Claudia Cinatti
Com este primeiro documento, aprovado em geral pelo CC do PTS em 09/03/25, abrimos a discussão sobre o ponto internacional do próximo congresso partidário. Estamos no início do segundo mandato de Donald Trump, que está provocando mudanças vertiginosas na situação internacional, com processos importantes em curso – como as negociações para encerrar as guerras na Ucrânia e no Oriente Médio – cujas consequências de longo prazo ainda estão por se revelar. Neste contexto de conjunturas instáveis, que provavelmente exigirão uma atualização da análise antes do congresso, tentaremos abrir hipóteses sobre os cenários possíveis à luz das tendências estruturais desta nova etapa.
Da “Ordem Liberal” ao retorno das “Esferas de Influência”
A chegada de Donald Trump à Casa Branca tem o efeito de um furacão sobre a situação internacional, marcada pela intensificação das tensões geopolíticas e pelas ameaças de guerras comerciais. A tática trumpista de usar o caos como método, deixando sempre no ar a dúvida se suas propostas mais disruptivas (como a limpeza étnica de Gaza para transformá-la em um resort privado) são um blefe ou uma ameaça real, adiciona uma dose significativa de incerteza política e econômica à confusão geral.
Na política externa, Trump parece seguir a famosa teoria do “madman” de Richard Nixon, segundo a qual aparentar ser um líder irracional e imprevisível, capaz de qualquer coisa, conferia vantagem nas negociações e dissuadia os inimigos de provocar os Estados Unidos. Vale lembrar que essa estratégia de Nixon teve um limite: a correlação real de forças prevaleceu, e a Casa Branca acabou negociando um acordo estratégico com a China e retirando-se do Vietnã. Embora os Estados Unidos não enfrentem hoje uma crise comparável à da guerra do Vietnã, é de se esperar que, nas condições pós-crise de 2008, a postura de valentão possa render alguns dividendos no curto prazo, mas dificilmente será suficiente para disfarçar (muito menos reverter) o declínio hegemônico do imperialismo norte-americano.
A guinada copernicana dos Estados Unidos promovida por Trump na guerra da Ucrânia – de aliado de Zelensky a negociador da paz com Putin – abriu uma espécie de “conjuntura estratégica”, na qual o curto prazo se entrelaça com as determinações estruturais da nova etapa inaugurada pelo esgotamento da ordem liberal liderada por Washington e sua versão neoliberal intensificada após a Guerra Fria, que predominou nas últimas oito décadas.
Desde a crise capitalista de 2008, que marcou o esgotamento da hegemonia neoliberal – sintetizada na tríade: momento unipolar dos Estados Unidos, hiperglobalização (livre mercado) e expansão da democracia liberal –, abriu-se uma nova etapa de reatualização das tendências profundas da era imperialista, caracterizada por guerras, crises e confrontos entre revolução e contrarrevolução.
O segundo mandato de Donald Trump – e, de forma mais ampla, a ascensão de diversas variantes da extrema direita – não são as causas, mas os “sintomas mórbidos” dessa nova situação.
As coordenadas estruturais dessa nova etapa incluem o declínio da hegemonia dos Estados Unidos e a ascensão da China como potência concorrente, que avançou em uma aliança com a Rússia, aproximando-se de outros países em conflito com o Ocidente (Irã, Coreia do Norte, Venezuela). Além disso, surgiram potências intermediárias, como Turquia e Indonésia, bem como outros membros do “Sul Global” com graus variados de capacidade para influenciar dinâmicas regionais de acordo com seus interesses.
A presidência de Biden, longe de representar um “retorno à normalidade” após o primeiro mandato de Trump, foi uma tentativa fracassada de restaurar a velha ordem liberal e recompor a liderança dos Estados Unidos por meio do comando do sistema de alianças do Ocidente – Europa, OTAN e aliados asiáticos (Japão, Austrália, Coreia do Sul).
Trump expressa uma estratégia diferente para superar essa crise do imperialismo norte-americano, adotando um giro bonapartista na política interna, baseado na aliança com grandes bilionários como Elon Musk, e uma reorientação da política externa sob uma lógica “neorrealista”, guiada não pela estratégia de liderar uma ordem global, mas pelo interesse nacional imperialista, que cada vez mais assume a forma das “esferas de influência” do imperialismo clássico.
Os dois slogans centrais da campanha de Trump – MAGA (“Make America Great Again”, ou “Tornar a América Grande Novamente”) e “America First” – com sua variante reaganiana de “paz através da força” – vêm ganhando contornos concretos. Não se trata de um giro ao isolacionismo tradicional, nem de um protecionismo arraigado que implique um recuo dentro das fronteiras nacionais. O sentido, na verdade, é evitar envolver o imperialismo norte-americano em guerras onde seus interesses não estejam diretamente em jogo, reafirmar seu domínio no “Hemisfério Ocidental” (“as Américas”) como sua “esfera de influência” e concentrar recursos – militares, geopolíticos, econômicos – na contenção da China, que representa o principal desafio estratégico ao declinante poderio dos Estados Unidos.
Dentro dessa reorientação, deve-se interpretar a retórica imperialista agressiva que Trump vem adotando – cogitando anexar Groenlândia, retomar o controle do Canal do Panamá, incorporar o Canadá – com referências à Doutrina Monroe e à presidência de William McKinley, caracterizada pelo protecionismo e pela expansão territorial dos Estados Unidos (Porto Rico, Filipinas, etc.). A grande diferença é que a expansão imperialista de McKinley (que, vale lembrar, foi assassinado por um anarquista) coincidiu com o momento de ascensão da potência norte-americana, enquanto as ameaças de Trump representam, em certo sentido, um reconhecimento dos limites do poderio dos Estados Unidos e ocorrem em um contexto de declínio.
A julgar pelo que mostrou nos primeiros movimentos à frente da Casa Branca, Trump continuará exercendo a chamada “diplomacia mercantil”, reforçada pela capacidade dissuasória do poderio militar. Isso significa priorizar acordos bilaterais e utilizar tarifas e impostos como ferramentas para obter concessões, em primeiro lugar, dos aliados mais expostos à pressão norte-americana devido ao seu grau de dependência (Canadá, México, Europa), além de manter sob controle inimigos e rivais. Ao mesmo tempo, buscará reorientar os gastos militares para o reequipamento com armamentos mais modernos e ágeis (além da atualização do arsenal nuclear e da tecnologia militar) para aumentar a capacidade de resposta do Pentágono, que se viu sobrecarregado com a assistência simultânea à Ucrânia e a Israel.
Com essa política, Trump pretende alcançar acordos parciais que resolvam ou, no mínimo, congelem conflitos como o do Oriente Médio ou da Ucrânia, que não apenas drenam recursos econômicos dos cofres norte-americanos, mas também podem escalar para guerras entre potências nucleares. No entanto, mesmo que tenha sucesso – o que ainda está por ser comprovado –, essa “arquitetura” do poder mundial é instável e provisória.
Como apontam vários analistas, o “transacionismo” tem uma natureza mais precária (os acordos são feitos e desfeitos) e não alcança a estatura de uma “grande estratégia”, como foi, por exemplo, a política de “contenção” da União Soviética na Guerra Fria. Em perspectiva, essa estruturação das relações interestatais, sem um fator organizador incontestável como os Estados Unidos, reforça as rivalidades entre potências e o militarismo preparatório, pois não se baseia em nenhum acontecimento decisivo – como a Segunda Guerra Mundial ou o fim da Guerra Fria – que tenha a capacidade de definir a relação de forças e a distribuição de poder por um período histórico. Nesse sentido, acreditamos que se mantém a definição de que, embora não estejamos no início de uma “Terceira Guerra Mundial”, foi aberto um interregno perigoso, com elementos de uma situação “pré-1914”, na qual, como aponta o historiador Christopher Clark, seus principais protagonistas parecem avançar como “sonâmbulos” rumo a uma conflagração de dimensões globais. Quando Trump acusou Zelenski de “brincar com a Terceira Guerra Mundial”, ele se referia à escalada do conflito na Ucrânia, com o envolvimento cada vez mais direto da OTAN – e dos Estados Unidos – no apoio ao lado ucraniano.
O “dividendo da paz”, ressuscitado por George Bush (pai) e Margaret Thatcher no fim da Guerra Fria, se esgotou. Isso não significa que estamos em um caminho direto para uma nova guerra mundial, entre outras razões porque os “graus de sonambulismo” variam conforme as orientações mais ou menos belicistas dos governos imperialistas, especialmente dos Estados Unidos. No entanto, a degradação da ordem liberal e da capacidade (e vontade) norte-americana de atuar como “polícia mundial” torna mais prováveis conflitos armados de diversas proporções, que, como nos casos da Ucrânia ou do Oriente Médio, podem escalar e envolver grandes potências.
Os elementos que assemelham a situação atual à constelação “pré-1914” incluem a crise de liderança imperialista, o surgimento de potências concorrentes (como a China), o retorno das rivalidades entre grandes potências e o aumento do militarismo, notadamente o rearmamento preparatório das potências europeias. Ao mesmo tempo, há fatores que relativizam esse cenário. Um deles é a maior internacionalização e dependência do capital das cadeias globais de valor, uma estrutura consolidada nas décadas de hiperglobalização. Embora a globalização esteja em retração, sendo reconfigurada em termos mais regionais (nearshoring) e de redução de riscos geopolíticos (friendshoring) dentro de tendências protecionistas, não há um colapso do comércio mundial semelhante ao da década de 1930. Outro fator importante é que, ao contrário do início do século XX, hoje as potências possuem armas nucleares e, mesmo em guerras convencionais (como a da Ucrânia), lidam com o risco de destruição mútua. Por fim, há o fator decisivo da luta de classes, ou seja, a perspectiva, como apontava Trotsky na década de 1930, de que o triunfo da revolução operária (como na Espanha) poderia interromper o curso da guerra.
A guerra na Ucrânia e os limites da “Pax trumpista”
O acontecimento mais importante das primeiras semanas da presidência de Trump é a mudança radical da posição dos Estados Unidos na guerra da Ucrânia. Esse conflito, o primeiro de grande magnitude no coração da Europa desde a Segunda Guerra Mundial, acelerou a formação de blocos rivais de potências: de um lado, o “Ocidente”/OTAN apoiando a Ucrânia sob liderança norte-americana e, do outro, uma aliança em construção entre Rússia e China, que atua como um polo alternativo de atração para países isolados como Irã e Coreia do Norte.
Os Estados Unidos passaram de armar a Ucrânia e liderar os aliados da OTAN em uma guerra indireta para enfraquecer a Rússia sob Biden, para abrir uma negociação bilateral de cessar-fogo diretamente com Vladimir Putin, excluindo seus antigos aliados das conversas: as potências europeias e o próprio Zelenski. A mensagem trumpista é categórica e carrega um tom de chantagem: ou Zelenski (e seus aliados europeus) aceitam os termos negociados com Putin para um cessar-fogo, ou os Estados Unidos se retiram.
A negociação que está em curso, para falar a verdade, está apenas começando. E, embora não se conheçam detalhes da primeira reunião entre Rússia e Estados Unidos em Riad (que alguns, com razão, definiram como uma espécie de “mini Yalta”), qualquer acordo “realista” supõe que a Ucrânia reconheça a derrota, o que implica, no mínimo, aceitar a perda de 20% do território ocupado pela Rússia (os quatro oblasts do Donbass, mais a Crimeia) e declarar-se neutra, ou seja, renunciar à sua pretensão de ser membro da OTAN (e da UE). Além disso, Putin insinuou entre suas condições que sejam realizadas eleições na Ucrânia, ou seja, que Zelenski seja substituído por um governo alinhado ao Kremlin.
Somado a isso, Trump exige que Zelenski assine um acordo para exploração de minerais e terras raras, pelo qual os Estados Unidos ficariam com metade desses recursos, como compensação pela ajuda militar recebida. Cabe lembrar que quem ofereceu primeiro essa transação praticamente colonial a Trump foi o próprio Zelenski, que esperava obter em troca uma garantia de segurança por parte dos Estados Unidos, o que claramente não vai acontecer.
A posição da Ucrânia piorou substancialmente após a fracassada reunião entre Zelenski, Trump e o vice-presidente J. Vance, no final de fevereiro, que resultou em uma sessão de bullying imperialista televisionada para todo o mundo. Zelenski saiu do Salão Oval humilhado e de mãos vazias. Os Estados Unidos concretizaram a ameaça de suspender a ajuda militar e a colaboração de inteligência com Kiev, deixando a frente ucraniana à beira do colapso. Mas, como se viu depois, com o início das negociações entre os Estados Unidos e representantes do governo ucraniano, esse espetáculo de intimidação imperialista respondia mais a uma pressão extrema sobre o presidente ucraniano (e também sobre a Europa) do que a uma ruptura. Zelenski precisa que pelo menos parte da ajuda militar americana continue fluindo para não ficar exposto diante da Rússia enquanto se negocia o cessar-fogo. Trump, por sua vez, precisa que Zelenski capitule o quanto antes para poder assumir o papel de “pacificador”, que lhe seria reservado exclusivamente por ser o líder da maior potência imperialista.
Embora a Rússia também sofra o desgaste de três anos de guerra, o tempo joga a favor de Putin, que, antes de aceitar um cessar-fogo, certamente buscará consolidar e talvez ampliar seus avanços no campo de batalha, além de garantir algumas questões consideradas “linhas vermelhas” para o Kremlin. Entre elas: a neutralidade da Ucrânia, o que inclui a desmilitarização do Estado ucraniano, a criação de uma zona de amortecimento (“buffer zone”) e a segurança de que não haverá tropas da OTAN no país.
O truque de Trump é se desvincular da derrota da Ucrânia e, indiretamente, da OTAN e das potências europeias. No pior dos casos, ele busca que a história registre essa derrota como um fracasso do governo Biden e não dos Estados Unidos. No entanto, os fatos se impõem à retórica. A contradição que ele enfrenta é que, para acabar com a guerra, precisa aceitar grande parte das exigências de Putin, mas, ao mesmo tempo, deve evitar que a Rússia reivindique uma vitória retumbante, pois isso fortaleceria objetivamente a posição do bloco antagônico, em especial da China.
O cessar-fogo ainda está em andamento (“work in progress”), e sua evolução terá influência tanto no curto quanto no longo prazo na dinâmica da situação internacional, por isso só é possível levantar hipóteses alternativas.
O que já é um fato é que o destino da Ucrânia é o saque disputado entre os Estados Unidos e a Rússia, com as potências europeias também reivindicando, por ora sem sucesso, sua parte do espólio. A catástrofe da guerra prolongada por Zelenski e pela OTAN, que deixou o país em ruínas, provavelmente desencadeará conflitos político-militares dentro da própria Ucrânia.
Nos Estados Unidos, embora haja um realinhamento dos fatores de poder em torno de Trump, o establishment continua dividido. A ala “intervencionista” (e mais belicista), que reúne democratas liberais e neoconservadores, acusa Trump de “trair a Ucrânia”. Eles temem que as concessões inevitáveis a Putin enfraqueçam a posição do imperialismo norte-americano na Eurásia e, de forma mais ampla, que esse preço pela “paz” seja interpretado como um fracasso pelos inimigos do Ocidente, começando pela China.
O setor “realista” defende que ainda é possível retomar a estratégia do primeiro mandato de Trump e usar as negociações com Putin para separar a Rússia da China, uma espécie de “Nixon ao contrário”, substituindo a China pela Rússia, que hoje é a potência mais fraca. Isso representaria uma mudança profunda, pois implicaria abandonar a política de hostilidade contra a Rússia vigente desde a primeira presidência de Clinton, com a expansão da OTAN como principal ferramenta, aconselhada pelo então assessor de segurança nacional Z. Brzezinski.
Não está claro se há uma orientação estratégica de longo prazo por trás da política de Trump, mas, caso haja, é difícil que um acordo de cessar-fogo com Putin seja suficiente para afastar a Rússia da China. Embora possa reduzir a intensidade da cooperação entre os dois países e haja um histórico de hostilidade mútua, existem razões de curto e longo prazo que tornam esse desfecho improvável. No imediato, se Trump perder as eleições, não há garantias para Putin de que os Estados Unidos não voltarão a hostilizar sua zona de influência. No longo prazo, as tendências objetivas favorecem a convergência entre essas duas potências “revisionistas”.
Salto histórico no militarismo europeu
A ofensiva de Trump sobre Zelenski para que ele capitule diante de Putin expôs não apenas a fratura das antigas alianças entre as potências ocidentais, mas sobretudo a crise e a impotência da União Europeia. As consequências da guerra na Ucrânia foram desastrosas para o Velho Continente, especialmente para a Alemanha, potência imperialista líder do projeto europeu, que se submeteu à liderança dos Estados Unidos sacrificando seus próprios interesses – a energia barata russa, fundamental para a sustentação de seu modelo econômico. O ataque humilhante ao gasoduto Nord Stream II foi a metáfora gráfica desse resultado catastrófico.
Dada sua dependência militar em relação aos Estados Unidos, as potências europeias não têm capacidade para implementar uma política própria para sustentar a Ucrânia, nem para fazer com que Trump modifique o essencial de sua política de negociar com Putin com base na derrota ucraniana, além de eventuais concessões menores. Menos ainda para sustentar sozinhas a estrutura da OTAN no caso – pouco provável – de que Trump decida não apenas reduzir seu apoio, mas se retirar da aliança militar atlântica.
O plano alternativo que o primeiro-ministro britânico K. Starmer e o presidente francês E. Macron apresentaram ao presidente norte-americano tem alta probabilidade de fracassar, pois pressupõe que, por trás da “coalizão voluntária” de países europeus que enviariam tropas para o território ucraniano, os Estados Unidos continuariam sendo a garantia final da segurança da Ucrânia em um eventual cenário de pós-guerra – algo que, por ora, é uma linha vermelha para Trump.
A consequência dessa crise é um avanço monumental do militarismo por parte dos governos imperialistas europeus, um movimento que já havia começado com a guerra da Ucrânia, mas que se aprofundou em uma escala sem precedentes. Sob a justificativa da “autonomia soberana”, da “defesa da Ucrânia” e da fantasia de uma invasão do “imperialismo russo” e do “nazismo de Putin”, as potências europeias estão se preparando para entrar na pilhagem imperialista, com o apoio entusiástico de social-democratas, conservadores, verdes, “atlantistas” e soberanistas de direita.
A Comissão Europeia (com exceção do presidente húngaro, o “trumpista” Viktor Orbán) aprovou o plano “Rearmar a Europa”, no valor de 800 bilhões de euros, e excluiu os gastos militares das restrições do limite de déficit de 3% do PIB (o compromisso de austeridade estabelecido no Pacto de Estabilidade e Crescimento). O plano também prevê empréstimos coletivos de até 150 bilhões de euros para investimento militar dos Estados-membros e a abertura do financiamento militar para investimentos privados, entre outras medidas.
Na Alemanha, a futura coalizão de governo entre os conservadores (CDU) e os social-democratas (SPD), liderada por F. Merz, anunciou um plano monumental de rearme – “defesa custe o que custar” –, o que implicaria mudanças constitucionais para flexibilizar o limite de endividamento e a destinação de aproximadamente 900 bilhões de euros para defesa, com aprovação prévia no parlamento.
No entanto, a unidade mostrada pela Europa é circunstancial, e mais cedo ou mais tarde ressurgirão as divisões que se manifestaram na própria guerra da Ucrânia. Hoje, o Reino Unido – que, vale lembrar, se separou da União Europeia com o Brexit – e a França são as duas potências nucleares do velho continente. Portanto, a Alemanha, que lidera o bloco europeu junto com a França, teria que se colocar sob o guarda-chuva nuclear dessas duas potências.
Segundo as primeiras pesquisas, a opinião pública em sua maioria apoia o rearme, embora haja minorias significativas contrárias. Do jeito que foi apresentado pelos líderes europeus e promovido pelos propagandistas de “esquerda” do militarismo, o plano parece mais uma posição política anti-trumpista do que um belicismo generalizado. Esse salto histórico na corrida armamentista será financiado com ataques às conquistas sociais e a liquidação do que ainda resta do estado de bem-estar social. Também implicará cortes em direitos democráticos e políticas caras à extrema-direita, como o restabelecimento do serviço militar obrigatório em certos países – o que, no conjunto, pode reativar lutas contra os cortes e ataques às condições de vida, além de movimentos antiguerra.
As contradições do plano para a estabilização reacionária do Oriente Médio
Junto com a guerra da Ucrânia, a outra prioridade da política externa de Trump é pôr fim à guerra em Gaza e desarticular a dinâmica de conflito regional que poderia envolver os Estados Unidos em um eventual confronto entre Israel e Irã.
O presidente norte-americano esteve por trás das negociações para o cessar-fogo entre Israel e o Hamas, que entrou em vigor um dia antes de sua posse. A troca de reféns por prisioneiros palestinos tem ocorrido, apesar de algumas tensões, e a política parece avançar para a segunda fase da negociação, que envolve questões de difícil resolução, como o futuro de Gaza.
A política em relação ao conflito de Gaza é onde parece ter se destacado a estratégia do “madman” (estratégia do “louco”). Assim como patrocinou as negociações, Trump recebeu Netanyahu na Casa Branca e anunciou que seu objetivo era a limpeza étnica de Gaza para apropriação do território e sua transformação em um negócio imobiliário. E, enquanto ameaça o Hamas com “desencadear um inferno”, negocia, em particular, a libertação de um refém de origem norte-americana.
Provavelmente, a ameaça de deslocar os palestinos para o Egito e a Jordânia, que foi interpretada como um sinal verde pelos colonos sionistas e pelo governo de Netanyahu para aprofundar sua ofensiva na Cisjordânia, exerceu pressão sobre os governos árabes envolvidos nas negociações, principalmente Egito e Catar, que apresentaram um plano próprio para o financiamento da reconstrução de Gaza, aprovado pela Liga Árabe.
O cessar-fogo representou uma derrota para os objetivos de guerra de Netanyahu, que havia se proposto a “eliminar o Hamas” e recuperar os reféns por meios militares. No entanto, trata-se de um acordo frágil e, de forma alguma, significa o fim da guerra ou da opressão colonial sobre o povo palestino. Embora o Estado de Israel tenha obtido sucessos táticos – enfraquecendo o Hamas e o Hezbollah, e, por essa via, também o Irã – como ficou evidente nas cenas de entrega de reféns, o Hamas ainda mantém força de combate e certo nível de organização estatal. Essa é a base da contradição na qual Netanyahu não pode aceitar que o Hamas continue governando Gaza, mas também não pode arcar com o altíssimo custo de retomar a ofensiva genocida em Gaza, o que implicaria a morte certa dos reféns israelenses ainda em poder do Hamas. Apesar da guinada à direita da sociedade israelense, a maioria apoia o cessar-fogo e a negociação para a libertação de todos os reféns.
A política de Trump continua sendo a estabelecida nos Acordos de Abraão, impulsionados durante seu primeiro mandato, ou seja, a “normalização” das relações entre os países árabes, especialmente a Arábia Saudita, e o Estado de Israel, com o objetivo de isolar regionalmente o Irã. O interesse de Trump é geopolítico, militar e também econômico, já que o petróleo barato é um dos pilares do seu plano para reduzir a inflação nos Estados Unidos.
Na versão original dos Acordos de Abraão, a questão palestina era completamente ignorada na “normalização”. A ação do Hamas em 7 de outubro de 2023 e a guerra-genocídio de Netanyahu em Gaza, com a cumplicidade dos Estados Unidos e das potências imperialistas europeias, tornaram impossível para a monarquia saudita assinar esses acordos sem levar em conta a questão palestina. Por isso, a Arábia Saudita voltou a condicionar a normalização à inclusão, ainda que de forma degradada, de alguma solução de “dois Estados”. Nessa difícil negociação, os governos árabes desempenham um papel central ao pressionar o Hamas para que aceite ceder ou disfarçar seu papel em Gaza. Os cenários ainda estão em aberto. Os aliados da coalizão de extrema direita de Netanyahu se sentem encorajados pelo discurso brutal de Trump, e não se pode descartar que, mesmo que o objetivo realista da Casa Branca seja alcançar um cessar-fogo o mais reacionário possível, a guerra em Gaza seja retomada ou a escalada na Cisjordânia continue. Ao mesmo tempo, segue em curso a defesa da “solução final” da limpeza étnica dos territórios palestinos – o verdadeiro programa da coalizão liderada por Netanyahu, que encontra apoio nas propostas de Trump.
A pressão imperialista sobre a América Latina
A política de Trump de reafirmar o domínio norte-americano no “hemisfério ocidental” implica uma ofensiva sobre a América Latina, onde a China tem se consolidado como o primeiro ou segundo parceiro comercial de vários dos principais países da região.
Embora a política da Casa Branca para a região ainda seja errática, segue a orientação geral de combinar ameaças, sanções e tarifas para obter concessões e melhores acordos. Um exemplo inicial dessa tática foi a pressão sobre o governo Petro, na Colômbia, quando resistiu a aceitar deportados que chegavam em aviões militares. México e Panamá estão na linha de frente dos alvos da administração republicana. A questão migratória é um dos pilares da política de Trump, que, juntamente com a renegociação do T-MEC, intensifica a tensão com o México – que se espera desempenhe o papel de “barreira” para conter as ondas migratórias rumo aos Estados Unidos, similar ao papel da Turquia para a União Europeia.
Outro ponto de tensão é a Venezuela, onde a direita esperava derrubar Maduro com o apoio de seus aliados na Casa Branca. No entanto, isso não aconteceu até o momento. As sanções e ameaças oscilam, mas Trump parece não querer repetir o fiasco do golpe fracassado de Guaidó, impulsionado pelos republicanos mais agressivos durante seu primeiro mandato. Maduro, por sua vez, optou por uma linha de negociação, com as licenças petrolíferas no centro das tratativas.
Politicamente, a chegada de Trump encorajou as extremas direitas em uma região onde, por enquanto, os governos alinhados a Trump estão em minoria, predominando governos de “centro-esquerda” ou de centro-direita (não trumpista), embora em um clima geral instável.
Dos três principais países da região, apenas a Argentina, com Milei, está em uma posição de alinhamento incondicional com Trump, enquanto Brasil e México, grosso modo, estão na oposição ao trumpismo.
Isso explica o valor que Trump atribui a ter um servo como Milei, que atua como uma cabeça de ponte na América Latina e é um dos assistentes prediletos dos fóruns da internacional reacionária. A política de Milei é uma versão ainda mais intensa das “relações carnais” do menemismo, baseada no princípio entreguista do alinhamento incondicional com os Estados Unidos e Israel. Por isso, o presidente norte-americano, além de inflar o ego de Milei com elogios, tapinhas nas costas e selfies, está facilitando o acesso a um novo programa com o FMI para ajudar o governo a manter seu esquema econômico e tentar ganhar as eleições legislativas de outubro. No entanto, a afinidade político-ideológica e o servilismo de Milei não foram suficientes para evitar que a Argentina fosse vítima da política protecionista de Trump, que impôs tarifas ao alumínio e ao aço. Algo parecido aconteceu com Macri, que conseguiu um empréstimo bilionário negociado por Trump para vencer as eleições, mas acabou sofrendo uma fuga massiva de capitais em 2018 e perdeu a presidência.
Mais amplamente, a política protecionista dos Estados Unidos, especialmente se resultar no fortalecimento do dólar, terá um impacto objetivamente negativo sobre as economias emergentes de modo geral, e em particular sobre as altamente endividadas em dólares, como a Argentina.
Guerras comerciais e volatilidade econômica
Além desses abalos geopolíticos, sem distinguir aliados de inimigos, Trump está implementando uma série de tarifas punitivas contra importações tanto do bloco do T-MEC (Canadá e México) quanto da Europa e da China, o que, por sua vez, gerou a imposição de tarifas sobre bens importados dos Estados Unidos nesses países.
A guerra comercial, especialmente com a China, ainda se mantém em níveis controlados, e há um caminho a percorrer até uma escalada maior. Diante do aumento de tarifas para bens chineses, o governo de Xi Jinping impôs tarifas moderadas de 15% sobre importações agrícolas provenientes dos fazendeiros que, em grande parte, compõem a base eleitoral de Trump. Além disso, foram afetadas algumas empresas estratégicas.
A União Europeia também entrou nessa espiral de tarifas punitivas. Aos impostos que Trump impôs sobre aço, alumínio e produtos que os utilizam na fabricação, a UE respondeu com tarifas de até 50% sobre bens icônicos, como motocicletas Harley Davidson e bourbon do Kentucky. Trump elevou a aposta, impondo uma tarifa de 200% sobre bebidas alcoólicas europeias, especialmente vinho e champanhe.
O uso de tarifas e impostos parece ter um duplo propósito: no plano doméstico, sustentar a agenda protecionista e de “reindustrialização” que faz parte do programa trumpista e compensar a perda de receita fiscal causada pela redução de impostos para os ricos, em um contexto mais amplo de aumento da dívida pública e do déficit. Na política externa, essas restrições ao mercado norte-americano são utilizadas como arma principal da “diplomacia transacional” para obter concessões comerciais e/ou políticas. Por isso, não há distinção entre amigo e inimigo, e as tarifas estão sujeitas ao arbítrio do presidente. Em um dia, podem ser direcionadas ao México e ao Canadá com a justificativa do tráfico de fentanil e da imigração ilegal; no outro, podem ser suspensas sem que esses problemas sejam resolvidos.
Como em outros aspectos, esse duplo propósito reflete as agendas e idiossincrasias das alas que coexistem, de forma conflituosa, dentro do governo republicano. Para a facção protecionista – representada por Peter Navarro e companhia – a chave é o “compre americano”. Já os transacionistas veem as tarifas mais como um instrumento de negociação. No discurso trumpista, essas abordagens se alternam conforme a ocasião, com maior ou menor ênfase na necessidade de aceitar pequenos sacrifícios, como um aumento da inflação, em prol da recuperação da “grandeza norte-americana”.
Embora Trump tenha recuado duas vezes das tarifas de 25% sobre bens do México e do Canadá, adiando sua implementação por um mês, parte do dano já estava feito.
Os primeiros impactos da guerra tarifária causaram nervosismo em Wall Street. Os mercados reagiram com quedas – significativas, embora não catastróficas – refletindo a incerteza quanto ao efeito dessas medidas sobre o comércio internacional e seu impacto na economia norte-americana, incluindo o aumento da inflação e a disrupção das cadeias de suprimento (estima-se que um carro fabricado na zona do T-MEC cruze a fronteira entre México e Estados Unidos cerca de nove vezes antes de ser finalizado).
A euforia do mercado de ações e das criptomoedas, impulsionada pelas expectativas de desregulação e redução de impostos, está dando lugar a um “bear market”. No início de março, os índices da bolsa – Dow Jones, S&P e Nasdaq – haviam perdido todos os ganhos acumulados desde a vitória de Trump em novembro de 2024. O presidente, que antes usava o boom de Wall Street como um indicador do sucesso norte-americano, passou a minimizar a importância da volatilidade do mercado de ações em função do suposto objetivo maior de fortalecer a “economia real” nacional.
O surgimento da DeepSeek, a empresa chinesa de inteligência artificial, foi um impacto para o setor que impulsiona o crescimento norte-americano, especialmente para a Nvidia, que perdeu 465 bilhões de dólares em valor de mercado. A apresentação pública da DeepSeek também demonstrou que a guerra comercial serviu para atrasar, mas não para impedir o avanço tecnológico da China, que, com menos recursos, conseguiu alcançar resultados similares. O chamado “momento Sputnik” não resolveu a disputa a favor da China, mas foi suficiente para causar um impacto em um setor de competição estratégica.
A concentração do valor de mercado das grandes empresas por trás do boom da IA (as chamadas “sete magníficas”) faz com que até pequenas variações no preço de suas ações tenham impactos desproporcionais, adicionando volatilidade aos mercados.
Embora a economia norte-americana continue sendo a de melhor desempenho entre os países centrais, os indicadores não são positivos: no primeiro mês do governo Trump, o consumo caiu, a confiança dos consumidores atingiu seu nível mais baixo desde 2023, a projeção da inflação aumentou e o dólar se enfraqueceu—algo incomum em contextos de medidas protecionistas, nos quais a moeda tende a se valorizar. O dólar parece ter sido afetado pela confusão gerada pelas políticas erráticas da Casa Branca, perdendo 6% em dois meses (entre janeiro e março) em relação a uma cesta de outras moedas, especialmente o euro, que se fortaleceu com a expectativa de aumento dos gastos com defesa.
Dentro do governo Trump, há duas correntes opostas em relação ao dólar: a do “dólar forte”, defendida pelo secretário do Tesouro, Scott Bessent, e a da dupla Trump-Vance, que considera que uma moeda valorizada prejudica a indústria local. No entanto, é fato que a combinação de um dólar fraco com tarifas elevadas pesará no bolso dos consumidores e impulsionará a inflação. A preferência do presidente e seu vice alimenta especulações sobre um possível “Acordo de Mar-a-Lago”, em analogia aos “Acordos do Plaza” da década de 1980, para enfraquecer o dólar. Além disso, há a possibilidade de Trump pressionar o Fed para limitar o aumento das taxas de juros.
Por fim, a demissão em massa de funcionários públicos e a deportação de imigrantes—que em sua maioria ocupam empregos rejeitados pelos norte-americanos—intensificam a tensão no mercado de trabalho e, sem dúvida, afetarão negativamente as perspectivas de crescimento econômico.
Segundo o FMI, as perspectivas para a economia mundial são desanimadoras, com previsão de um crescimento fraco—de 3,5%—e desigual. Os números projetam um crescimento modesto para os Estados Unidos, na ordem de 2,7%; um fraco 1% para a Europa; e entre 4% e 5% para a China. Outro fator relevante nas projeções do FMI é o peso insustentável da dívida nos países emergentes, que pode se agravar caso o dólar se fortaleça e as taxas de juros subam ou permaneçam em um nível elevado em um contexto inflacionário.
Além do impacto das tarifas e das tendências protecionistas, somam-se os riscos geopolíticos e, sobretudo, uma crescente “lumpenização” do capitalismo, especialmente nos Estados Unidos. Um exemplo disso foi a suspensão, por 180 dias, da aplicação da lei anticorrupção que proibia empresas norte-americanas de pagar subornos no exterior. O governo Trump está desmantelando praticamente todas as regulamentações, desde normas de segurança, medidas de proteção ambiental e condições de trabalho, até disposições de defesa do consumidor contra fraudes e os já mínimos controles sobre a especulação financeira e ativos de risco, como criptomoedas e meme coins. De fato, Trump e sua esposa lançaram sua própria meme coin, possivelmente inspirando Milei a promover o golpe com a Libra. Como corretamente apontou M. Roberts, as regulamentações não impedem as crises capitalistas, mas a desregulamentação total abre caminho para colapsos catastróficos, como a Grande Recessão de 2008.
Crises orgânicas, polarização assimétrica e cesarismo
No contexto do esgotamento do ciclo neoliberal, vem se desenvolvendo uma crise de hegemonia dos partidos tradicionais de diferentes vertentes — social-democratas, liberais e conservadores — que sustentaram o consenso neoliberal nas últimas quatro décadas.
Esse virtual colapso do “extremo centro” (Tariq Ali) configura um cenário de crises orgânicas mais ou menos abertas, tanto em países periféricos — o que não seria uma novidade — quanto nos países centrais, com o pano de fundo de uma profunda polarização social, herança da ofensiva neoliberal.
Entretanto, essa crise das variantes burguesas de centro (e o fracasso de suas variações de centro-esquerda populistas, como os “governos progressistas” da América Latina) não deu lugar a um giro consistente à direita, mas abriu um cenário de polarização política “assimétrica”. Isso significa que, no início desta nova etapa, as extremas-direitas avançaram muito mais em sua radicalização do que as expressões de esquerda surgidas do reformismo.
Dentro desse quadro mais amplo de degradação das democracias liberais — que acompanharam como uma sombra o avanço neoliberal — e de novos fenômenos políticos e da luta de classes, surgem tentativas bonapartistas de “solução pela força” para encerrar a crise pela direita. Os governos autoritários de extrema-direita, como o de Trump e o do “paleolibertário” Milei na Argentina, levam a legalidade da democracia liberal ao limite, tendem a liquidar a divisão de poderes concentrando tudo no Executivo, utilizam um sistema que envolve desde os outros poderes do Estado até os grandes meios de comunicação e redes sociais, e fazem uso da repressão estatal (e potencialmente paraestatal) para alterar drasticamente a correlação de forças, como exemplificado pela ofensiva repressiva contra o movimento pró-Palestina nos Estados Unidos.
Não surpreende, portanto, que nos Estados Unidos tenha se tornado comum a referência ao perigo de uma “ditadura civil”, especialmente quando se analisa o chamado “Project 2025”. Esse é um plano de transformação da burocracia estatal elaborado pela Heritage Foundation, um tradicional think tank conservador de orientação reaganiana, que busca institucionalizar o trumpismo.
A aliança de Trump com Elon Musk — que acumula um poder econômico e político sem precedentes — e o alinhamento de magnatas como Mark Zuckerberg e Jeff Bezos conferem ao governo características de uma plutocracia. O gabinete é majoritariamente composto por empresários megabilionários, cujo patrimônio coletivo é estimado em cerca de 500 bilhões de dólares.
Trump enfrenta contradições que colocam em risco a frágil unidade das diferentes alas que compõem seu governo e um início de mandato marcado por avaliações majoritariamente negativas (com aprovação apenas na política migratória). O papel extraoficial de Musk, que assumiu a tarefa de reduzir o Estado à frente do Departamento de Eficiência Estatal (DOGE), não apenas gera um conflito de interesses com o próprio governo — já que Musk toma decisões sobre áreas das quais extrai enormes benefícios econômicos (ele recebeu pelo menos 38 bilhões de dólares em subsídios governamentais, segundo um estudo do Washington Post) — mas também com outros empresários e membros do gabinete, afetados pelos drásticos cortes. Como explica Quinn Slobodian, o governo de Trump é atravessado por três correntes: a aliança entre Wall Street e o Vale do Silício, os conservadores anti-New Deal e os “anarcocapitalistas” do aceleracionismo de direita, que possuem interesses e políticas contraditórias. Algo disso se manifesta na guerra aberta entre Steve Bannon — o ideólogo nativista do movimento MAGA — e o “globalista” Elon Musk.
Por definição, a menos que se sustentem em derrotas de grande magnitude, esses governos bonapartistas, não hegemônicos, que se apoiam em seu núcleo duro e em minorias intensas, possuem uma base instável e uma legitimidade reduzida pela polarização política, que tendem a aprofundar com ações que podem ultrapassar os limites da correlação de forças. Isso abre possibilidades para saltos na luta de classes e processos de radicalização política. Já há alguns sinais disso. Apesar do papel desmoralizador do Partido Democrata, começaram a surgir as primeiras ações para enfrentar as deportações de imigrantes. O boicote à Tesla (Tesla Takedown), que combina ações pacíficas — como a venda de veículos — e ataques violentos a estabelecimentos e centros de venda, evidencia o ódio crescente contra a aliança Musk-Trump.
Nas margens, há sinais de ações mais radicalizadas, como a organização da autodefesa em Lincoln Heights, uma pequena cidade de maioria negra em Ohio, onde moradores armaram sua própria vigilância para enfrentar ataques de milícias neonazistas.
Luta de classes e perspectivas revolucionárias
Como temos apontado, não estamos diante de um giro unívoco à direita, mas sim em um cenário de polarização social e política, no qual a extrema direita se radicalizou ainda mais, mas começam a surgir sintomas interessantes de respostas pela esquerda. Talvez o processo mais inovador seja o despertar político da juventude na Alemanha, que se mobilizou massivamente contra a extrema direita da Alternativa para a Alemanha e expressou seu descontentamento com o voto massivo no Die Linke.
Desde a crise capitalista de 2008, ocorreram pelo menos três ondas de luta de classes em nível internacional. A primeira, após a Grande Recessão, teve como ponto mais alto a Primavera Árabe, as greves gerais na Grécia e o surgimento dos “indignados” no Estado espanhol. A segunda foi marcada pelas “revoltas”, como a rebelião dos coletes amarelos na França, os levantes no Chile e no Equador, e a luta contra o golpe de Estado na Bolívia.
A terceira, iniciada com a guerra na Ucrânia e os efeitos retardatários da pandemia, ainda está em desenvolvimento e trouxe como novidade a combinação de tendências revoltistas, que persistem fundamentalmente nos países periféricos, com processos de maior centralidade da classe trabalhadora e emergência da juventude, com demandas que vão além das questões econômicas. Isso ficou evidente no movimento de solidariedade ao povo palestino e na luta contra a cumplicidade dos governos imperialistas com o genocídio em Gaza.
Em uma escala superior, destaca-se o recente processo na Coreia do Sul, onde os principais atores que barraram a tentativa de autogolpe do governo direitista de Yoon foram o movimento estudantil e o movimento operário organizado na KCTU.
Como parte dessa tendência, observa-se a luta do movimento estudantil na Sérvia, que, diante de um crime social, tomou as ruas em massa e impulsionou um amplo processo de mobilização operária e popular, culminando na renúncia do primeiro-ministro. Também se destacam as recorrentes e massivas greves gerais na Bélgica contra os ataques do governo de direita. Mais recentemente, houve a greve geral com mobilização na Grécia por ocasião do aniversário de uma catástrofe ferroviária, que serviu como catalisador do enorme descontentamento contra o governo de direita, após anos de passividade decorrente da derrota imposta pelo Syriza.
Provavelmente, a Europa será um dos epicentros dessa luta devido à combinação entre crise burguesa, militarismo e ataques. Nossos companheiros da Revolução Permanente na França estão lançando uma grande campanha contra o avanço do militarismo de Macron e contra os ataques antidemocráticos, assim como os companheiros do RIO na Alemanha, que se opõem ao rearmamento do país.
Para o PTS na Frente de Esquerda, a luta na Argentina contra o governo de Milei, considerado um farol da reação mundial, tem necessariamente um caráter internacionalista e faz parte dessas tendências mais amplas.
Ao contrário de setores desmoralizados da esquerda, que consideram que se abriu um período prolongado de derrotas e evocam o “fascismo” para justificar suas políticas de alianças com setores do centro burguês em nome do “cordão sanitário” contra a extrema direita, nossa perspectiva é de que, nesta situação convulsiva, as batalhas decisivas ainda estão por vir. Estamos nos preparando para uma etapa de confrontos de classe mais radicais, que ultrapassem os limites “normais” da legalidade burguesa e abram caminho para a luta revolucionária da classe trabalhadora.