imaginário popular” é também massivo. Esse verdadeiro fenômeno traz à tona o passado, mas diz muito do Brasil de hoje. Há algo “a mais” do que o próprio filme, que transborda pelas salas de cinema em todo o país e internacionalmente.

Todas as escolhas do filme contribuíram para esse alcance, desde uma direção primorosa por Walter Salles, uma direção de fotografia impecável, um elenco estelar e, claro, Fernanda Torres em atuação magistral, nossa eterna Vani e Fátima, sem a qual o filme não seria o mesmo. Mas especialmente a leitura menos abrangente da ditadura militar no Brasil, como um retrato de uma situação particular e seus desdobramentos, permitiu “universalizar” a história em questão e tocar “corações e mentes” em verdadeiro clima de Copa do Mundo que fará do Carnaval um momento apoteótico. Essa decisão, obviamente, deixa uma série de lacunas, inclusive um certo distanciamento em relação à política de enfrentamento à ditadura militar. Porém o cenário brasileiro pós-bolsonarismo, a recente entrada de Trump na presidência dos Estados Unidos com direito à reverência nazista e as sequelas da ditadura militar no Brasil impõem que o fenômeno seja político.

Por isso, o clima de medo tão bem filmado por Salles e a construção de uma narrativa sobre as consequências que a ditadura militar deixou em uma família de classe média do Rio de Janeiro contribuem para a retomada da memória da ditadura militar. O filme não mostra a “ditadura nua e crua”, como apontou o crítico de cinema Inácio Araújo retomando o cinema de Lucia Murat que tão bem retratou esse período de exceção. Mas colocou na “agenda” esse tema, o que em si permite uma série de interpretações e posições políticas. Analisar e debater “Ainda estou aqui”, portanto, transcende o filme em si mesmo.

A vida pessoal de Rubens Paiva, ex-deputado do PTB, e de sua esposa Eunice Paiva tomam conta do início do filme, mudando de tom e som quando a ditadura se impõe dentro de sua casa. A partir daí, conhecemos Eunice Paiva, que retrata uma jornada individual de superação do trauma que a ditadura causou em sua família. Esta mensagem causa empatia pela figura que, com 5 filhos, soube se reconstruir e reinventar buscando também na luta pelo atestado de óbito do marido assassinado seu sentido de combate ao ocorrido.

Esse desfecho, da história particular dos Paiva através do olhar de Marcelo Rubens Paiva e posteriormente de Walter Salles, obviamente não abrange o enfrentamento coletivo à ditadura militar no Brasil. Por isso são contraproducentes as críticas, em geral de cunho populista, que criticam o filme pelo que ele não é. Mas justamente a transcendência das telas de cinema e a apropriação em si mesma do filme por distintos setores da sociedade permite uma discussão sobre os resquícios da ditadura que ainda estão aqui.

Grande parte do fenômeno em curso ao redor do filme se traduz na maneira como a Frente Ampla que hoje governa o país “lê” o recado do filme, para além dos objetivos de seus realizadores e patrocinadores, que incluem grandes bancos nacionais. É uma leitura particularmente interessada a da Frente Ampla que busca unificar o país o mais “amplamente possível” até o limite dos bolsonaristas que referenciam a ditadura, aqueles do 8 de janeiro de 2023. O objetivo é utilizar o filme para transmitir um recado que, traduzido em política, é de conciliação: fazer tudo que for necessário para manter a democracia atual, leia-se democracia dos ricos ou democracia burguesa. Mas sob qual prisma? O da transição pactuada que permitiu o fim da ditadura militar com anistia aos militares e torturadores da ditadura. O do desvio da luta massiva da classe operária brasileira que se levantou contra a ditadura. O da conciliação com os militares de hoje e com todos os capitalistas e banqueiros que patrocinaram o golpe militar e enriqueceram na ditadura – e seguem enriquecendo e cheios de privilégios até os dias de hoje, como os militares envolvidos no assassinato de Rubens Paiva que, juntos, recebem hoje R$ 140 mil.

Não existe, portanto, memória, verdade e justiça no Brasil diante de uma política permanentemente conciliatória, inclusive com aqueles que protagonizaram o golpe institucional de 2016, de outro caráter, mostrando não só a conciliação com a caserna, mas também com a toga. É simbólico que o filme tenha sido lançado no mesmo ano em que o governo Lula proibiu atos oficiais contra os 60 anos do golpe de 1964. Esta conciliação segue sendo a marca fundamental do governo atual para dirigir o capitalismo brasileiro.

É por isso que a força da pauta da ditadura recolocada através do filme “Ainda estou aqui” permite uma discussão que busque a raiz dos problemas de dominação do regime político em momentos de exceção, no caso da América Latina financiados pelo imperialismo norte-americano e sua contracara nos regimes democráticos, que sustentam os setores que empreenderam as piores medidas durante a ditadura militar. Não à toa, as ruas de nosso país carregam o nome de militares e torturadores por todo o Brasil e a impunidade destes senhores segue sendo uma dura realidade. Também é possível dizer que o espírito da ditadura segue vivo através das polícias que matam cotidianamente, em especial a juventude negra.

O grito entalado contra a ditadura militar pode se fazer ouvir com mais amplitude frente ao fenômeno que “Ainda estou aqui” impôs. É um filme que abre um novo capítulo da história do cinema brasileiro. Faz falta, entretanto, a combatividade de um Glauber Rocha diante do imperialismo norte-americano e de outros países para defender o cinema nacional sem se curvar aos grandes festivais de cinema. Cabe a nós, também, este combate no sentido político do termo para lutar por Memória, Verdade e Justiça com abertura e divulgação irrestrita de todos os arquivos da ditadura e punição a todos os torturadores e mandantes da ditadura militar no Brasil. Enfrentando a extrema-direita de hoje dos Milei e Bolsonaros, o que significa também combater os autoritarismos do regime democrático burguês e lutar por uma vida que preste de verdade.

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